«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Solenidade de Pentecostes – Homilia

 Evangelho: João 20,19-23 

Frei Alberto Maggi *

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Nossa missão: prolongar o amor recebido de Deus, via Cristo, a toda a humanidade

O mandado de prisão foi emitido não apenas para Jesus, mas para todo o seu grupo de seguidores. Foi Jesus, que em posição de força disse aos guardas: “Se é a mim que procurais, deixai estes irem” (Jo 18,8b). Jesus foi o pastor que deu a vida pelas suas ovelhas. Mas, agora, o pastor vai em busca das suas ovelhas, daquelas que se perderam devido à sua prisão e sobretudo à sua morte ignominiosa.

E Jesus vai em busca deles, para recuperá-los. Embora o anúncio da ressurreição de Jesus já tenha sido feito, os discípulos permanecem escondidos por medo das autoridades. Não basta saber que Jesus ressuscitou, é preciso experimentá-lo

João 20,19:** «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco”.»

É isso que nos diz o evangelista João. Os judeus não são o povo, mas, neste evangelho, representam os líderes, as autoridades religiosas. “Jesus entrou e, pondo-se no meio deles”, no centro, em meio aos seus discípulos, este é o lugar de Jesus na comunidade.

Ele é o ponto de referência. Ele é o fator de unidade de todo o grupo. Seguem-se as primeiras palavras que Jesus pronuncia, uma vez ressuscitado, na plenitude da condição divina, e é um desejo de felicidade completa. O termo “paz”, do hebraico Shalom, indica muito mais que a nossa paz, mas indica tudo o que contribui para a felicidade plena dos seres humanos

João 20,20: «Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor.»

Mas Jesus não se limita a um anúncio verbal, a um simples desejo, ele demonstra porque devem ser plenamente felizes. “Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado.” São os sinais indeléveis do seu amor. O amor que o levou a dar a vida pelo seu povo não foi a resposta a uma ocasião dramática, mas a atitude normal de Jesus na comunidade.

Jesus não intervém nos momentos de emergência e responde com o seu amor às necessidades da comunidade. Mas Jesus, no meio da comunidade, protege, defende, ajuda e aumenta a capacidade de amor dos seus discípulos que acolhem o seu amor. E, de fato, os discípulos se alegraram. Pois se antes estavam com medo, agora estão alegres. 

João 20,21: «Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio”.»

E Jesus disse-lhes novamente: “Paz a vós”. Enquanto a primeira paz, segundo Jesus, foi motivada pelo fato de que o amor que lhe impulsionou a dar a vida por nós continua, a segunda paz é motivada pelo fato de sermos chamados a prolongar a mesma ação de Jesus.

A paz e a felicidade do homem vêm deste amor recebido de Deus, por isso, Jesus mostrou as suas mãos e o seu lado, mas também vêm do amor que deve ser comunicado. Por isso Jesus, na segunda paz, no segundo convite à felicidade, diz: “Como o Pai me enviou”, e o Pai enviou Jesus para ser uma manifestação visível do seu amor, um amor incondicional do qual nenhuma pessoa, qualquer que seja o seu comportamento, a sua conduta, pode sentir-se excluída.

Aqui está a fonte da felicidade. Os discípulos, cada crente, é chamado a prolongar a missão de Jesus que é manifestar visivelmente o amor do Pai. Esta é a fonte da alegria, da felicidade plena. Portanto, existe um amor que nos é comunicado, um amor que é recebido de Deus, o qual deve ser um amor a ser comunicado aos outros

João 20,22: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo.»

O evangelista repete as mesmas ações de Deus sobre o primeiro homem, quando lemos no Livro do Gênesis, capítulo 2, versículo 7: “Então o Senhor Deus modelou, do com o pó do solo, o homem e soprou-lhe nas narinas o sopro da vida; e o homem tornou-se um ser vivo”. Da mesma forma, Jesus completa a criação, comunicando o Espírito ao ser humano, ou seja, a mesma capacidade de amor que o Pai lhe comunicou, agora, ele a comunica aos humanos. Mas não a todos, mas a quem acolhe o seu convite para prolongar, com o seu amor, o amor que receberam, aqueles que vão em missão como o Pai enviou Jesus. 

João 20,23: «A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos”.»

Aqui ele não usa o verbo “perdoar”, mas “libertar dos pecados”. Por “pecado” o evangelista não compreende a “culpa, erro, falta”, mas uma direção errada de vida. O que o evangelista quer dizer? Aqui, Jesus não está dando poder a alguns, mas uma responsabilidade para toda a comunidade. A comunidade deve ser esta luz da qual brota o amor de Deus. Quem, vivendo na injustiça, se sente atraído por esta luz e se torna parte dela, tem o seu passado (aquilo que era injusto) completamente apagado.

Em vez disso, “a quem não os perdoardes” e, também aqui, não há verbo o “perdoar”, mas sim “manter, reter, imputar”. E prossegue dizendo: “permanecerão acusados”. O que o evangelista quer dizer?

Aqueles que praticam o mal não amam a luz, mas vendo a luz brilhar, recuam ainda mais para a sombra das trevas. Portanto, não é um poder da comunidade, mas uma responsabilidade: fazer brilhar o amor de Deus. Quem se sente atraído por ele tem o seu passado completamente perdoado, enquanto quem vê neste amor uma ameaça aos seus interesses, às suas conveniências, essa pessoa se retrai sob o manto das trevas, sob o manto da morte. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos de: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«O amor é o perfume das almas.»

(Dom Hélder Pessoa Câmara: 1909-1999 ― arcebispo católico)

Três gestos, três atitudes e três fundamentos, três missões.

