«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

30º Domingo do Tempo Comum – Ano A – Homilia

 Evangelho: Mateus 22,34-40 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Somente amo a Deus, se amo o próximo

O Evangelho deste domingo apresenta o último ataque dos líderes espirituais do povo, os fariseus, contra Jesus. Jesus, no templo, denunciou esses líderes do povo como ladrões e assassinos, ladrões porque se apoderaram do povo que pertencia a Deus, e assassinos porque o fizeram com violência.

Então toda uma série de ataques é desencadeada contra Jesus, com o objetivo de deslegitimá-lo diante da multidão. Mas, na realidade, em cada ataque, é Jesus quem sai vitorioso e a multidão fica cada vez mais entusiasmada com ele. 

Mateus 22,34: «Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então eles se reuniram em grupo...»

Vamos ouvir o que nos diz Mateus, capítulo 22, versículos 34 a 40. O resultado do ataque dos saduceus que queriam ridicularizar Jesus ao tratar da ressurreição é que as multidões ficaram impressionadas com o seu ensino. Portanto, quanto mais tentam deslegitimar Jesus, mais entusiasmadas as pessoas ficam.

Eles se reuniram”, aqui o evangelista cita o salmo 2 no versículo 2, onde lemos que os reis da terra se reuniram contra o Senhor e seu Messias. Os reis da terra querem manter o domínio sobre os povos e estão contra o Senhor que, em vez disso, quer libertá-los. 

Mateus 22,35: «... e um deles perguntou a Jesus, para experimentá-lo:»

Desta vez os fariseus, vendo como tinham se dado mal quando apresentaram a Jesus a questão do imposto de César, chegam com mais força! Eles utilizam um perito, um doutor da Lei, uma pessoa importante, daquelas cujas palavras tinham o mesmo valor que a palavra de Deus e este o interrogou-o para tentá-lo. A tradução diz “experimentá-lo”, mas o verbo grego é “tentar”.

Este verbo aparece pela primeira vez no capítulo 4 de Mateus, como obra das tentações do diabo, de Satanás no deserto, e depois será sempre usado para definir as ações dos fariseus e saduceus. Os líderes espirituais do povo, aqueles que afirmavam estar mais próximos de Deus, são na realidade instrumentos do diabo, de Satanás. Por quê? Embora o Deus de Jesus seja o amor que se coloca a serviço, o deles é um poder que quer dominar e quem está ao lado do poder é um instrumento do diabo! 

Mateus 22,36: «“Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”»

Bem, a tentação é esta: “Mestre”. Pela terceira vez se dirigem a Jesus com este título, sempre na boca dos seus inimigos, ou de pessoas que lhe são hostis. Fiquemos atentos, pois a pergunta não tem como objetivo aprender, mas sim condenar. Eles sabem qual é o grande mandamento, o mais importante: a observância do descanso sabático, porque é o único mandamento que Deus também observa.

Deus e os anjos não realizam nenhuma atividade no céu aos sábados. A observância deste único mandamento correspondia à observância de toda a Lei, a transgressão deste único mandamento equivalia à transgressão de toda a Lei e por isso estava prevista a pena de morte.

Mas por que eles fazem essa pergunta a Jesus? Porque Jesus tem uma atitude desenvolta em relação aos mandamentos. Ele ignora, tranquilamente, o sábado, continua realizando suas atividades em favor do ser humano e, mesmo quando o rico lhe perguntou quais mandamentos observar para obter a vida eterna, Jesus, na lista que fez, omitiu os três mais importantes, aqueles que eram um privilégio exclusivo de Israel, os três primeiros mandamentos e indicou-lhe aqueles que eram patrimônio da cultura universal: “não matar”, “não roubar”, “não cometer adultério”. 

Mateus 22,37: «Jesus respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento!”»

Então a pergunta visa denunciar Jesus. Jesus, mais uma vez, choca o seu interlocutor, perguntaram-lhe qual é o mandamento mais importante, na resposta Jesus não menciona nenhum mandamento, mas pega uma frase com a qual começava o Credo de Israel ― o “Shemá Israel” (Escuta, Israel!) ― extraído do livro de Deuteronômio (6,5).

O Deuteronômio tinha a expressão “com toda a tua força” em terceiro lugar, o que indicava os bens da pessoa, mas Jesus substitui a força por “com todo o teu entendimento”. Por que Jesus omite a força? Porque o Deus de Jesus não é um Deus que absorve as energias dos seres humanos, mas é um Deus que oferece as suas energias aos homens, comunica as suas. O Deus de Jesus não pede, é um Deus que dá. 

Mateus 22,38-39: «Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’.»

Mas não era um mandamento! Jesus eleva o amor total a Deus à categoria de mandamento. Mas, imediatamente depois, Jesus acrescenta um preceito do livro de Levítico (19,18).

Para Jesus, o amor a Deus não é real se não se traduz em amor aos outros.

Mateus 22,40: «Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.»

Repito, não são mandamentos, mas Jesus eleva o amor a Deus, que depois se manifesta no amor ao próximo, ao nível dos mandamentos mais importantes. A “Lei e os Profetas” é uma expressão usada para indicar a Bíblia, o que chamamos de Antigo Testamento, composto pela Lei e pelos Profetas. Assim, mais uma vez, uma questão que visa deslegitimar Jesus lhe é apresentada, porém Jesus sai vitorioso, proclamando uma nova realidade com Deus, não mais baseada na observância dos mandamentos, mas na acolhida e prática do seu amor. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994.

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Ama e fazes o que quiseres.»

(Santo Agostinho: 354 a 430 ― bispo, filósofo, teólogo e Doutor da Igreja)

Até umas décadas atrás, era comum observarmos presbíteros, bispos, papas e cristãos em geral, distinguindo entre: pecados mortais e pecados veniais. Sendo que, os primeiros seriam mais perigosos, pois, como o próprio nome dizia, poderiam conduzir a pessoa à morte eterna! Os veniais, eram pecados do cotidiano, mais comuns e praticados por quase todas as pessoas.

Pois bem, no judaísmo da época de Jesus, havia uma acirrada discussão acerca dos denominados “mandamentos maiores” e “mandamentos menores” perante a Lei. Esse Lei ou Torá (instrução, ensino) era constituída por:

* 248 preceitos (recomendações) e

* 365 proibições, ou seja, a quantidade dos dias do ano!

No total, eram 613 normas a serem observadas por todos que desejassem ser um bom filho ou filha de Deus! Desse modo, o amor a Deus era visto como a dedicação de toda a vida do indivíduo ao cumprimento dos mandamentos divinos, portanto submissão e obediência! 

Jesus realiza uma reviravolta, uma revolução na tradição religiosa de Israel! Pois ele afirma que o mandamento do amor ao próximo é de igual valor ao mandamento do amor a Deus! O adjetivo grego “homoios” (do mesmo valor, da mesma natureza, similar – Mt 22,39) indica isso! Desse modo, como destaca o teólogo espanhol José María Castillo:

«Jesus une “o divino” com “o humano”. E torna inseparável um do outro. De forma que é uma ilusão e um engano pensar que um esteja em uma boa relação com Deus, caso se relacione mal com alguém, não importa quem seja».

Aquilo que distingue o cristão de todas as demais pessoas é, basicamente, o amor ao próximo! Pois o amor ao outro é amor a Deus. Tanto é verdade, que Jesus, no contexto de sua despedida, na importantíssima última ceia, anuncia um “mandamento novo” que deseja nos dar. A novidade desse mandamento é, justamente, a não necessidade de mencionar o “amor a Deus”:

«Eu vos dou um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros» (Jo 13,34a).

Porém, Jesus acrescenta algo fundamental, que qualifica e diferencia o nosso modo de amar:

«Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros» (Jo 13,34b).

