terça-feira, 16 de abril de 2024

A religião instrumentalizada para fins nacionalistas

 Israel: dirigentes laicos lançam mão da religião

 Marius Schattner

Jornalista 

A instrumentalização da religião pelas forças armadas de Israel já é recorrente há anos, mesmo que de forma mais discreta (Foto: Yosi Rot/Creative Commons)

Não há nada de surpreendente que o discurso messiânico seja, hoje, usado para justificar a devastadora guerra travada pelo Exército israelense em Gaza

“Juntos venceremos!”Ao slogan central da guerra de Gaza, a direita israelense no poder acrescenta sistematicamente os termos “com a ajuda de Deus”, conferindo uma dimensão religiosa ao conflito com o Movimento de Resistência Islâmica Hamas. 

Em duas ocasiões, durante uma conferência de imprensa em Tel Aviv, em 28 de outubro de 2023 e depois em 3 de novembro, numa carta aos soldados parabenizando-os pelo “combate contra os assassinos do Hamas”, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu citou o Deuteronômio da Bíblia Hebraica (25,17): “Lembre-se do que Amaleque te fez” (ver o box ao final deste artigo). A declaração foi feita embora ele se mantenha afastado de qualquer prática religiosa, e ainda o obrigou a se defender da acusação de incitar o genocídio, em resposta às denúncias da África do Sul perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ) [1]. 

Rabino AVICHAI RONTZKI

Embora recorrer a esse registro tenha o intuito de conferir um caráter religioso ao conflito com o Hamas, não se trata de uma reação isolada às atrocidades cometidas em 7 de outubro pelo movimento islâmico. Na realidade, as autoridades israelenses têm utilizado essa retórica há vários anos, embora de forma mais discreta. O depoimento nº 482.683 de um oficial da Brigada de Infantaria Golani publicado pela Breaking the Silence (Quebrando o silêncio) – ONG que reúne ex-soldados contra a ocupação dos territórios palestinos – é uma evidência: durante a Operação “Chumbo Fundido” em 2008-2009, o rabino-chefe do Exército, Avichai Rontzki, ordenou aos soldados do “exército de Deus” que fossem implacáveis para com o inimigo, referindo-se às guerras de conquista de Canaã, a Terra Prometida. Em 2014, durante a Operação Margem Protetora, ainda em Gaza, o general Ofer Winter, comandante da Brigada de Infantaria Givati, proclamou: “A história nos escolheu como ponta de lança da luta contra o inimigo terrorista de Gaza que insulta e amaldiçoa o Deus dos Exércitos de Israel” [2]. Na época, comentários como esses, vindos da boca de um militar de alta patente, causaram um escândalo; e também contribuíram para encurtar sua carreira como oficial. 

Atualmente, esse tipo de declaração parece menos chocante. O discurso nacionalista-religioso tornou-se comum, banalizado: alguns ministros da extrema direita o defendem, como Itamar Ben-Gvir, um supremacista judeu à frente da segurança nacional, ou Bezalel Smotrich, responsável pela Fazenda, assim como outros membros do governo e deputados afiliados ao Likud, o partido de Netanyahu. Também se ouve essa narrativa no Exército, particularmente nos escalões inferiores, e nas unidades de combate em que o número de oficiais de academias religiosas pré-militares tende a ser maior. 

Rabino AMICHAI FRIEDMAN discursando para as tropas de Israel

Duas sequências viralizaram nas redes sociais. No primeiro vídeo [3], que data do início de novembro, Amichai Friedman, rabino do centro de treinamento da brigada Nahal, afirma que a guerra deve permitir o restabelecimento dos assentamentos de Gush Katif, desmantelados durante a retirada israelense em 2005, na Faixa de Gaza e muito além. “Este país é nosso, incluindo Gaza, incluindo o Líbano, tudo é a Terra Prometida”, afirma o capitão ovacionado pelos soldados. Inicialmente desaprovado pelo comando militar, e suspenso por trinta dias, acabou ganhando outro posto rabínico no mesmo regimento. 