Assim, podemos sintetizar o que o Evangelho dessa festa de Pentecostes quer nos transmitir. Vejamos:

a) Jesus faz questão de mostrar as suas feridas como prova viva de seu amor. E, aqui, se encontra o primeiro fundamento: a Igreja deve ser a memória de Jesus, uma memória subversiva, pois é a de um Cristo crucificado e ressuscitado!

b) Jesus envia seus discípulos, assim como o Pai o enviou. Seus seguidores devem manifestar ao mundo a sua Paz e o seu Amor. Essa é a verdade plena, segundo fundamento de nossa Igreja.

c) Jesus “sopra” o Espírito Santo sobre os seus discípulos e lhes concede a responsabilidade de ser luz que reorienta os caminhos errados que os seres humanos seguem em sua vida. E, aqui, está o terceiro fundamento da Igreja: ser testemunha da vida e dos ensinamentos de Jesus Cristo.

Uma das maiores e mais frequentes tentações que a nossa Igreja experimentou e segue provando é a de achar que, simplesmente, em toda a atuação ministerial e hierárquica de nossa Igreja se faz presente o Espírito Santo! Isso, na prática, é prescindir do Espírito! Ele não é um dom automático, mas fruto do acolhimento profundo e verdadeiro do Evangelho de Cristo!

Como foi mencionado, acima, o Espírito Santo vem da parte de Deus para nos conduzir à verdade plena, a qual, segundo Johan Konings, é sinônimo de: “veracidade, firmeza, fidelidade, confiabilidade, lealdade”. Pois bem, em nosso mundo atual, é urgente suplicarmos ao Espírito de Cristo para:

* libertar-nos do vazio e da confusão interior, pois desistimos da busca da verdade, nos tornamos céticos, pessimistas, ressentidos, invejosos;

* libertar-nos da desorientação, pois vivemos sem raízes e sem metas, sonhos e utopias;

* ensinar-nos a viver, pois queremos ter saúde, viver por muito tempo, porém não sabemos para quê;

* ensinar-nos a amar, pois de tanto queremos ser livres e independentes, estamos, cada dia, mais sozinhos, carentes, confundimos amor com sexo, prazer com felicidade e não sabemos criar autênticas amizades; enfim,

* ensinar-nos a crer, pois não deixamos mais espaço para Deus, não o ouvimos, não o sentimos, estamos repletos, apenas, de desejos e sensações pessoais.

Assim como os discípulos de Jesus tinham medo, nós precisamos vencer o medo e termos esperança, pois o mundo está sedento e faminto de Cristo

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Obrigado, ó Pai, pela vinda do Consolador, do Advogado; obrigado pelo seu testemunho sobre Jesus no mundo e em mim, na minha vida. Obrigado, porque é Ele quem me torna capaz de receber e carregar o peso glorioso do teu Filho e meu Senhor. Obrigado, porque ele me guia na verdade, me entrega a toda a verdade e me revela as palavras que tu mesmo falas. Obrigado, meu Pai, porque na tua bondade e ternura tu hoje me alcançaste e me atraíste para ti, tu me deixaste entrar na casa do teu coração; tu me mergulhaste no fogo do amor trinitário, onde tu e o Filho Jesus sois um só no beijo infinito do Espírito Santo. Aqui estou eu também e, por isso, minha alegria transborda. Por favor, Pai, deixa-me dar esta alegria a todos, no testemunho amoroso de Jesus Salvador, em todos os dias da minha vida. Amém.»

(Fonte: CUCCA, Maria Anastasia Caterina. O.Carm. Orazione finale. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico B. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 287)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – Domenica di Pentecoste – 8 giugno 2014 – Internet: clique aqui (Acesso em: 06/05/2024).

O futuro de Israel

 O sionismo pode sobreviver à guerra de Israel contra o Hamas?

 Yuval Noah Harari

Historiador, escritor e professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, autor entre outros do best seller “Sapiens” 

Israelense coloca uma bandeira de Israel na praia de Tel-Aviv durante o Dia da Independência do país.  Foto: Ohad Zwigenberg/AP

Vitória da coligação de Netanyahu e sua visão de mundo preconceituosa teria sérios efeitos

Enquanto Israel marcava seu 76º aniversário esta semana, sob a sombra do massacre de 7 de outubro e da guerra entre Israel e Gaza, a ideologia sionista subjacente ao país está sendo questionada. Vários grupos distorcem e transformam o termo “sionismo” em arma, descrevendo-o como uma forma maligna de tribalismo ou mesmo de racismo. Para compreender os acontecimentos recentes em Israel, bem como a história tumultuada do país, é necessário esclarecer o que o sionismo realmente significou ao longo dos seus 150 anos de existência

Nascido no final do século XIX, o sionismo moderno é um movimento nacional semelhante aos que surgiram no mesmo período entre gregos, poloneses e muitos outros povos.

A ideia central do sionismo é que os judeus constituem uma nação e, como tal, têm não apenas direitos humanos individuais, mas também um direito nacional à autodeterminação.

Nada nesta ideia sionista implica que os judeus sejam superiores aos outros, sejam eles gregos ou poloneses – ou palestinos. A ideia de que os judeus constituem uma nação tampouco nega necessariamente a existência de uma nação palestina com direito à autodeterminação, ou os direitos humanos dos palestinos individuais. 

A equiparação do sionismo com o racismo — uma alegação que persiste muito depois de uma resolução das Nações Unidas de 1991 ter revogado uma resolução anterior nesse sentido — é, portanto, não só falsa, como também está manchada de racismo. Proibir o sionismo implica que os judeus não podem ter aspirações nacionais legítimas, ao contrário de todos os outros povos. Quando um dos líderes dos recentes protestos na Universidade Columbia afirmou que “os sionistas não merecem viver”, estava, na verdade, a argumentar que os judeus que nutrem aspirações nacionais deveriam ser sistematicamente mortos. Quando outros manifestantes entoaram slogans como “Não queremos sionistas aqui”, talvez pensassem que estavam a expressar hostilidade contra o racismo, mas na verdade apelavam ao assédio e à expulsão de quaisquer judeus que tivessem sentimentos nacionais. 

