«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

4º Domingo da Páscoa – Ano B – Homilia

 Evangelho: João 10,11-18 

Frei Alberto Maggi *

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Pastor verdadeiro é aquele que dá a vida

No livro do profeta Ezequiel, no capítulo 34, há uma repreensão do Senhor contra os pastores do seu povo, por quê? Porque não o fazem por amor, fazem-no por interesse próprio, não protegem as ovelhas, mas, na verdade, as exploram. Então o Senhor os ameaça: “Eu mesmo me ponho contra os pastores. Vou reclamar deles as minhas ovelhas e lhes cassar o ofício de pastor. [...] Eu mesmo buscarei minhas ovelhas e delas tomarei conta” (Ez 34,10.11). É a isto que Jesus se refere nesta passagem que a liturgia nos apresenta hoje; é o décimo capítulo, do versículo onze em diante, do Evangelho de João. 

João 10,11:** «Naquele tempo, disse Jesus: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas.»

Jesus afirma “Eu sou o bom pastor”, “Eu sou” é o nome divino, portanto Jesus reivindica a plenitude da condição divina; “bom pastor”, o termo “bom” não se refere à bondade de Jesus, para a qual o evangelista usará o termo grego “agatós”, daí o nome Ágata, que significa “bondade”. Aqui, porém, Jesus declara que é o Pastor, e usa o termo grego “kalós, do qual deriva caligrafia, bela escrita, que significa “o belo”, “o verdadeiro”. Portanto, “bom” significa “o verdadeiro pastor”. Jesus afirma ser o pastor anunciado por Deus no livro do profeta Ezequiel e, por isso, este anúncio não foi muito esperado, foi temido porque os outros pastores entendem que é o fim para eles.

E Jesus tem a insígnia para reconhecer quem é o verdadeiro pastor, porque ele dá a vida pelas suas ovelhas. Este dom da vida não surge de um perigo para as ovelhas, mas o precede; esta é a característica de Jesus com seus seguidores. 

João 10,12-13: «O mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas.»

Em seguida, Jesus passa aos mercenários que não são maus pastores, não são pastores, de modo algum! São mercenários, são aqueles que o fazem por interesse. Assim, Jesus contrasta o verdadeiro pastor que se destaca pela sua generosidade, com os outros que se destacam pela sua conveniência; tudo o que eles fazem é para sua comodidade e interesse! 

João 10,14-15: «Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas.»

Eu sou o bom pastor” ― repete Jesus ― “Conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas me conhecem”, é uma dinâmica de amor recebido e de amor comunicado que torna possível nas “ovelhas” a mesma transmissão da vida divina que existe entre Jesus e o Pai. “Ovelhas” que, naturalmente, são imagem do povo. Novamente Jesus afirma que dá a vida, novamente Jesus afirma que o dom generoso da sua vida não depende de que suas ovelhas estejam em perigo, mas até o precede. Esta é a presença constante do Senhor dentro de nós. 

João 10,16-18: «Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor. É por isso que o Pai me ama, porque dou a minha vida, para depois recebê-la novamente. Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo; tenho poder de entregá-la e tenho poder de recebê-la novamente; esta é a ordem que recebi do meu Pai”.»

Então Jesus faz um anúncio: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil”. Anteriormente (cf. Jo 10,1-4), Jesus havia dito que a sua função de pastor era deixar as ovelhas saírem do recinto, mas não para novamente fechá-las, mas libertá-las. A cerca, se por um lado protege, por outro tira a liberdade. Então com Jesus tudo isso acabou, acabou a era das cercas, por mais sagradas que sejam.

Jesus não veio para tirar pessoas/ovelhas do redil, Israel, para encerrá-las em outro recinto mais sagrado e mais bonito. Não! Jesus veio para dar plena liberdade: um rebanho, um pastor. O que Jesus quis dizer? O único verdadeiro santuário no qual a grandeza e o esplendor do amor de Deus se manifestarão, de agora em diante, será Jesus e sua comunidade. Jesus diz “também eu devo guiar” as demais ovelhas que não pertencem a este redil. O verbo “dever” indica um imperativo da vontade divina, e prossegue dizendo “escutarão a sua voz”. Por que escutam a sua voz?

Porque, na voz de Jesus, cada homem ouve a resposta ao seu desejo de plenitude de vida.

E eles se tornarão”, aqui escreve literalmente o evangelistaum rebanho, um pastor”, não há conjunção “um rebanho e um pastor”; a presença do rebanho implica a do pastor. A comunidade de Jesus, com a presença de Jesus, é o único verdadeiro santuário de onde irradia e se manifesta o seu amor, a sua misericórdia, a sua compaixão, e toma o lugar do templo. Mas qual é a diferença? Enquanto no templo era o povo que tinha que ir, aqui há um rebanho, um pastor, então há uma dinâmica de movimento que vai em direção ao povo, a todos que precisam deste amor, desta compaixão e desta compreensão. Este é o distintivo de Jesus como verdadeiro pastor da sua comunidade. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Deve-se doar com a alma livre, simples, apenas por amor, espontaneamente!»

(Martinho Lutero: 1483-1546 ― monge agostiniano e professor de Teologia germânico que tornou-se uma das figuras centrais da Reforma Protestante)

Em um país no qual existem tantas igrejas, tantas denominações religiosas que se autodenominam “cristãs”, este Evangelho é mais atual do que nunca! Nesta segunda parte do “discurso do pastor” ― sendo que a primeira (Jo 10,1-10) descrevia aqueles que visitam o aprisco das ovelhas ―, Jesus deixa claro que o contraste que ele deseja fazer não é entre o pastor bom e o pastor mau! 

O contraste é mais profundo, é entre o “pastor verdadeiro, autêntico, belo” (grego: kalós) e o “assalariado, contratado” (grego: misthôtós). Este último trabalha pelo dinheiro, pelo ganho que pode obter com a sua tarefa. Jesus observa bem que ele não é pastor e não é dono das ovelhas (cf. Jo 10,12). Por isso, ele não possui a característica principal do “pastor belo” que é amar tanto suas ovelhas, a ponto de dar a vida por elas, se necessário for! 