Não estaria, aqui, a melhor “receita” contra toda uma verdadeira epidemia de depressão, falta de sentido para viver, pessimismo, sentimento de vazio interior e outros males espirituais que nos atormentam, sobremaneira, nos tempos atuais? Pensemos! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor Jesus Cristo, agradecemos-te o dom da tua presença, a tua ternura de Esposo com que te inclinas sobre as nossas misérias, sobre os nossos formalismos, para nos ajudar a compreender que só é agradável ao teu Pai o amor de que nos deste exemplo. Louvado sejas, ó Senhor, porque aqueles que confiam em ti experimentam a segurança da tua graça e a insegurança que nos torna humildes, nunca o suficiente para nós mesmos. Faz com que, ouvindo a tua Palavra, aprendamos a esperar o teu Reino e a alegrar-nos desde agora por aquilo que nos preparaste, ajuda-nos a sermos irmãos e a anunciar a todos que tu és o Salvador, o Esposo da humanidade chamada a entrar na festa da tua vida, com o Pai no Espírito. Tu que vives e reinas para sempre. Amém.»

(Fonte: MESTERS, Carlos, O.Carm. 30ª Domenica del Tempo Ordinario: orazione finale. In: CILIA, Anthony, O.Carm. [a cura di]. Lectio divina sui vangeli festivi per l’anno liturgico A. Leumann [TO]: Elledici, 2010, p. 580.)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – 30ª Domenica del Tempo Ordinario – Anno A – 25 ottobre 2020 – Internet: clique aqui (Acesso em: 25/10/2023).

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

29º Domingo do Tempo Comum – Ano A – Homilia

 Evangelho: Mateus 22,15-21 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Não dar aos homens o que é de Deus

Após uma série de palavras violentas com que Jesus acusou os líderes espirituais do povo de serem ladrões e assassinos — ladrões porque se apoderaram do povo e assassinos porque usaram a violência — há agora um contra-ataque por parte destes líderes, os quais, porém, têm um problema. Jesus é seguido por tantas multidões que há necessidade de desacreditá-lo.

O evangelho que lemos, no capítulo 22 de Mateus, versículos 15 a 21, é o primeiro de uma série de ataques com os quais os líderes religiosos, os líderes espirituais tentarão desacreditar Jesus, prepararão armadilhas para difamá-lo e desacreditá-lo perante as pessoas. 

Mateus 22,15: «Naquele tempo, os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma palavra.»

Em grego, no início desse versículo, encontramos a expressão “então”. Esse “então” relaciona esse episódio à denúncia que Jesus fez com a parábola dos convidados do casamento que recusaram esse convite por motivos de interesse. A conveniência é o que determina as ações dos líderes religiosos. Então os fariseus foram embora e “fizeram um plano”, esta expressão, nos Evangelhos, sempre tem um significado negativo de uma conspiração contra Jesus. Como fica evidente aqui: “para apanhar Jesus em alguma palavra”. 

Mateus 22,16a: «Então mandaram os seus discípulos, junto com alguns do partido de Herodes, para dizerem a Jesus:»

Portanto, agora há uma série de armadilhas preparadas para Jesus, mas das quais ele se sairá bem, inclusive, armando armadilhas para seus acusadores. Aqui, há uma surpresa: a presença de herodianos junto aos discípulos dos fariseus! Os fariseus e os herodianos se odiavam porque os herodianos eram do partido de Herodes, o qual era um rei fantoche inventado pelos romanos, e os fariseus odiavam esse rei. Havia grande inimizade entre eles, mas agora enfrentam um perigo comum. Jesus é perigoso tanto para os fariseus quanto para os herodianos, então eles se unem para eliminá-lo. 

Mateus 22,16b: «Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências.»

Mestre: prestemos atenção a este título, no Evangelho de Mateus ele está sempre na boca dos adversários de Jesus ou daqueles que lhe são hostis, mas faz parte daquela linguagem curial usada para suavizar o que querem dizer.

“... ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros”: esta afirmação é verdadeira, por isso reconhecem que Jesus afirma o caminho de Deus segundo a verdade, mas por quê? O contrário é que, por outro lado, Jesus os acusou de que tudo o que fazem é para serem admirados, essa é a diferença. Tudo o que os fariseus fazem é para serem glorificados, para serem admirados, tudo o que Jesus faz não é para sua própria conveniência, mas para a conveniência do bem do ser humano. Quando se coloca o valor do ser humano como princípio absoluto que regula a nossa existência, não se olha para ninguém, não se importa com a opinião das pessoas. 

Mateus 22,17: «Dize-nos, pois, o que pensas: É lícito ou não pagar imposto a César?”»

E aqui está a armadilha. Eles se dirigem a Jesus usando o termo no imperativo, então, não é um pedido, mas uma imposição. O que era o tributo a César? Desde que um procurador romano foi nomeado para a Judéia, no ano 6 d.C., havia impostos para todos, homens e mulheres, dos 12 aos 65 anos de idade. A pergunta é tendenciosa. Por quê? Porque justamente por causa do pagamento desse tributo, houve muitas revoltas. Basta pensar no famoso Judas, o Galileu, que se rebelou contra esse imposto. Pois bem, a pergunta é uma armadilha, porque lhe questionam se é lícito ou não pagar o tributo a César, não esqueçamos que estamos dentro da área do templo, desse modo, se Jesus responde, se prejudica!

Porque se Jesus disser: “Sim, é lícito pagar tributo a César” vai contra a lei segundo a qual o único Senhor do povo, o único reconhecido como tal, é Deus. Se, ao contrário, diz: “Não, não paguemos”, então mostra-se um subversivo, um rebelde, como Judas, o Galileu, havia sido. Estamos dentro do templo, há guardas e Jesus pode ser preso imediatamente.

Portanto, a resposta de Jesus prejudica a si mesmo, quer diga que é a favor ou contra o pagamento desse tributo. Assim, os fariseus e herodianos prepararam uma armadilha para Jesus; ele, por sua vez, preparou uma armadilha para eles. 

Mateus 22,18-19: «Jesus percebeu a maldade deles e disse: “Hipócritas! Por que me preparais uma armadilha? Mostrai-me a moeda do imposto!” Levaram-lhe então a moeda.»

À queima-roupa, Jesus pede a moeda com a qual se pagava o imposto a César. E eles lhe deram um denário. Mas, no templo, era terminantemente proibido trazer moedas romanas, porque segundo a lei expressa no livro do Deuteronômio, nos mandamentos (cf. Dt 5,8 > 4,15-20), é proibido fazer qualquer figura humana.

Portanto, no lugar mais sagrado de Jerusalém, o templo, era absolutamente proibido trazer moedas, moedas romanas, que tivessem efígies humanas. Na entrada do templo havia cambistas que trocavam moedas romanas por moedas permitidas naquele local. Mas o interesse – esta é a queixa que o evangelista faz – é o verdadeiro deus desses fariseus. Eles, que são obcecados pela ideia do puro e do impuro, que são meticulosos, que são escrupulosos, quando se trata de dinheiro não são tão sutis! Porque, no templo, no lugar mais sagrado, carregam uma moeda que, aos olhos da religião, é considerada impura. Mas por interesse próprio, por conveniência, eles passam por cima de tudo isso. 

Mateus 22,20-21a: «E Jesus disse: “De quem é a figura e a inscrição desta moeda?” Eles responderam: “De César”.»

Aqui está, então, a armadilha de Jesus quando ingenuamente lhe apresentam um denário. Na verdade, o denário romano trazia, de um lado, a imagem de Tibério com a inscrição “César, filho do divino Augusto, pontífice máximo”, e no verso, a mãe do imperador representada como a deusa da paz (veja a imagem abaixo). Portanto, duas figuras humanas estavam representadas na moeda. 

Mateus 22,21b-22: «Jesus então lhes disse: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.»

Perguntaram se era lícito pagar ou não, Jesus não responde se é lícito pagar ou não, usa outro verbo que é “dar”, ou melhor, “restituir/devolver”. É como se Jesus lhes dissesse: “Se não quereis o domínio dele, não deveis usar os benefícios dele, então esse dinheiro não é vosso, devolvei-o a César!”

