«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Redescobrir o Sacramento da Penitência

A penitência: recuperar a experiência
de “misericórdia”

Andrea Grillo
Teólogo italiano
Professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma,
do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do
Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua

Uma questão, ainda, aberta pelo Concílio Vaticano II:
renovar o Sacramento da Penitência
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Com um texto eficaz publicado na última edição da revista Il Regno (disponível aqui, em italiano), Ladislas Orsy apresenta de modo sintético uma das questões abertas após o Concílio Vaticano II: a reavaliação da “disciplina penitencial”. E o autor, do alto de uma longa experiência, pode facilmente indicar não só o desenvolvimento histórico do “sacramento da misericórdia”, mas também as expectativas sucessivas ao Concílio Vaticano II (largamente desatendidas) e também as possibilidades abertas no futuro próximo.

Parecem-me apreciáveis a clareza e a parresia [em grego = franqueza] com que o autor expõe muito abertamente os modelos históricos do sacramento e a exigência de reforma que o Concílio fez surgir com clareza. De fato, ele escreve no início do seu texto: “O Concílio julgou que o atual rito e as fórmulas exteriores são expressões inadequadas do dom interior da graça e, por isso, o Concílio pediu que a Igreja busque uma configuração melhor para a administração de sacramento”.

Uma configuração melhor do sacramento, entretanto, não é simplesmente uma operação disciplinar. Também não é apenas uma questão litúrgica. Mas é uma questão doutrinal. O anseio “pastoral” do Concílio nos pede uma renovação do modo com que pensamos sistematicamente o sacramento da confissão. Por isso, o modo de administrá-lo, que precisa de uma grande reavaliação, não pode deixar de corresponder a uma “doutrina” mais adequada do próprio sacramento. Sobre esse ponto, a segunda parte do texto de Orsy é mais uma narração do que uma teorização. E, como narração, revela coisas de grande importância, mas também esconde questões igualmente urgentes.

De fato, a “solução” proposta parece uma espécie de “mediação” entre o segundo e o terceiro capítulo do atual rito. Em essência, seria uma celebração da confissão comunitária, mas com absolvição individual, embora com confissão não específica e analítica e, portanto, pública e não secreta.

Essa proposta, que certamente intercepta uma série de reivindicações presentes no contexto eclesial e social de hoje, porém, parece-me não corresponder à questão central, ou seja, ao significado teológico do sacramento para a cura do batizado. Aqui, parece-me que a proposta permanece largamente aquém daquilo que parece ser não só necessário, mas até, eu diria, suficiente. Tento explicar melhor essa minha perplexidade e o faço esquematicamente, de acordo com uma série de proposições:

a) Os “sacramentos da misericórdia” são, acima de tudo, batismo, crisma e eucaristia. O sacramento da confissão é um sacramento para “recuperar uma experiência da misericórdia” que eu já devo ter conhecido, de uma forma muito maior, na celebração eucarística dominical.

b) Portanto, a função do “sacramento da confissão” é de levar novamente o sujeito batizado, que entrou em uma crise grave, a reencontrar a experiência da misericórdia de Deus. Nisso, portanto, é renovado o dom do perdão (que não é típico desse sacramento), mas com a especificidade de um “trabalho do sujeito”, que responde ao perdão renovado de Deus com a sua palavra, com o seu coração e com o seu corpo.

c) Se o lermos desse modo, o sacramento tem o seu perfil mais típico no fato de “cuidar” da resposta do pecador arrependido à graça que Deus renova sobre ele. Por isso, não existe nenhuma “absolvição geral”, nem uma “confissão geral”, nem um “arrependimento geral” ou uma “penitência geral”, exceto em casos-limite.
 
Sem previsão, no momento,
de publicação em nosso país
d) Isso não significa que não se deva recuperar a dimensão comunitária de fazer penitência. Mas o sacramento permanece no limiar da própria necessidade, se não se ocupar de acompanhar os sujeitos não simplesmente a uma experiência de perdão, mas também ao concreto itinerário verbal, de consciência e operacional com o qual eles respondem à graça do perdão.

Por isso, a recuperação do “fazer penitência” parece-me uma dimensão intrínseca do sacramento, que não se deixa reduzir a uma celebração “mensal”, cuja função de “celebração penitencial” está fora de discussão, mas que, como tal, se assemelha mais a uma preparação e a uma pedagogia do sacramento, e não à sua celebração temporal e espacial na crise dos sujeitos cristãos. Esse é o centro de uma exigência que é pastoral e, ao mesmo tempo, requintadamente teológica. 

Procuramos refletir sobre isso, junto com Daniela Conti, no livro “Fare penitenza. Ragione sistematica e pratica pastorale del quarto sacramento” [Fazer penitência. Razão sistemática e prática pastoral do quarto sacramento] (Assis: Cittadella, 2019), que também inspirou o sentido desta minha consideração.

Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão original, clicando aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Terça-feira, 30 de julho de 2019 – Internet: clique aqui.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Como agir diante da morte iminente?

O que dizer a alguém que está prestes
a perder um ente querido?

Mathilde de Robien

Precisamos começar a superar nosso próprio medo de 
falar sobre a morte
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Pacientes terminais recebem apoio da família, da equipe médica e de outras pessoas que se oferecem para visitá-los ou acompanhá-los. Mas quem apoia os membros da família, que estão passando pela dolorosa experiência de se preparar para perder um ente querido?

Esses membros da família e cuidadores estão em uma posição difícil, porque enquanto eles estão lidando com seus próprios sentimentos em relação à doença e morte de seu ente querido, eles também precisam permanecer fortes e estar presentes para apoiar a pessoa que está morrendo. Como eles podem consolar a pessoa que está morrendo quando eles mesmos se sentem emocionalmente abalados, e talvez até confusos, com a ideia de perder seu amado em breve?