Em outro vídeo [4], filmado no mesmo mês durante uma cerimônia após a devastação da cidade palestiniana de Beit Hanoun, o comandante Yair Ben David, oficial da reserva do Batalhão 9208, apela não apenas à erradicação do Hamas, objetivo oficial da campanha israelense, mas também à aniquilação de Gaza. Apoiando-se no Antigo Testamento, ele traça um paralelo entre a destruição dessa cidade no nordeste do enclave e a terrível vingança exercida pelos filhos do patriarca Jacó, Levi e Simeão, contra os habitantes de Siquém (nome hebraico para a atual Nablus, na Cisjordânia), após o estupro de sua irmã Dinah pelo filho do rei da cidade. A Bíblia registra que os dois irmãos mataram todos os homens da cidade à espada, apesar da promessa de poupar suas vidas (Gênesis 34).

“Simeão e Levi compreenderam que a honra está acima de tudo e todos no Oriente Médio. Eles fizeram em Siquém o que fizemos em Beit Hanoun. Mas a tarefa não está concluída”, alerta o comandante. “Toda Gaza deve sofrer o destino de Beit Hanoun […] com a ajuda de Deus, Siquém ou qualquer outra cidade que se atrever a levantar-se contra Israel terá o mesmo destino que Beit Hanoun”, completou.

O oficial, no entanto, deixa de mencionar o resto da história e a desaprovação de Jacó quanto ao massacre e ao perjúrio. Em seu leito de morte, diz a Bíblia, ele “amaldiçoou a ira” que se apoderou de seus dois filhos, “porque era má”, e apelou aos seus outros filhos para “não se juntarem aos seus desígnios” (Gênesis 49,6). 

Blindados do Exército de Israel

À medida que o vídeo circula, parte do público teme que ele possa alimentar a acusação de “incitamento ao genocídio” e degradar ainda mais a imagem de Israel no cenário internacional. A indignação não é apenas formal. Também diz respeito ao conteúdo. Isso é evidenciado por um comentário mordaz publicado no jornal diário Yediot Aharonot, de ampla circulação, em 22 de dezembro de 2023.

Assassinar, pilhar, destruir: é assim que os soldados aprendem a Bíblia e a tradição judaica. São formados em meio a mentiras tanto sobre as instruções dadas ao Exército como sobre as narrativas bíblicas.”

DISCURSO DA VINGANÇA

Os ultranacionalistas não fazem distinção entre o Hamas e o resto da população palestina acusada de o apoiar, uma amálgama mortal levada a cabo em nome de uma pretensa visão ética. “A guerra não é uma provação. Não matamos um inimigo porque ele é culpado e não o poupamos porque ele é inocente. É um confronto de um coletivo contra outro, de uma nação contra outra”, diz uma das figuras mais populares dessa corrente, o carismático rabino Oury Cherki, originário da Argélia. Ao ficarem do lado do mal, ao trabalharem para a destruição do povo de Israel como os nazistas, os palestinos de Gaza, afirma este autor de numerosas obras sobre o âmbito universal do judaísmo, teriam perdido o direito de figurar “na comunidade das nações”. Aos seus olhos, a ação levada a cabo pelo Exército israelense em Gaza seria, portanto, “perfeitamente ética”, ao contrário da exigência de poupar os civis a todo o custo [5]. 

No dia 28 de janeiro, em Jerusalém, diante de milhares de apoiadores entusiasmados, a extrema direita, sentindo-se liberta dos constrangimentos de linguagem impostos pela unidade nacional no início da guerra, lançou uma campanha pela retomada da colonização na Faixa de Gaza e uma “transferência de população” para o Egito – o que as autoridades do Cairo refutam – ou para qualquer outro país, um eufemismo para expulsão em massa, limpeza étnica. 

Por outro lado, os grupos ultraortodoxos (que representam 12% da população judaica de Israel), o partido Shas (tradicionalmente sefaradita) e o Judaísmo da Torá (partido Ashkenazi), pedras angulares da coalizão governamental, não mostram nenhum interesse no restabelecimento de assentamentos em Gaza. Eles aceitaram tacitamente o seu desmantelamento em 2005 e os seus rabinos estão cautelosos com os excessos messiânicos dos ultranacionalistas… sem, no entanto, denunciá-los em plena luz do dia, dada a crescente popularidade da extrema direita entre o seu rebanho. 