Israelenses observam fumaça vindo da Faixa de Gaza durante uma celebração do Dia da Memória dos Soldados e Vitimas de terrorismo em Israel, em Sderot, Faixa de Gaza.  Foto: Leo Correa/AP

É claro que alguns sionistas – tal como os adeptos de todos os outros movimentos nacionais – podem ser racistas ou intolerantes. As relações entre os países são frequentemente repletas de tensões, ódios e até atrocidades, especialmente quando eles têm exigências territoriais conflitantes. Quase todos os movimentos nacionais na história incluíram linhas-duras que fizeram exigências maximalistas e moderados dispostos a fazer concessões. O sionismo não é exceção

Não podemos fazer jus aqui às muitas tensões que existiram dentro do sionismo ao longo dos últimos 150 anos, nem ao impacto que acontecimentos como o Holocausto e as várias guerras árabe-israelenses tiveram no sionismo.

O que está claro é que, ao longo das gerações, muitos sionistas negaram o direito à nacionalidade palestina e reivindicaram todo o território entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, bem como territórios adicionais a leste do Jordão, na Península do Sinai e em outros lugares.

Mas outros sionistas tinham opiniões muito mais sensatas e estavam dispostos a se contentar com muito menos. David Ben-Gurion e a maioria dos sionistas abraçaram em 1947 o plano de partição da ONU que determinava o estabelecimento de um Estado palestino ao lado de um Estado judeu. Foi a rejeição palestina a este plano que levou à eclosão da primeira Guerra Árabe-Israelense (1948-1949). Entre 1949 e 1967, a política de Israel consistiu em alcançar a paz e a normalização com o mundo árabe com base nas fronteiras de 1949, renunciando em grande parte às reivindicações de territórios adicionais, como a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Durante o Processo de Paz de Oslo da década de 1990 e nas décadas seguintes, a “solução de dois Estados” – que reconhece a nação palestina e o seu direito à autodeterminação – gozou de amplo apoio entre os israelenses. Este ainda é visto por muitos sionistas como o melhor caminho a seguir, embora ao longo da última década o apoio tenha caído de quase dois terços dos israelenses para um terço, de acordo com uma pesquisa da Gallup. 

Nada disto impressionará as pessoas que argumentam que os judeus não têm nenhum direito no território entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. Esta, no entanto, é uma argumentação curiosa, dado que os judeus têm mantido uma presença contínua naquela terra, e uma profunda ligação cultural e espiritual com ela, durante cerca de 3.000 anos. Mesmo que rejeitássemos todas essas afirmações históricas, e mesmo que considerássemos o projeto sionista do início do século XX totalmente injustificado, o fato é que, em 2024, havia mais de 7 milhões de judeus vivendo entre o Mediterrâneo e o Jordão. O que eles deveriam fazer? A maioria deles nasceu em Israel e não é bem-vinda em nenhum outro lugar do mundo. Eles agora constituem claramente uma nação. Negar a existência destes 7 milhões de pessoas ou das suas aspirações nacionais conduzirá a novos conflitos, com potencial nuclear. Uma solução pacífica só pode ser garantida reconhecendo que, tal como as coisas estão em 2024, tanto os judeus como os palestinos merecem viver com dignidade e segurança no seu país de nascimento

O sionismo e a solução de um Estado 

Alguns argumentam que a forma ideal de garantir os direitos tanto dos judeus como dos palestinos é estabelecer um Estado democrático entre a Jordânia e o Mediterrâneo. Os defensores do ideal de um Estado único apontam ocasionalmente o sionismo como o principal ou o único obstáculo à sua solução preferida. Esta crítica, no entanto, é injusta. 

Embora, em tese, uma solução de Estado único pudesse de fato garantir os direitos de todos, a história é, infelizmente, resistente à meras teorias. Muitos sonhos teóricos se revelaram pesadelos históricos. Uma sociedade comunista parecia boa no papel, mas a tentativa de realizar o sonho na União Soviética e em outros lugares matou milhões. Um único Estado iugoslavo comum aos sérvios, croatas, eslovenos, bósnios e outros grupos étnicos também parecia uma grande ideia, mas a realidade não era tão boa assim. Em 2003, o governo Bush imaginou que poderia transformar o Iraque em uma democracia liberal pela força das armas, mas as coisas não correram conforme o planejado. 

Dada a história complexa e violenta das relações entre judeus e palestinos ao longo dos últimos 150 anos, uma tentativa de impor à força uma solução de Estado único a estes grupos étnicos rivais poderia muito bem levar à guerra civil, à limpeza étnica ou ao estabelecimento de uma ditadura islâmica. Os israelenses, cautelosos com a solução de um Estado, salientam que nenhum país árabe próximo conseguiu manter uma ordem democrática durante muito tempo – então quais são as probabilidades de o hipotético Estado árabe-judeu ser a exceção? 

Se, apesar de todas as dificuldades, um único Estado democrático que garantisse a liberdade, a igualdade e os direitos coletivos dos judeus e dos palestinos pudesse de alguma forma ser mantido entre a Jordânia e o Mediterrâneo, isso não seria incompatível com o sionismo. Durante os últimos 150 anos, o sionismo esteve disposto a acolher uma vasta gama de ideias a respeito de como garantir os direitos individuais e coletivos dos judeus, e algumas destas ideias eram ainda mais extravagantes do que a solução de um Estado único. Tanto Theodor Herzl como Ben-Gurion apoiaram um plano para a autonomia nacional judaica sob a suserania do Império Otomano, por exemplo. 