Todos nós acabamos nessa posição mais cedo ou mais tarde, geralmente quando nossos pais chegam ao fim do tempo na Terra. Mas quando alguém que conhecemos está perdendo um ente querido, às vezes nos sentimos desconfortáveis ​​e desajeitados, e não sabemos o que fazer ou dizer. Muitas vezes acabamos não dizendo nada. Isso, no entanto, não é o mais adequado.
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Demonstre interesse

O primeiro passo – antes mesmo de ouvir o que essas pessoas querem dizer – é aproximar-se delas. Algumas pessoas podem preferir fechar os olhos e não falar sobre a situação, mas fazer um ato de presença, estar disponível no momento em que alguém que você conhece está passando por essa dificuldade, é o primeiro passo necessário.

Não precisamos nos pressionar para encontrar as palavras perfeitas de consolo. Será suficiente se pudermos dar à pessoa a oportunidade de falar sobre si mesma e sobre o que ela está passando, seus medos e sentimentos.

A simples pergunta “Como você está se sentindo?” é um bom começo. Certifique-se de fazer perguntas abertas que possam iniciar uma conversa e deixar a pessoa responder em seu próprio ritmo.
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Escutar

Quando ouvimos atentamente alguém que está passando pela perda de um ente querido, descobrimos os sentimentos que estão sendo despertados em seu coração, como:
* amargura,
* revolta,
* tristeza,
* arrependimentos e
* medos.
Deixe-os se expressar e chorar se precisarem.

Esta é uma boa maneira de consolá-los, dar-lhes paz e encorajá-los. Mostre que você está presente e disponível. Diga-lhes que, sim, esta é uma provação difícil de superar, mas você está ao lado deles. Mostrar empatia neste momento significa estar pronto para participar dos sofrimentos dessa pessoa.

Quanto mais a pessoa sente a nossa empatia, mais ela vai se abrir e falar sobre o que realmente está acontecendo. Essa atitude nem sempre é fácil de se praticar, porque consolar alguém que está lidando com a morte iminente de um ente querido traz à tona a ideia da nossa própria morte, e isso pode ser inquietante.

O que podemos dizer?

Uma vez que adotamos essa atitude de abertura atenta, e uma vez que ouvimos, precisamos saber o que dizer. Um especialista que cuida de pacientes terminais na Federação JALMALV em Orleans, França, oferece alguns conselhos para nos ajudar a fornecer consolo e alívio para as pessoas que estão sofrendo pela morte iminente de um ente querido:

«Incentive-os a falar sinceramente com o paciente.
Muitas vezes, as pessoas caem em um círculo vicioso:
a família não se atreve a falar com a pessoa que está morrendo, porque ela quer protegê-la das más notícias e, ao mesmo tempo, o paciente não ousa falar com a família, pelo mesmo motivo. Consequentemente, pode ser útil encorajar os entes queridos do paciente moribundo a conversar com ele, lidar com as questões em profundidade e fazer isso de modo espontâneo e natural.»
ANSELM GRÜN
Monge beneditino: psicólogo, escritor e teólogo

Anselm Grün, monge beneditino da Abadia de Münsterschwarzach, na Alemanha, escreveu em um livro recente (ainda não traduzido para outros idiomas):

«Deve-se encorajar o familiar a ficar ao lado da pessoa que está morrendo, a falar com ela e a segurar sua mão. Assegure ao familiar que ele receberá como presente este fato de ter ajudado a pessoa doente e aprofundado seu relacionamento. É uma oportunidade inesperada de reconciliação, uma chance de dizer palavras de amor e afeto um ao outro, que eles não ousaram dizer em toda a sua vida.»

Ajude as pessoas próximas ao paciente terminal a libertarem-se de sentimentos de culpa. Muitas vezes, familiares próximos da pessoa que está morrendo se arrependem de não ter estado presentes o suficiente. Eles costumam dizer: “Eu deveria ter estado lá com mais frequência” ou “eu não visitei com frequência suficiente”. Temos a oportunidade de aliviá-los de sua culpa, enfatizando acima de tudo que a pessoa doente também precisa estar sozinha consigo mesma, em face de sua doença.

Outra fonte de sentimento de culpa é não estar com a pessoa que está morrendo, no momento de sua morte. Para algumas pessoas, isso pode parecer uma verdadeira tragédia, especialmente se tiverem se dedicado de corpo e alma a acompanhar a pessoa em casa ou no hospital. Mais uma vez, é importante saber que os pacientes em fase terminal frequentemente se permitem morrer precisamente quando o filho ou a filha sai do quarto para tomar uma xícara de café ou resolver alguma coisa.

Incentive os entes queridos do doente a tranquilizar o paciente. Dado que o doente pode sentir-se ansioso com a ideia de deixar o cônjuge ou os filhos sozinhos, é importante colocá-los em paz, informando-os de que estas questões já estão resolvidas e que eles podem ir em paz.

Por fim, não devemos hesitar em sugerir que os entes queridos da pessoa rezem juntos pelo paciente. A oração é uma fonte inesgotável de consolo e graça. Quer sejam crentes ou não, ou pratiquem sua fé ou não, convide-os a rezar com você! E não se esqueça de orar por eles, para que eles tenham a força e a coragem de passar por este momento difícil com calma e paz.

Fonte: Aleteia – Sexta-feira, 26 de julho de 2019 – Internet: clique aqui.

Esclarecendo: porque Bolsonaro não dá certo!

Riscos desnecessários

Marco Aurélio Nogueira
Professor titular de Teoria Política
e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da UNESP

Acima de tudo e de todos, deve-se evitar que o País degringole
e fique sem opções
MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Falando sem parti pris [do francês = preconceito], o problema político dos brasileiros não é termos um governo de direita ou extrema direita, nem ser Jair Bolsonaro um fundamentalista retrógrado. O problema é que:
* o presidente não conhece o País,
* não respeita princípios democráticos básicos e
* não deseja governar.
Estamos correndo riscos desnecessários.