Aqui, há algo muito importante e fundamental a ser observado: Deus é amor (cf. 1Jo 4,8.16), ele é quem por primeiro nos ama e nos entrega seu próprio Filho por amor (cf. Jo 3,16; Rm 5,8; Gl 2,20; 1Jo 4,9-11.19). Portanto, o seu Filho Jesus é, ao mesmo tempo, aquele que nos revela esta sua identidade ― o amor ― e é a força que torna possível o amor entre as ovelhas. Porque é o amor que sustenta a comunidade! Por isso, não pode haver verdadeira comunidade cristã, onde o fundamento seja outro que o amor! Especialmente, se a preocupação central de quem está à frente dessa comunidade é o dinheiro, o ganho, o bem-estar, a fama, o poder! Diante deste critério, é forçoso reconhecer que há muitos “assalariados” na função de líderes das Igrejas, mas nem todos são “pastores” de fato, isto é, nem todos são exemplares, como é Jesus, o “pastor belo”. 

Afinal, o “bom pastor ou belo pastor” não tem um significado “cultual”, mas “exemplar”! O que está na base de toda e qualquer vocação, no interior da Igreja, não pode ser jamais o interesse e bem-estar pessoais, mas o amor! Pois “sem amor não há pessoa, não há família, não há comunidade, não há futuro possível. Com amor tudo é possível” (Equipe Bíblica Verbo). Por isso, não nos enganemos ― nós do clero e lideranças leigas em geral ― podemos ter o encargo oficializado pela Igreja, mas para sermos pastores autênticos, devemos ser conhecidos e reconhecidos pelas ovelhas, pelo povo (cf. Jo 10,14)! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Sempre à frente das ovelhas, em terrenos planos e em terrenos acidentados, no calor e na tempestade, de dia e de noite. Sempre e em todo lugar à frente das ovelhas. Mesmo quando o lobo chega e se há perigo do ladrão: mesmo assim ele está à frente. O pastor escolheu não ter para si um espaço de vida e de liberdade, não ter outra alegria senão a alegria e a saciedade do rebanho. O pastor entregou os olhos à busca de erva e água para as ovelhas, à defesa do lobo e do agressor, ao cuidado de cada uma e à unidade do seu rebanho. Ele deu os seus ouvidos para prestar atenção ao balido dos cordeiros, para ouvir vozes próximas e distantes. Ele entregou as mãos e os pés pela vida e alegria de cada uma e de todas as ovelhas que sem ele não teriam nada, nem comida, nem segurança, nem paz, nem companhia. Eu sou tua ovelha. Tu és o nosso pastor, Jesus.» Amém.

(Fonte: Vigilio Covi. Orazione finale. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico B. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 237)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – IV Domenica di Pasqua – 25 aprile 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 15/04/2024).

terça-feira, 16 de abril de 2024

A ameaça―ainda―sem nome

 É hora de ligar o alarme

 Ruy Castro

Jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras 

BENITO MUSSOLINI & ADOLF HITLER: muitos não aprenderam nada com a história!!!

A Internacional da Extrema Direita apenas começou e, aos poucos, vai ganhando todas

Nos anos 1930, o mundo tremia ao ouvir falar do Comintern, a Internacional Comunista. Hoje, sem nome, há uma Internacional da Extrema Direita, e o mundo ainda não se tocou. Ela já detém o governo na Itália, Polônia, Hungria e Holanda. Integra ou apoia o governo na Finlândia, Suécia e Grécia. Cresce a galope na França. Chegou perto nas eleições em Portugal e Espanha. Pândega ou trágica, venceu na Argentina. Promove o terror na Alemanha, no Canadá e na Nova Zelândia. E os Estados Unidos podem ter Trump de volta.

No Brasil, Bolsonaro tem processos e acusações suficientes para enjaulá-lo por 500 anos. Isso ainda não aconteceu porque a Justiça tem de seguir o seu curso “normal” ― embora se trate de um anormal que, vitorioso na eleição ou no golpe, implantaria uma ditadura que nos faria sentir saudade dos militares. Daí, Bolsonaro continua à solta, arrotando ameaças e pautando a imprensa.

O povo: massa de manobra nas mãos dos populistas da extrema-direita

A extrema direita tem uma receita universal:

* Populismo,

* nacionalismo,

* discurso moral e religioso.

* Xenofobia, repúdio a imigrantes e racismo.

* Desprezo pelos partidos e pregação da antipolítica.

* Domesticação ou fechamento do Judiciário.

* População armada.

* Antiliberalismo.

* Negacionismo.

* Rejeição às teses identitárias e

* rancor contra artistas e intelectuais.

* E, com o apoio de seus zumbis nas redes sociais, disseminação de fake news,

* discurso de ódio, com ameaças físicas e

* inversão de conceitos ― falam de “liberdade”, “democracia” e “eleições limpas” e, quando no poder, esses valores são os primeiros a ser cancelados.

Elon Musk, o Führer das plataformas digitais, encarna esse programa. Seu desacato ao Brasil poderia ter sido ditado por Bolsonaro. Mais cedo do que pensamos, o mundo pagará caro por essa tecnologia sem pátria e sem freios.

O Comintern fracassou em tudo e acabou em 1943. A Internacional da Extrema Direita apenas começou e, aos poucos, vai ganhando todas. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Colunista – Quarta-feira, 10 de abril de 2024 – Pág. A2 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/04/2024).

“Deus não existe, mas ele nos deu esta terra”

 A Bíblia justifica o sionismo?