Mas, aquilo que Jesus diz em seguida é aonde o evangelista quer chegar: “E a Deus o que é de Deus”. O que é que eles devem restituir para Deus, e que é de Deus? Na parábola dos vinhateiros assassinos (cf. Mt 21,33-44), Jesus fez menção aos líderes religiosos e aos líderes espirituais que, por interesse, tomaram posse da vinha do Senhor, colocaram-se entre Deus e o povo, impondo as suas tradições, as suas leis, escondendo e obscurecendo o amor de Deus pelo seu povo.

Portanto, o que Jesus, no fundo, está dizendo é que, por um lado, deve-se desconhecer o senhorio de César, mas restituir aquele de Deus que foi usurpado pelos fariseus!

A estas palavras, comenta o evangelista (cf. Mt 22,22), ficaram estupefatos, maravilhados e, deixando-o, foram-se embora. Eles vão embora, mas para retornar depois. De fato, voltarão com um deles, com um perito, com um doutor da lei (cf. Mt 22,34-40). E esta é apenas a série de ataques contra Jesus que os fariseus, herodianos, saduceus e doutores da lei farão. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«A humanidade tem dupla moral: uma que prega, mas não pratica, outra que pratica, mas não prega.»

(Bertrand Russell: 1872 a 1970 ― matemático, filósofo e historiador britânico)

Tudo em excesso faz mal! Disso todos nós sabemos. No entanto, quando se trata de fé, de religião, parece que não aplicamos essa máxima de sabedoria! Em nome de normas, costumes e tradições religiosas já se cometeu e segue-se cometendo muitos exageros, muitas barbaridades: guerras, violência, machismo, misoginia, intolerâncias, discriminações, autoflagelação, sacrifícios penosíssimos e muitas outras ações fruto do fanatismo com que se vive a fé em Deus. Por detrás de toda pessoa fanática, exageradamente religiosa, esconde-se alguém aprisionado em suas próprias convicções e crenças! Alguém que divide o mundo, somente, em dois lados: os que pensam e agem como eu e os outros que são diferentes de mim e não possuem as mesmas ideias que eu, portanto, eles são os meus inimigos! No fundo, essa pessoa se fecha em suas convicções absolutistas e inquestionáveis para não ter que lidar com a sua própria fragilidade! 

É exatamente isso que constatamos no Evangelho deste domingo, ou seja, dois grupos com posições radicais se unem para derrubar Jesus, cujas ideias, mas, sobretudo, práticas contrariavam e questionavam o modo de vida deles. Estamos falando dos:

* fariseus: achavam que, por serem religiosos fervorosos, podiam decidir pelos outros em nome de seu Deus! Inclusive, eram contrários ao pagamento do tributo ao césar ― título que se dava aos imperadores romanos ―, pois somente a Deus, na realidade, ao templo, se deveria pagar impostos.

* Herodianos: eram os partidários do vice-rei Herodes Antipas, o qual gerenciava a Judeia em nome do imperador romano. Esses, aliás, eram favoráveis ao importo ao césar, uma vez que a autoridade de seu chefe provinha de Roma.

A conveniência une os hipócritas! Apesar de divergirem sobre a legitimidade de se pagar o imposto aos romanos, convergiam em eliminar Jesus, uma vez que sua vivência e atitudes os incomodavam! 

Com sua resposta ― “Devolvei, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” ― Jesus reafirma a soberania de Deus sobre tudo e sobre todos! Somente ele é o Senhor do universo! Isso é o mesmo que afirmar:

“Não deis a nenhum césar o que somente é de Deus, isto é, a vida de seus filhos”.

Ora, era isso, justamente, o que faziam Herodes Antipas e seus partidários, ao compactuarem com o imperialismo romano! Eis a hipocrisia! Por outro lado, os fariseus que desejavam e aparentavam ser tão religiosos, ortodoxos, zelosos pela tradição e os bons costumes, estavam com uma moeda romana, o denário, em seus bolsos, justamente em um local sagrado, o templo de Jerusalém, onde somente Deus poderia ser adorado e onde imagem alguma poderia estar presente! Por conveniência e interesse próprio infringiam a lei que tanto diziam defender e preservar! 

Portanto, tomemos cuidado para não perdermos nosso tempo e nossas vidas na observância de algumas práticas e tradições religiosas secundárias, esquecendo-nos do principal, daquilo que conta, de verdade, para Cristo: a dedicação e a luta pela justiça e implantação do Reino de Deus neste mundo

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Pai, obrigado por dar-me a presença de seu Filho Jesus nas palavras luminosas deste Evangelho; obrigado por me fazer ouvir sua voz, por abrir meus olhos para reconhecê-lo; obrigado por me colocar em seu caminho para segui-lo e entrar em sua casa. Obrigado porque posso habitar com ele, nele e porque ele, contigo, está em mim. Obrigado por, mais uma vez, ter me chamado, fazendo nova a minha vida. Faz de mim, por favor, um instrumento do teu amor: que eu nunca pare de anunciar o Cristo que vem; que eu não me envergonhe, não me feche, não me apague, mas me torne cada vez mais feliz, para levar a ele e a Ti, os irmãos que me fazes encontrar todos os dias. Amém.»

(Fonte: MESTERS, Carlos, O.Carm. 29ª Domenica del Tempo Ordinario: orazione finale. In: CILIA, Anthony, O.Carm. [a cura di]. Lectio divina sui vangeli festivi per l’anno liturgico A. Leumann [TO]: Elledici, 2010, p. 571.)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – 29ª Domenica del Tempo Ordinario – Anno A – 18 ottobre 2020 – Internet: clique https://www.studibiblici.it/videoomelie27.html (Acesso em: 17/10/2023).

A imprensa e a guerra

 Guerra, terror e ultraje seletivo

 Salem Nasser

Professor de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo (FGV-SP) 

SALEM NASSER

Pelos tratados, Israel viola todas as normas possíveis do direito humanitário

Imagine. Imagine que 2,5 milhões de judeus vivem há 17 anos numa prisão a céu aberto e que seu carcereiro decide sobre o que entra e o que sai: energia, comida, remédios… Imagine que famílias judias são cotidianamente expulsas de suas casas, suas e de seus antepassados, de sua terra por gerações, para dar moradia a não-judeus vindos do mundo inteiro. Imagine que judeus vivem cercados de muros e cercas e não podem andar pelas mesmas ruas que são livres apenas para não-judeus. 

Imagine que os judeus têm a sua a identidade nacional, a sua própria existência enquanto povo, negada. Imagine que alguém, um ministro, por exemplo, diga que os judeus são animais a serem eliminados. Imagine que o carcereiro anuncia, e logo cumpre, que cortará o acesso à água, à luz, à comida, dos judeus. E imagine que aqueles 2,5 milhões de judeus, na sua prisão, são alvo, por dias seguidos, das armas mais inteligentes e mortais do mundo, e por bombas de fósforo branco e que, por exemplo, só na primeira noite de bombardeios, 140 crianças morrem… 

Agora, imagine que os judeus são palestinos. Você acordou, finalmente, agora? Se não acordou, vou dar uma dica: você precisa imaginar que o palestino é um ser humano como o judeu; e você precisa imaginar que, assim como os judeus e todos os demais seres humanos, os palestinos podem ser civis. Crianças tendem a ser civis. 

GAZA: prisão à céu aberto! Agora, toda devastada! Onde viverão os palestinos que moravam nesta cidade, já, super povoada?

O jornal Folha de S. Paulo passou a chamar o Hamas de grupo terrorista porque «Segundo o Manual da Redação, a palavra terrorista deve ser usada para qualificar quem “pratica violência indiscriminada contra não combatentes a fim de disseminar pânico e intimidar adversários”». 

Não li versões recentes do Manual da Redação da Folha, mas lembro com saudades de uma propaganda, histórica, que o jornal veiculou e que terminava com uma belíssima frase: “é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade!”