Israelenses bloqueiam avenida principal de Tel-Aviv para protestarem pela volta dos reféns israelenses que estão em Gaza.  Foto: Ariel Schalit/AP

É também digno de nota que, nos anos mais recentes, uma importante vertente do sionismo afrouxou a sua ligação com o judaísmo e, em vez disso, ancorou-se na identidade israelense. Este tipo de sionismo é melhor entendido como nacionalismo israelense e não como nacionalismo judaico. Todas as nações são produto do tempo. Antes de 1948, não poderia haver nação israelense, porque os israelenses não existiam. Mas 76 anos de história são suficientes para criar uma nova nação. 

Assim, o partido político israelense Meretz define-se como um partido sionista que apoia a transformação de Israel de um estado judeu em um “estado do povo judeu e de todos os seus cidadãos”. O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, acusou os apoiadores do Meretz e outros esquerdistas de terem “esquecido o que significa ser judeu”. É revelador que Netanyahu não os tenha acusado de esquecerem o que significa ser sionista. Os sionistas do tipo do Meretz podem muito bem se sentir mais próximos de um vizinho muçulmano israelense do que de um judeu americano que nunca pôs os pés em Israel. Por outro lado, alguns sionistas podem não ser judeus. Existem, por exemplo, cidadãos drusos de Israel que se definem como sionistas apesar de não serem judeus, e existe até um Movimento Sionista Druso

A visão de Netanyahu 

Nos anos mais recentes, porém, Israel tem sido administrado por governos que viraram as costas às formas moderadas de sionismo. Em particular, o governo de coligação estabelecido por Netanyahu em dezembro de 2022 rejeitou categoricamente a solução de dois Estados e o direito palestino à autodeterminação, e em vez disso abraçou uma visão preconceituosa de um Estado único

Tal como os manifestantes anti-Israel em todo o mundo, a coligação de Netanyahu acredita no slogan “do rio ao mar”. Nas suas próprias palavras, o princípio fundador da coligação de Netanyahu é que “o povo judeu tem um direito exclusivo e inalienável a todas as partes de Eretz Yisrael”Eretz Yisrael é um termo hebraico que se refere a todo o território entre a Jordânia e o Mediterrâneo. A coligação de Netanyahu prevê um Estado único entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, que concederia direitos totais apenas aos cidadãos judeus, direitos parciais a um número limitado de cidadãos palestinos e nem cidadania nem nenhum direito a milhões de súditos palestinos oprimidos. Esta não é apenas uma visão. Em grande medida, esta já é a realidade local

Nada do que aconteceu desde 7 de outubro indica que a coligação de Netanyahu tenha mudado de opinião.

Pelo contrário, a carnificina e a devastação infligidas aos civis palestinos na Faixa de Gaza, o assassinato e a expropriação de palestinos na Cisjordânia e a recusa em se comprometer com qualquer plano de paz futuro indicam que o atual governo israelense tampouco respeita os direitos humanos individuais dos palestinos ou suas aspirações nacionais coletivas.

Algumas pessoas argumentam que o extremismo da coligação de Netanyahu é o fruto inevitável do sionismo. No entanto, isso equivale a argumentar que o patriotismo conduz inevitavelmente ao extremismo, e que qualquer pessoa que começa a exibir a bandeira nacional no seu país deve acabar fomentando o ódio e a violência. Esse determinismo histórico é empiricamente infundado e politicamente perigoso, uma vez que concede aos extremistas o monopólio sobre os sentimentos nacionais das pessoas. Patriotismo não é intolerância. O patriotismo é um sentimento de amor pelos compatriotas, baseado em uma ligação profunda com uma cultura nacional e as suas tradições em evolução – o que leva os cidadãos a cuidarem uns dos outros, por exemplo, pagando impostos e financiando serviços de assistência social. Em contraste, a intolerância é um sentimento de ódio pelos estrangeiros e pelas minorias, baseado na convicção de que somos superiores a eles. 

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, que não reconhece o direito dos palestinos!

No contexto imediato de Israel, não conseguir separar o patriotismo da intolerância joga a favor de Netanyahu e implica que não há alternativa política à coligação de Netanyahu. Se o patriotismo israelense exige ódio e perseguição contra os não-judeus, então os patriotas israelenses devem continuar a votar em Netanyahu. O próprio Netanyahu tem defendido há anos que os patriotas israelenses devem apoiá-lo, mas os partidos sionistas da oposição ainda têm uma oportunidade de tirá-lo do poder e de conduzir Israel em uma direção mais tolerante e pacífica

Há muita coisa em jogo aqui, não apenas para Israel, mas para os judeus de todo o mundo. Se Netanyahu e os seus aliados políticos consolidarem o seu domínio sobre Israel, isso significaria o fim do vínculo histórico entre o povo judeu e as ideias de justiça universal, direitos humanos, democracia e humanismo. Em vez disso, o judaísmo faria um pacto com a intolerância, a discriminação e a violência. Os judeus em Londres e Nova York podem querer argumentar que não têm nada a ver com Israel e que o que acontece no Oriente Médio não representa o verdadeiro espírito do judaísmo. Mas estariam em uma situação análoga à dos comunistas britânicos e americanos do século XX, que tentaram em vão argumentar que o que Iossif Stalin estava fazendo na União Soviética não era realmente comunismo. 

O principal problema para os judeus não-sionistas é que, ao contrário do budismo ou do protestantismo, o judaísmo é uma religião coletivista e não individualista, e a construção do Estado de Israel tem sido o empreendimento coletivo mais importante do povo judeu moderno.

Se Israel for conquistado pela intolerância, esta se tornará a face do judaísmo em todo o mundo.