 Anne Waeles

Professora de Filosofia 

Sionistas religiosos e seculares acabam voltando para a retórica da “Terra Prometida” (Foto: PxHere)

A distorção da tradição e o significado que ela dá à expressão Terra Prometida

A coligação entre ultranacionalistas seculares e religiosos no poder em Israel é inédita, mas a imaginação messiânica começou a florescer no país muito antes de 2022. Desde o início do sionismo, um discurso emprestado da religião busca conferir legitimidade adicional ao projeto. Essa retórica evoca termos como “Terra Prometida” e esperanças judaicas de 2 mil anos de reunir os exilados. Apesar do ateísmo da maioria dos pioneiros sionistas. Apesar de seu desdém pelos judeus religiosos – a quem chamavam de “atrasados”, “passivos” –, que eles desejavam substituir por “judeus racionais, voluntários e trabalhadores”, capazes de reconstruir a nação judaica na terra de Israel. Liberais ou ultraortodoxos, os religiosos veem a emergência do projeto sionista como uma traição à tradição e denunciam uma instrumentalização do judaísmo a serviço de uma “religião nacional”. 

AMNON RAZ-KRAKOTZKIN

Em relação a essa visão, o acadêmico Amnon Raz-Krakotzkin evoca um messianismo secular: se o messianismo e o nacionalismo se reforçam hoje em Israel, “é porque estão no cerne do mito sionista secular. Os colonos não inventaram nada, a postura deles não difere da dos sionistas seculares, eles simplesmente seguem suas consequências lógicas” [1]. Para esse historiador do judaísmo e outros que pensam como ele, o sionismo figura como um desvio dos conceitos fundamentais dessa religião, incluindo os conceitos relacionados a exílio e redenção. “A essência do judaísmo é a ideia de que a existência é exílio”, explica. A destruição do Segundo Templo, que levou o povo de Israel ao exílio, por exemplo, aconteceu como consequência de um desvio dos preceitos divinos: Por causa de sua iniquidade […] a casa de Israel foi exilada(Ezequiel 39,23). Entretanto, nesse rebaixamento, os judeus devem observar os mandamentos da Torá e, por suas boas ações, reparar o mundo. O distanciamento, o deslocamento e o movimento têm, portanto, também uma dimensão espiritual. Outro historiador, Yakov Rabkin, apresenta o exílio como um “estado do mundo onde a presença divina está escondida” [2] e tem um significado universal para toda a humanidade. “O exílio refere-se a uma ausência fundamental: designa a imperfeição do mundo e mantém a esperança de sua mudança”, resume Raz-Krakotzkin. 

YAKOV RABKIN

O sionismo reduz o exílio à sua dimensão material, uma injustiça cometida por outras nações, que deve ser remediada pela criação de um lar na Palestina. Tal releitura passa por estabelecer, por um lado, uma ligação entre a história judaica contada na Torá e a proclamação do nascimento do Estado de Israel em 1948, e, por outro lado, por ignorar os diferentes contextos de diáspora judaica durante quase 2 mil anos, para favorecer um mito nacional [3]. Desenvolvida pela escola de Jerusalém – em torno das figuras de Ben-Zion Dinur e Yitzhak Baer –, essa concepção sionista da história judaica prevalece nas escolas seculares de Israel. Nadav, um franco-israelense de 32 anos, diz: “Não eram cursos religiosos nem ensinamentos de história. Porém, líamos os textos da Torá relacionando-os com a história nacional”. A Torá, mas não o Talmude, este último rejeitado como livro de exílio e também de interpretação: o sionismo adere a uma leitura literal e instrumental de textos religiosos, como o livro de Josué, marginal na tradição judaica, mas dedicado à conquista de Canaã. Reconstruída dessa forma, a história nacional eclipsa a dos palestinianos. “Para um estudante israelense, o país definido como sua terra natal não tem história entre a Antiguidade bíblica e a colonização sionista; o passado muçulmano da Palestina é obscurecido nos programas”, observa Raz-Krakotzkin. 

A “Terra Prometida” na tradição bíblica

Deus não existe, mas ele nos deu esta terra”: este paradoxo parece resumir o messianismo secular. Na tradição, a Terra Prometida – Sião – representa mais a redenção do que um lugar, um horizonte de paz e de justiça que acompanhará a vinda do Messias. “Próximo ano em Jerusalém” canta um ideal espiritual ao qual se pode aspirar em qualquer lugar; e alguns judeus israelenses continuam a recitar essa oração tradicional, uma vez que ainda se consideram no exílio. É certo que o messianismo prevê a reunião de exilados em Israel, mas inferir a criação de um Estado-nação na Palestina exige distorcer a tradição e o significado que ela dá à expressão Terra Prometida. É também porque só Deus pode reunir os exilados que muitos judeus religiosos se recusam a viver lá.

O Talmude proíbe acelerar a redenção e condena o uso da força para entrar em Israel, seja em massa, seja de forma organizada.

O que o sionismo reformulou

YEOSHUA HANA RAWNITZKI

Os sionistas pretendem, assim, livrar-se dos mandamentos e crenças rabínicos
que consideram atrasados, mas também transformar o judaísmo numa pertença nacional. Sua literatura, portanto, recupera estereótipos antissemitas sobre sujeitos religiosos ligados ao exílio – pessoas monótonas, passivas, fracas – e promove o “judeu musculoso” [4], que assume o controle de seu destino. “Por entre os judeus pequenos e fracos, enrugados e murchos, os judeus nascidos no gueto, sem imagem corporal, emergirão homens altos e fortes, prósperos e cheios de vida”, escreveu o pioneiro ucraniano Yeoshua Hana Rawnitzki (1859-1944). [5] 

Para encorajar a migração para Israel, recorreu-se simultaneamente ao discurso messiânico e à secularização dos recém-chegados. No fim da década de 1940, os imigrantes do Iêmen passaram por uma campanha de reeducação. Foram instalados em acampamentos onde tinham de colher laranjas no shabat e cortar os tefilins. Como afirmou Maurice Samuel (1895-1972), ativista sionista anglo-americano: “Precisávamos de tantos judeus quanto possível, desestruturados, de todos os lugares e de qualquer lugar, em boa forma ou não, convencidos ou simplesmente bajulados, porque era necessário preencher sem demora os lugares esvaziados pelos milhares de árabes que abandonaram suas casas”. [6] 

O historiador Raz-Krakotzkin também mostra que a ideia messiânica do retorno a Sião tende a ter precedência sobre a ideia de refúgio.