A Folha parece não querer se dar ao trabalho nem mesmo de dizer a verdade. Ela reporta o que o Hamas usou como justificativa para o ataque, mas não nos conta que é verdade o que o grupo disse. A verdade pode não justificar os atos, mas não deixa de ser verdade. Reporta o que Benjamin Netanyahu disse, mas apenas a parte que interessa a Benjamin Netanyahu. 

A Folha pode chamar o Hamas de grupo terrorista para se manter fiel ao seu Manual, mas, para manter-se fiel ao mesmo Manual, precisaria se referir a Israel como um Estado terrorista e aos seus governantes como terroristas, de acordo com a sua própria definição. 

Não discutirei o conceito técnico de terrorismo, que não existe, mas direi algo sobre o uso retórico da palavra. 

Antes, no entanto, digo que existem tratados internacionais que estabelecem o Direito internacional humanitário – o que se pode e o que não se pode fazer na guerra –, que definem o crime de genocídio, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade, entre estes o crime de apartheid. 

Se alguém se der ao trabalho de ler, verá que, tecnicamente, Israel viola todas as normas possíveis do Direito humanitário e verá que os governantes e militares israelenses são criminosos de guerra e culpados de crimes contra a humanidade, inclusive aquele de apartheid. Não chego ainda a dizer que sejam culpados do crime de genocídio porque não tenho certeza de que a limpeza étnica de um povo sobretudo pela expulsão do território equivale, exatamente, à tentativa de operar a “destruição, total ou parcial, de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. 

Assim, se a Folha faz questão de abarcar, no modo como se refere ao Hamas, o que percebe como violações do Direito humanitário ou como crimes de guerra ou, ainda, crimes contra a humanidade, eu recorreria a outra terminologia que não a de terrorista. 

Mas, para fazer bom jornalismo, precisaria se referir, ao menos, do mesmo modo a Israel, suas autoridades e seus militares

Bom jornalismo? Não quero ensinar a missa ao vigário, mas a Folha deve saber, não pode não saber, que quando se refere ao Hamas como grupo terrorista, nada mais do que diga ou reporte interessa ou fará qualquer diferença! Assim que diz “grupo terrorista” ela tira qualquer razão aos palestinos e permite tudo a Israel.

Todos os crimes são permitidos contra o terrorista! Esse é o poder retórico da palavra.

Se isso não consta do seu Manual da Redação, recomendo fortemente a sua reciclagem. 

Entenda as causas reais do conflito que dura décadas no Oriente Médio, assistindo a esta ótima live (aula):

Fonte: Folha de S. Paulo – Tendências / Debates – Quarta-feira, 11 de outubro de 2023 – Pág. A3 – Internet: clique aqui (acesso em: 19/10/2023).

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

28º Domingo do Tempo Comum – Ano A – Homilia

 Evangelho: Mateus 22,1-14 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Não basta estar perto do Cristo, é preciso conversão!

A parábola dos viticultores assassinos desencadeou a ira dos sumos sacerdotes e dos fariseus, os quais “compreenderam que falava deles”, segundo o evangelista (Mt 21,45). Da parte desses líderes não há algum sinal de arrependimento, de conversão, ao contrário, tentam capturá-lo para eliminá-lo (cf. Mt 21,46). Bem, diante desta ameaça, Jesus não só não recua, mas agrava a questão com a terceira e última parábola com a qual ele discute com as autoridades judaicas. Estas três parábolas — dos dois filhos (Mt 21,28-32), dos viticultores assassinos (Mt 21,33-45) e do banquete de casamento e o traje de festa (Mt 22,1-14) — desenvolvem progressivamente o tema subjacente: a denúncia contra as mais altas autoridades religiosas que se mostram refratárias e hostis ao plano de Deus. Nesta parábola Jesus diz o porquê, qual é a razão desta hostilidade: a conveniência, o interesse.

Ouçamos, então, o evangelho de Mateus, capítulo 22, versículos 1 a 14. 

Mateus 22,1-2α: «Naquele tempo, Jesus voltou a falar em parábolas aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo, dizendo: “O Reino dos Céus...»

Jesus recomeçou a falar-lhes” – portanto aos sumos sacerdotes, aos anciãos e também aos fariseus – “em parábolas. O Reino dos Céus”, é importante que Jesus fale de um Reino dos Céus, não de um reino nos céus. Ele não está falando da vida após a morte, mas da nova sociedade, da sociedade alternativa que Deus quer inaugurar nesta terra. 

Mateus 22,2β: «... é como a história do rei que preparou a festa de casamento do seu filho.»

Mais uma vez regressam um pai e um filho e, desta vez, Jesus compara o Reino dos Céus, ou seja, o Reino de Deus, esta nova alternativa que veio propor, com a celebração mais bela e alegre que havia na vida dos indivíduos, uma festa de casamento! 

Mateus 22,3-4: «E mandou os seus empregados para chamar os convidados para a festa, mas estes não quiseram vir. O rei mandou outros empregados, dizendo: ‘Dizei aos convidados: já preparei o banquete, os bois e os animais cevados já foram abatidos e tudo está pronto. Vinde para a festa!’»

Os convidados recusam o convite de casamento. Pois bem, o rei não desanima, manda outros servos e agora entendemos o motivo desta recusa; é estranho que alguém se recuse a participar de uma festa linda e alegre. Tenta atraí-los com aquilo que mais faz a cabeça das pessoas, ou seja, uma mesa farta! Em tempos de muita fome, em tempos de grande pobreza, as pessoas esperavam um casamento para se empanturrarem. Rejeitam, porém, a proposta do reino pelos seus próprios interesses. 

Mateus 22,5-6: «Mas os convidados não deram a menor atenção: um foi para o seu campo, outro para os seus negócios, outros agarraram os empregados, bateram neles e os mataram.»

Jesus desmascara a atitude dos líderes da instituição religiosa, pois tudo o que fazem é para a sua própria conveniência. Participar de um jantar de casamento não é produtivo, não é conveniente e respondem a uma proposta de vida com uma de morte: “outros agarraram os empregados, bateram neles e os mataram”; é o destino dos profetas enviados pelo Senhor. Assim, respondem a uma proposta de plenitude de vida como o casamento com uma proposta de plenitude de morte

Mateus 22,7: «O rei ficou indignado e mandou suas tropas para matar aqueles assassinos e incendiar a cidade deles.»

Aqui, Jesus usa a linguagem dos profetas, a linguagem colorida e anuncia qual será o destino de Jerusalém. Jerusalém que mata os profetas, que semeou a violência e será esmagada pela violência. Este é o destino que recairá sobre Jerusalém. 

Mateus 22,8-9a: «Em seguida, o rei disse aos empregados: ‘A festa de casamento está pronta, mas os convidados não foram dignos dela. Portanto, ide até às encruzilhadas dos caminhos...»

Mas aqui está a parte boa. “A festa de casamento está pronta, mas os convidados não foram dignos dela. Portanto, ide”. Nesse trecho, a tradução é importante! A tradução que tenho em mãos diz “até às encruzilhadas dos caminhos”. Não são encruzilhadas, o termo grego indica o ponto final de um território onde terminavam as estradas urbanas e começavam os caminhos do campo. Era o ponto final do território, mas o início de outros territórios. Então Jesus, nesta parábola, coloca na boca do rei essas palavras para ir às periferias, é disso que se trata! Os subúrbios, onde vivem os excluídos e os marginalizados. É uma indicação que o evangelista dá aos missionários para saberem para onde dirigir a sua pregação.

Eles devem ir às periferias, onde estão os marginalizados, os distantes, os rejeitados. 

Mateus 22,9b-10: «... e convidai para a festa todos os que encontrardes’. Então os empregados saíram pelos caminhos e reuniram todos os que encontraram, maus e bons. E a sala da festa ficou cheia de convidados.»

