Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.
Padre e biblista
italiano dos Servos de Maria (Servitas)
Ser família de Jesus significa acolher e
praticar a sua palavra
Lucas 2,22-24: «Quando se completaram os
dias para a purificação da mãe e do filho, conforme a Lei de Moisés, Maria e
José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor. Conforme está
escrito na Lei do Senhor: “Todo primogênito do sexo masculino deve ser
consagrado ao Senhor”. Foram também oferecer o sacrifício — um par de
rolas ou dois pombinhos — como está ordenado na Lei do Senhor.»
Trinta
e três dias depois da circuncisão de Jesus, os pais, Maria e José, levam a
criança a Jerusalém, ao templo, para cumprir duas prescrições da lei: a
primeira é a da purificação da mãe prescrita no livro de Levítico (cf.
cap. 12), era necessário trazer uma oferta de um cordeiro, mas para os mais
pobres dois pombos ou duas rolas bastavam, como farão Maria e José. A outra,
prescrita no livro do Êxodo, era o resgate do filho primogênito. Deus
queria que todo primogênito masculino fosse completamente seu, se os pais o quisessem
teriam que pagar o preço do resgate (cf. Ex 13,1-2.11-15). O resgate foi de
cinco moedas de prata, cerca de vinte dias de trabalho.
Pois
bem, o evangelista apresenta Maria e José que ainda estão sob o peso da lei
e o termo “lei” será mencionado nesta passagem cinco vezes (vv. 22, 23,
24, 27 e 39) como os cinco livros escritos da Torá (instrução, ensino)
atribuídos a Moisés.
Lucas 2,25-33:
«Em
Jerusalém, havia um homem chamado Simeão, o qual era justo e piedoso, e
esperava a consolação do povo de Israel. O Espírito Santo estava com ele e lhe
havia anunciado que não morreria antes de ver o Messias que vem do Senhor. Movido
pelo Espírito, Simeão veio ao Templo. Quando os pais trouxeram o menino Jesus para
cumprir o que a Lei ordenava, Simeão tomou o menino nos braços e bendisse a
Deus: “Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar teu servo partir em paz; porque meus olhos viram a tua
salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e
glória do teu povo Israel”. O pai e a mãe de Jesus estavam admirados com o que
diziam a respeito dele.»
E há o encontro dos dois com Simeão que tira o
filho dos braços dos pais e o abençoa. Aqui, o evangelista relata os temas que
já apresentou no anúncio do Anjo aos pastores, por ocasião do nascimento
de Jesus. Haviam dois elementos que eram o da luz e do desconcerto.
Os pastores esperavam ser incinerados pela ira de Deus, mas são transformados
pelo amor, pela luz do Senhor, e, quando contam o que lhes aconteceu, todos
ficam desconcertados. Bem, aqui, o evangelista traz de volta o tema da luz e
o tema da perplexidade.
O tema da luz é que Simeão falando, abençoando o menino
diz que ele será “Luz para iluminar as nações”. O termo usado pelo
evangelista, o grego etne (fonético), do qual procede étnico,
indica povos pagãos e isto é desconcertante. A tradição dizia que
Israel, com o Messias, deveria dominar os pagãos e em vez disso, aqui, estava o
anúncio do homem do Espírito. Não, o amor do Senhor é universal e chega até
aos pagãos. Por isso, escreve o evangelista, o pai e a mãe de Jesus ficaram
maravilhados, estão desconcertados, há algo que não bate, algo novo!
Lucas 2,34-40:
«Simeão os
abençoou e disse a Maria, a mãe de Jesus: “Este menino vai ser causa tanto de
queda como de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de
contradição. Assim serão revelados os pensamentos de muitos corações. Quanto a
ti, uma espada te traspassará a alma”. Havia também uma profetisa, chamada Ana,
filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era de idade muito avançada; quando jovem,
tinha sido casada e vivera sete anos com o marido. Depois ficara viúva, e agora
já estava com oitenta e quatro anos. Não saía do Templo, dia e noite servindo a
Deus com jejuns e orações. Ana chegou nesse momento e pôs-se a louvar a Deus e
a falar do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém. Depois de
cumprirem tudo, conforme a Lei do Senhor, voltaram à Galileia, para Nazaré, sua cidade. O menino crescia e
tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele.»
Então, de repente, Simeão fala com Maria com uma bênção
que parece dramática, ele diz: “E uma espada traspassará a tua alma”. O
que isso significa? Esta espada não tem, de forma alguma, o significado da
dor, das tristezas que Maria terá de enfrentar na sua vida. A espada,
na Bíblia, é uma imagem da palavra de Deus. Na carta aos Hebreus no
capítulo 4 há uma bela descrição que o autor faz desta espada, ele diz: “A
palavra de Deus é viva, eficaz e mais cortante que qualquer espada de dois
gumes, ela penetra até a divisão da alma e do espírito, até as juntas, até a
medula e discerne os sentimentos e pensamentos do coração” (4,12). O que
Simeão está dizendo? Ele está dizendo à mãe que: “A palavra de teu Filho irá
forçar-te a fazer escolhas dolorosas”. E assim como Maria acolheu as
palavras do anjo e se tornou mãe de Jesus, agora ela deverá acolher as palavras
do seu Filho para continuar o seu crescimento e tornar-se sua discípula.
* Traduzido e editado do italiano por Pe.
Telmo José Amaral de Figueiredo.
** Os textos bíblicos citados foram extraídos do:
Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I:
lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994.
Reflexão Pessoal
Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo
«Minha
mãe e meus irmãos são estes: os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em
prática.»
(Lucas 8,21)
A Igreja, sempre,
apresentou a Sagrada Família ― Maria, José e o Menino Jesus ― como modelos,
exemplos para a vivência das famílias cristãs. E ela está certa em fazê-lo. No
entanto, é preciso tomar cuidado, pois essa é uma idealização, ou seja,
uma representação ideal. Representação esta que vem ao encontro de um
modelo tradicional e conservador de família, que jamais representou o conjunto
das famílias existentes em nossa sociedade. É desconcertante e, ao mesmo
tempo, belo verificar, à luz dos evangelhos, as características dessa
Sagrada Família. Esses traços não coincidem com a idealização que fazemos.
Vamos conferir:
1) Maria fica grávida
sem o conhecimento de seu marido.
2) Segundo o
evangelista Mateus, assim que o menino nasceu, a família se viu ameaçada, ao
ponto de ter que fugir a um país distante, o Egito. Tornando-se, assim,
autênticos fugitivos das autoridades!
3) No templo de
Jerusalém, como lemos hoje, Maria recebe de Simeão a explicação que o seu filho
não lhe pertence, mas a Deus e, ainda mais, que ela é mãe de alguém que será um
“sinal de contradição”.
4) Quando adolescente,
Jesus desgarra-se de seus pais e permanece em Jerusalém sem o conhecimento e
consentimento deles.
5) Jesus deixa a sua
casa e a sua família em Nazaré e vai viver em Cafarnaum, percorrendo a
Galileia, pregando e fazendo coisas que assustarão as autoridades.
6) Os parentes de Jesus
dirão que sua atitude é de um louco (cf. Mc 3,21). Eles não acreditarão nele
(cf. Jo 7,5). Inclusive, o desprezarão quando de seu retorno a Nazaré (cf. Mc
6,1-6).
7) Até os vizinhos de
sua família, em Nazaré, quiseram matá-lo (cf. Lc 4,22-30).