“O retorno (alya) substitui a conversão.”

O bom judeu passa a ser aquele que emigra para Israel ou que, desde a diáspora, apoia a política israelense, e não mais aquele que observa a Torá. Yakov Rabkin descreve essa nova religião como “israelismo”, que se impõe como o último refúgio do judeu secular, agora desligado da tradição religiosa. A redefinição do judaísmo como identidade nacional também envolve a reescrita das orações. Os colonos do início do século XX reformularam nomeadamente a Hagadá de Pessach (narrativa da Páscoa), um dos textos rituais mais importantes, para eliminar Deus e apresentar o êxodo do Egito como uma luta pela libertação nacional. Izkor – “Lembre-se” –, um pedido a Deus para preservar a memória dos falecidos, tornou-se um discurso ao povo judeu, exortado a lembrar os heróis “que deram a vida pela dignidade de Israel e da Terra de Israel”. Na oração de Hanucá, “Quem contará sobre o heroísmo de Israel?” substitui o original “Quem contará o heroísmo de Deus?”. 

Os feriados nacionais também retomam textos bíblicos para distorcer o significado, como o Dia da Independência, que enfatiza a ausência de intervenção divina e a necessidade de garantir a própria redenção. A própria sequência das comemorações da Primavera mostra essa sobreposição entre os feriados religiosos e nacionais operada pelo sionismo: a Páscoa, o Dia da Memória da Shoah, a comemoração dos soldados mortos por Israel e o Dia da Independência. O conjunto está integrado em uma única narrativa: a que faz da Shoah o ponto culminante do exílio e relaciona a Independência (a criação do Estado de Israel) ao êxodo do Egito. 

GERSHOM SCHOLEM

O mesmo se aplica à transformação do hebraico, uma língua sagrada, em língua nacional. O historiador e filósofo Gershom Scholem temia que essa escolha pudesse levar a pensar toda a realidade em termos sagrados e a carregar a realidade política com conotações apocalípticas: “Eles pensam que transformaram o hebraico em uma língua secular, que extraíram seu ferrão apocalíptico, mas isso não é verdade”. 

De fato, a conotação religiosa de muitas expressões em hebraico encoraja uma leitura messiânica da atualidade política israelense. Por exemplo, o Fundo Nacional Judaico (Keren Kayemeth Lelsrael, KKL), organização financeira responsável pela compra e administração de terras atribuídas aos judeus, fundada em 1901, tem como nome uma fórmula que remete à acumulação de méritos e boas ações. A “reunião dos exilados” no novo contexto refere-se à “imigração”. A palavra bitahen, que significa “confiança em Deus”, recebe o significado de “segurança militar”. 

Referências:

[1] Amnon Raz-Krakotzkin, Exil et souveraineté [Exílio e soberania], La Fabrique, Paris, 2007.

[2] Yakov Rabkin, Au nom de la Torah. Une histoire de l’opposition religieuse au sionisme [Em nome da Torá. Uma história de oposição religiosa ao sionismo], Edições da Universidade Laval, 2004.

[3] Ler Shlomo Sand, “Comment fut inventé le peuple juif” [Como foi inventado o povo judeu], Le Monde Diplomatique, ago. 2008.

[4] Max Nordau (1849-1923), escritor judeu alemão, braço direito de Theodor Herzl, citado por Amnon Raz-Krakotzkin, op. cit.

[5] Citado por Amnon Raz-Krakotzkin, op. cit.

[6] Maurice Samuel, Level Sunlight, 1953, citado por Yakov Rabkin, op. cit.

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Edição 201 – Abril/2024 – Terça-feira, 2 de abril de 2024 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/04/2024).

A religião instrumentalizada para fins nacionalistas

 Israel: dirigentes laicos lançam mão da religião

 Marius Schattner

Jornalista 

A instrumentalização da religião pelas forças armadas de Israel já é recorrente há anos, mesmo que de forma mais discreta (Foto: Yosi Rot/Creative Commons)

Não há nada de surpreendente que o discurso messiânico seja, hoje, usado para justificar a devastadora guerra travada pelo Exército israelense em Gaza

“Juntos venceremos!”Ao slogan central da guerra de Gaza, a direita israelense no poder acrescenta sistematicamente os termos “com a ajuda de Deus”, conferindo uma dimensão religiosa ao conflito com o Movimento de Resistência Islâmica Hamas. 

Em duas ocasiões, durante uma conferência de imprensa em Tel Aviv, em 28 de outubro de 2023 e depois em 3 de novembro, numa carta aos soldados parabenizando-os pelo “combate contra os assassinos do Hamas”, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu citou o Deuteronômio da Bíblia Hebraica (25,17): “Lembre-se do que Amaleque te fez” (ver o box ao final deste artigo). A declaração foi feita embora ele se mantenha afastado de qualquer prática religiosa, e ainda o obrigou a se defender da acusação de incitar o genocídio, em resposta às denúncias da África do Sul perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ) [1]. 

Rabino AVICHAI RONTZKI

Embora recorrer a esse registro tenha o intuito de conferir um caráter religioso ao conflito com o Hamas, não se trata de uma reação isolada às atrocidades cometidas em 7 de outubro pelo movimento islâmico. Na realidade, as autoridades israelenses têm utilizado essa retórica há vários anos, embora de forma mais discreta. O depoimento nº 482.683 de um oficial da Brigada de Infantaria Golani publicado pela Breaking the Silence (Quebrando o silêncio) – ONG que reúne ex-soldados contra a ocupação dos territórios palestinos – é uma evidência: durante a Operação “Chumbo Fundido” em 2008-2009, o rabino-chefe do Exército, Avichai Rontzki, ordenou aos soldados do “exército de Deus” que fossem implacáveis para com o inimigo, referindo-se às guerras de conquista de Canaã, a Terra Prometida. Em 2014, durante a Operação Margem Protetora, ainda em Gaza, o general Ofer Winter, comandante da Brigada de Infantaria Givati, proclamou: “A história nos escolheu como ponta de lança da luta contra o inimigo terrorista de Gaza que insulta e amaldiçoa o Deus dos Exércitos de Israel” [2]. Na época, comentários como esses, vindos da boca de um militar de alta patente, causaram um escândalo; e também contribuíram para encurtar sua carreira como oficial. 