Todos são convidados, já não existe um povo eleito, mas existe um chamado universal. É interessante que Jesus fale primeiro dos maus e, depois, dos bons.

Não há um julgamento, o amor de Deus é oferecido a todos!

O amor de Deus não é concedido como recompensa pelos méritos das pessoas, mas como dom pelas suas necessidades, portanto boas e más. 

Mateus 22,11-12: «Quando o rei entrou para ver os convidados, observou aí um homem que não estava usando traje de festa e perguntou-lhe: ‘Amigo, como entraste aqui sem o traje de festa?’ Mas o homem nada respondeu.»

Esse “traje de festa” é a vestimenta no novo testamento, no livro do Apocalipse, indica as obras, as boas obras das pessoas. E o rei repreende essa pessoa que não tem o hábito. Qual é o significado disso? Não basta entrar no salão do banquete, o convite é aberto a todos, mas, uma vez lá dentro, é preciso mudar. Jesus colocou a conversão como condição para pertencer ao Reino de Deus (cf. Mt 4,18 > Mt 3,2; Mc 1,15). Para uma sociedade baseada nos valores do ter, ascender e comandar, Jesus oferece uma possibilidade alternativa de uma sociedade diferente, onde há partilha, despojamento e serviço. Essa é a veste, então não basta entrar, mas é preciso mudar! 

Mateus 22,13-14: «Então o rei disse aos que serviam: ‘Amarrai os pés e as mãos desse homem e jogai-o fora, na escuridão! Aí haverá choro e ranger de dentes’. Por que muitos são chamados, e poucos são escolhidos”.»

Usando imagens típicas da linguagem colorida dos profetas, Jesus fala da frustração pela perda de uma oportunidade única na vida. A conclusão: “Porque muitos” – muitos tem o sentido de todos – “são chamados, mas poucos são escolhidos”. O amor de Deus dirige-se a todos, mas infelizmente são poucos os que o acolhem plenamente. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Escutai, meus amados irmãos: não escolheu Deus os pobres aos olhos do mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino prometido aos que o amam?»

(Tiago 2,5)

Ao contrário do que anunciam certos pregadores, a vida após a morte não nos deve trazer medo, assombro, tristeza ou desespero! Absolutamente! Não está à nossa espera um julgamento minucioso e terrível, mas um banquete, uma festa, isso mesmo! Jesus, que havia experimentado em sua vida o banquete de casamento, sabia que não havia experiência mais alegre e prazerosa do que essa! A parábola que Jesus nos conta, neste domingo, é um verdadeiro bálsamo, um conforto imenso! 

Deus deseja que a sala do banquete, oferecido aos seus filhos e filhas, esteja lotada: “a sala da festa ficou cheia de convidados” (Mt 22,10b). Ele deseja, ardentemente, que o máximo de pessoas se salve! O seu Reino é para todos, sem exceção! Porém, Jesus é realista. Conforme ele deixa claro na parábola que há muitos que rejeitam o convite para o banquete, para o Reino de Deus! Em sua época, essas pessoas representavam o povo de Israel, o primeiro a ser chamado por Deus para a salvação. No entanto, os seus líderes — sumos sacerdotes, anciãos e fariseus — não acolheram a pessoa e a pregação de Jesus, o messias. Por isso, o Evangelho saiu para as periferias do mundo, para atingir aqueles que eram esquecidos, rejeitados e marginalizados por uma sociedade por demais ocupada em:

* ganhar dinheiro;

* lucrar;

* esbanjar a vida em um consumismo insaciável;

* ter prazeres sem medida e escrúpulos; bem como,

* explorar, até ao extermínio, a natureza que nos sustenta. 

Será que a história da humanidade, ainda, não nos ensinou o suficiente? Pois, há muitos que seguem insistindo — por ilusão, ingenuidade ou oportunismo — em convidar para o banquete do Reino de Deus os mais poderosos, ricos, influentes e famosos da sociedade, esquecendo-se que a maioria dessas pessoas já está muito satisfeita com o reino que construíram nesta terra, não querem saber de vida eterna! Quando é que a Igreja, os cristãos em geral, se darão conta, de uma vez por todas, que é na periferia das cidades, da sociedade, da vida que se encontram aqueles dispostos a participar, de verdade, do banquete oferecido por Deus? 

 Basicamente, Jesus passou toda a sua vida, dedicou toda a sua missão a convidar os seres humanos para essa festa final, o grande banquete do Reino de Deus! Para isso, ele: (a) anuncia a Boa Notícia de Deus, (b) desperta a confiança das pessoas em seu Pai e (c) acende a esperança nos corações. É isso que a Igreja, todos nós cristãos devemos seguir fazendo, ou seja, proporcionar aos seres humanos a grande experiência da comensalidade, do estar juntos, ser comunidade de irmãos e irmãs, lugar e espaço onde todos se sintam iguais e pessoas de verdade! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Ó Deus, Senhor do mundo e Rei de todos os povos, sempre preparaste uma festa para os teus filhos e queres reunir a todos à volta da tua mesa para participarmos na tua própria vida. Agradecemos-te por nos teres chamado para a tua Igreja através de Jesus, teu Filho. Que o teu Espírito nos torne sempre atentos e disponíveis para continuarmos a acolher o teu convite e a revestir-nos do homem novo, criado segundo Deus na verdadeira justiça e santidade, à imagem de Cristo, para podermos entrar juntos na celebração do teu Reino com uma multidão de irmãs e irmãos. Usa-nos também, se desejares, para continuar a chamar outros para o banquete universal do teu Reino. Pedimos-te por meio de Cristo nosso Senhor. Amém.»

(Fonte: VELLA, Alexander, O.Carm. 27ª Domenica del Tempo Ordinario: orazione finale. In: CILIA, Anthony, O.Carm. [a cura di]. Lectio divina sui vangeli festivi per l’anno liturgico A. Leumann [TO]: Elledici, 2010, p. 563.)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – 28ª Domenica del Tempo Ordinario – Anno A – 11 ottobre 2020 – Internet: clique aqui (Acesso em: 06/10/2023).

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Já passou da hora!

 “A Igreja está chegando a um ponto de ruptura em questões de moralidade sexual” 

Gorka Larrabeiti

«Religión Digital»: 29-09-2023 

Entrevista com Iacopo Scaramuzzi

Vaticanista do jornal romano «La Repubblica» e autor de vários livros historicamente focados no papado de Francisco. O último: “Il sesso degli angeli. Pedofilia, feminismo, lgbtq+: il dibattito nella Chiesa” – tradução: “O sexo dos anjos. Pedofilia, feminismo, LGBTQ+: o debate na Igreja” 

IACOPO SCARAMUZZI


A pedofilia clerical é a história de um gigantesco fracasso do governo –masculino– da Igreja Católica

De 4 a 29 de outubro de 2023 será realizada a primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos; o segundo será em outubro de 2024. Há quem considere este evento um “mini Concílio Vaticano III”. A tensão interna é alta. Em teoria, o objetivo desse encontro deveria ser o método para enfrentar os problemas que a Igreja tem. Portanto, não deveria haver surpresas dogmáticas. 

Contudo, acontece que a Igreja chegou a uma encruzilhada histórica. Apesar dos esforços de Papa Francisco para evitar que a lógica do conflito e das facções operem na Igreja, será difícil chegar a acordos no Sínodo. O abuso sexual, o celibato obrigatório, o diaconato feminino, o papel da mulher, a homossexualidade são questões que afetam não só o ministério sacerdotal, mas o próprio ser da Igreja. O próximo Sínodo está finalmente a preparar-se – com duzentos anos de atraso – para abordar estes tabus. As assembleias nacionais das igrejas chegaram a conclusões muito divergentes

Tudo isto acontece enquanto vivemos “uma 3ª Guerra Mundial em pedaços”, na qual tanto a aliança atlântica como os destropopulismos globais abraçariam de bom grado uma igreja mais neo-Constantiniana, como demonstra a guerra na Ucrânia. 

