A
sexualidade no Antigo Testamento
Roberto
Mela
Padre dehoniano italiano, teólogo e professor da Faculdade
Teológica da Sicília – Publicado em «Settimana News» (Itália), 17-06-2023 |
IRMTRAUD FISCHER - autora do livro comentado neste artigo |
Um tema
sempre atual e remanescente
A sexualidade é, sem sombra de
dúvida, uma dimensão pervasiva da existência humana. Diz respeito a todos
os âmbitos da vida do homem e da mulher, de todas as idades e condições
sociais. Marca o pensamento, os afetos, o corpo, as mais diversas ações
realizadas ao longo da vida humana.
Irmtraud
Fischer, professora de Antigo Testamento da Faculdade de Teologia
Católica da Universidade de Graz (Áustria) – já atuante em Viena, Bamberg e
Bonn – examina com precisão e com crivo apaixonado e contundente as
várias manifestações que a sexualidade encontra no interior do Antigo
Testamento, tanto nos textos jurídicos quanto nos narrativos.
Como mulher empenhada no ensino,
mas também no campo eclesial, ela lamenta várias vezes como o tema da
sexualidade foi tratado (ou ignorado) no ensino dado aos discípulos de Jesus,
favorecendo muitas vezes a submissão da mulher e uma visão machista das
relações sexuais e afetivas.
Muitas vezes, deixamo-nos
guiar pelas afirmações bíblicas marcadas pelo estado pós-lapsário (depois do
pecado das origens), reafirmadas em alguns textos do Novo Testamento, que
não favoreceram uma visão serena e positiva da sexualidade da relação paritária
homem-mulher e do prazer que o exercício da sexualidade em suas várias
expressões pode oferecer para uma vida feliz e equilibrada.
Em dez capítulos, a
estudiosa aborda os vários aspectos da expressão da sexualidade humana tal como
está presente no Antigo Testamento, chegando a avaliações que, em um caso ou
outro, às vezes podem até não ser totalmente compartilhadas, mas que pretendem
abrir uma janela de diálogo também no que diz respeito às relações entre
pessoas do mesmo sexo. Um texto realmente interessante, muito documentado,
raciocinado com a mente e com o coração, sem se deixar restringir por
pré-compreensões consolidados ao longo dos séculos. |
Original alemão. Tradução do título e subtítulo: "Amor, vício, luxúria e sofrimento: a sexualidade no Antigo Testamento". Publicado pela Kohlhammer, em abril de 2021 |
Condições
socioculturais, normas jurídicas e conceitos antropológicos
O primeiro
capítulo (pp. 9-20) trata das áreas
lexicais e problemáticas que descrevem a sexualidade humana, as representações
iconográficas dos atos sexuais no Antigo Oriente Próximo – inexistentes no
Antigo Testamento – e da possibilidade e da necessidade de resgatar a mensagem
bíblica no mundo de hoje, atualizando os textos canônicos. O segundo capítulo se
concentra nas condições socioculturais e nas normas jurídicas relativas à
sexualidade (pp. 21-44). Estudam-se a celebração do casamento e as suas formas,
as relações sexuais legítimas, as proibições de casamento, o incesto, as
relações e os atos sexuais tabus e o fenômeno da violência sexual e sexualizada
no contexto jurídico. Não há textos jurídicos sobre a coerção sexual, mas as
narrativas a mencionam (Betsabeia, Susana etc.).
Recorda-se a denúncia sexual
(a acusação de uma jovem recém-casada de ter tido relações sexuais antes do
casamento), o estupro, com os vários casos relativos a virgens
prometidas ou não em casamento, violências cometidas na cidade ou no campo
etc., o estupro de guerra (cf. Dt 20,5-8; 20,14; Jz 5,28-30 com as
reflexões feitas pelas princesas sobre a legítima violência praticada contra as
mulheres na guerra; cf. também Jz 4,12; 7,27; 9,2).
O terceiro
capítulo foca os conceitos
antropológicos, estudando a sexualidade como conditio humana nos relatos
da criação (pp. 45-58). Em Gn 1-2, a sexualidade é vivida de modo igualitário
como ordem divina da criação. Em Gn 3, ao contrário, delineia-se a sexualidade
hierárquica como ordem da natureza humana da criação decaída. Muitas
legislações posteriores no âmbito eclesial se referiram a essa última condição,
esquecendo a beleza e a ordem igualitária da relação homem-mulher desejada por
Deus não só no que diz respeito à procriação, mas também à vida afetiva de comunhão
paritária no casal humano. |
Pintura: "Cântico dos Cânticos" por Egon Tschirch, pintor alemão, em 1923 |
Instrução dos pais e
relações sexuais bem-sucedidas
Alguns textos relatam a instrução
dos pais como educação sexual e doutrina do matrimônio (capítulo quatro, pp. 59-66). Encontramos o eterno
clichê das mulheres libidinosas que seduzem homens inocentes (cf. Pr 7 e a
mulher estrangeira), mas também educação ao prazer erótico (cf. Pr 5,15-20) e
educação para a esposa ideal (cf. Pr 19,14; 27,17; Eclo 42,12; Pr 31,10-31 com
a apresentação da mulher não apenas como uma esposa terna, mas também como uma
mulher completamente independente e com propriedades e autoridade legal).