Atualmente, esse tipo de declaração parece menos chocante. O discurso nacionalista-religioso tornou-se comum, banalizado: alguns ministros da extrema direita o defendem, como Itamar Ben-Gvir, um supremacista judeu à frente da segurança nacional, ou Bezalel Smotrich, responsável pela Fazenda, assim como outros membros do governo e deputados afiliados ao Likud, o partido de Netanyahu. Também se ouve essa narrativa no Exército, particularmente nos escalões inferiores, e nas unidades de combate em que o número de oficiais de academias religiosas pré-militares tende a ser maior. 

Rabino AMICHAI FRIEDMAN discursando para as tropas de Israel

Duas sequências viralizaram nas redes sociais. No primeiro vídeo [3], que data do início de novembro, Amichai Friedman, rabino do centro de treinamento da brigada Nahal, afirma que a guerra deve permitir o restabelecimento dos assentamentos de Gush Katif, desmantelados durante a retirada israelense em 2005, na Faixa de Gaza e muito além. “Este país é nosso, incluindo Gaza, incluindo o Líbano, tudo é a Terra Prometida”, afirma o capitão ovacionado pelos soldados. Inicialmente desaprovado pelo comando militar, e suspenso por trinta dias, acabou ganhando outro posto rabínico no mesmo regimento. 

Em outro vídeo [4], filmado no mesmo mês durante uma cerimônia após a devastação da cidade palestiniana de Beit Hanoun, o comandante Yair Ben David, oficial da reserva do Batalhão 9208, apela não apenas à erradicação do Hamas, objetivo oficial da campanha israelense, mas também à aniquilação de Gaza. Apoiando-se no Antigo Testamento, ele traça um paralelo entre a destruição dessa cidade no nordeste do enclave e a terrível vingança exercida pelos filhos do patriarca Jacó, Levi e Simeão, contra os habitantes de Siquém (nome hebraico para a atual Nablus, na Cisjordânia), após o estupro de sua irmã Dinah pelo filho do rei da cidade. A Bíblia registra que os dois irmãos mataram todos os homens da cidade à espada, apesar da promessa de poupar suas vidas (Gênesis 34).

“Simeão e Levi compreenderam que a honra está acima de tudo e todos no Oriente Médio. Eles fizeram em Siquém o que fizemos em Beit Hanoun. Mas a tarefa não está concluída”, alerta o comandante. “Toda Gaza deve sofrer o destino de Beit Hanoun […] com a ajuda de Deus, Siquém ou qualquer outra cidade que se atrever a levantar-se contra Israel terá o mesmo destino que Beit Hanoun”, completou.

O oficial, no entanto, deixa de mencionar o resto da história e a desaprovação de Jacó quanto ao massacre e ao perjúrio. Em seu leito de morte, diz a Bíblia, ele “amaldiçoou a ira” que se apoderou de seus dois filhos, “porque era má”, e apelou aos seus outros filhos para “não se juntarem aos seus desígnios” (Gênesis 49,6). 

Blindados do Exército de Israel

À medida que o vídeo circula, parte do público teme que ele possa alimentar a acusação de “incitamento ao genocídio” e degradar ainda mais a imagem de Israel no cenário internacional. A indignação não é apenas formal. Também diz respeito ao conteúdo. Isso é evidenciado por um comentário mordaz publicado no jornal diário Yediot Aharonot, de ampla circulação, em 22 de dezembro de 2023.

Assassinar, pilhar, destruir: é assim que os soldados aprendem a Bíblia e a tradição judaica. São formados em meio a mentiras tanto sobre as instruções dadas ao Exército como sobre as narrativas bíblicas.”

DISCURSO DA VINGANÇA

Os ultranacionalistas não fazem distinção entre o Hamas e o resto da população palestina acusada de o apoiar, uma amálgama mortal levada a cabo em nome de uma pretensa visão ética. “A guerra não é uma provação. Não matamos um inimigo porque ele é culpado e não o poupamos porque ele é inocente. É um confronto de um coletivo contra outro, de uma nação contra outra”, diz uma das figuras mais populares dessa corrente, o carismático rabino Oury Cherki, originário da Argélia. Ao ficarem do lado do mal, ao trabalharem para a destruição do povo de Israel como os nazistas, os palestinos de Gaza, afirma este autor de numerosas obras sobre o âmbito universal do judaísmo, teriam perdido o direito de figurar “na comunidade das nações”. Aos seus olhos, a ação levada a cabo pelo Exército israelense em Gaza seria, portanto, “perfeitamente ética”, ao contrário da exigência de poupar os civis a todo o custo [5]. 

No dia 28 de janeiro, em Jerusalém, diante de milhares de apoiadores entusiasmados, a extrema direita, sentindo-se liberta dos constrangimentos de linguagem impostos pela unidade nacional no início da guerra, lançou uma campanha pela retomada da colonização na Faixa de Gaza e uma “transferência de população” para o Egito – o que as autoridades do Cairo refutam – ou para qualquer outro país, um eufemismo para expulsão em massa, limpeza étnica. 

Por outro lado, os grupos ultraortodoxos (que representam 12% da população judaica de Israel), o partido Shas (tradicionalmente sefaradita) e o Judaísmo da Torá (partido Ashkenazi), pedras angulares da coalizão governamental, não mostram nenhum interesse no restabelecimento de assentamentos em Gaza. Eles aceitaram tacitamente o seu desmantelamento em 2005 e os seus rabinos estão cautelosos com os excessos messiânicos dos ultranacionalistas… sem, no entanto, denunciá-los em plena luz do dia, dada a crescente popularidade da extrema direita entre o seu rebanho. 