Desde sua posse o País depende muito mais do empenho da Câmara dos Deputados que do Poder Executivo. Falam mal dos parlamentares, mas sem eles teríamos tido um semestre trágico, estaríamos mergulhados numa sequência de bravatas, provocações e ofensas promovidas por Bolsonaro e seu entorno, que parecem dispostos a tratar todos como inimigos.

Combater a esquerda e o PT é legítimo e aceitável, mas é uma patifaria quando feito na base de mentiras e agressões. A direita e a esquerda fazem parte da vida, o revezamento delas no governo dos países é normal, saudável e produtivo. Liberais, conservadores e socialistas são famílias políticas essenciais, filhos legítimos da modernidade e de suas transformações no correr do tempo. Querer eliminar um deles com argumentos de autoridade é ir contra a lógica das coisas e os parâmetros democráticos de civilidade.
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JAIR BOLSONARO
Presidente da República do Brasil

Atitudes nada inocentes e suas consequências

Debochar de brasileiros do Nordeste, agredir ativistas, professores, artistas, intelectuais e jornalistas, ameaçar a cultura e a educação com a imposição de “filtros” que não passam de censura, tratar a ciência com desprezo, beneficiar o próprio filho – tudo isso, verbalizado com escárnio, faz a Presidência da República evaporar como instância de organização do País e se transforme numa trincheira de combate.

Agindo assim, o presidente prejudica o País e a população, além de criar dificuldades para si próprio. Sua guerra ideológica contra partidos, “velhos políticos” e sociedade civil exaspera os parlamentares, aumentando os custos da transação política na aprovação de medidas e propostas governamentais. Enfraquece as instituições e os órgãos públicos, varrendo-os para a margem. Suas ações não são “folclóricas”, inocentes, mas ferem princípios básicos e fazem o País andar para trás:
* na educação,
* na cultura,
* na política internacional,
* nos direitos,
* na saúde,
* no meio ambiente,
* na economia.
Impactam negativamente a sociedade, fomentando divisões que não ajudam o País a enveredar por uma trilha de progresso, justiça e bem-estar.

Um presidente que se comporta como se fosse chefe de uma facção, não mede as palavras, confunde o público com o particular, move-se pela emoção imediata e por cálculos improvisados é uma tragédia anunciada. Poderá sobreviver ao mandato, e até prolongá-lo, mas de seu período governamental não sairá um País melhor, uma sociedade mais coesa ou um Estado administrativo mais eficiente.

Em vez de nos ajudar a superar a polarização fratricida que reinou nos últimos anos, ele a agrava, a esvazia de dignidade e a empurra para a violência explícita.
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JAIR BOLSONARO COMPARECE EM CULTO DE SILAS MALAFAIA
Período anterior às eleições de 2018

Porque Bolsonaro venceu as eleições

Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 de forma inquestionável, cristalina. Mostrou senso de oportunidade ao endossar um figurino específico na hora mesma em que o eleitorado demonstrava estar cansado das ofertas políticas usuais. Suas proposições autoritárias, seu estilo informal, o uso abusivo que fez de valores religiosos e moralistas, sua habilidade em utilizar as redes sociais encontraram eco nos eleitores, que viram nele uma opção ou para derrotar o PT e virar a página, ou para depositar esperanças num líder de novo tipo.

Sua vitória, porém, também foi conseguida porque a esquerda petista se mediocrizou e a esquerda democrática não conseguiu abraçar o campo liberal-democrático e, junto com ele, virou farinha, que engrossou o pirão da extrema direita. Foi uma vitória do senso de oportunidade combinado com incompetência política. Sem isso o resultado teria sido diferente.

A vitória eleitoral, no entanto, não deu a Bolsonaro o direito de se comportar como o tirano platônico que se deixa dominar pelos desejos mais baixos e por seus demônios internos, postos em movimento pela paixão que aguça a imoderação. Numa República democrática o presidente deve ser:
* um agente da moderação,
* um construtor de consensos,
* um promotor do diálogo coletivo.
Tem suas preferências, seu credo e seu mapa de navegação, mas não está autorizado a agir por impulso, conforme uma rotina passional que só produz caos e confusão.

A conduta errática e acrimoniosa de Bolsonaro ainda não levou a sociedade à convulsão. Em parte, porque só se passaram seis meses, em parte, porque a população tem conseguido manter alguma coesão, em parte porque o Congresso tem governado o País, construindo consensos e tomando decisões estratégicas.

Faltam entrar em cena os partidos, os movimentos cívicos e os cidadãos ativos perfilados no campo democrático progressista. Até agora, eles parecem trabalhar nos bastidores, em silêncio, dando até mesmo a impressão de estarem a hibernar. A oposição que orbita o PT não consegue produzir propostas e entendimentos, limita-se a mimetizar com sinal trocado a conduta presidencial, valendo-se de uma retórica igualmente passional, que divide e inflama a população. Em vez de se lançar com coragem no mar aberto da renovação procedimental e discursiva, aferra-se a mitos e atitudes defensivas, refratárias ao moderno que se renova em direções inesperadas, surpreendentes e desafiadoras.