Portanto, a Sagrada
Família pode ser modelo, mas não de uma família nos moldes idealizados por alguns
piedosos religiosos! Ela é modelo daquilo que uma família verdadeiramente
cristã deve ser, ou seja:
a) aberta ao serviço
de toda a sociedade, não fechada sobre si mesma e satisfeita, apenas, com a
sua própria felicidade. Afinal, os pais devem formar filhos e filhas para Deus
e para o mundo.
b) Espaço de aprendizado
do diálogo, não do autoritarismo e da opressão das pessoas.
c) Escola de verdadeira
solidariedade e doação de si, onde o egoísmo não prevaleça. O
desapego é algo a ser vivido e ensinado desde a mais tenra idade.
Enfim, como nos
recordou Johan Konings, uma autêntica família cristã é aquela que forma filhos:
«Nem abandonados
nem mimados, mas filhos de Deus e homens e mulheres para o mundo».
Oração após a meditação do Santo Evangelho
«Nós te louvamos e bendizemos, Pai,
porque mediante teu Filho, nascido de mulher pelo poder do Espírito Santo,
nascido sob a lei, tu nos redimiste da lei e encheste a nossa existência de luz
e de nova esperança. Que as nossas famílias sejam acolhedoras e fiéis aos teus
projetos, ajudem e apoiem os sonhos e os novos entusiasmos dos seus filhos,
envolvam-nos de ternura quando estão frágeis, eduquem-nos a amar-te e a todas
as tuas criaturas. A ti nosso Pai, toda honra e toda glória.»
(Fonte:
SECONDIN, Bruno, O.Carm. Orazione finale. In: CILIA, Anthony,
O.Carm. [a cura di]. Lectio divina sui vangeli festivi per l’anno liturgico
B. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 63)
Fonte:
Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – Santa Famiglia
di Gesù, Maria e Giuseppe – Anno B – 27
dicembre 2020 – Internet: clique aqui (Acesso em: 19/12/2023).
Discurso
de Papa Francisco à Cúria Romana por ocasião do Natal
Instituto
Humanitas Unisinos – IHU
PAPA FRANCISCO dirige-se aos membros da Cúria Romana, na Sala das Bênçãos do Palácio Apostólico (Vaticano): quinta-feira, 21 de dezembro de 2023
“Ouvir, discernir, caminhar: três verbos para
o nosso caminho de fé e para o serviço que realizamos aqui na Cúria”
Audiência do Santo Padre à Cúria
Romana por ocasião da apresentação das saudações de Natal.
Esta manhã, 21 de dezembro de
2023, na Sala da Bênção do Palácio Apostólico Vaticano, o Santo Padre Francisco recebeu em audiência os
Cardeais e Superiores da Cúria Romana para a apresentação das saudações de
Natal.
Durante o encontro, o Papa
dirigiu o seguinte discurso à Cúria Romana.
Eis o discurso de Papa Francisco.
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Em primeiro lugar, gostaria de
agradecer ao Cardeal Re pelas suas palavras; e
também pela energia: uma pessoa com noventa anos com essa energia! Vamos,
coragem! Obrigado.
O cardeal Giovanni Battista Re (89 anos), atual Decano do Colégio dos Cardeais, dirige palavras de saudações natalinas ao Papa Francisco, em nome da Cúria Romana
O mistério do Natal desperta os
nossos corações para a maravilha – palavra-chave – de um anúncio inesperado: Deus
vem, Deus está aqui entre nós e a sua luz perfurou para sempre as trevas do
mundo. Precisamos ouvir e receber sempre este anúncio, especialmente numa
época ainda tristemente marcada pela violência da guerra, pelos riscos de época
a que estamos expostos devido às alterações climáticas, pela pobreza, pelo
sofrimento, pela fome – há fome no mundo! – e de outras feridas que
habitam a nossa história. É reconfortante descobrir que mesmo nestes “lugares”
de dor como em todos os espaços da nossa frágil humanidade, Deus se faz
presente neste berço, na manjedoura que hoje Ele escolhe para nascer e para levar
o amor do Pai a todos; e o faz com o estilo de Deus:proximidade,
compaixão, ternura.
Queridos, precisamos ouvir o
anúncio do Deus que vem, discernir os sinais da Sua presença e decidir-nos pela
Sua Palavra caminhando após Ele. Ouvir, discernir, caminhar: três verbos
para o nosso caminho de fé e para o serviço que realizamos aqui na Cúria.
Gostaria de entregá-los a vocês através de alguns dos personagens principais do
Santo Natal.
"Anunciação do Anjo a Maria" - autoria de FRA ANGELICO, pintor italiano renascentista (1387-1455)
Ouvir – acolher com
o coração
Em primeiro lugar, Maria, que nos lembra de ouvir. A menina
de Nazaré, que tem nos braços Aquele que veio abraçar o mundo, é a Virgem da
escuta porque ouviu o anúncio do Anjo e abriu o seu coração ao desígnio de
Deus. Ela nos lembra que o primeiro grande mandamento é “Ouvi, Israel!”
(Dt 6,4), porque antes de qualquer preceito é importante entrar em relação com
Deus, acolhendo o dom do seu amor que chega até nós. Com efeito, a escuta é
um verbo bíblico que não se refere apenas à audição, mas implica o envolvimento
do coração e, portanto, da própria vida. São Bento
começa assim a sua Regra: «Ouve atentamente, ó filho» (Regra,
Prólogo, 1). Ouvir com o coração é muito mais do que ouvir uma mensagem ou
trocar informações; é uma escuta interna capaz de interceptar os desejos e
necessidades dos outros, uma relação que nos convida a superar padrões e
superar os preconceitos em que às vezes classificamos a vida daqueles que nos
rodeiam. Ouvir é sempre o início de uma jornada. O Senhor pede ao seu povo esta
escuta do coração, uma relação com Ele, que é o Deus vivo.
E isto é escutar a Virgem Maria,
que acolhe o anúncio do Anjo com abertura, total abertura, e por isso mesmo não
esconde a perturbação e as interrogações que lhe suscita; mas ela se
envolve de boa vontade na relação com Deus que a escolheu, acolhendo o seu
projeto. Há um diálogo e há uma obediência. Maria compreende que é
destinatária de um dom inestimável e, “de joelhos”, ou seja, com humildade e
espanto, escuta. Ouvir “de joelhos” é a melhor forma de ouvir de verdade,
porque significa que não estamos diante do outro na posição de quem pensa que já
sabe tudo, de quem já interpretou as coisas antes mesmo de ouvir, de alguém que
olha de cima para baixo, mas, pelo contrário, nos abrimos ao mistério do
outro, prontos a receber humildemente tudo o que ele nos quiser dar.
Não esqueçamos que apenas numa ocasião é lícito olhar uma pessoa de
cima para baixo: só para a ajudar a levantar-se. É a única ocasião em
que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo.
Às vezes, mesmo na comunicação
entre nós, corremos o risco de sermos como lobos predadores: tentamos
imediatamente devorar as palavras do outro, sem realmente ouvi-lo, e
imediatamente despejamos sobre ele as nossas impressões e os nossos
julgamentos. Em vez disso, para ouvir uns aos outros é necessário silêncio
interior, mas também um espaço de silêncio entre ouvir e responder.
Não é “pingue-pongue”. Primeiro ouvimos, depois em silêncio acolhemos,
refletimos, interpretamos e, só depois, podemos dar uma resposta. Aprendemos
tudo isto na oração, porque ela amplia o coração, faz descer do pedestal o
nosso egocentrismo, ensina-nos a escutar o outro e gera em nós o silêncio
da contemplação. Aprendemos a contemplação na oração, ajoelhando-nos diante do
Senhor, mas não só com as pernas, ajoelhando-nos com o coração! Também em
nosso trabalho como Cúria «é preciso implorar todos os dias, pedir a sua graça
para abrir os nossos corações frios e sacudir a nossa vida morna e superficial.