Netanyahu: popularidade em baixa

De acordo com várias sondagens consistentes, no entanto, a atual coalizão não seria renovada no caso de eleições legislativas antecipadas, uma perspectiva que Netanyahu – cuja popularidade entrou em colapso – quer evitar a todo o custo. A direita mais radical não colheria, portanto, os benefícios das frustrações da população judaica desde o desastre de 7 de outubro, que a fez alavancar cerca de 15 assentos dos 120 no Knesset. Ela seria excluída de um futuro governo, que permaneceria de direita, mas menos radical que o atual. 

Sociólogo YAGIL LEVY

As ideias professadas por seus partidários ainda encontram eco numa sociedade israelense afetada durante décadas pela “desumanização” dos palestinos que vivem sob ocupação, como observa o sociólogo Yagil Levy [6]. Para esse investigador:

... a dimensão religiosa dada à guerra de Gaza serve, sobretudo, para justificar a sede de represália, ao mesmo tempo que confere um “significado superior à missão” dos combatentes.

O “discurso de vingança tornou-se predominante no Exército desde o início da guerra, embora até então fosse considerado excepcional”, explica, com consequências desastrosas na condução racional das operações. Levy observa, assim, que no início da ofensiva israelense, o comando militar limitou-se a notificar, às tropas, a proibição de saques. 

Só quando três reféns israelenses foram mortos por engano em Gaza é que o chefe do Estado-Maior Herzi Halevi insistiu, em 16 de dezembro de 2023, em vários canais de televisão, na “proibição de abrir fogo contra aqueles que brandissem uma bandeira branca e pedissem rendição”. E apenas um mês depois de Israel ter sido pressionado pela Corte Internacional de Justiça a prevenir atos genocidas é que o general apelou aos seus soldados “para não usarem a força quando não for necessária, e diferenciar entre terroristas e civis”, reforçando que o Exército israelense, ao contrário do Hamas, estaria impregnado de valores humanos e não se envolve em “assassinatos, atos de vingança, genocídios”. [7] 

“A vingança, essa reação instintiva, é inútil. Pelo contrário, corre o risco de nos destruir por dentro, mesmo que prevaleçamos no território.”

Esta foi a confidência do rabino do Instituto Matan em Jerusalém, Daniel Epstein, em janeiro último. De acordo com a tradição talmudista, o filósofo alerta contra as miragens da febre messiânica, “uma solução fácil que nos permitiria escapar às duras realidades e questões levantadas pelo 7 de outubro. Esta tragédia continua a nos surpreender”. 

Rabino DANIEL EPSTEIN

Referências:

[1] Ler Anne-Cécile Robert, “La Cour internationale de justice évoque un ‘risque plausible de génocide’ à Gaza” [Corte Internacional de Justiça fala de “risco plausível de genocídio” em Gaza], Le Monde Diplomatique, fev. 2024.

[2] Citado por René Backmann, “L’armée israélienne en danger de ‘théocratisation’?” [O exército israelense em perigo de “teocratização”?], Confluences Méditerranée, n.122, Paris, 2022.

[3] “Rabbi at Israeli military training base says ‘whole country’ is ‘ours’, including Gaza and Lebanon” [Rabino em base de treinamento militar israelense diz que “todo o país” é “nosso”, incluindo Gaza e Líbano], 7 nov. 2023, www.haaretz.com.

[4] Canal 13 da televisão israelense, 20 dez. 2023, https://13tv.co.

[5] Entrevista com Oury Cherki, “Sur l’éthique de la guerre à propos de ce qui se fait à Gaza” [Sobre a ética da guerra em relação ao que está sendo feito em Gaza], 16 out. 2023, www.yozevitch.com.

[6] Yagil Levy, “A emergência do discurso da vingança” (em hebraico), 20 dez. 2023, https://telem.berl.org.il.

[7] Ordem do dia n. 4 de 20 de fevereiro de 2024. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Edição 201 – Abril/2024 – Terça-feira, 2 de abril de 2024 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/04/2024). 

AS MIL FACES DE AMALEQUE

Marius Schattner

No judaísmo, Amaleque tem uma conotação sinistra: é o inimigo arquetípico de Israel. Exterminá-lo é um dever, porém ele ressurge a cada geração. Se originalmente designava um povo específico, ao longo dos séculos assumiu um significado mais simbólico, de encarnação do mal absoluto sobre a Terra. 

A Bíblia Hebraica (Torá) conta como Amaleque, neto de Esaú, deu seu nome à tribo que atacou de surpresa o povo judeu, enquanto este último se arrastava à exaustão pelo Deserto do Sinai no êxodo do Egito. Assim, Deus ordenou aos hebreus que travassem uma guerra impiedosa contra os amalequitas, por esse ataque traiçoeiro e por se levantarem “contra o Seu Trono”. Também convocou Seu povo a preservar a memória dessa ofensa até que ela pudesse ser apagada pela conquista da Terra Prometida: a mais implacável das maldições bíblicas (Êxodo 17,14; Deuteronômio 25,19). 

Essa injunção resultará numa ordem explícita dada por Deus ao Rei Saul, para travar uma “guerra de extermínio” contra os amalequitas (1 Samuel 15,18): “Enfrente os amalequitas, destrua-os completamente com todos os seus bens, não deixe nada com vida: mate os homens, as mulheres, as crianças e os recém-nascidos, bois e ovelhas e todos os seus camelos” (1 Samuel 15,3). Saul obedeceu, mas não seria perdoado por ter poupado a vida de Agague, rei dos amalequitas. 

A Bíblia alude ainda a Amaleque no livro de Ester, no qual Hamã, um descendente de Agague, planeja a aniquilação dos judeus do Império Persa. A intervenção de Ester apelando a seu marido Assuero (também conhecido como Xerxes), rei da Pérsia, evita o massacre. Durante a festa de Purim, os judeus celebram essa salvação milagrosa, e na sinagoga são lidas passagens do Pentateuco contra Amaleque. 