Temos de girar a chave e abrir novas portas. Buscar maior interlocução, abandonar projetos parciais de poder e cálculos eleitorais de curto prazo. Pode ser que se tenha de ajudar o governo a governar, a cometer menos erros e a causar menores prejuízos. Não há por que ter preconceito contra isso. Acima de tudo e de todos deve estar a preocupação de evitar que o País degringole e fique sem opções. Resistir é preciso, mas sem medo de olhar para a frente e ousar, correndo riscos que valham a pena.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço aberto – Sábado, 27 de julho de 2019 – Pág. A2 – Internet: clique aqui.
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RICARDO MAGNUS OSÓRIO GALVÃO
Presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
A batalha contra a realidade

Editorial

Como presidente, Jair Bolsonaro deve se ater aos
problemas reais e dar-lhes soluções

Já é sabido que o presidente Jair Bolsonaro não nutre especial apreço por dados estatísticos e científicos quando estes contrariam as suas próprias crenças, seja qual for o assunto. O problema é que os fatos se impõem por si mesmos e, ao fim e ao cabo, a desmoralização recai sobre aqueles que os negam. E quando não nega dados que lhe desagradam, o presidente Bolsonaro trata de desqualificar os métodos de trabalho para sua obtenção, baseando-se em especulações e preconceitos. Não é um bom caminho. A batalha contra a realidade é inglória.

Em pouco mais de 200 dias, o governo de Bolsonaro já desacreditou:
1º) o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) quando o órgão de insuspeita reputação divulgou dados sobre o desemprego.
2º) Já desqualificou pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre o flagelo das drogas.
3º) Agora, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), instituição científica de grande prestígio dentro e fora do Brasil, é que está sob ataque.

Em café da manhã com correspondentes estrangeiros na sexta-feira passada, o presidente Jair Bolsonaro contestou dados do Deter, sistema de alerta de desmatamento do Inpe, que mostrou que em junho houve um aumento de 57% da área desmatada na Amazônia em relação ao mesmo período no ano passado. De acordo com o Deter, 769 km² na região amazônica foram desmatados no mês passado. Há um ano, foram 488 km².

O presidente Jair Bolsonaro não só desacreditou os dados, mas o próprio Inpe, seu corpo de servidores e o presidente do instituto, Ricardo Magnus Osório Galvão. Aos jornalistas estrangeiros, Bolsonaro insinuou que Galvão estaria “a serviço de alguma ONG”.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente do Inpe afirmou que Bolsonaro fez “comentários impróprios” e “ataques inaceitáveis”, que mais pareceram “conversa de botequim”. Ricardo Galvão disse ainda que a atitude do presidente da República foi “pusilânime e covarde”. Por fim, o presidente do Inpe afirmou que não pedirá demissão do cargo.
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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (FIOCRUZ)
Reconhecida e prestigiada internacionalmente - atacada por Bolsonaro

Por meio de nota, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, fez coro às críticas de seu chefe ao Inpe e disse “compartilhar a estranheza” do presidente Bolsonaro sobre a variação do porcentual de desmatamento na Amazônia no último ano. O ministro Pontes, a quem o Inpe está subordinado, disse que irá requerer “mais dados” ao instituto e que convocará Ricardo Galvão a ir a Brasília para “esclarecimentos e orientações”.

Marcos Pontes, embora militar, é um homem com origem na comunidade científica. Dele era esperado que soubesse que, em Ciência, dados são refutados por outros dados, não por especulações, sobretudo as de natureza política. Ao chancelar, na prática, a “tese” do presidente Jair Bolsonaro, segundo a qual as informações sobre desmatamento apuradas pelo Inpe são “mentirosas” e se prestam apenas a “desgastar a imagem do País no exterior”, o ministro faz clara opção por uma política de baixa extração.

Jair Bolsonaro requereu que os dados apurados pelo Inpe passem a ser submetidos a ele antes de serem divulgados. O que pretende o presidente com essa medida? Caso se depare novamente com dados que não estejam a seu gosto irá alterá-los ou, no limite, proibir sua divulgação? Seria inútil, pois os dados de satélite do Deter são acessíveis por uma série de instituições científicas mundo afora. O País, afinal, é pioneiro nesse tipo de monitoramento do meio ambiente.

Afigura-se um padrão de comportamento. O tempo irá dizer se a atitude de negação será uma marca deste governo. Dados que consubstanciem teses “de esquerda”, como supostamente seria a defesa do meio ambiente, não seriam por si sós confiáveis.

A construção de uma realidade paralela pode funcionar muito bem para manter acesa a chama dos núcleos de apoio mais aferrados ao governo. Mas Jair Bolsonaro não preside nichos. Como presidente do Brasil, deve-se ater aos problemas reais e dar-lhes soluções. Um bom começo é admitir que eles existem.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Notas & Informações – Sábado, 27 de julho de 2019 – Pág. A3 – Internet: clique aqui.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Fomos avisados!

Aquecimento do planeta já é o maior evento climático
em 2 mil anos, indica pesquisa

Matt McGrath

O aquecimento global registrado atualmente supera 
em velocidade e extensão qualquer evento climático 
registrado nos últimos 2 mil anos
O clima de hoje não tem comparação com nenhum outro período nos últimos 2 mil anos

Em artigo publicado na revista Nature, cinco pesquisadores afirmam que nem mesmo episódios históricos como a "Pequena Era do Gelo" – resfriamento acentuado registrado entre os anos 1300-1850 – se comparam com o que está acontecendo no momento no mundo.

Acesse esse artigo, em inglês, clicando aqui.

A pesquisa indica que o atual aquecimento global é mais alto que qualquer outro observado anteriormente. No texto, os cientistas dizem [que] seus achados mostram que argumentos usados pelos céticos em relação às mudanças climáticas não são válidos.

Ao examinarem a história climática do mundo nos últimos séculos, pesquisadores identificaram vários episódios importantes que se destacaram. Eles variaram desde o "Período Quente Romano", que registou, entre 250 d.C. e 400 d.C., um clima excepcionalmente quente em toda a Europa, até a famosa Pequena Era do Gelo, quando as temperaturas baixaram durante séculos seguidos a partir de 1300.