Que rumo tomará a Igreja depois de Francisco? 

Eis a entrevista.

Como o senhor definiria a fase que vive o pontificado de Francisco neste preciso momento?

Iacopo Scaramuzzi: É a fase final. Acredito que, se dependesse dele, o papa governaria pelo menos mais alguns anos, até completar 88 anos, tempo necessário para realizar o atual sínodo, que terminará em outubro de 2024, e escrever a correspondente exortação apostólica. Claro que também depende da sua condição física, o próprio Bergoglio sabe que antes dessa meta a sua saúde pode piorar. Por isso, parece-me que, por um lado, o Papa governa com os olhos postos no Jubileu de 2025 e, por outro, “está a dirigir a casa” com uma certa pressa. Parece-me inegável, em qualquer caso, que após a morte de Bento XVI, Francisco tomou uma série de decisões – por exemplo, a nomeação de Víctor Manuel Fernández para dirigir o Dicastério para a Doutrina da Fé – que revelam uma determinação de deixar bem a sua reforma e torná-la irreversível para quem o suceder

Cardeal Matteo Zuppi

Mais de um ano se passou desde a guerra na Ucrânia. Você teria coragem de fazer um balanço da intervenção do Vaticano até agora? O que podemos esperar da mediação do Cardeal Zuppi no futuro?

Scaramuzzi: Acredito que, apesar das generosas ofertas de mediação e do notável ativismo do Papa, a Santa Sé neste cenário é substancialmente irrelevante. As motivações para a guerra são profundas, o seu destino não depende do palácio apostólico, muito menos considerando que tanto a Rússia como a Ucrânia são países predominantemente ortodoxos, o que torna difícil para eles irem a Roma em busca da paz. É verdade que o cardeal Matteo Zuppi, enviado especial do Papa, está a tentar o impossível: em poucos meses passou por Kiev (onde conheceu Zelensky), Moscou, Washington (onde foi recebido por Biden) e Pequim. É a primeira vez que um cardeal é recebido pelas autoridades chinesas não apenas para falar de questões religiosas, mas de um problema geopolítico.

Se os desenvolvimentos no campo da guerra deixassem mais espaço para a diplomacia, o enviado papal, graças à rede multilateral que está a tecer, poderia desempenhar um papel relevante. O Vaticano, em qualquer caso, não oferece um plano de paz, mas sim uma mediação humanitária numa área bastante circunscrita: a recuperação de crianças ucranianas deportadas para a Rússia e a troca de presos políticos. Para entender a situação atual, comparemos com a atuação bem-sucedida da Santa Sé na troca de prisioneiros entre os Estados Unidos e Cuba, o que seria fundamental para que delegações dos dois países se sentassem à mesma mesa no Vaticano em 2014. A persuasão moral de Bergoglio desempenhou o seu papel neste marco, porém, ao contrário de então, hoje não parece que os protagonistas, a começar pela Rússia, desejam encontrar uma saída para a guerra

Encontro histórico entre o Papa Francisco e o Patriarca russo-ortodoxo Kirill, no dia 16 de fevereiro 2016, no aeroporto de Havana, Cuba

A pergunta anterior remete a uma reflexão ainda mais profunda: a influência da Igreja na política nacional e internacional. Diante de pessoas que afirmam que a Igreja, apesar do processo de descristianização do Ocidente em geral, continua a contar com a sua parte, há muitos outros que se queixam, especialmente dentro da própria Igreja, de que ela já não conta como muito, ou mesmo que já não conta, não pinta quase nada. O que você acha disso? Qual você acha que será o legado deste papado nesse sentido?

Scaramuzzi: Sendo uma autoridade moral e não uma grande potência política, econômica ou militar, a capacidade da Santa Sé de influenciar a política internacional é sempre marginal, o que não a impede de ser eficaz. Isto é demonstrado, por exemplo, pelo papel de Francisco junto aos Estados Unidos e Cuba que acabei de mencionar, o de João Paulo II na queda do Muro de Berlim ou a intervenção de João XXIII com Khrushchev e Kennedy para neutralizar a crise dos mísseis em Cuba. Agora, também pode ser ineficaz, como demonstrado, por exemplo, pela tentativa de Bergoglio de promover a paz entre Israel e a Palestina ou pela tentativa de Wojtyla de parar a guerra dos Estados Unidos no Iraque. 

A grande aposta de Francisco tem sido, por um lado, arquivar a guerra fria, que, a meu ver, tinha deixado a Igreja presa no lado ocidental (uma consequência lamentável e flagrante disso seriam as perseguições aos cristãos no Oriente Médio) e a transformara em um viveiro de valores morais conservadores (funcionais à aliança com Washington) – e, por outro, abrir canais de comunicação com o Oriente, uma terra historicamente espiritual onde a fé cristã pode crescer muito. Nesse sentido, Bergoglio obteve dois sucessos históricos:

* o encontro com o Patriarca russo Kirill em 2016, que ocorreu pela primeira vez na história, e

* em 2018 o acordo com a China sobre as nomeações de bispos, que também foi a primeira vez na história que Roma e Pequim falavam desde que Mao Tsé-tung chegou ao poder. 

No entanto, Francisco teve azar com a História, que semeou em seu caminho uma onda de acontecimentos geopolíticos profundos, como a guerra na Ucrânia, que explodiram toda a sua Ostpolitik. Apesar de tudo, considero corretos tanto o curso quanto a intenção de suas ações

Tradução do título e do subtítulo deste livro: "Deus? Na extrema-direita: porque os populismos exploram o cristianismo". Obra, ainda, não publicada no Brasil.

No seu livro anterior, o excelente Dio in Fondo a Destra, traduzido ao inglês e ao polonês, mas não para o espanhol, você traçou uma série de fios que iam de Fátima a Moscou, passando pelo Brasil ou pelos Estados Unidos, nos quais relatava como e por que o novo destropopulismo global (Salvini, Bolsonaro, Putin, Le Pen, Trump...) manipulavam o sagrado para sustentar o político profano. Vários anos se passaram desde sua publicação. o que aconteceu desde então? Que tendências você prevê?

Scaramuzzi: Infelizmente, a tese subjacente ao meu livro apenas foi confirmada. A pandemia, que eclodiu após a primeira edição do meu livro, expôs os populistas de direita, revelando que os inimigos não eram os migrantes, mas um pequeno vírus que calmamente ultrapassou todas as fronteiras, que sem solidariedade internacional (e especificamente europeia) não havia saída da crise, que exigiu competição e ciência para enfrentá-la. Em teoria, os soberanistas deveriam ter desaparecido após a pandemia e, em vez disso, regressaram mais robustos do que antes, de Giorgia Meloni a Donald Trump, passando por Viktor Orban e finalmente Javier Milei na Argentina. 

E por quê? Porque a política não é racionalidade, mas sim paixões e necessidades, e a pandemia aumentou aquele sentimento de insegurança e inquietação que já se tinha espalhado por todo o lado nos últimos anos devido à crise econômica, às ondas migratórias e à globalização desumanizante.

A reação ao sentimento de decadência (não importa se é real ou percebido) é o fechamento, a nostalgia de um passado melhor imaginado, o pensamento simplista.

Um afastamento que também se alimenta do que há de pior na religiosidade, entendida como um emaranhado de fé e superstição. Em terras de evangelização antiga, este simplismo recorre ao simbolismo do cristianismo para reivindicar uma identidade que é percebida como ameaçada. 

Estamos chegando ao seu livro sobre sexo. Há historiadores do cristianismo que sustentam que a Igreja se encontra em crise sistêmica tão grave como a do Concílio de Trento, do qual emergiu com a Contrarreforma. Ela é tão grave, assim? O que o sexo tem a ver com isso?