O que Tito já sabia 

A vitória da coligação de Netanyahu e da sua visão de mundo preconceituosa teria consequências não apenas no espaço, mas também no tempo. Para começar, alteraria retrospectivamente o significado de toda a história do Estado de Israel. Herzl, o pai fundador do sionismo moderno, identificou a intolerância como um perigo existencial para o sionismo já há mais de um século. No seu livro de 1902, “A Velha Nova Terra”, no qual Herzl imaginou o futuro Estado de Israel, ele profetizou a ascensão de um partido imaginário, liderado pelo rabino Geyer, que afirma que os judeus são superiores aos não-judeus e merecem privilégios especiais. O livro de Herzl alertou os leitores que Geyer é “um blasfemador”, desviando-se dos valores judaicos

Herzl criticou severamente a ideia de que os judeus são superiores aos outros humanos e merecem privilégios especiais no futuro Estado. O Estado que ele imaginou deveria servir como um lar nacional para o povo judeu, mas dar direitos iguais a todos os seus habitantes. Herzl escreveu: “Não perguntamos a que raça ou religião um homem pertence. Se ele for homem, isso é o suficiente para nós.” Herzl temia que, se os judeus fossem tentados pelas ideias de Geyer, isso destruiria o seu Estado. O dever dos judeus, escreveu Herzl, é apoiar “a liberalidade, a tolerância, o amor pela humanidade. Só então Sião será verdadeiramente Sião!… Mas quem escolher um homem como Geyer não merecerá que o sol de nossa Terra Santa brilhe sobre si”. Esta foi a profecia de Herzl em 1902.

Imagem de Gaza totalmente arrasada! Milhares de pessoas perderam sua vida, sua moradia, seu local de trabalho, sua escola ou universidade, bem como, seu futuro!

Onde o fanatismo pode levar 

Se a visão preconceituosa de Netanyahu derrotar o ethos sionista de Herzl, isso alteraria o significado não só do moderno Estado de Israel, mas também de milhares de anos de história judaica anterior. Há dois milênios, fanáticos religiosos infligiram uma terrível catástrofe ao povo judeu. Por fanatismo religioso, rebelaram-se contra o Império Romano. As legiões de Vespasiano e de seu filho, Tito, derrotaram os fanáticos judeus, conquistaram uma cidade após a outra e, finalmente, cercaram Jerusalém em um anel de aço. O moderado rabino Yohanan Ben Zakkai decidiu escapar da cidade sitiada. Para escapar dos fanáticos judeus, que o teriam matado na hora, ele se escondeu dentro de um caixão. Segundo a tradição judaica, após sair da cidade, Ben Zakkai profetizou que Vespasiano se tornaria imperador de Roma. O general ficou muito feliz com a previsão e concordou em atender a qualquer pedido feito por Ben Zakkai. O rabino pediu a Vespasiano que poupasse da destruição a pequena cidade de Yavneh e permitisse que Ben Zakkai estabelecesse ali um centro de ensino judaico. O general romano concordou. 

Vespasiano de fato se tornou imperador e deixou a Judéia para assumir o poder em Roma. Seu filho Tito foi deixado para trás para sitiar Jerusalém, que ele conquistou e incendiou. Ben Zakkai foi para Yavneh, e ele e todo o povo judeu embarcaram em uma viagem histórica única, uma viagem de aprendizagem. O judaísmo renunciou ao templo queimado, aos rituais sanguinários do templo e aos fanáticos que acenderam a chama da rebelião e, em vez disso, tornou-se uma religião de aprendizagem. Os judeus viviam em Yavneh e aprendiam. Eles se estabeleceram no Cairo e em Bagdá e aprenderam. Eles se estabeleceram em Vilna e no Brooklyn e aprenderam. 

Após 2.000 anos, judeus de todo o mundo retornaram a Jerusalém, aparentemente para colocar em prática o que haviam aprendido. Que grande verdade, então, os judeus descobriram em 2.000 anos de estudo? Bem, a julgar pelas palavras e ações de Netanyahu e seus aliados, os judeus descobriram o que Vespasiano, Tito e seus legionários sabiam desde o início: descobriram a sede de poder, a alegria de se sentirem superiores e o prazer sombrio de esmagar os mais fracos sob seus pés. Se foi realmente isso que os judeus descobriram, então, que desperdício desses 2.000 anos! Em vez de pedir por Yavneh, Ben Zakkai deveria ter pedido a Vespasiano e Tito que lhe ensinassem o que os romanos já sabiam. 

Se os judeus aprenderam nos últimos 2.000 anos alguma coisa que Tito não sabia, agora é a hora de mostrá-lo

TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Cultura e Comportamento/A fundo – Quarta-feira, 15 de maio de 2024 – Págs. C6-C7 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/05/2024).

Finalmente, uma boa notícia!

 Acordo de US$ 2,2 bilhões deve acelerar pesquisa de vacina contra Alzheimer

 

Ressonância magnética cerebral mostrando o acúmulo de placas e beta-amiloide no cérebro de paciente com sintomas de Alzheimer - Nomad_Soul/Adobe Stock


Hoje, produto da AC Immune é testado em pacientes com doença em estágio inicial e em adultos que tem síndrome de Down

A farmacêutica Takeda, responsável pela vacina da dengue, anunciou na última segunda-feira (13 de maio) um acordo para produzir uma candidata à vacina para pacientes com Alzheimer.

De acordo com a empresa, a fabricante terá exclusividade na licença global do imunizante ACI-24.060, uma imunoterapia desenvolvida para retardar a progressão da doença

A parceria com a startup de biotecnologia AC Immune prevê um pagamento inicial de US$ 100 milhões (cerca de R$ 515 milhões) e valores adicionais pagos após a obtenção de autorização para desenvolvimento, comercialização e distribuição do imunizante de até US$ 2,2 bi (cerca de R$ 11,34 bilhões). 