[…] É urgente recuperar um espírito contemplativo, que nos permita
redescobrir todos os dias que somos guardiões de um bem que humaniza,
que nos ajuda a levar uma vida nova. Não há nada melhor para transmitir aos
outros” (Evangelii gaudium, 264).
Irmãos e irmãs, também na
Cúria é necessário aprender a arte da escuta. Antes dos nossos deveres
diários e das nossas atividades, especialmente diante dos papéis que
desempenhamos, precisamos redescobrir o valor das relações e tentar
despojá-las dos formalismos, para animá-las com espírito evangélico,
sobretudo ouvindo-nos uns aos outros. Com o coração e de joelhos. Vamos nos
escutar mais, sem preconceitos, com abertura e sinceridade; com o coração
de joelhos. Escutemo-nos uns aos outros, procurando compreender bem o que diz o
irmão, compreender as suas necessidades e de alguma forma a sua própria vida,
que se esconde por trás daquelas palavras, sem julgar.
Como aconselha sabiamente Santo Inácio: «Deve-se presumir que um bom cristão
deve estar inclinado a defender, em vez de condenar, a afirmação de outro. Se
não puder defendê-lo, tente esclarecer em que sentido o outro o entende; se ele
entendeu errado, corrija-o gentilmente; se isso não bastar, use todos os meios
apropriados para compreendê-lo corretamente e assim salvar-se” (Exercícios
Espirituais, 22). É tudo um trabalho de entender bem o outro. E
repito: ouvir é diferente de escutar. Andando pelas ruas de nossas cidades
podemos escutar muitas vozes e ruídos, mas geralmente não os ouvimos, não os
internalizamos e eles não ficam dentro de nós.
Uma coisa é simplesmente escutar, outra é ouvir, o que também
significa “acolher”.
"O Batismo de Cristo" - autoria de Giotto, afresco da Capela dos Scrovegni, em Pádua, na Itália
Discernir – converter-se
à novidade do Reino
A escuta mútua ajuda-nos a
experimentar o discernimento como método de ação. E aqui podemos nos
referir a João Batista. Primeiro, Nossa Senhora
que escuta, agora João que discerne. Conhecemos a grandeza deste
profeta, a austeridade e a veemência da sua pregação. No entanto, quando Jesus
chega e inicia o seu ministério, João passa por uma dramática crise de fé; ele
havia anunciado a vinda iminente do Senhor como a de um Deus poderoso, que
finalmente julgaria os pecadores, lançando no fogo toda árvore que não dá fruto
e queimando a palha com fogo inextinguível (cf. Mt 3, 10-12). Mas esta imagem
do Messias estilhaça-se diante dos gestos, das palavras e do estilo de Jesus,
diante da compaixão e da misericórdia que Ele demonstra para com todos. Então o
Batista sente que deve fazer discernimento para receber novos olhos. Com
efeito, o Evangelho diz-nos: «João, que estava na prisão, tendo ouvido falar
das obras de Cristo, enviou-lhe através dos seus discípulos para lhe dizer: És
tu aquele que há de vir ou devemos esperar outro?» (Mt 11,2-3). Em suma, Jesus
não foi como ele esperava e, por isso mesmo, o Precursor deve converter-se à
novidade do Reino, deve ter a humildade e a coragem de fazer o
discernimento.
Aqui é importante para todos nós
o discernimento, esta arte da vida espiritual que nos despoja da pretensão
de já saber tudo, do risco de pensar que basta aplicar as regras, da
tentação de prosseguir, mesmo na vida da Cúria, simplesmente repetindo padrões,
sem considerar que...
... o Mistério de Deus sempre nos supera e que a vida das pessoas
e a realidade que nos rodeia são e sempre permanecerão superiores às
ideias e teorias.
A vida é superior às ideias,
sempre. Precisamos praticar o discernimento espiritual, examinar a vontade
de Deus, questionar os movimentos internos do nosso coração e depois avaliar as
decisões a serem tomadas e as escolhas a serem feitas.
O Cardeal
Martini escreveu: «O discernimento é muito diferente da meticulosidade
de quem vive no esquecimento legalista ou com pretensão de perfeccionismo.
É uma explosão de amor que estabelece a distinção entre o bem e o melhor, entre
o útil em si e o útil agora, entre o que pode ser bom em geral e o que precisa
ser promovido agora». E acrescentou:
«A falta de tensão para discernir o melhor
muitas vezes torna a vida pastoral monótona, repetitiva: multiplicam-se as
ações religiosas, repetem-se os gestos tradicionais, sem ver claramente o seu
significado» (Evangelho de Maria, Milão 2008, 21).
O discernimento deve ajudar-nos,
mesmo no trabalho da Cúria, a ser dóceis ao Espírito Santo, a saber escolher
orientações e tomar decisões não com base em critérios mundanos, ou
simplesmente aplicando regulamentos, mas segundo o Evangelho.
"Três Magos" - autoria de Pacino da Buonaguida (1330-1340): Florença, coleção privada
Ouvir:Maria. Discernir: o Batista.
E agora a terceira palavra: caminhar. E os nossos pensamentos voltam-se
naturalmente para os Magos. Eles nos lembram da
importância de caminhar. A alegria do Evangelho, quando o acolhemos
verdadeiramente, desencadeia em nós o movimento de seguimento, provocando um
verdadeiro êxodo de nós mesmos e colocando-nos no caminho do encontro com o
Senhor e da plenitude da vida. O êxodo de nós mesmos: uma atitude da
nossa vida espiritual que devemos sempre examinar.
A fé cristã – recordemo-lo – não quer confirmar as nossas
certezas, não quer nos fazer acomodar em certezas religiosas fáceis,
nem nos dar respostas rápidas aos problemas complexos da vida.
Pelo contrário, quando Deus
chama sempre inspira um caminho, como foi para Abraão, para Moisés, para os
profetas e para todos os discípulos do Senhor. Ele nos põe em caminho, nos
tira das nossas zonas de segurança, questiona as nossas aquisições e,
precisamente assim, nos liberta, nos transforma, ilumina os olhos do nosso
coração para nos fazer compreender a que esperança ele nos chamou (cf. Ef 1,18).
Como afirma Michel de Certeau, «aquele que não
consegue parar o caminho é místico. […] O desejo cria excesso. Ultrapassa,
passa e perde lugares. Faz você ir mais longe, em outro lugar” (Fabula
Mystica. Século XVI-XVII, Milão 2008, 353).
Também no serviço aqui na Cúria é
importante permanecer no caminho, não deixar de procurar e aprofundar a
verdade, vencendo a tentação de permanecer quieto e “labirinto” dentro das
nossas cercas e dos nossos medos. Os medos, a rigidez, a repetição de
padrões geram estática, que tem a aparente vantagem de não criar problemas –quieta non movere–, levam-nos a andar em círculos nos nossos
labirintos, penalizando o serviço que somos chamados a oferecer à Igreja e para
o mundo inteiro. E permanecemos vigilantes contra a fixidez da ideologia,
que muitas vezes, sob o pretexto de boas intenções, nos separa da realidade
e nos impede de avançar.