Scaramuzzi: A impressão é, com efeito, a de uma crise existencial da Igreja em que o sexo tem muito a ver com isso porque tem a ver com poder. O drama do abuso sexual, por exemplo, não é um simples escândalo moral, muito menos um problema de incontinência dos indivíduos, mas uma crise do sistema, pois revela:

* uma má compreensão da concepção de padre, figura impune, enquanto separada e superior aos fiéis (todo abuso sexual é também um abuso de poder).

* Revela também uma moralidade insistente, ao ponto da obsessão, pelo ato sexual, que se calou sobre as relações entre pessoas do mesmo sexo e os corpos das mulheres, ou, pior ainda, persistiu em negar a evidência da imaturidade e das patologias sexuais não episódicas de seminaristas e padres.

Duas questões – ministério sacerdotal e moralidade sexual – relevantes para a pura eclesiologia, para o ser Igreja no mundo de hoje. Batalhas de natureza completamente diferente foram travadas nos corpos e na sua intimidade. 

Tradução do título e subtítulo desta última obra de Iacopo Scaramuzzi: "O sexo dos anjos. Pedofilia, feminismo, LGBTQ+: o debate na Igreja". Obra, ainda, não publicada no Brasil.

De onde surge o livro “Il sesso degli angeli” e o que você pretendia ao publicá-lo?

Scaramuzzi: Nasceu, antes de mais, de uma proposta de Goffredo Fofi, o editor, que, como sismógrafo sensível às profundas mutações da sociedade e da História, talvez pressentisse que estava a ocorrer um grande cisma no catolicismo. Nasce também do meu sentimento de que a Igreja está a chegar a um ponto de ruptura em questões de moralidade sexual. Uma sensação que deriva da minha atividade como jornalista “Vaticanista”, que lida diariamente com as notícias do Vaticano. Roma é um observatório privilegiado, pois é o terminal da agitação que ocorre na Igreja Católica em todo o mundo. Com o passar do tempo, cheguei a um ponto em que percebi que lidar com a Igreja significava lidar constantemente com a sexualidade em sentido amplo:

* abusos sexuais,

* formação da afetividade e a sexualidade dos sacerdotes,

* o nó da contracepção,

* o aborto,

* a bênção dos casais homossexuais,

* a comunhão dos divorciados recasados,

* a discriminação sofrida pelas mulheres,

* a hipótese do diaconato feminino e, em geral,

* o “escândalo” de que as mulheres entrem no sancta sanctorum (trad.: no santo dos santos) do altar. 

Tentei seguir a linha pontilhada, perguntando-me o que é que unia temas que, apenas na aparência, pareciam desconexos. E pareceu-me notar imediatamente uma aceleração da história, uma precipitação de acontecimentos e a abertura em países muito diferentes de uma fratura antológica, que revela algo que sempre considerei uma incongruência, para não dizer, uma heresia: a ideia de que, como escrevo na introdução desse livro,

«no senso comum, assim como na autorrepresentação da Igreja, ser católico e ser pró-vida são sinônimos. Que a prioridade absoluta para um fiel, um bispo ou um papa seja o “não” ao aborto e ao casamento gay, a crítica aos contraceptivos e ao gênero fluído, a defesa da família baseada no casamento heterossexual e, para os padres, o celibato obrigatório. Que a fé, em última análise, é questão de sexo».

Tudo isso, entretanto, encontra pouco ou nenhum fundamento nos ensinamentos de Jesus Cristo nos Evangelhos. 

Cardeal Carlo Maria Martini - italiano, viveu de 1927 a 2012

Você cita a famosa frase do Cardeal Martini, que afirmou que a Igreja “está 200 anos atrasada”. Esse número é uma casualidade ou obedece a alguma lógica?

Scaramuzzi: Acho que não é uma casualidade. A citação de Martini é mais mencionada do que conhecida: deve ser relida na íntegra para compreender que o cardeal jesuíta falava especificamente sobre a moralidade sexual e falava em particular à luz do colapso da credibilidade da Igreja que explodiu com a crise dos abusos sexuais. Pois bem, há duzentos anos, com a Revolução Francesa, a Igreja Católica perdeu o poder político. Como explica o historiador Daniele Menozzi, que pude entrevistar, só restava uma área em que a Igreja poderia continuar a influenciar os fiéis e toda a sociedade: a moral sexual

Uma tutela da ordem social que a sociedade burguesa e capitalista lhe transferiu de bom grado, quando ocorreu uma convergência de interesses com a Igreja na promoção da família e do nascimento. A Igreja trabalhava pela salvação das almas e por uma “reconquista” do poder social perdido; enquanto o capital trabalhou para o crescimento econômico. Desde então, há exatamente 200 anos, a Igreja, desde o último confessor ascendendo na hierarquia ao mais alto magistério, tem dedicado cada vez mais atenção à moral sexual. Por conta disso, o ensino sobre o tema ficou “congelado”

Tomemos hoje um texto de teologia, doutrina social, ecumenismo, liturgia etc., compare-se, então, com um texto análogo do início do século XIX e ficará claro que, lentamente ou poderíamos dizer com sabedoria, ele evoluiu, e muito. Por outro lado, se tomarmos um manual do confessor de hoje e outro de duzentos anos atrás, descobriremos que a moral sexual católica permanece essencialmente inalterada: o único sexo bom é aquele entre cônjuges, aberto à procriação.

Um anacronismo devido não a um destino evangélico, mas, como dissemos, a uma luta travada pela Igreja para manter o poder na sociedade. 

No capítulo I você faz um panorama histórico dos abusos. Confesso que não tinha ideia de que tudo começa em 1983 com uma criança aleatória, de uma cidade americana aleatória, numa tarde aleatória. É possível distinguir fases nestes 40 anos? Onde estamos hoje?

Scaramuzzi: Suponho que podemos apontar para uma primeira fase “pioneira”, quando apenas o jornalista americano Jason Berry e alguns outros lidaram com abuso sexual; uma segunda fase em que o escândalo explode nos Estados Unidos, e que começa com o caso Spotlight descoberto pelo Boston Globe em 2001; uma terceira fase, que atinge o seu pico em 2009-2019, quando, à medida que os casos “endêmicos” de abuso vêm à luz na Irlanda, Alemanha, Holanda, Bélgica e Áustria, sob Bento XVI, até os negacionistas mais aguerridos têm de admitir que isto não é um problema americano, mas global; e uma quarta fase nestes anos, sob Francisco, com a descoberta do “outro escândalo da Igreja”, graças a um bom documentário da televisão franco-alemã Arte sobre o abuso de mulheres. Mas eu deixaria esta sequência temporal para os historiadores. 

O Capítulo II centra-se nas mulheres e no seu papel na Igreja. O que mudou com Francisco? O que ainda deve mudar?

Scaramuzzi: Digamos que muita coisa mudou e muito pouco mudou. Pela primeira vez, este papa colocou algumas mulheres em centros de poder efetivo (o dicastério que nomeia os bispos, a Secretaria Geral do Governo da Cidade do Vaticano), estabeleceu as condições legais para nomear uma mulher à frente de um dicastério – um tipo de ministério do Vaticano, para nos entendermos – e admitiu pela primeira vez um grupo de mulheres, consagradas e leigas, na assembleia sinodal como membros com direito de voto

Contudo, na minha opinião, ainda não é suficiente. Não só porque se trata de iniciativas que acompanham uma teologia e uma eclesiologia tradicionais (e talvez também não seja possível reivindicar uma sensibilidade feminista de um jesuíta latino-americano octogenário). E não só porque noutras áreas, e refiro-me ao diaconato feminino, Bergoglio impediu qualquer abertura possível, mas porque a exclusão das mulheres do governo da Igreja — daquelas que nas paróquias, nas escolas, nos hospitais católicos levam a Igreja nas costas é —, na minha opinião, o verdadeiro elefante na sala neste momento. Para este papa e aqueles que o suceder. Se as mulheres forem embora, adeus Igreja. As exigências de uma reforma mais radical, a impaciência para que ocorram agora, como não as partilhar. 