Netanyahu: popularidade em baixa

De acordo com várias sondagens consistentes, no entanto, a atual coalizão não seria renovada no caso de eleições legislativas antecipadas, uma perspectiva que Netanyahu – cuja popularidade entrou em colapso – quer evitar a todo o custo. A direita mais radical não colheria, portanto, os benefícios das frustrações da população judaica desde o desastre de 7 de outubro, que a fez alavancar cerca de 15 assentos dos 120 no Knesset. Ela seria excluída de um futuro governo, que permaneceria de direita, mas menos radical que o atual. 

Sociólogo YAGIL LEVY

As ideias professadas por seus partidários ainda encontram eco numa sociedade israelense afetada durante décadas pela “desumanização” dos palestinos que vivem sob ocupação, como observa o sociólogo Yagil Levy [6]. Para esse investigador:

... a dimensão religiosa dada à guerra de Gaza serve, sobretudo, para justificar a sede de represália, ao mesmo tempo que confere um “significado superior à missão” dos combatentes.

O “discurso de vingança tornou-se predominante no Exército desde o início da guerra, embora até então fosse considerado excepcional”, explica, com consequências desastrosas na condução racional das operações. Levy observa, assim, que no início da ofensiva israelense, o comando militar limitou-se a notificar, às tropas, a proibição de saques. 

Só quando três reféns israelenses foram mortos por engano em Gaza é que o chefe do Estado-Maior Herzi Halevi insistiu, em 16 de dezembro de 2023, em vários canais de televisão, na “proibição de abrir fogo contra aqueles que brandissem uma bandeira branca e pedissem rendição”. E apenas um mês depois de Israel ter sido pressionado pela Corte Internacional de Justiça a prevenir atos genocidas é que o general apelou aos seus soldados “para não usarem a força quando não for necessária, e diferenciar entre terroristas e civis”, reforçando que o Exército israelense, ao contrário do Hamas, estaria impregnado de valores humanos e não se envolve em “assassinatos, atos de vingança, genocídios”. [7] 

“A vingança, essa reação instintiva, é inútil. Pelo contrário, corre o risco de nos destruir por dentro, mesmo que prevaleçamos no território.”

Esta foi a confidência do rabino do Instituto Matan em Jerusalém, Daniel Epstein, em janeiro último. De acordo com a tradição talmudista, o filósofo alerta contra as miragens da febre messiânica, “uma solução fácil que nos permitiria escapar às duras realidades e questões levantadas pelo 7 de outubro. Esta tragédia continua a nos surpreender”. 

Rabino DANIEL EPSTEIN

Referências:

[1] Ler Anne-Cécile Robert, “La Cour internationale de justice évoque un ‘risque plausible de génocide’ à Gaza” [Corte Internacional de Justiça fala de “risco plausível de genocídio” em Gaza], Le Monde Diplomatique, fev. 2024.

[2] Citado por René Backmann, “L’armée israélienne en danger de ‘théocratisation’?” [O exército israelense em perigo de “teocratização”?], Confluences Méditerranée, n.122, Paris, 2022.

[3] “Rabbi at Israeli military training base says ‘whole country’ is ‘ours’, including Gaza and Lebanon” [Rabino em base de treinamento militar israelense diz que “todo o país” é “nosso”, incluindo Gaza e Líbano], 7 nov. 2023, www.haaretz.com.

[4] Canal 13 da televisão israelense, 20 dez. 2023, https://13tv.co.

[5] Entrevista com Oury Cherki, “Sur l’éthique de la guerre à propos de ce qui se fait à Gaza” [Sobre a ética da guerra em relação ao que está sendo feito em Gaza], 16 out. 2023, www.yozevitch.com.

[6] Yagil Levy, “A emergência do discurso da vingança” (em hebraico), 20 dez. 2023, https://telem.berl.org.il.

[7] Ordem do dia n. 4 de 20 de fevereiro de 2024. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Edição 201 – Abril/2024 – Terça-feira, 2 de abril de 2024 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/04/2024). 