Pelo contrário, somos chamados
a viajar e a caminhar, como fizeram os Magos, seguindo a Luz que quer
sempre levar-nos mais longe e que por vezes nos faz procurar caminhos
inexplorados e nos leva por caminhos novos. E não esqueçamos que o
caminho dos Magos – como todo caminho que a Bíblia nos conta – começa sempre “do
alto”, por um chamado do Senhor, por um sinal que vem do céu ou porque o
próprio Deus se torna um guia que ilumina os passos de seus filhos.
Portanto, quando o serviço que realizamos corre o risco de ficar achatado, “labiríntico”
na rigidez ou na mediocridade, quando nos encontramos enredados nas redes da
burocracia e da “sobrevivência”, lembremo-nos de olhar para cima, de
recomeçar a partir de Deus, deixar-nos iluminar pela sua Palavra,
encontrar sempre a coragem de recomeçar. E não esqueçamos que os
labirintos só podem ser superados “de cima”.
É preciso coragem para caminhar,
para ir mais longe. É uma questão de amor. É preciso coragem para amar. Gosto
de recordar a reflexão de um sacerdote zeloso sobre o tema, que também pode nos
ajudar no nosso trabalho como Cúria. Ele diz que é difícil reacender as brasas
sob as cinzas da Igreja. A luta, hoje, é transmitir paixão a quem já a
perdeu há muito tempo.
Sessenta anos depois do Concílio, ainda há um
debate sobre a divisão entre “progressistas” e “conservadores”, mas esta não é
a diferença: a verdadeira diferença central está entre “apaixonados” e “acostumados”.
Esta é a diferença. Só quem ama pode caminhar.
Irmãos, irmãs, obrigado pelo seu
trabalho e pela sua dedicação. No nosso trabalho cultivamos a escuta do
coração, colocando-nos assim ao serviço do Senhor, aprendendo a acolher-nos,
a ouvir-nos; pratiquemos o discernimento, para sermos uma Igreja
que procura interpretar os sinais da história com a luz do Evangelho, procurando
soluções que transmitam o amor do Pai; e permaneçamos sempre no caminho,
com humildade e espanto, para não cair na presunção de nos sentirmos chegados e
para que o desejo de Deus não se apague em nós. E muito obrigado a você,
especialmente por seu trabalho feito em silêncio. Não esqueçamos: escutar,
discernir, caminhar. Maria, o Batista e os Magos.
Que o Senhor Jesus, Verbo
Encarnado, nos dê a graça da alegria no serviço humilde e generoso. E por
favor, por favor, não percamos o senso de humor, que é saudável!
Os melhores votos de um Santo
Natal, também para os seus entes queridos! E, diante do presépio, faça uma
oração por mim. Muito obrigado.
Papa
Francisco
Fonte:Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 21 de dezembro de 2023 – Internet:
clique aqui (acesso em: 27/12/2023).
Os
riscos de uma transição energética que nos leva do colapso do petróleo ao
esgotamento dos minerais
Alicia
Valero Delgado
Doutora em Engenharia Química pela Universidade de Zaragoza, na
Espanha. É mestre em Eficiência Energética e Ecologia Industrial pela mesma
instituição e professora titular na área de Máquinas e Motores Térmicos em
Zaragoza, além de diretora do grupo de Ecologia Industrial do Instituto CIRCE (Consulting
and Integrated Resources for Classical Educators).
ALICIA VALERO DELGADO
Nem todas as alternativas são, de fato, viáveis
O uso de combustíveis fósseis
está destruindo os modos de vida na Terra e é preciso uma transição energética,
para que se dependa cada vez menos de petróleo e se emita cada vez menos CO2.
Isso é fato. Mas não significa que fazendo essa conversão todos os problemas
estarão resolvidos. O alerta vem da professora Alicia
Valero que, em conferência no IHU, dentro do Ciclo de Estudos
Transição Energética e o Colapso Global. Limites e possibilidades, diz que...
... podemos sair da degradação por energias fósseis e cairmos num
esgotamento do planeta pela extração de minerais raros.
“O que temos de analisar é qual
o ‘lado B’ dessa transição que, em tese, nos salvará desses problemas
das mudanças climáticas ou, pelo menos, mitigará de alguma forma a
situação”, aponta.
O que está no foco de Alicia é o
aumento desses metais para a geração de energias alternativas, como é o caso da
eólica, por exemplo. “É preciso saber que para cada gigawatt produzido,
um parque eólico precisa de cerca de 25 vezes mais materiais do que uma usina a
carvão convencional”, exemplifica. Esses materiais são diversos minerais raros
que, como o próprio nome diz, são difíceis de extrair da natureza e tem uma
reserva finita. “Estamos vendo uma mudança de paradigma de onde saímos de
uma dependência energética de combustíveis fósseis para uma multidependência
de matérias-primas que também são escassas”, enfatiza.
Além disso, a professora usa da
termodinâmica para explicar que nós consumimos energia demais também para
extrair matérias-primas minerais da natureza. “A termodinâmica diz que toda
vez que realizamos alguma atividade sempre destruímos recursos. E os atos de
destruição de recursos são algo que chamamos de irreversibilidade”, explica.
Por isso, destaca que nem tudo pode ser calculado em valores monetários.
Na verdade, “estamos de alguma forma sujeitos às leis da termodinâmica e a
economia não está ciente disso ou não quis estar ciente. (…) Precisamos
pagar uma compensação maior que leve a natureza em conta”, dispara.
A concepção de saídas não é
fácil, pois dependemos cada vez mais desses metais para sobreviver e, na
medida em que vai haver um decrescimento de energias fósseis, a tendência é
aumentar ainda mais o consumo dessas matérias-primas. É pela termodinâmica
que Alicia chega à elaboração de que, mesmo que não sufoquemos a vida com CO2
pelo uso de combustíveis fósseis, podemos drenar a energia de toda a Terra
com a extração de minerais, chegando a um ponto de estado morto do
planeta, uma era de Thanatia, como
conceitua. “Podemos dizer que estamos na era da tabela periódica. E, se
continuarmos assim, então, poderemos voltar à Idade da Pedra ou à Idade de Thanatia”,
ilustra.
A palestrante apresenta os limites
da reciclagem, pois costumamos reciclar justamente o que já existe em maior
quantidade da natureza, como o ferro, enquanto ignoramos o reaproveitamento
de metais mais raros. Em grande medida isto ocorre porque, quando
misturamos esses elementos, há um gasto exorbitante de energia para separá-los,
o que inviabiliza a reciclagem.
Por isso, Alicia destaca que é fundamental ter a consciência da finitude dos
recursos e usá-los com prudência. Além disso, devemos insistir na reciclagem,
mas com novas concepções de produtos de forma que facilitem a extração dos
minerais e reciclagens no futuro. “A consciência da reutilização e a reciclagem
tornam os produtos robustos, modulares e de fácil desmontagem. Aprendamos
com a natureza, que não produz resíduos e vive e se regenera exclusivamente
pela ação do sol. Em suma, na demanda, o que deve ser feito é reduzir
drasticamente a demanda, reduzi-la e avançar para novos modelos de consumo”,
resume.
Livro de autoria de Alicia e seu pai, Antonio Valero, no qual apresentam em modo divulgativo as suas principais pesquisas sobre os limites minerais do planeta. Ainda sem edição no Brasil.
Confira trechos da
conferência.
Minha fala tem o objetivo de
estimular a repensarmos a necessidade do uso de uma energia de base
termodinâmica a partir da perspectiva do pensamento econômico. Para tanto,
trago um resumo do livro, escrito por mim e meu pai, intitulado “Thanatia:
los límites minerales del planeta”, publicado em 2020.