O engano dos que não creem no aquecimento global

Esses acontecimentos são vistos por alguns, em especial os céticos em relação às mudanças climáticas, como evidência de que o mundo aqueceu e esfriou muitas vezes ao longo dos séculos e, por isso, o aquecimento observado a partir da Revolução Industrial é parte desse ciclo padrão - portanto, não haveria nada para se alarmar.

Mas três novos trabalhos de pesquisa, entre eles o publicado na revista Nature por esses cinco pesquisadores, mostram que os fundamentos desse argumento não são tão sólidos.

De acordo com o artigo da Nature, os cientistas reconstruíram as condições climáticas que existiam nos últimos 2 mil anos, usando 700 registros "proxy" de mudanças de temperatura - indicadores que permitem tirar conclusões a partir de dados climáticos indiretos como anéis de árvores, corais e sedimentos de lagos.

Os pesquisadores afirmam que nenhum desses eventos climáticos avaliados ocorreu em escala global num mesmo período.

Eles dizem que a Pequena Era do Gelo, por exemplo, foi mais forte no Oceano Pacífico no século 15 e na Europa no século 17.

De um modo geral, qualquer pico ou baixa de temperatura, a longo prazo, pode ser detectado em até metade do globo em momentos específicos.

O "Período Quente Medieval" (950-1250 d.C.), por exemplo, registou aumentos significativos de temperatura em apenas 40% da superfície da Terra. Segundo os pesquisadores, o aquecimento de hoje afeta praticamente todo o mundo.
gráfico em inglês
Taxas de aquecimento / resfriamento global nos últimos 2.000 anos

O fenômeno, agora, é planetário!

"Descobrimos que o período mais quente dos últimos dois milênios ocorreu durante o século 20 em mais de 98% do globo. Isso fornece fortes evidências de que o aquecimento global antropogênico não é apenas incomparável em termos de temperaturas absolutas, mas também sem precedentes na consistência espacial dentro do contexto dos últimos 2 mil anos", escreveram no artigo.

Os pesquisadores observaram que, antes da era industrial moderna, a influência mais significativa no clima eram os vulcões. Eles não encontraram nenhuma indicação de que variações na radiação do Sol tenham impactado as temperaturas globais médias.

O período atual, dizem os autores da pesquisa, excede significativamente a variabilidade natural.

"Vimos a partir dos dados instrumentais e também de nossa reconstrução que, no passado recente, a taxa de aquecimento claramente excede as taxas de aquecimento natural - esse é outro ponto para observar a natureza extraordinária do aquecimento atual", contou Raphael Neukom, da Universidade de Berna, na Suíça, um dos autores do estudo.
RAPHAEL NEUKOM
Um dos autores do estudo
Universidade de Berna, Suíça

O aquecimento não é um fenômeno natural

"Nós não testamos explicitamente isso; só podemos mostrar que as causas naturais não são suficientes em nossos dados para realmente causar o padrão espacial e a taxa de aquecimento que estamos observando agora", explicou Neukom.

Outros cientistas ficaram impressionados com a qualidade dos novos estudos conduzidos pela equipe de Raphael Neukom.

"Eles fizeram o estudo em todo o mundo com mais de 700 registros dos últimos 2 mil anos. Têm corais e lagos e também dados instrumentais", disse a professora Daniela Schmidt, da Universidade de Bristol, Reino Unido, que não esteve envolvida nos estudos.

"E eles foram muito cuidadosos ao avaliar os dados e o viés inerente que qualquer dado tem. Então, o grande avanço é a qualidade e a cobertura desses dados. É incrível", afirmou a professora.

Muitos especialistas argumentam que os achados são capazes de desbancar muitas das afirmações feitas por céticos do clima nas últimas décadas.

"Este artigo deve finalmente fazer com que os que negam as mudanças climáticas parem de alegar que o aquecimento global observado recentemente é parte de um ciclo climático natural", disse o professor Mark Maslin, da Universidade College London, no Reino Unido, que também não participou dos estudos.

"Este artigo mostra a diferença verdadeiramente nítida entre as mudanças regionais e localizadas no clima do passado e o efeito verdadeiramente global das emissões de gases de efeito estufa antrópicas", completa Maslin.

Além da revista Nature, o estudo também foi publicado em dois artigos na publicação acadêmica Nature Geoscience.

Fonte: BBC – News/Brasil – Quinta-feira, 25 de julho de 2019 – Internet: clique aqui.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Saiba aonde Paulo Guedes quer chegar

Sem coração, nem cabeça:
a política social negativa de Paulo Guedes

Celia Lessa Kerstenetzky*

A ironia é que revolucionários são os ultraliberais,
que querem tudo mudar para instalar a ditadura do mercado,
enquanto socialdemocratas são os reformistas - aqueles que querem por meio de reformas domesticar o mercado para que sirva à liberdade
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PAULO GUEDES
Ministro da Economia de Jair Bolsonaro

Como ultraliberal, na tradição do economista austríaco Friedrich Hayek, o ministro da Economia Paulo Guedes surpreende ao assumir superpoderes no atual governo e disparar instruções de mudanças simultâneas e profundas em várias áreas da ação governamental. Hayek passou boa parte de sua vida intelectual condenando intervenções governamentais radicais que vinculava ao socialismo. Estas estariam destinadas ao fracasso por violarem a natureza mesma da ordem social. Imaginada como interação de consequências pouco previsíveis entre atores munidos de opiniões e expectativas recíprocas, a ordem social seria avessa a planos abrangentes e, pior, tendente a perverter as boas intenções dos planejadores.
FRIEDRICH AUGUST VON HAYEK (1899-1992)
Economista e filósofo liberal austríaco, radicou-se na Inglaterra

Mas Guedes não está só nesse faux pas [passo em falso]. Hayek, o inimigo da intervenção governamental, terminou ele próprio por cometer o pecado que execrara: tornou-se campeão de um conjunto interminável de medidas governamentais destinadas a desmontá-la. A reação de um conservador refinado, o historiador britânico Michael Oakeshott, não tardaria: Hayek se tinha convertido em um inconsistente “intervencionista anti-intervenção”. Afinal, ou todas as intervenções abrangentes padeceriam dos problemas de conhecimento tão magistralmente descritos pelo próprio Hayek ou nenhuma delas.