A expectativa é que o convênio forneça à Takeda o direito exclusivo de produção do imunizante, enquanto a empresa ficará com pagamentos de royalties obtidos a partir do lucro líquido da venda da vacina. 

Em um comunicado a jornalistas na última segunda (13), Andrea Pfeifer, diretora executiva da AC Immune, disse que o acordo permite alavancar a expertise de desenvolvimento, visão estratégica e capacidade financeira da organização. “Desenvolvemos uma abordagem inovadora que pode mudar o paradigma de tratamento da doença de Alzheimer e reduzir o impacto da condição em pacientes e familiares. Com a parceria com a Takeda, a nossa candidata à vacina [AC-24.060] terá melhor capacidade de evolução no desenvolvimento e na fase de testes até a realização do ensaio clínico de fase 3”, disse. 

O imunizante ACI-24.060 é uma imunoterapia, isto é, utiliza anticorpos monoclonais produzidos a partir de células de defesa capazes de identificar e atacar as formas tóxicas de beta amiloide, responsáveis pela progressão do Alzheimer. Ao induzir a depuração das placas e inibir a formação de novas placas no cérebro, a vacina tem o potencial de retardar ou desacelerar a progressão da doença. O estudo de fase 1b/2, atualmente em andamento, pretende avaliar a segurança, tolerância, imunogenecidade e efeitos no organismo da imunoterapia em indivíduos com Alzheimer e em adultos com síndrome de Down. 

Com o novo acordo, a AC Immune continua responsável por desenvolver o estudo clínico, mas a Takeda pode apoiar financeiramente e dar apoio para novos ensaios clínicos globais, além de ser também responsável por buscar as licenças regulatórias junto às agências de vigilância internacionais, bem como pela comercialização mundial. 

“Na Takeda, estamos comprometidos em enfrentar algumas das doenças mais debilitantes da sociedade, incluindo a doença de Alzheimer. Estamos entusiasmados em nos associar à AC Immune nesta abordagem de tratamento inovadora, que utiliza uma tecnologia inédita com potencial para oferecer aos pacientes um tratamento com eficácia, segurança e facilidade de administração diferenciadas”, disse Sarah Sheikh, chefe da unidade de área terapêutica de neurociência e chefe de desenvolvimento global na Takeda. 

Procurada, a Takeda Brasil afirma que, nos termos do acordo, a farmacêutica tem a opção exclusiva de licenciar as imunoterapias ativas da AC Immune, incluindo o ACI-24.060. A AC Immune será responsável pela conclusão do estudo de fase 1b/2. 

“Uma decisão será tomada assim que os dados do estudo estiverem disponíveis. Se a Takeda exercer sua opção de licenciar o ACI-24.060, a Takeda conduzirá e financiará todo o desenvolvimento clínico adicional e será responsável por todas as atividades regulatórias globais, bem como pela comercialização mundial”, disse por e-mail. 

Atualmente, existem medicamentos utilizados no tratamento de Alzheimer em uso na rede pública do país, como os anticolinesterásicos (donepezil, galantamina e rivastigmina) e a memantina, voltados para a redução dos sintomas. Tais terapias, no entanto, não sofreram evolução há três décadas. 

Recentemente, a FDA (agência americana que regulamenta drogas e alimentos) aprovou o lecanemab (comercializada pelo nome Leqembi), e o aducanumabe, ambos produzidos pela farmacêutica americana Biogen, cuja ação é retirar as placas de beta amiloide que se acumulam no cérebro e retardar a progressão da doença

Um outro medicamento, o donanemabe, produzido pela farmacêutica Lilly, apresentou redução de até 60% do declínio cognitivo em participantes do estudo de fase três da droga. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) disse que não recebeu o pedido de aprovação do lecanemab pela empresa. Para os demais medicamentos, a agência não respondeu sobre pedidos em andamento. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Saúde – Quarta-feira, 15 de maio de 2024 –Internet: clique aqui (Acesso em: 16/05/2024).

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Em São Paulo, a polícia tem dono

 Derrite, o dono da polícia

 Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de “Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro” 

GUILHERME DERRITE - várias mortes nas costas quando era da Rota

Ao transformar a PM paulista na mais sangrenta do país, secretário sonha alto na política

Secretário da Segurança de São Paulo, Guilherme Derrite é tão poderoso quanto o governador Tarcísio de Freitas. Ou até mais. Tarcísio se vê obrigado, de vez em quando, a vestir o disfarce de moderado para agradar setores do mercado financeiro que o querem como herdeiro de Bolsonaro. Derrite trocou a farda pelo terno, mas segue agindo como se estivesse na Rota, da qual foi afastado por excesso de mortes

Eleito deputado federal em 2018, reeleito em 2022, ele personifica a politização dos quartéis. Fenômeno que, segundo um estudo do cientista político Lucas Novaes, começa a dar os primeiros frutos podres: aumento no número de homicídios nos municípios que elegeram policiais militares como vereadores

Assim como Bolsonaro dizia que o Exército era dele — o que se provou falso ou meia-verdade no momento do golpe —, Derrite atua como senhor da polícia:

a) Montou um batalhão particular com 241 assessores fardados, efetivo maior que 91% das cidades paulistas.

b) Abriu guerra na cúpula da Polícia Militar, afastando coronéis favoráveis ao programa de câmeras corporais.

c) Acumula salários nos conselhos do Metrô e da Cetesb e, ao relatar o projeto contra a saidinha de presos, voltou a ser deputado. 

Transformou a Polícia Militar de São Paulo na mais sangrenta do país. As operações aboliram o eufemismo “fatos isolados”. Tudo parece proposital e feito em larga escala, pois se trata da campanha de Tarcísio. Além do aceno à direita bolsonarista na segurança pública, o governador investe nas privatizações e se aproxima das igrejas evangélicas. 