Na primeira parte do livro,
analisamos a dependência dos minerais em nossa sociedade. Para isso,
destaco alguns dados físicos que, ao menos para mim, parecem alarmantes. Começo
pela economia verde, não a transição, que é necessário que tenhamos, afinal, é
preciso reduzir drasticamente o consumo de carvão. O que temos de analisar é
qual o “lado B” dessa transição que, em tese, nos salvará dos problemas das
mudanças climáticas ou, pelo menos, mitigará de alguma forma esta situação.
É preciso saber que para cada
gigawatt produzido, um parque eólico precisa de cerca de 25 vezes mais
materiais do que uma usina a carvão convencional. E não consome apenas mais
materiais, mas também é maior em superfície instalada, pois precisa de muito mais
superfície por megawatt instalado. Por exemplo, o vento precisa de cerca de 50
vezes mais. Mas a quantidade não é o mais preocupante. O que realmente preocupa
é a maior variedade.
Clique sobre a imagem para saber como funciona a energia eólica:
O que compreende a
geração de energia eólica
Para a geração da energia eólica,
por exemplo, são necessários elementos que são escassos na natureza e, como
veremos, pode haver problemas de abastecimento. Na energia eólica, temos o uso
de um elemento chamado neodímio, dos chamados
minerais raros. Nas novas tecnologias fotovoltaicas entram em jogo germânio, índio, telúrio. Se formos considerar o carro elétrico,
entra em jogo ainda uma verdadeira mina de elementos, pois, para fazer o
veículo rodar, são necessários praticamente todos os elementos da tabela
periódica.
Desde o século XVIII, vimos como
aumentou não só a quantidade como também a variedade de matérias-primas usadas
pela sociedade. Por exemplo, um veículo de passeio convencional hoje precisa
de 52 tipos diferentes de metais. E estamos considerando projeções até
2050, porque são 2.000 milhões de veículos elétricos e autônomos com todo esse
consumo de energia que já temos. Podemos até dizer que estamos na era da tabela
periódica. Estamos vendo uma mudança de paradigma de onde saímos de uma
dependência energética de combustíveis fósseis para uma multidependência de
matérias-primas que também são escassas.
Esse crescimento se dará ano após
ano justamente por causa dessa maior necessidade de matérias-primas associadas.
Exemplos disso são o veículo elétrico, o veículo híbrido, a energia
fotovoltaica, a bioenergia, e assim por diante.
As maiores necessidades de
matérias-primas implicam uma extração exponencial de recursos da natureza,
mas vivemos em um mundo finito, não podemos crescer indefinidamente.
Desenvolvimento é igual a crescimento e é claro que temos que tê-lo. Mas, se há
desenvolvimento, ele deve pelo menos ser equitativo.
Focamos em dados físicos,
analisando essas tecnologias que serão necessárias para fabricar um celular,
por exemplo.
Já é sabido que a demanda até 2050 pode ser
maior do que as reservas que existem hoje, reservas disponíveis de elementos
como prata, cádmio,
cobalto, cromo, cobre, gálio, índio, lítio, manganês, níquel, chumbo, platina, telúrio ou zinco, entre
outros.
São desses que estamos falando
que já são escassos e que são extremamente necessários para promover o
desenvolvimento.
Transição em risco
Essa transição energética é muito
esperada, mas o problema é que a falta desses elementos pode colocar essa
mesma transição em risco. Trouxe aqui apenas alguns exemplos de elementos
mais conhecidos, mas vou me focar em um dos que mais conhecemos: o cobre. Ele é um elemento representativo que é
absolutamente necessário para a transição energética, porque para fazer
funcionar o veículo elétrico é preciso quatro vezes mais cobre do que um
veículo com motor a combustão. E uma tecnologia eólica precisa de 12
vezes mais cobre que o seu equivalente em potência a uma usina térmica.
Podemos ter ideia da magnitude de que estamos falando em termos de quantidades
de cobre que precisamos, já que em 2035 a demanda deve dobrar.
Então, para cobrir essas necessidades de cobre até
2030, precisamos descobrir a maior mina de cobre do mundo todos os anos e pelos
próximos 20 anos.
Assim, percebemos que para
atender a demanda precisamos fazer alguns esforços para ampliar as reservas de
forma brutal. Por outro lado, sabemos que a China precisa dessas novas
reservas. Precisa da metade, ou até mais, desses depósitos e não é de
estranhar, então, que a China esteja por trás de todos os investimentos de
reservas de países da América Latina, África, Canadá, Austrália. Ou
simplesmente porque a China compra o concentrado e, depois, refina e
disponibiliza para o restante do mundo.
Mina de lítio na Austrália
Novas minas
Precisamos de muitas, muitas
descobertas, mas isso está progredindo? Nos últimos dez anos, as novas
descobertas, as novas jazidas – embora não haja estatística clara – passaram de
50 milhões de toneladas por ano para 8 milhões de toneladas. Ou seja, as
novas adições foram reduzidas drasticamente. Além disso, 80% dessas novas
reservas não são por descoberta de novas jazidas ou por exploração de novas
jazidas, mas por reclassificação de depósitos de classificação. Implica,
então, que se estabeleça que, talvez, um determinado depósito se esgote até
atingir uma concentração de 5 e se decida continuar explorando até que se
esgote ainda mais, até chegar 4, por exemplo.
É preciso muito mais energia e,
de fato, o que se tem visto é isso. Há jazidas que estão em exploração, a
concentração do mineral foi drasticamente reduzida. Isso implica um aumento
brutal de custos das mineradoras devido a essa redução nos graus
minerais.
Custos altos e custos
imensuráveis
Custos de energia mais altos,
custos ambientais mais altos, maior uso de água, e isso fez com que as
mineradoras não fossem capazes de cumprir seus objetivos. Em 2021, foi
percebido um déficit de 2%. Hoje ainda se fala em cobre, o que implicou um aumento de preço de 25%.
Perceba que 2% não é nada se tivermos um déficit de 50% como se espera no
futuro, porque o que pode acontecer é preocupante. Além disso, o que
vemos é que o investimento custa muito, já que o planeta está cada vez mais
esgotado. Os custos de investimento também estão aumentando e, desde
2000, que estavam em 4 mil dólares por tonelada, multiplicaram-se quase por 10,
chegando até a 44 mil dólares por tonelada hoje.
Apesar de tudo isso, ainda há
uma desconexão muito grande entre o físico e o financeiro, pois, se o preço
da matéria-prima está baixo, porque não é investido, não há incentivo para
investir em novos depósitos. E mesmo com um aumento de preço para 10 mil
dólares a tonelada de cobre, estamos em 8 mil dólares ou mais, porque as
reservas não devem aumentar significativamente, o que torna o problema ainda
pior.
Insisto: isso é do ponto de vista
físico, não estou considerando aqui os problemas sociais, que são muitos e dos
quais sei que vocês têm abordado aqui no IHU neste ciclo de conferências.
Matéria-prima
latino-americana
Há quem pertencem todos esses
depósitos? Quem tem essas matérias-primas? Eu estou na Europa e tenho
que lhe dizer que, aqui, se não os tivermos, iremos buscar onde for preciso.
Podemos até ter algumas dessas reservas na Europa, mas também não queremos
extraí-las. E quem são os maiores fornecedores para a Europa? Há uma
análise do fluxo de materiais que indicam que essa matéria-prima vem da
América Latina. Há, ainda, uma tese de doutorado que aponta que são o Brasil, Chile e México, que são ótimos produtores.