Essa percepção de Oakeshott contribuiu para desvelar a natureza “ideológica” da crítica, que se pretendia acima de qualquer ideologia, dirigida por Hayek ao socialismo, à social democracia, à materialização enfim de qualquer noção de justiça social:
certas intervenções, ok; outras, não.
E assim nascia o neoliberalismo, carregando o pecado de origem de ativismo governamental, promotor e guardião da ordem “espontânea”.
MICHAEL JOSEPH OAKESHOTT (1901-1990)
Filósofo e teórico político inglês conservador

Mais coerente, nessa tradição cética, é a reflexão sobre a matéria por parte de um amigo de Hayek, o também austríaco Karl Popper. Filósofo sofisticado, Popper percebe que dado o material problemático e as evidentes limitações cognitivas dos humanos, a possibilidade de conhecimento a respeito do funcionamento do mundo social e, pois, de algum controle sobre o curso dos acontecimentos, dependeria inevitavelmente de intervenções sobre ele. Para que se aprenda algo, inclusive com os erros, é necessário, contudo, limitar as intervenções ao campo de possibilidades de aprendizado, o que Popper chamaria de engenharia pragmática ou gradual. Quando se muda tudo ao mesmo tempo, nada se aprende e se é obrigado a improvisar quando as coisas não caminham como o esperado – há frequentemente consequências tirânicas associadas a isso. Exemplo de intervenções bem-sucedidas, por outro lado, as reformas sociais introduzidas pela social democracia escandinava são mencionadas no famoso A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Popper reconhecia no experimento escandinavo dos anos 1950 uma combinação apropriada de:
* intervencionismo gradual democrático e
* busca de correção das desigualdades econômicas do “capitalismo incontido” (suas palavras).
Neste [“capitalismo incontido”], vigoraria o “paradoxo da liberdade” (idem), em que o excesso de liberdade levaria à opressão do mais fraco pelo mais forte e ao abuso do economicamente desfavorecido pelo economicamente poderoso. Ainda em suas palavras, “a liberdade não pode ser salva sem se avançar em justiça distributiva.

A ironia é que revolucionários são os ultraliberais, que querem tudo mudar para instalar a ditadura do mercado, enquanto socialdemocratas são os reformistas – aqueles que querem por meio de reformas domesticar o mercado para que sirva à liberdade.
KARL RAIMUND POPPER (1902-1994)
Filósofo da Ciência e professor austríaco radicado na Inglaterra

A revolução de Guedes passa pela desfiguração radical da política social, nome aliás suprimido do discurso oficial. Temos notícias de sua desfiguração pelas anunciadas medidas confrontando partes estanques de um todo que levou décadas para decantar. O esquartejamento foi também institucional e já havia sido iniciado pelo governo provisório de Michel Temer, com a migração da previdência, tema social, para o ministério da Fazenda, que cuida do fisco. A bem da verdade, o governo provisório ousaria mais, ao estipular teto para o gasto social por 20 anos e reformar a legislação do trabalho ao arrepio de interesses e perspectivas do próprio trabalho, em gesto clássico de estelionato eleitoral.

Bolsonaro e seu time foram eleitos no silêncio da política social – algo percebido (e temido) pelos eleitores mais pobres –, com um vago aceno ao Bolsa Família e forte ênfase numa agenda antipolítica (com p minúsculo e maiúsculo). No vácuo de promessas que não foram feitas se abrigaria um caldeirão de iniquidades:
1º) a primeira penada foi a eliminação dos ministérios do Trabalho (copiando iniciativa do húngaro Viktor Órban) e do Desenvolvimento Social.
2º) Previdência, trabalho e assistência deixaram de ter interlocutores próprios no Planalto. Outras iniciativas extremas estariam por vir.

Por que a supressão da política social? A convicção do titular da Economia é que ela introduz distorções prejudiciais à economia de mercado e à entrega de seus benefícios: empregos e alguma renda. As distorções estariam representadas por encargos incidentes sobre empregadores, para quem se torna caro empregar, e gastos do governo, que assustam investidores.

Aos desavisados: estas são as intenções de Guedes

Um rápido inventário da política social negativa de Guedes identifica quatro eixos centrais corretivos das referidas distorções:
1) a desregulamentação integral do trabalho [traduzindo: a precarização total do trabalho, com os trabalhadores entregues à sua própria sorte e risco!],
2) a reforma terra arrasada da previdência [traduzindo: a previdência deixando de ser um seguro/solidariedade social e passando a ser uma caderneta de poupança individualizada, caso a capitalização seja adotada],
3) a ameaça abusiva aos serviços sociais e
4) a minimização do Estado [traduzindo: vendendo tudo que esteja nas mãos do Estado, enfraquecendo-o, fortalecendo o grande capital, os grandes grupos econômicos].

No eixo trabalho, propõe-se a “troca de direitos por empregos” – precários, mal remunerados e sem proteção social -, sob o codinome de carteira verde-amarela, onde direitos da CLT que sobreviveram à investida Temer serão abolidos. A nova regra de reajuste do salário mínimo pela inflação encaminhada ao Congresso Nacional, suprimindo o ajuste pelo crescimento do PIB presente na regra vigente desde 2007, anula o princípio do crescimento econômico compartilhado, isto é, crescimento que beneficia a todos, de preferência os que foram privados do acesso a oportunidades.