Um figurino perfeito se não existisse na estratégia um risco, uma suspeita. Do jeito que vão as coisas, Derrite pode muito bem achar (ou Bolsonaro decidir) que ele próprio é o melhor candidato à Presidência, o outsider que encarna o verdadeiro Bukele à brasileira. Não seria a primeira vez que a criatura passa a perna no criador. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Opinião/colunas e blogs – Domingo,12 de maio de 2024 – Pág. A8 – Internet: clique aqui (Acesso em: 15/05/2024).

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Uma excelente análise da conjuntura

 Lula é um maestro, toca de ouvido, mas o governo ainda não encontrou o tom

 Joelmir Tavares

Jornalista 

Entrevista com: Frei Betto

Frade dominicano, teólogo e escritor 

FREI BETTO, no convento dos Frades Dominicanos de São Paulo, em Perdizes


O presidente Lula governa com “duas tornozeleiras eletrônicas”: Banco Central e Congresso

O escritor e teólogo Frei Betto levou para um encontro com o amigo Lula (PT), na quarta-feira (8 de maio), em Brasília, suas impressões sobre o atual governo do presidente. Horas mais tarde, recebeu a reportagem da Folha em São Paulo e usou referências musicais para expor sua opinião. 

Comparou Lula a um maestro “que toca de ouvido” e disse que ele não cometeu nenhum erro grave em sua terceira passagem pelo Planalto, mas falta afinar o governo para “encontrar o tom” da comunicação

Nome histórico do campo progressista e apoiador do PT desde sua fundação —embora nunca tenha se filiado—, o frade dominicano agitou grupos de companheiros nas últimas semanas com um artigo em que criticou a “esquerda de cabelos brancos” por ter falhado na renovação de ideias e quadros

A meses de completar 80 anos, ele diz não ter respostas para a crise, mas querer provocar reflexões, válidas também para a Igreja Católica. Frei Betto evitou falar da visita a Lula sob a justificativa de que guardaria os detalhes para o artigo semanal que publicaria em seu site.

“Nossa amizade sempre foi muito fraternal”, disse. 

Com o pé na estrada, ele está lançando seu 79º livro, “Jesus Rebelde” (editora Vozes), e terá a vida retratada em cinco filmes — quatro documentários e uma ficção. O documentário “A Cabeça Pensa Onde os Pés Pisam”, de Evanize Sydow e Américo Freire, sobre sua atuação na educação popular, acaba de estrear

O que levou o sr. a escrever que a “turma dos cabelos brancos” precisa fazer autocrítica e “ter a coragem de abrir espaços às novas gerações”?

Frei Betto: Faço muitos encontros e palestras pelo Brasil e comecei a notar poucos jovens. O artigo é uma espécie de chamado para o pessoal progressista, tanto na política quanto na religião, se dar conta do que está havendo. Que a juventude está noutra. A gente está envelhecendo e não está conseguindo reproduzir uma geração que abrace a Teologia da Libertação ou as teses progressistas de reformas estruturais.

Com exceção do MST [movimento de sem-terra] e do MTST [de sem-teto], que fazem trabalho de base, não há reprodução. Muitos quadros e militantes foram absorvidos pelas estruturas de governo, sejam municipais, estaduais ou federal, e não houve continuidade com a base. Está aí o fiasco do 1º de Maio

E qual a sua explicação para o ato vazio no Dia do Trabalhador, que gerou reclamação do próprio Lula?

Frei Betto: [Problema de] comunicação. Só fiquei sabendo que o Lula estaria lá depois que aconteceu o ato. E eu me considero um sujeito relativamente bem-informado.

Além disso, os movimentos em geral estão muito debilitados. E não está havendo ainda uma boa sintonia entre governo federal e movimentos sindicais, populares e pastorais em geral, de todas as religiões. Está faltando uma melhor articulação nesse sentido, mas o governo tem feito muitas coisas e tem avançado

Onde?

Frei Betto: Primeiro, é impressionante como, em qualquer catástrofe que ocorre neste país, o governo está lá presente. O Lula já foi duas vezes para o Rio Grande do Sul, mandou o ministério para lá, tomou várias medidas. Outro exemplo é a estrutura que montou na Amazônia para reprimir o garimpo ilegal e reduzir o desmatamento. Há também a valorização do salário-mínimo, a isenção no Imposto de Renda.

O governo tem caminhado. Se você me perguntar onde é que o governo errou feio, eu diria que em nada

FREI BETTO durante entrevista concedida em seu local de residência

Para os erros que o sr. vê, que caminhos propõe?

Frei Betto: Como eleitor, como torcedor por esse governo, acredito que deveria haver uma melhor comunicação, mais didática. O governo tem um poder de comunicação muito grande, só que ainda não encontrou o tom, a maneira. E, sobretudo, na trincheira digital, você não pode improvisar.

Eu acho que o governo está fazendo muito mais do que a população está sabendo

Qual deveria ser o papel de Lula na comunicação?

Frei Betto: O presidente Lula é o maestro da orquestra. O papel dele é coordenar. Agora... Ele fica, coitado, tem que apagar um incêndio a cada dia. E a composição do ministério depende de acordos políticos, de concessões, coalizões. A coisa não é fácil. Na política não existe o ideal. Existe o possível.

O governo faz o que pode. O Lula governa com duas tornozeleiras eletrônicas, uma em cada perna: o Banco Central e o Congresso. Ele dá nó em pingo d'água, continua dando, é um gênio. Ele realmente é um cara que toca de ouvido a orquestra e faz funcionar a música, mas é muito difícil. 

Como vê as críticas a Lula quanto à responsabilidade fiscal e ao controle das contas públicas?