De fato, a América Latina é um
dos grandes produtores de matérias-primas, enquanto na Europa é exatamente o
contrário, nós somos importadores dessas matérias-primas que são essenciais.
Então, importamos aquelas matérias-primas essenciais da América Latina e,
também, da África, além de outros lugares.
Toda essa matéria-prima vem para
cá, a Europa. Mas, na imagem acima é possível ver essa seta vermelha. Ela
indica, também, que as matérias-primas vão principalmente para a Ásia e, em
particular, para a China, que os usa, refina-os para mais tarde exportar
para o resto do mundo, incluindo a América Latina. Ou seja, voltam como
produtos refinados, matérias-primas refinadas ou tecnologias diretas.
Pistas da
termodinâmica
A partir desse cenário,
levantamos algumas questões: há minerais suficientes concentrados na
natureza para suprir a crescente demanda? Podemos viver de materiais
reciclados? Como? Fizemos essas perguntas no meu grupo de pesquisa e, iniciando
a pesquisa com meu pai Antonio Valero, nos
perguntamos se a termodinâmica, já que somos termodinâmicos, pode nos
dar algumas pistas sobre isso.
Como podemos pensar sobre o papel
dos minerais? A verdade é que o custo quantifica as perdas de recursos
experimentadas para produzir algo, e custo e preço não são a mesma coisa. Nós
valorizamos os recursos com o pagamento ao dono do terreno, por exemplo, onde
instalamos um aerogerador. Pagamos para esse proprietário, mas a natureza não
dá absolutamente nada? Como queremos lucrar e não podemos quantificar todos
os danos de nossas atividades? Eventualmente, poderíamos assumir alguns
custos e poderíamos externalizar o resto dos custos.
No entanto, a termodinâmica diz que sempre que realizamos alguma
atividade, sempre destruímos recursos.
E os atos de destruição de
recursos são algo que chamamos de irreversibilidade. Temos que ter
clareza sobre esse conceito e que todo benefício econômico assumido está sempre
associado a uma irreversibilidade termodinâmica. E essa
irreversibilidade será tanto maior quanto menos internalizarmos os custos de
desperdício e os recursos. Assim, estamos de alguma forma trapaceando porque
não estamos levando em conta o que estamos causando, o que o sistema
econômico faz sempre que ignoramos esse dano que estamos causando à natureza,
essa irreversibilidade causada pelas nossas ações.
Desafio da
quantificação dos danos
Como podemos quantificar isso? É
necessário que passemos da economia para a termoeconomia, ou seja, para
levantar esse ponto de vista a partir da termodinâmica, onde sua unidade
fundamental não é o dólar, precisamos converter não ao euro, não aos pesos, mas
ao quilowatt-hora. Isso que representa energia.
Escassez: a
importância da compreensão do conceito
Como avaliar a escassez?
Era o que fazíamos, estávamos considerando de um ponto de vista, como eu digo,
físico [não entrando nas questões sociais]. Para isso, é preciso primeiro saber
o que é escassez, porque valorizamos o que achamos difícil de alcançar. A
improbabilidade de encontrar coisas, a singularidade, a distinção do comum
tornam as coisas valiosas. Além disso, disponibilidade não é o mesmo que
abundância. Talvez haja matérias-primas disponíveis, pois podem ser um
subproduto de outras substâncias, mas são muito escassas. Portanto, há que
fazer aqui uma distinção.
Tradução livre da citação acima de Herman Daly: "A economia é uma subsidiária integral do meio ambiente, e não o contrário".
De leis da
termodinâmica a leis da economia
E como podemos abordar do ponto
de vista termodinâmico? Herman Daly (1938-2022)
[economista ecológico estadunidense, professor da Escola de Política Pública de
College Park, nos Estados Unidos, foi economista chefe no Departamento
Ambiental do Banco Mundial, onde auxiliou a desenvolver princípios políticos
básicos relacionados ao desenvolvimento sustentável] diz que a primeira e a
segunda leis da termodinâmica devem ser chamadas de primeira e segunda leis da
economia. Isso porque ele acredita que, sem essas leis, não haveria
desabastecimento e sem escassez não haveria economia.
*
A primeira lei diz que a energia não é criada nem destruída. Se
pudéssemos criar energia indefinidamente, não haveria escassez ou poluição.
Então, estamos sujeitos a essa primeira lei.
* O
que a segunda lei nos diz é que todos os processos tendem à
degradação se não os alimentarmos com energia. Sem a degradação dos
sistemas, poderíamos reciclar indefinidamente, mas, infelizmente, como veremos,
não é assim que funciona. Estamos de alguma forma sujeitos às leis da
termodinâmica, e a economia não está ciente disso ou não quis estar ciente.
Nicholas
Georgescu-Roegen (1906-1994), considerado o pai dos economistas
ecológicos, em seu grande livro The Entropy Law and the Economic Process
(= A Lei da Entropia e o Processo Econômico – Harvard University Press,
1971), que quase lhe valeu o Prêmio Nobel, comentou que esta segunda lei da
termodinâmica é a base da economia em todos os níveis.
NICHOLAS GEORGESCU-ROEGEN
Os economistas ecológicos têm
muita clareza de que temos que vincular a economia, de alguma forma, à
termodinâmica e não o contrário. Acontece que, hoje, o segundo princípio só
é usado de forma metafórica e isso nos impede de ter uma contabilização útil e
que permita visualizar o grau de degradação de recursos. Há uma diferença muito
clara entre princípios termodinâmicos e princípios econômicos.
Na primeira lei, a energia
não é criada nem destruída, mas a primeira lei, digamos, econômica, seria
contra a termodinâmica. Nela, reside a ideia de que o dinheiro pode ser
impresso do nada, no entanto, quilowatts-hora, a energia, não. Portanto, a
conclusão imediata é de que o dinheiro nunca pode ser um indicador
apropriado.
Dado o segundo princípio,
sabemos que toda atividade pode gerar lucros de acordo com a economia, mas,
como disse, ela sempre destrói recursos, sempre há irreversibilidade e a
consequência disso é de que...
... em um planeta com recursos limitados, em um planeta finito, o
crescimento infinito é impossível.
Só que temos vivido todos
esses séculos de costas para essa realidade física e, de alguma forma, temos
de voltar e entender quais são os limites do planeta.
Na imagem [acima] há um exemplo
da assimetria entre termodinâmica e economia. Antonio
Valero, junto com outro grande economista ecológico espanhol, José Manuel Naredo (1942), desenvolveu uma regra que
diz que, na construção de uma casa, o maior consumo energético ocorre nos
materiais da obra, que, por sua vez, são o que menos custam por unidade de
energia consumida. No entanto, no final do processo, o esforço energético para
assinar a escritura da casa é dito que o que mais custa é em dinheiro, 10% na
Espanha, por exemplo. Portanto, o que temos que fazer é achatar essa regra do
cartório que quantifica a escritura de uma casa e levar em conta que o que
custa mais para a natureza precisa custar mais economicamente. Precisamos
pagar uma compensação maior que leve a natureza em conta.
Exergética e a
possibilidade de quantificar o custo para natureza
E como fazemos isso? Através da exergética [diferencia a qualidade da energia, ou
seja, o seu emprego no uso final, com menor degradação da energia],
reconhecendo todas essas deficiências da economia e reconhecendo que a
termodinâmica pode ser um bom instrumento para avaliar essa perda de riqueza
mineral e, em geral, perda de riqueza de recursos. Isso até agora
era um problema, pois falávamos apenas metaforicamente. Podemos usar a exergia [capacidade de transformar energia em
trabalho, ou seja, em energia organizada] como uma ferramenta contábil.