No eixo previdência, há a investida contra a base da previdência pública: a maior economia da reforma virá daqueles com rendimentos de até dois salários mínimos para quem qualquer perda monetária é perversa. Há ainda a projetada capitalização, que entroniza o princípio do cada um por si, eliminado a solidariedade intrínseca à própria ideia de previdência pública. A capitalização, combinada com empregos eventuais e sem direitos, salário mínimo defasado e os riscos inerentes ao mercado financeiro (vide crise financeira de 2007-8), permite prever pobreza na velhice – o que viola a missão primordial de um sistema previdenciário. Não por outra razão 18 dos 30 países que a introduziram em substituição ao sistema de repartição voltaram atrás. [Será que os nossos deputados federais e senadores estão enxergando esse risco???]

Quanto aos serviços públicos sociais, a agenda é a desvinculação de recursos e descumprimento de mínimos constitucionais, além de vouchers para pobres estudarem em escolas privadas. Ninguém duvida da necessidade de recursos adicionais para que o SUS se aproxime do horizonte idealizado pelo constituinte de 1987; na educação, o Plano Nacional de Educação estima a brecha de recursos necessária à provisão de uma educação de qualidade em 4% do PIB. A oposição gestão versus recursos está superada: não há quem honestamente afirme que recursos não são problema nos serviços públicos; uma simples verificação de nossos extra-baixos valores per capita na educação, em 2018 menos da metade dos gastos comparáveis da OCDE considerando inclusive o nível superior, dissolve qualquer dúvida. Vouchers para pobres têm conhecidos problemas de estratificação e desigualdades educacionais; a solução charters (as “escolas conveniadas”) aposta na competição por recursos públicos entre escolas públicas e conveniadas, sob o pressuposto patentemente falso de que problemas nas escolas públicas se resumem à gestão. Ambas as “soluções” desprezam o conhecimento acumulado sobre o baixo desempenho escolar ao final do ensino básico. Este identifica um gargalo na baixa atratividade da profissão de professor no Brasil, que entre outros problemas remunera significativamente menos que profissões com qualificação semelhante – a comparação internacional é deprimente: 60%, Brasil x 96%, OCDE x 136%, Coreia do Sul. Outra deficiência grave é o baixo investimento em educação infantil, que afeta o aprendizado nos níveis subsequentes de ensino. Mas, para adornar o binômio gestão-voucher para educação, não ocorre nada melhor que o puxadinho conservador de propor educação domiciliar no país do analfabetismo, das baixas notas no PISA, da evasão escolar de jovens e do analfabetismo funcional de crianças, jovens e adultos. Serão as crianças de fato adequadamente escolarizadas no domicílio?

No eixo minimização do estado está a promessa de não reposição de servidores aposentados e sua substituição por máquinas. Como se o emprego público fosse excessivo no Brasil. Ele não é: apenas 12% do emprego total, bem abaixo da média da OCDE, de 21%. [Veja isto! Contam-nos mentiras todos os dias! A máquina estatal não é um peso, por si mesma! Há de se rever privilégios, isso sim!] E como se fosse possível substituí-lo por máquinas. Não é preciso listar o sem número de qualificações e ocupações no setor público para concluir que esse plano é simplesmente delirante. Mas, a meta de eliminação dos gastos obrigatórios (a desvinculação) socorrerá o cumprimento da meta de eliminação dos empregos públicos e a destruição do serviço público no país. E, para completar, há a pretendida liquidação de todo o capital público para pagar a dívida pública, será mesmo o melhor uso para ele?
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CONSEQUÊNCIA LÓGICA DAS POLÍTICAS DE PAULO GUEDES:
o aumento da pobreza e da desigualdade social e econômica que já são terríveis no Brasil!

Consequências certas das intenções de Guedes-Bolsonaro

1) Ainda que seja impossível prever integralmente o resultado desse assalto ominoso à política social e a seu substrato, o Estado, a deterioração do bem-estar social é consequência bastante óbvia.
2) Na prática, não se tem notícia de país democrático onde todas essas medidas tenham sido contempladas, muito menos ao mesmo tempo.
3) A obsessão do ministro pelo caso chileno dá medo, pelo péssimo exemplo político. Mas também pelo fato de que, desde a redemocratização, o Chile vem tentando refazer algo do que havia sido desfeito na ditadura, mas segue sendo um dos países muito desiguais da região. Se quisermos mesmo aprender com o Chile, que extraiamos as lições corretas: nada de ditadura, nada de crescimento com alta desigualdade.

O papel fundamental das políticas sociais

A premissa do ministro de que política social é distorção, ao representar apenas custo que represa a atividade econômica, é flagrantemente ignorante do seu significado.

A política social tem como objetivo precípuo inocular vetores de equilíbrio social em um sistema econômico tendente a produzir desigualdades extremas. Sua missão é produzir integração social. Nesse sentido, o mais correto seria afirmar que a política social realiza torções em uma economia de mercado, não distorções, sem as quais ela dificilmente subsistiria.

Pesquisas patrocinadas por órgãos como OCDE, Banco Mundial e FMI concluem que desigualdades extremas são inimigas de muitas coisas que muitos de nós valorizamos:
* coesão social,
* democracia,
* crescimento econômico,
* confiança interpessoal,
* saúde,
* segurança,
* bons governos.

É igualmente bem estabelecido que desigualdades extremas resultam de processos e mecanismos que muitos de nós consideramos injustos: discriminações, oportunidades desiguais, influência desigual sobre agenda, decisões e instituições públicas, tratamento tributário privilegiado. Justificam políticas sociais redistributivas, como transferências do governo e tributação de renda, e pré-distributivas, como regulação da barganha entre trabalhadores e empregadores e investimentos em capacitações. A experiência internacional corrobora os efeitos positivos de tais intervenções; décadas de reformas sociais socialdemocratas de tipo engenharia pragmática legaram ao mundo uma riqueza de conhecimentos sobre essas conexões que, com as devidas adaptações, têm viajado bastante bem. O caso brasileiro na primeira década do século atual onde um experimento de política social redistributiva foi bem-sucedido em reduzir desigualdades na renda do trabalho igualmente corrobora esses nexos. O experimento teve seus sucessos, como a política de valorização do salário mínimo que, remontando a 1995, respondeu por boa parte da redução da desigualdade da renda domiciliar (64%) e da pobreza (40%), conforme mostram pesquisas recentes, e a importante expansão do Bolsa Família a partir de sua origem no Bolsa Escola de 2001, que foi central na contenção da miséria.