Tenho a impressão de que as batalhas feministas e LGTBI que ambos os grupos estão travando dentro da Igreja despertam pouco interesse nos seus grupos leigos correspondentes. A solidariedade não foi vista no movimento feminista com os abusos que as freiras denunciam, e nem no movimento LGTBI com as ações de movimentos como Outreach e Pe. James Martin SJ. É assim mesmo? Se sim, por que tanta falta de empatia?

Scaramuzzi: Em geral, compartilho desta impressão e isso me deixa bastante triste. Como primeiro impulso compreende-se essa dificuldade de aceitar que se queira ser, ao mesmo tempo, católicas e feministas, católicos e ativistas pelos direitos das pessoas LGBTQ+. Aí vem a clássica objeção: “Mas como você reivindica direitos que foram violados pela instituição a que você pertence?” Agora: a objeção é míope. Dentro da Igreja, e precisamente por causa da fé, existem exemplos esplêndidos de liberdade, de luta pelos direitos da pessoa e também de promoção de uma teologia queer, como a que Michela Murgia realizou admiravelmente. Acredito que pessoas como ela estão destinadas à cansativa e louvável tarefa de construir pontes entre mundos separados: o risco, obviamente, é que você seja esmagado por ambos os lados. 

Mary Patricia McAleese - foi presidente da República da Irlanda de 1997 a 2011

O seu livro também entrevista a ex-presidente da República da Irlanda, Mary McAleese, que dá grande ênfase a uma questão crucial: a formação dos padres. Do que essa formação estava adoecida? Houve mudanças?

Scaramuzzi: A ex-presidente irlandesa destaca uma questão muito relevante na minha opinião: a atitude anti-intelectual que se desenvolveu nestas décadas na Igreja. Como é possível que uma instituição que durante séculos guardou a cultura com as suas bibliotecas e conventos, que com as suas escolas e universidades educou o pensamento de gerações de europeus, e depois de americanos, asiáticos, africanos, que tem um peso relevante na história da arte, da filosofia, da ciência, eu me pergunto, como é possível que hoje ela tenha medo das perguntas, da opinião pública, das novidades? Penso que seja uma questão enorme, que nos remete à dialética histórica entre fé e modernidade e que a Igreja Católica tentou abordar com o Concílio Vaticano II, e depois, após o parêntese de João Paulo II e Bento XVI. 

A própria McAleese retrata um Francisco de dupla face, com uma face muito progressista em questões externas (emigração, ecologia integral) e outra tão turva, um tanto indecifrável em questões como homossexualidade, sacerdócio feminino, abusos. Acho que Mary McAleese aponta uma contradição objetiva

Em Il sesso degli angeli, publicado em 2022, você alertava que  um “cisma de direita” e um “cisma de esquerda” estavam à espreita. Ao que você se referia? Como tentarão evitá-los no próximo Sínodo?

Scaramuzzi: Eu não acho que sejam evitados. E mais: acho que esses dois setores vão ter uma grande briga. Não são cismas reais, mas sim ameaças de cisma, transmitidas especialmente pela direita para evitar qualquer reforma mínima. O alemão, “de esquerda”, questiona o celibato obrigatório, a exclusão das mulheres do sacerdócio, a proibição de abençoar casais homossexuais; o estadunidense, de “direita”, abraçou uma ideologia neoconservadora em sintonia com o uso do cristianismo baseado na identidade em questões fundamentais como o aborto e o casamento gay. Às vezes parecem, de fato, ser duas Igrejas diferentes que não podem coexistir dentro da mesma Igreja. Acredito que a aposta de Francisco é forçá-los a confrontar-se sem timidez ou preconceito para encontrar uma nova síntese que garanta à Igreja um futuro de “unidade na diversidade”. 

Grupo de Trabalho - XVI Assembleia Geral Ordinária Sinodal - Outubro 2023

Leem-se rumores de que as informações sobre o Sínodo poderiam permanecer sob sigilo papal. Por quê? Francisco não defendeu sempre a transparência?

Scaramuzzi: Essa seria a intenção do Papa revelada pelo prestigiado jornal francês La Croix, e sim, de fato, nem para o espírito de transparência nem para nós, jornalistas, é uma boa notícia. Penso que Francisco teme que se as reuniões da assembleia fossem transmitidas em streaming, prevalecesse a lógica da oposição entre dois lados, progressista e conservador, o que endureceria o debate e tornaria mais difícil mudar de opinião, chegar a pontos comuns, encontrar acordos. Pode acontecer, de fato

No entanto, considero que estes contrastes existem em qualquer caso e que deixá-los vir à luz não impediria uma síntese, mesmo que esta fosse o resultado de um conflito. Isto é, essa dinâmica democrática e parlamentar tão prejudicada não teria que impedir o sopro do Espírito Santo. E que, pelo contrário, a ausência de transparência beneficia aqueles que, de direita, querem inviabilizar o Sínodo. Como disse o historiador do Vaticano Benny Lai, “o conspiracionismo [dietrologia] responde com todo o seu talento a tanto sigilo”

Uma pergunta obrigatória sobre a Igreja na Espanha. Esta fratura, este suposto cisma lento que estaria a rachar a Igreja, que forma assume em Espanha?

Scaramuzzi: Tenho a sensação de que, como aconteceu noutros países, Francisco também trouxe um ar refrescante à Igreja espanhola; a renovação, aliás, que alguns acolheram com entusiasmo; outros, com hostilidade aberta, enquanto não faltam aqueles que a julgam com prudência. A linha do cardeal Rouco Varela, que orientou o bispado antes de Francisco, foi rejeitada por Francisco em favor de uma abordagem mais pastoral, mais atenta às questões sociais, mais em diálogo com a modernidade. Muitos que de fora da Igreja olhavam para ela com hostilidade, creio que hoje, porém, olham para ela com curiosidade. O que, de forma alguma, significa que as igrejas novamente voltaram a ficar cheias. Digamos, por outro lado, que, na minha opinião, este não pode ser o critério com o qual deve ser avaliado o testemunho evangélico no mundo de hoje

Papa Francisco entrando em procissão na Basílica de São Pedro tendo ao seu lado vários cardeais da Igreja

A última pergunta é impossível, mas obrigatória: o próximo Papa: quais nomes estão sendo considerados? Que desafios o Papa e a Igreja em geral devem enfrentar?

Scaramuzzi: Os nomes que circulam no momento são Parolin, Zuppi, Tagle, Grech, Erdo, Ranjith, Artime... e eu poderia continuar. Por ora, não me parece que exista um candidato objetivamente forte e acredito que, no momento que for acontecer, será um Conclave mais imprevisível do que o habitual. Francisco nomeou mais de dois terços dos cardeais eleitores, ou seja, o quórum necessário para eleger o seu sucessor, mas não é certo que se trate de um grupo homogêneo e solidamente bergogliano

Acredito antes que, depois da série de novidades e de choques que este papa trouxe, as preferências se dirigirão para uma figura capaz de recolocar as águas em seu canal, de consolidar as reformas iniciadas ou apenas planejadas, de pôr ordem na pilha de obras em andamento. Talvez ele seja uma figura muito espiritual. Talvez uma personalidade atualmente um pouco nas sombras. Francisco sugeriu diversas vezes, mais recentemente publicamente, que o seu sucessor assumiria o nome de João XXIV, em continuidade com o papa que abriu o Concílio Vaticano II. Tendo a excluir que se trate de um Pio XIII (como imaginou Paolo Sorrentino). Pessoalmente, temo um João Paulo III que significaria um atraso na relação da Igreja com a modernidade. Posso imaginar que chegará um Paulo VII, o nome do Papa que concluiu o Concílio sem que este descarrilasse. 

Traduzido do espanhol por IHU-Notícias. Tradução revista e corrigida por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo. A matéria original é acessível, clicando aqui. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 2 de outubro de 2023 – Internet: clique aqui (acesso em: 11/10/2023).