O que é a exergia e
como a usamos para avaliar recursos?
Imaginemos uma bola no topo de
uma colina. Se der um empurrãozinho nessa bola, ela vai descer
irreversivelmente até chegar ao chão. Em termodinâmica, ao chão é o
estado de equilíbrio ou o que se chama de estado
morto. Quanto mais para o alto for a bola, quanto maior a
diferença entre o topo do morro e o solo, mais rapidamente essa bola correrá.
Se fosse uma cachoeira, como a Catarata do Iguaçu, com maior inclinação para
instalação de uma turbina hidráulica, maior quantidade de energia poderia obter
daquela cachoeira.
O que a exergia mede é a
qualidade dos sistemas em relação a um ambiente de referência. Neste caso, a
energia potencial coincide com a exergia, mas em outros casos em que temos
um desequilíbrio de temperatura, ela não é equivalente. E, em geral, o que
está concentrado no final acaba se diluindo.
Tudo o que se afasta do estado
morto daquele ambiente de referência tem exergia. Uma cachoeiratem exergia, porque está a uma certa
altura e porque tem água pura em movimento. Uma geleira
tem exergia porque ela tem uma temperatura diferente da temperatura ambiente.
Mesmo uma mina tem exergia porque está
concentrada e seus recursos não estão dispersos na crosta terrestre.
Claro, descendo o morro é muito
fácil a bola rolar. Mas subindo, se tivermos a bola no estado estável de
referência [na parte baixa da colina]?
Sair deste ponto mais baixo
para uma altura determinada custa muita energia. Conseguimos visualizar
isso com o que acontece na mineração. Numa mina que é abundante, há o problema
de ela estar perto do topo do morro. O topo do morro seria 100% de concentração
de minério refinado. Enquanto uma mina que é menos abundante, por exemplo, uma
mina de cobre, é mais baixa que aquele morro. E
uma mina que é muito pouco concentrada, por exemplo, ouro,
já está muito próximo daquele estado de equilíbrio, daquele estado morto.
O que podemos compreender é que uma
mina nos economiza muita energia por ter os minerais concentrados e não
dispersos na crosta. E a termodinâmica também nos revela que quanto mais
exausta estiver a mina, mais nos aproximaremos desse estado de equilíbrio e,
portanto, os custos para se levar a bola para cima da colina disparam.
O conceito de Thanatia
O que é Thanatia? É precisamente esse solo.
Em grego, thanato significa morte, o estado morto da
termodinâmica. Thanatiaé um planeta, um modelo de planeta esgotado em
matérias-primas. Ou seja, teríamos extraído todas as matérias-primas e as
teríamos usado e dispersado por toda a crosta, de modo que não temos mais
esses recursos minerais concentrados e os custos para colocar a bola de volta
no morro aumentam, disparam e são inviáveis.
Dessa forma, conhecendo Thanatia,
sabendo aquele ponto inicial para avaliar a perda de capital mineral, podemos
fazer uma estimativa do estado atual das minas, saber se as minas atuais valem
a pena. Mas sabemos que as extraímos e produzimos primeiro as matérias-primas
refinadas para produzir os diferentes produtos.
Uma vez que usamos esses produtos
e depois os levamos para o aterro, mais cedo ou mais tarde eles se dispersam na
crosta e acabam parando naquele solo de referência, nesse ponto de referência
denominado Thanatia. O que estamos fazendo é justamente avaliar a
evolução, o caminho que estamos seguindo em direção ao Thanatia.
Na imagem acima, temos uma
representação da concentração de um elemento frente à estratégia e aos custos
necessários para extrair esse elemento. Enquanto estivermos na zona verde, ou
seja, altas concentrações do mineral, o custo da mineração será relativo. No
entanto, à medida que as minas se degradam, subimos nessa curva que é
exponencial. No atual momento, nos aproximamos da zona amarela, porque já é
rentável extrair minerais dos próprios aterros. E, quando estivermos no limite,
chegaríamos à zona vermelha. Seria quando estivéssemos em Thanatia.
Na medida em que as minas são
degradadas, esse bônus que a natureza nos dá de graça, por ter a mina
concentrada e não dispersa, vai diminuindo, enquanto os custos associados à
mineração aumentam. Com esse pensamento e com essas ferramentas, podemos estabelecer
quais os elementos que são realmente raros na natureza e, assim, podemos
classificá-los, porque não é a mesma coisa ter uma tonelada de cobalto e ter uma tonelada de ferro, por exemplo. O cobaltoestá muito mais na zona vermelha [da imagem acima], enquanto o ferroestá em verde, é muito mais abundante
que o cobalto.
Outra consequência associada ao
segundo princípio da termodinâmica e da mineração é o que exponho na imagem
abaixo.
Aqui analisamos milhares de minas
de cobre, ouro, zinco ao redor do mundo e observamos como a energia
aumenta dependendo da redução do grau mineral. Não é surpresa que a energia
baseada na energia associada à mineração aumenta exponencialmente com a redução
da lei de mineração, e, também, como a mineração é baseada em combustíveis
fósseis, precisamos de mais matérias-primas para a transição energética.
Por outro lado, as leis
minerais estão diminuindo, porque a energia está disparando. E se essa
energia é fóssil, as emissões, pelo menos associadas à mineração, vão
aumentar. Isso parece um paradoxo, porque estamos tentando fazer uma
transição energética pela substituição de fontes fósseis por minerais e, por
sua vez, os minerais precisam de fósseis que, por sua vez, produzem emissões
de CO2. Portanto, estas questões não foram levadas em conta nos
cenários de transição e me preocupa, sinceramente, porque não acredito nos
números que estão divulgando.
Como as minas são limitadas a
este ritmo de produção, o que determinamos é quando será atingido o pico de
produção destas matérias-primas essenciais. Fazemos isso também em termos
termodinâmicos para considerar a qualidade de cada um desses recursos. Considerando
as maiores quantidades de matérias-primas que poderiam estar disponíveis no
futuro, pois o pico poderia ser atingido antes do século XXI, exigimos
mais do que podemos dar.
Se fôssemos considerar as reservas, ou seja, a quantidade de
matérias-primas que há disponível, já teríamos atingido o pico.
Então, a questão é: estamos
nos aproximando de Thanatia?
O que essa transição ecológica implica?
A transição e suas
implicações
Vimos que efetivamente temos
limites minerais para a transição ecológica e a revolução industrial.
Esses, na imagem abaixo, são os cenários da Agência Internacional de Energia.
Podemos perceber como já tendemos
para uma redução do carvão, do gás natural ou do petróleo
em favor das energias renováveis. Isso implicará um maior consumo de
matérias-primas, que são escassas e que, como disse, são extraídas com
recursos renováveis. Portanto, hoje não estamos analisando essa perda de
capital mineral.
Somando essa visão termodinâmica
dos recursos, o que teríamos de informação hoje é que os minerais não
energéticos constituem uma perda de capital mineral ainda maior do que a do
carvão, do gás natural ou do petróleo, e não estamos levando isso em conta.
Isso é grave, porque simplesmente eles são essenciais para a transição
energética.
Como enfrentar a
situação
Diante disso, o que temos que
fazer para evitar esses gargalos e, para sempre, tentar continuar nos
desenvolvendo rumo às tecnologias não carbonizadas? Obviamente, uma das
estratégias é continuar investindo em novos depósitos, e isso é uma
realidade. Novos depósitos, reciclagens [de reaproveitamento de
minerais], vão ser buscados em todos os lugares. Na Europa, há uma
regulamentação que diz que temos de deixar de depender de países terceiros e
que temos de explorar os recursos que temos aqui.