Ele realmente existiu? Nem pesquisas históricas, nem as escavações arqueológicas o confirmam. A Bíblia é o único texto que menciona esse inimigo hereditário do povo judeu. Mito ou figura histórica, Amaleque sempre foi significativo na religião. 

Os sábios do Talmud discutiram extensivamente o tema, interpretando livremente as Escrituras para neutralizar seu potencial de violência. Em primeiro lugar, porque consideram impossível identificar esse adversário maligno em meio à mistura de populações na região quando aconteceu a destruição do reino de Israel pelos assírios no século VIII a.C. Assim, o mandamento (mitzvah) “não esqueças o que Amaleque fez a ti” não é acompanhado pelo impossível mandamento de erradicá-lo, reservado para os tempos messiânicos. 

Algumas fontes rabínicas viram uma emanação de Amaleque na supressão das revoltas judaicas pelo Império Romano. Na Idade Média, outras fontes em terras islâmicas identificaram-no com o cristianismo, o que foi contestado pelos mestres do Talmud em terras cristãs. No século XX, o nazismo seria denunciado como um novo Amaleque. 

Por sua vez, a partir do século XIX, importantes pensadores judeus – como o rabino alemão Samson Raphael Hirsch (1808-1888), figura importante da nova ortodoxia, fiel à tradição, porém aberto ao Iluminismo – assimilaram Amaleque ao culto da força, à “glorificação da espada” que Deus ordena erradicar. 

Aparentemente, não é o significado que Netanyahu confere a esse conceito polissêmico no contexto da guerra atual, cujos riscos de excessos foram alertados pelo acadêmico Emmanuel Bloch em 2015: “Se quisermos, como as gerações que nos precederam, escapar à armadilha da violência religiosa, devemos insistir novamente e sempre nas salvaguardas que a nossa tradição desenvolveu ao longo os séculos”. [1] 

Referência:

[1] Emmanuel Bloch, “Y-a-t-il une guerre sainte juive?” [Há uma guerra santa judaica?], Aderaba – Questions juives en chantier, 26 fev. 2015, https://aderaba.fr/djihadjuif/.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

3º Domingo da Páscoa – Ano B – Homilia

 Evangelho: Lucas 24,35-48 

Frei Alberto Maggi *

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Somos testemunhas de um Cristo vivo, que deseja a mudança de mentalidade e o perdão

Se nenhum evangelista nos descreve a ressurreição de Jesus, todos nos dão indicações preciosas sobre como experimentá-lo vivo e vivificante em nossas vidas. A experiência da ressurreição de Cristo não foi um privilégio para poucos, mas uma possibilidade para todos. Lucas, e aqui estamos no final do seu evangelho, capítulo 24, insiste no verbo “reconhecer no partir do pão”. O que Lucas nos descreve não é uma visão, mas uma experiência, um reconhecimento. São os discípulos de Emaús que regressam, encontram os outros e contam como o reconheceram ao partir o pão. Por que na fração do pão? É Jesus quem na Última Ceia, no Evangelho de Lucas, depois de ter partido o pão e oferecido aos seus seguidores, disse: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19). Na celebração da Eucaristia, o Senhor Jesus torna-se presente, manifesta-se. Pois nela se dá a dinâmica de amor recebido e de amor comunicado

Lucas 24,35-36:** «Os dois discípulos contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão. Ainda estavam falando, quando o próprio Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: “A paz esteja convosco!”»

Enquanto falavam destas coisas” – escreve o evangelista – “Jesus esteve entre eles” [o verbo “apareceu”, como consta na tradução do Lecionário Dominical não é a melhor opção, pois no original é empregado o verbo “ser, estar”]. É característico de Jesus ressuscitado que quando se manifesta se coloque no centro; ele não se coloca nem na frente nem acima, mas no centro para que todos tenham a mesma relação com ele; não há hierarquias de importância, de quem vem primeiro e de quem vem depois. E a primeira palavra que Jesus dirige a estes discípulos é: “Paz a vós!”. Também aqui, como no Evangelho de João, esta expressão não manifesta um desejo, pois Jesus não diz: “A paz esteja convosco!” [como consta no Lecionário Dominical], mas expressa um dom. Sabemos que a paz na cultura judaica indica tudo o que contribui para a plenitude da vida, felicidade, bem-estar, trabalho e saúde. Pois bem, Jesus ressuscitado dá esta paz, mas não é apenas um dom, é a prova do seu amor por eles; por isso o evangelista diz que Jesus, depois, mostrará as mãos e os pés que trazem os sinais da crucificação, o amor que o levou a dar a vida pelos seus. 

Lucas 24,37-41a: «Eles ficaram assustados e cheios de medo, pensando que estavam vendo um fantasma. Mas Jesus disse: “Por que estais preocupados, e porque tendes dúvidas no coração? Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede! Um fantasma não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho”. E dizendo isso, Jesus mostrou-lhes as mãos e os pés. Mas eles ainda não podiam acreditar, porque estavam muito alegres e surpresos.»

Mas os discípulos ficam chocados, acreditam que veem um “espírito”, e não é a palavra “fantasma” que está no original grego, como aparece na tradução do Lecionário Dominical. O evangelista fala “espírito” porque não conseguem acreditar que uma pessoa possa continuar viva após ter passado pela morte, e também porque imediatamente surgiu um boato de que não foi Jesus quem crucificaram, ele teria se salvado. Por isso, insiste o evangelista, e aqui há três imperativos um após o outro, “olhar, tocar” e novamente “olhar”. Jesus ordena olhar para as mãos e os pés que conservam as marcas dos cravos, sinais da sua paixão. É o mesmo Jesus que passou pela morte! 

Lucas 24,41b-43: «Então Jesus disse: “Tendes aqui alguma coisa para comer?” Deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o tomou e comeu diante deles.»