AS MIL FACES DE AMALEQUE

Marius Schattner

No judaísmo, Amaleque tem uma conotação sinistra: é o inimigo arquetípico de Israel. Exterminá-lo é um dever, porém ele ressurge a cada geração. Se originalmente designava um povo específico, ao longo dos séculos assumiu um significado mais simbólico, de encarnação do mal absoluto sobre a Terra. 

A Bíblia Hebraica (Torá) conta como Amaleque, neto de Esaú, deu seu nome à tribo que atacou de surpresa o povo judeu, enquanto este último se arrastava à exaustão pelo Deserto do Sinai no êxodo do Egito. Assim, Deus ordenou aos hebreus que travassem uma guerra impiedosa contra os amalequitas, por esse ataque traiçoeiro e por se levantarem “contra o Seu Trono”. Também convocou Seu povo a preservar a memória dessa ofensa até que ela pudesse ser apagada pela conquista da Terra Prometida: a mais implacável das maldições bíblicas (Êxodo 17,14; Deuteronômio 25,19). 

Essa injunção resultará numa ordem explícita dada por Deus ao Rei Saul, para travar uma “guerra de extermínio” contra os amalequitas (1 Samuel 15,18): “Enfrente os amalequitas, destrua-os completamente com todos os seus bens, não deixe nada com vida: mate os homens, as mulheres, as crianças e os recém-nascidos, bois e ovelhas e todos os seus camelos” (1 Samuel 15,3). Saul obedeceu, mas não seria perdoado por ter poupado a vida de Agague, rei dos amalequitas. 

A Bíblia alude ainda a Amaleque no livro de Ester, no qual Hamã, um descendente de Agague, planeja a aniquilação dos judeus do Império Persa. A intervenção de Ester apelando a seu marido Assuero (também conhecido como Xerxes), rei da Pérsia, evita o massacre. Durante a festa de Purim, os judeus celebram essa salvação milagrosa, e na sinagoga são lidas passagens do Pentateuco contra Amaleque. 

Ele realmente existiu? Nem pesquisas históricas, nem as escavações arqueológicas o confirmam. A Bíblia é o único texto que menciona esse inimigo hereditário do povo judeu. Mito ou figura histórica, Amaleque sempre foi significativo na religião. 

Os sábios do Talmud discutiram extensivamente o tema, interpretando livremente as Escrituras para neutralizar seu potencial de violência. Em primeiro lugar, porque consideram impossível identificar esse adversário maligno em meio à mistura de populações na região quando aconteceu a destruição do reino de Israel pelos assírios no século VIII a.C. Assim, o mandamento (mitzvah) “não esqueças o que Amaleque fez a ti” não é acompanhado pelo impossível mandamento de erradicá-lo, reservado para os tempos messiânicos. 

Algumas fontes rabínicas viram uma emanação de Amaleque na supressão das revoltas judaicas pelo Império Romano. Na Idade Média, outras fontes em terras islâmicas identificaram-no com o cristianismo, o que foi contestado pelos mestres do Talmud em terras cristãs. No século XX, o nazismo seria denunciado como um novo Amaleque. 

Por sua vez, a partir do século XIX, importantes pensadores judeus – como o rabino alemão Samson Raphael Hirsch (1808-1888), figura importante da nova ortodoxia, fiel à tradição, porém aberto ao Iluminismo – assimilaram Amaleque ao culto da força, à “glorificação da espada” que Deus ordena erradicar. 

Aparentemente, não é o significado que Netanyahu confere a esse conceito polissêmico no contexto da guerra atual, cujos riscos de excessos foram alertados pelo acadêmico Emmanuel Bloch em 2015: “Se quisermos, como as gerações que nos precederam, escapar à armadilha da violência religiosa, devemos insistir novamente e sempre nas salvaguardas que a nossa tradição desenvolveu ao longo os séculos”. [1] 

Referência:

[1] Emmanuel Bloch, “Y-a-t-il une guerre sainte juive?” [Há uma guerra santa judaica?], Aderaba – Questions juives en chantier, 26 fev. 2015, https://aderaba.fr/djihadjuif/.

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