Outra boa estratégia é tentar
usar os recursos que já temos na forma de produtos, ir para uma economia circular. A questão é que não estamos
reciclando em todos os casos. E se olharmos para as taxas de reciclagem,
veremos que não reutilizamos efetivamente tudo. O que estamos
recuperando são os mais abundantes, como ferro, alumínio e chumbo. Como
há uma diversidade de novas tecnologias, temos um número maior de produtos e
materiais. Eles têm características muito melhores com redução de tamanho e
peso.
Observe o caso dos celulares,
que são impossíveis de serem reciclados totalmente. Paradoxalmente, em um
estudo que fizemos há muitos anos com um instituto alemão, vimos que essas
tecnologias que parecem muito avançadas também são eficientes do ponto de
vista energético, são menos sustentáveis do ponto de vista do uso de
materiais.
Uma lâmpada incandescente,
que na Europa já não são mais produzidas, continha um filamento de tungstênio,
uma tampa de alumínio, um pouco de vidro, mas que era muito ineficiente em
termos energéticos. Apareceram as lâmpadas fluorescentes, que são 5 vezes mais
eficientes que as incandescentes ou LEDs, que são até 10 vezes mais eficientes
que as incandescentes. No entanto, uma lâmpada LED é composta degálio, índio, arsênio, um monte de metais raros. A
fluorescente, então, também tem metais raros, fósforos, mercúrio e acontece que
eles nem sempre são reciclados. O mercúrio é
recuperado, mas não porque é usado, simplesmente para evitar a poluição de rios
e terras.
Assim, estamos vendo uma maior
diversidade de elementos para cada tecnologia, quanto mais avançada essa
tecnologia, mais recursos estamos investindo. Surge a quimiodiversidade e isso simplesmente impede a
reciclagem, isto é, recuperar esses materiais.
Mixologia
Isso tudo porque na mixologia
metálica é como se misturássemos açúcar e sal. É o equivalente ao morro,
descer é muito fácil, mas subir é muito complicado, exige muito mais esforço.
Ou seja, misturar é fácil, mas desmisturar é difícil. Misturar açúcar e
sal é fácil, mas desmisturar é difícil. Então, a mixologia implica perdas
irreversíveis no fim da vida. Portanto, se quisermos recuperar o aço de um produto, ao longo do caminho perderemos
minerais tão importantes como platina, cobre, ródio, paládio, prata etc.
Atualmente, a maioria dos
processos de reciclagem enfoca na recuperação do aço, por exemplo. Devemos
reconhecer que, termodinamicamente falando, a economia circular é um belo
mito, não existe porque em cada volta sempre perdemos uma quantia de energia.
É por isso que falamos de economia espiral. Na
verdade, ainda estamos longe de ter uma economia espiral efetiva, mas se
não formos capazes de conceber estes produtos, tendo em conta o fim da vida
útil, essas perdas vão aumentar.
Saídas possíveis na
economia em espiral
Vendo isso tudo, as ineficiências
que temos nos processos, vendo que as mudanças climáticas são um problema
realmente importante, concluímos que precisamos aspirar a uma economia
descarbonizada porque os materiais, as matérias-primas, são tão ou mais
importantes do que reduzir os combustíveis fósseis. No entanto, não podemos
ignorar essa economia em espiral. Devemos caminhar para uma “economia inspiral”, porque temos que repensar
a economia desde o início, sobretudo em reparar, redesenhar, reutilizar,
regular, reformar, reciclar, repensar, reduzir, rever, caminhar para um
reconhecimento e tornar os recursos não renováveis em renováveis. Para isso, temos
que apostar primeiro na procura, apostar menos na desmaterialização, menos é
mais.
Se estivermos caminhando para a
minimalização, isso também impedirá a recuperação de matérias-primas, de
matérias-primas escassas. Então, temos que desmaterializar, mas sempre
pensando no fim da vida, na substituição de materiais críticos por abundantes.
A consciência da reutilização e a reciclagem tornam os produtos robustos,
modulares e de fácil desmontagem. Aprendamos com a natureza, que não produz
resíduos e vive e se regenera exclusivamente pela ação do sol.
Em suma, na demanda, o que deve ser feito é reduzir drasticamente a
demanda, reduzi-la e avançar para novos modelos de consumo.
Isso tudo é algo que ainda não
internalizamos, mas, se fizermos as contas, veremos que não podemos
continuar extraindo indefinidamente. Quanto à oferta, obviamente, é
necessária uma infraestrutura metalúrgica para a recuperação de materiais
secundários, porque hoje estamos tentando recuperar materiais de produtos com
tecnologias que não estão de acordo com os materiais que queremos reciclar.
Porque cada produto tem características químicas que são extremamente
complexas e que dificultam a extração de recursos os desmontando.
Precisamos pensar nos produtos
que temos dentro de nossas fronteiras. Importamos principalmente da China, seja
na Europa, seja na América Latina, por que não tentar recuperar o que já há
por aqui? Para isso, precisamos de uma infraestrutura metalúrgica
eficiente nesse sentido.
Também é verdade que, se a
procura continuar a aumentar, nunca poderemos prescindir da exploração mineira
e é por isso que a União Europeia está promovendo a exploração mineira no seu
próprio território para evitar a dependência de outros países. Aqui, aparece o efeito Nimby, que na América Latina vocês não têm,
temos mais na Europa, onde dizemos “que não sejam extraídos em outros países
poluidores, pois vou me dedicar a produzir de forma limpa”. Então, aqui
aparecem as contradições. Queremos novos aparatos tecnológicos, mas não
queremos novas minas. E, por isso, temos que ter muito cuidado, porque
sabemos de todos esses problemas de extrativismo que estão acontecendo,
especialmente na América Latina e em países africanos, onde há abusos diretos e
não só ao meio ambiente, mas também às comunidades indígenas, e assim por
diante.
E, claro, o que temos que fazer é
valorizar. Valorizar adequadamente o capital mineral e isso não pode ser
feito em termos de dinheiro, como vimos.
Da dependência fóssil
à dependência de matéria-prima
Evitar a dependência de
combustíveis fósseis implicará aceitar a dependência de matérias-primas e sem
materiais não há energia, mas sem energia não há materiais e soluções.
Embora eu tenha apresentado uma visão muito física e poderia ser rotulada de
reducionista, a verdade é que as soluções são multidimensionais e muito
complexas, já que entram em jogo os problemas sociais da mineração, que são
muitos e muito preocupantes.
Como visto acima, ao longo da
existência do ser humano vemos como começamos essa dependência de minerais na
Idade da Pedra, continuamos com a Idade do Bronze e vemos como a intensidade do
uso de materiais raros aumentou. Esse processo continuou com a Idade do Ferro,
a Idade do Carvão, a Era do Petróleo, a Era Nuclear. Podemos dizer que
estamos na era da tabela periódica. Se continuarmos assim, poderemos voltar
à Idade da Pedra ou à Idade de Thanatia.
Enfim, temos muitos desafios pela
frente. Claro que é um desafio muito importante. Ele não é o único. Juntos
temos que lidar com isso e ter a consciência de quais são os limites do planeta.
Assista
a íntegra da conferência, clicando sobre a imagem:
Fonte:Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Terça-feira, 26 de dezembro de 2023 – Internet:
clique aqui (acesso em: 27/12/2023).