O que quer dizer o evangelista com a cena em que Jesus come, ou melhor, lhes pede para comer? Que ele não é um espírito, mas sim uma pessoa com condição divina. Isto não anula a fisicalidade, mas a expande, transforma, transfigura. São Paulo, tomando esta teologia, desenvolve-a e, na Primeira Carta aos Coríntios (15,44), falará de “um corpo animal” que é sepultado e ressuscita um “corpo espiritual”; é sempre um corpo, não é uma alma, um espírito, mas é um corpo com outra dimensão

Lucas 24,44-45: «Depois disse-lhes: “São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”. Então Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras, ...»

E então Jesus, como fez com os discípulos de Emaús aos quais interpretou as Escrituras, aqui abre suas mentes para o entendimento (vers. 45). Por quê? Tal como aconteceu com os discípulos de Emaús, a Escritura não deve apenas ser lida, mas também interpretada; é preciso abrir a mente e colocá-la em sintonia para interpretar corretamente o que está contido na Escritura com o mesmo Espírito que a inspirou. E qual é o Espírito que inspirou a Escritura?

O amor incondicional do criador pelas suas criaturas, este é o critério interpretativo de toda Sagrada Escritura.

E o que Jesus lhes faz compreender? Estes discípulos, na Escritura, tinham selecionado, apenas, aqueles aspectos que falavam do Messias triunfante, do Messias glorioso, do Messias vitorioso e negligenciaram aqueles que falavam do Messias desprezado, do Messias perseguido

Lucas 24,46-48: «... e lhes disse: “Assim está escrito: ‘O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, e no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém’. Vós sereis testemunhas de tudo isso”.»

E, aqui, está o mandato final de Jesus, que pede que “no seu nome sejam anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todos as nações”, portanto também às nações pagãs. A conversão não é uma conversão ao Senhor, mas uma mudança de mentalidade que, em seguida, coincide com uma mudança de comportamento, uma mudança de vida. E quando fala de “perdão dos pecados”, não se trata de culpa, mas de passado injusto. Há um acréscimo muito significativo da parte de Jesus: “começando por Jerusalém”. É Jerusalém, sede da instituição religiosa que matou Jesus por conveniência e interesse, a que mais necessita de conversão e perdão dos pecados! 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Não é bastante amar, é preciso prová-lo!»

(Santa Teresa do Menino Jesus: 1873-1897 ― religiosa carmelita francesa e Doutora da Igreja)

A grande mensagem que nos propõe o Evangelho deste domingo é que Jesus nos quer e necessita que sejamos suas “testemunhas” neste mundo, contagiando a todos com a sua Boa Notícia, o seu Evangelho! No entanto, o contraste com a atitude de seus discípulos neste texto evangélico é gritante:

a) os discípulos permanecem calados em toda a cena;

b) em seu íntimo, eles sentem medo, incompreensão e possuem muitas dúvidas;

c) tudo parece muito lindo, mas estão incrédulos diante do Ressuscitado.

A falta de fé e a ausência de uma verdadeira experiência com Jesus ressuscitado são os motivos para tantas preocupações e dúvidas em seus corações! Porém, isto não é algo que se passou, apenas, com os primeiros discípulos de Jesus. Este segue sendo o motivo para que tantas pessoas que se dizem cristãs, batizadas e membros da Igreja não manifestem ao mundo o Evangelho, a Boa Nova de Cristo! Afinal, ninguém pode dar aquilo que não tem! Se muitos de nós, cristãos, não possuímos uma fé forte e bem alicerçada, não fizemos uma experiência pessoal viva e profunda com o Cristo, não podemos ser suas testemunhas neste mundo, como ele nos pede ao final do Evangelho deste domingo. 

E qual é o segredo para não cairmos no mesmo equívoco de seus primeiros discípulos? O Evangelho nos fornece as respostas, vejamos:

* Ter certeza de que o Ressuscitado está sempre em meio à sua comunidade reunida:o próprio Jesus apareceu no meio deles” (vers. 6).

* Jesus somente pode ser reconhecido pela sua comunidade se esta “olhar” suas mãos e seus pés. Isto significa que não podemos jamais nos esquecer de que o nosso Salvador, o nosso Senhor, o nosso Messias é um Deus crucificado! Portanto, termos sempre a memória do amor doado até a morte e da comunhão com os sofridos e crucificados do mundo:Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo!” (vers. 39a)

* Jesus não é, apenas, um espírito, um ser espiritual, mas alguém em carne e osso, alguém presente, vivo entre os seus seguidores. A comunidade se torna o seu corpo, a sua presença, como já nos recordava São Paulo (cf. 1Cor 12,27): “Um fantasma não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho” (vers. 39b).

* Outra maneira de reconhecê-lo e manter viva a memória do que ele quer de nós é revisitando as Sagradas Escrituras, orando-as e meditando-as: “era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Então Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (vers. 44b-45).

O tempo pascal é uma oportunidade privilegiada para nos libertarmos do pessimismo, da tristeza, da incredulidade, da falta de iniciativa, do medo paralisante. Pois, afinal de contas, o próprio Cristo confia em nós! O Filho do Homem, em pessoa, envia o Espírito Santo para sustentar sua comunidade e lhe dá a principal missão de todas: “Vós sereis testemunhas de tudo isso” (vers. 48). Não decepcionemos o Cristo! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor, nós te buscamos e desejamos a tua face: um dia, retirado o véu, poderemos contemplar-te. Procuramos-te nas Escrituras que nos falam de ti: sob o véu da sabedoria acolhemos a cruz, o teu dom aos povos. Procuramos-te nos rostos radiantes dos irmãos e irmãs: vemos-te nas marcas da tua paixão nos seus corpos sofredores. Não os olhos, mas o coração tem a visão de ti: à luz da esperança esperamos encontrar-te para conversar contigo.»

(Fonte: BOSCHI, Maria Teresa Della Croce. O.Carm. Oratio. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico B. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 224)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – III Domenica di Pasqua – 18 aprile 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 07/04/2024).