Vários textos refletem, como
sempre, uma sociedade patrilinear e androcêntrica, recomendando a
expectativa da rigorosa fidelidade de uma mulher, a vigilância sobre a
integridade e a virgindade das filhas, sobre sua educação à fidelidade e à
maternidade. Alguns textos mostram mulheres que não são passivas no campo da
sexualidade (cf. Raquel em Gn 30,1 e Lia em Gn 30,16).
A beleza identifica a esposa
ideal (cf. Gn 12,11.14; 24,16; 29,17), mas pode representar um perigo se
não for a da própria esposa. O Cântico dos Cânticos mostra que a beleza não se
baseia apenas em critérios externos, mas também surge por meio da relação com a
pessoa amada. O quinto capítulo analisa as relações sexuais bem-sucedidas (pp.
67-78), mesmo que o Antigo Testamento muitas vezes fale apenas de coisas
trágicas ou ruins sobre os casamentos (infertilidade, abandonos, divórcios,
incestos etc.).
Às vezes, narra-se apenas um amor
unilateral. O Antigo Testamento também narra a vida feliz do escravo que
prefere viver com o senhor mesmo depois de ter sido liberto. Às vezes,
apenas uma das partes é feliz no casamento. Por exemplo. Jacó ama, mas
Raquel não corresponde; Micol ama Davi unilateralmente, e não é evidente que
Séfora ame Moisés (cf. Ex 18,2, “mandou de volta” pode aludir ao
divórcio ou a uma longa separação).
Quanto às relações amorosas
homossexuais satisfatórias, a estudiosa lembra os casos de Rute com
Noemi e Jônatas com Davi. Diz-se de Rute que ela se “colou” a
Noemi (verbo usado para a união sexual em Gn 2,24), e sobre Davi se afirma que
o amor por Jônatas era para ele mais precioso do que o das mulheres. A
estudiosa assume como evidente nos dois casos uma relação homossexual. Sobre
Davi e Jônatas, discutiu-se muito, mas sobre Rute e Noemi a questão me parece
nova e questionável (e baseada em um verbo...). |
"Noemi e Rute" - Originalmente uma pintura multimídia, agora disponível como tela giclée, autoria Yael Harris Resnick |
Expectativas
frustradas, esforços, irregularidades e casos particulares
O capítulo
sexto fala sobre a expectativa
frustrada, o desejo que desaparece e a vida conjugal cansativa (pp. 79-100). Uma
grande expectativa pode suceder a uma grande desilusão. A autora analisa Gn
24 (Rebeca e Isaac) e Jz 14 (a mulher de Tamna em relação a Sansão). Ela estuda
também as palavras pregnantes e a frustração matrimonial como lembrada no livro
dos Provérbios. Fala-se de situações e de relações frustrantes, marcados pelas
brigas e pela incompreensão, com uma avaliação muitas vezes negativa da mulher.
A visão positiva de Pr 31,10-31
pode ser contrabalançada por algumas afirmações misóginas do Eclesiastes, mas
que podem ser ambíguas, como as citações tiradas de outros e com as quais ele
se confronta em citações não identificadas (cf. Ecl 7,26-29). Detalhes
narrativos de uma vida conjugal problemática estão presentes em textos que, no
entanto, têm como principal interesse a realização e a transmissão das
promessas divinas (cf. os patriarcas) e as problemáticas dinástico-políticas
(histórias sobre os inícios do reino que insistem nisso, mais do que na vida
sexual satisfatória dos primeiros governantes).
Cenas de um casamento difícil
sob a promessa são aquelas oferecidas por Abrão e Sara em Gn 11,29ss e Gn
20 (Abrão nega que Sara seja sua esposa). Gn 16,1ss recorda o grave problema da
esterilidade de Sara e a condução de Agar a Abrão para que tenha um filho dela.
Se Abraão tinha resolvido seu problema, agora Sara resolve o dela...
Um exemplo de amor não
correspondido é o de Jacó por Raquel (cf. Gn 29,9-30) e o de Micol por
Davi (cf. 1Sm 18,20). A autora afirma que Davi, no fundo, amava apenas
Jônatas. Nos textos sobre Davi, a sexualidade legitima o poder e não a
função reprodutiva, como, em vez disso, enfatiza-se nos relatos sobre os
patriarcas. Davi tem inúmeras esposas e concubinas, mas, no fim da relação com
Micol, os dois não têm mais nada a dizer um ao outro. Micol não terá filhos:
não por ser estéril, mas porque Davi não se une a ela (cf. 2Sm 6,23).