Pendentes ficaram ainda:
* avanços nos serviços – as oportunidades sociais! –,
* a agenda da tributação progressiva, tão oportuna no paraíso dos super-ricos, e
* a necessária rediscussão de parâmetros da previdência pública como a idade mínima e regras mais equitativas.

Por outro lado, a política social tem sido crescentemente apreciada como fonte de retornos econômicos e receita fiscal, não apenas como redistribuição que protege a renda e o consumo das famílias ao longo do tempo frente a vários riscos. O envelhecimento populacional, em parte evidência do sucesso da política social em ampliar a longevidade humana que todos queremos, é um dos riscos sociais contemporâneos mais eminentes.
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O que está por detrás da queda de natalidade

Mas, o que no debate brasileiro é frequentemente omitido, o risco do envelhecimento advém também de queda nas taxas de fecundidade para níveis abaixo da reposição populacional, abaixo de 2,1 filhos por mulher. Entre as causas centrais está a dificuldade enfrentada pelas mulheres de conciliar trabalho com vida familiar, especialmente com o cuidado de filhos pequenos e de idosos.

O resultado é adiamento da maternidade e menos filhos. No Brasil, já estamos com taxas de sub-reposição, de 1,7 – elas vêm caindo aceleradamente principalmente entre as mais pobres e menos escolarizadas. Esta sim é a verdadeira bomba demográfica:
* menos crianças, e logo
* menos pessoas em idade ativa, e
* mais idosos e muito idosos.

Na lógica ultraliberal do ministro Guedes, que mira exclusivamente na longevidade (custos!), esse risco só pode ser eficientemente contido se transferido aos indivíduos, desonerando empresas e o Estado. Mas, é evidente que não – a eliminação dessas transferências de empresas e governo às famílias, além de aprofundar a crise por seu efeito imediato sobre o já combalido nível de consumo, é péssima estratégia.

Pois esse risco só pode ser efetiva e sustentavelmente contido, de um modo não malthusiano, que não atire os idosos à pobreza, pelo aumento da atividade econômica. E é aqui que entra a política social moderna, sempre em combinação com:
* a política clássica de sustentação da renda das famílias,
* com um conjunto de intervenções que apoiam a atividade econômica,
* ampliam a produtividade do trabalho e
* permitem sustar a queda das taxas de fecundidade.
É o que mostra a experiência de países como Suécia e Dinamarca, que já se aproximam do nível de reposição, e, mais recentemente, a Alemanha, que ainda tem taxas de fecundidade alarmantes. Eles mobilizaram a política social para sustar o crescimento demográfico negativo e aproveitaram, especialmente os dois primeiros, para educar bem as crianças e jovens, qualificar os adultos e facilitar a permanência do trabalhador idoso em atividade. Destacam-se políticas educacionais e de qualificação abrangentes, políticas de cuidado e políticas de envelhecimento ativo. [E tudo isso promovido pelo Estado! Sim, pelo Estado, não pela iniciativa privada, a qual foi eleita como “deus” nesta terra pelo ultraliberalismo!]
Celia Lessa Kerstenetzky - economista UFRJ
Autora deste artigo

Equidade e justiça social são motores de desenvolvimento

É, portanto, ultrapassada a suposição de contradição necessária entre eficiência e equidade.

Uma inspeção das estatísticas econômicas da OCDE, antes do desastre financeiro, revela que países com alto gasto social, uma combinação de políticas compensatórias e investimentos sociais, e alta carga tributária, principalmente incidente sobre os mais ricos, ostentam alto nível de emprego, previdência equilibrada, superávit fiscal e reduzida dívida pública bruta.

Neles, a política social é não apenas veículo de justiça social, como também fator produtivo. A beleza é que o investimento público em serviços sociais diversos, além de atender a necessidades de bem-estar e ampliar o horizonte de escolhas das pessoas, contribui para o aumento da eficiência econômica de um modo que ajuda a reduzir desigualdades, já que tais serviços são também as oportunidades para mobilidade social.

Há muito mais a recomendar a política social. Subsídios ao emprego e salário mínimo estão se disseminando; países como Alemanha, Reino Unido e Espanha devotam atenção crescente à política de salário mínimo para apoiar a atividade e promover segurança econômica. Há ainda a questão de se avaliar o potencial do capital público para reduzir a forma mais extrema de desigualdade que é a de riqueza.

O economista britânico Anthony Atkinson fez várias propostas de “compartilhamento de capital”, isto é, de um capitalismo com muitos capitalistas. No país das desigualdades extremas, não seria má notícia redirecionar o capital público, pelo menos parte dele, para esquemas de democratização de capital que não significam “estatização”. Tudo isto requereria apreço pelo conhecimento do estado da arte da política social, além de disposição para o debate público. Contudo, quando o liberalismo econômico esposa o autoritarismo, anti-intelectualismo e desprezo pelo contraditório são a prole.

* Celia Lessa Kerstenetzky é professora titular do Instituto de Economia da UFRJ, autora do livro O estado do bem-estar social na idade da razão – a reinvenção do estado social no mundo contemporâneo, editora Elsevier, 2012. Disponível para download gratuito na internet.

Fonte: Plataforma Política Social – Artigo – Quarta-feira, 10 de julho de 2019 –Internet: clique aqui