Frei Betto: O que afasta o investidor são juros altos, que fazem o capital ir para a área especulativa, e não a produtiva. Para mim, a grande trava na questão econômica é a índole atual do Banco Central. Ela é antipovo brasileiro, em favor da Faria Lima. E dane-se a miséria. Não tem a menor sensibilidade social.

O que estraga o Brasil é a nossa elite, que é uma elite colonizada, que não saiu da casa-grande até hoje, voltada unicamente para os seus privilégios. É uma elite que tem ódio, raiva e nojo do povo. Só pensa em termos do seu paraíso fiscal, nunca pensou em criar uma nação com dignidade e decência

No seu artigo, o sr. cita o caso de Marta Suplicy, que teve de ser resgatada pelo PT para a vice de Guilherme Boulos, a quem o sr. apoia na corrida à Prefeitura de São Paulo. Como vê a justificativa de que a experiência dela é um trunfo eleitoral?

Frei Betto: É também, mas há um fator maior: ela atrai voto, e muito. É considerada nas pesquisas a melhor prefeita que São Paulo já teve. 

GUILHERME BOULOS E MARTA SUPLICY

E o sr. a perdoa pelo que são considerados erros dela, como votar pelo impeachment de Dilma?

Frei Betto: Quem de nós não tem suas contradições? Ela teve as dela. Ela que tem que explicar isso. Eu continuo dizendo que foi contraditório com a história política dela

Vê conexão entre a falta de renovação da esquerda e a perda de popularidade da Igreja Católica?

Frei Betto: É evidente que sim. Esse neoconservadorismo está impregnando a Igreja Católica, que hoje é um corpo esdrúxulo: tem uma cabeça progressista, que é o [papa] Francisco, mas a maioria dos padres e seminaristas da safra atual é de formação conservadora. Eles são mais voltados para a liturgia e a paróquia e alheios à opção pelos pobres. O fundamentalismo no catolicismo é tão forte quanto entre os evangélicos

O fato de o líder ser progressista faz então o sr. crer num processo que leve a uma nova igreja?

Frei Betto: Não, eu ainda não tenho essa esperança. A resistência do corpo eclesiástico ao próprio Francisco é muito forte e permanece o clericalismo, em que tudo é centrado na figura do padre.

Numa igreja evangélica, as pessoas têm protagonismo e o culto é muito imagético. Numa igreja católica, os leigos são considerados seres de segunda classe e, em geral, a missa é aborrecida. A comunidade evangélica resgata a autoestima da pessoa, e a católica só fazia isso nas Comunidades Eclesiais de Base. Mas, como deixaram de ter importância para o episcopado, elas refluíram. 

Por que a direita tem sido tão atrativa e tão bem-sucedida em avançar não só no Brasil, mas também fora?

Frei Betto: Por dois fatores, ambos ligados à inovação tecnológica. A direita é dona das plataformas, está aí o Elon Musk [dono do X, antigo Twitter] para não deixar eu mentir. E, em segundo lugar, porque as big techs descobriram a forma de tornar o usuário dependente químico.

E o que faz a pessoa ficar ligada na rede? O ódio. O ódio mobiliza, movimenta. As redes digitais, que eu me recuso a chamar de sociais porque criam mais hostilidade que sociabilidade, são um dos fenômenos que provocaram mudança de conjuntura. E nós, progressistas, ainda não encontramos o passo certo

Além da questão tecnológica, o que faz com que as ideias e pautas da direita tenham penetração?

Frei Betto: Acho que essas pautas têm mais facilidade de deflagrar o nosso lado perverso, nosso lado emocional agressivo. E isso está sendo acionado por essas novas tecnologias e pelo comportamento hostil. 

O sr. não citou Jair Bolsonaro em nenhum momento. Por quê?

Frei Betto: Eu acho que ele nem merece

Mas ele e o bolsonarismo continuam aí, com força política e eleitoral, e o sr. já escreveu que “é real o risco de a direita voltar à Presidência em 2026”. Como evitar?

Frei Betto: O que precisa ser feito é o governo Lula dar muito certo, conseguir levar suas pautas à prática, favorecer mais a comunicação e fortalecer a defesa das suas teses ou dos seus programas, principalmente nas redes digitais. 

Que tipo de direita, na sua visão, é necessária hoje no Brasil?

Frei Betto: Por mim, não deveria existir direita. Eu, se fosse decidir a Constituição de um país, proibiria qualquer partido que defendesse a supremacia do capital sobre os direitos humanos. Ponto. É assim que eu sou democrata. 

Alguém de direita, ao ouvi-lo, não pode falar que isso também é discurso antidemocrático?

Frei Betto: Não importa. O que eu mais estou acostumado é que vão falar. Mas essa é a minha posição como cristão

Viu a fala de Michelle Bolsonaro na avenida Paulista em que ela pregou misturar política e religião?

Frei Betto: Religião e política são indivisíveis na vida pessoal de cada um, e toda religião é visceralmente política. Não há religião neutramente política. Qual é a sabedoria? Não confessionalizar o Estado e não partidarizar as religiões.

Eu jamais falei no púlpito “vote nesse ou naquele partido ou candidato”. Mas eu falo, sim, “temos que combater o capitalismo, fortalecer as forças sociais, fazer opção pelos pobres”. Só que quem não gosta de ouvir isso fala que é [discurso] político. 

RAIO-X

Carlos Alberto Libânio Christo (FREI BETTO), 79 anos

Frade dominicano, teólogo, jornalista e escritor, nasceu em Belo Horizonte e mora em São Paulo. Preso duas vezes durante a ditadura militar, foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula, de 2003 a 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Tem 79 livros publicados. É assessor de movimentos sociais e da FAO/ONU para questões de soberania alimentar e educação nutricional. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Política – Domingo,12 de maio de 2024 – Pág. A8 – Internet: clique aqui (Acesso em: 13/05/2024).