Uma atenção apagada entre
casais é representada por Abigail e seu marido “estúpido” Nabal (cf. 1Sm
25). Fria, embora menos conflituosa, é também a relação conjugal entre a mulher
de Suném (cf. 2 Rs 4,8-37) e seu marido, sobre o qual muito pouco se fala, em
comparação com tudo o que é narrado sobre a relação da mulher com o profeta
Eliseu. O homem parece apático e participa apenas marginalmente da vida. A
relação – segundo a autora – é provavelmente mais uma adaptação do que um
verdadeiro matrimônio.
O capítulo
sétimo analisa dificuldades,
irregularidades e casos particulares (pp. 102-126). Nessas páginas, fala-se
da esterilidade e da impotência (Sara e Abraão; Manué e sua esposa em Jz
13; Ana em 1Sam 1,2). A única menção à esterilidade masculina é feita para
Abimelec em Gn 20,17s. Também são estéreis Maalon e Quelion, maridos de
Rute e Orpa. Davi torna-se estéril na velhice (cf. 1Rs 1,1-4).
Considerando-se a construção
potencialmente polígina do matrimônio [= estado de um homem casado
simultaneamente com várias mulheres], no Antigo Testamento pode-se falar de
infidelidade sexual apenas quando uma mulher casada dorme com um homem que não
seja seu marido. A infidelidade é sempre qualificada como adultério. A
única narração detalhada de um adultério é a de Davi com Betsabeia (cf. 2Sm
11,1-27). Tamar é acusada disso, embora não tenha desfrutado da lei do levirato
por parte de Judá (cf. Gn 38,6-11).
A autora estuda a formação do
harém, devido a uniões régias interessadas em tecer relações políticas (cf.
Davi e Salomão). As mulheres do harém podem desempenhar papéis políticos
importantes (cf. Betsabeia). Salomão viola os ditames da Torá referentes ao
rei, exibindo poder e pompa excessivos. Ester 1 e 2 mostram o rígido cerimonial
que rege a vida do harém e o processo de recrutamento das meninas: o único
critério é a beleza.
Irmtraud
estuda os textos sobre amor pago ou prostituição. Recorda-se a proibição
aos sacerdotes de se casarem com uma prostituta. Os textos jurídicos tratam de
situações especiais que regulam a prostituição e seus proventos, enquanto os
textos narrativos falam de frequentações de prostitutas por parte de homens
(famosos). Nos textos proféticos, o tema é frequentemente incluído tanto nas
metáforas quanto na ameaça de punição (cf. Am 7,17). 1Rs 3,16-28 narra o
julgamento salomônico entre duas prostitutas que lutam por um filho.
Muitas vezes, a paternidade
não pode ser determinada com precisão. Jefté é filho de uma prostituta e
foi abandonado por seus familiares (Jz 11,1). Js 2 fala de Raab e de sua
integração social, tornando-se depois mãe de Boaz e entrando na genealogia de
Jesus (cf. Mt 1,5). Existia uma prostituição cultual, com prostitutas
sagradas também (cf. 1Rs 15,12ss, em que se narra que o rei Asa as elimina;
2Rs 23,7 menciona uma casa no templo dedicada aos qedešim – diz-se assim
cinco vezes nas pp. 120-121 –, prostitutas sagradas de ambos os sexos). Sobre
os homens lascivos, falam Jr 5; Os 4,11-14; Am 2,7.
Sansão encontra uma mulher
“justa” em Tamna – Jz 14,3: é assim que a autora traduz, e não com “que eu
gosto” – para provocar um conflito militar, e essa intervenção vem também de
YHWH (v. 4). Sansão vai também ao encontro de uma prostituta em Gaza (Jz 16,1)
e depois de Dalila (cf. Jz 16,4). Sansão representa para Irmtraud o homem que vive sua sexualidade de forma
a não se deixar vincular: “Um clássico playboy, sexualmente, mas também
politicamente, mas cuja predileção pelas mulheres venais acaba por se tornar
fatal” (p. 124).
Por fim, a autora recorda o abuso
do álcool e sua relação com a sexualidade. O álcool pode favorecer um
ambiente agradável para viver o sexo, mas pode tornar a pessoa agressiva,
licenciosa, induzir à promiscuidade (Os 4,11-14), produzir a perda do
autocontrole e a incapacidade de realizar o ato sexual. Seu abuso arruína
as famílias e leva a comportamentos antissociais (1Sm 25,36: Nabal). |
"Davi e Betsabeia" - pintura à óleo de 1562 - Museu do Louvre (Paris) - Autoria de Jan Matsys, pintor flamengo que viveu de 1509 a 1575 |
Sexualidade e festa
O capítulo
oitavo fala da relação entre
sexualidade e festa, afirmando que sexualidade é festa (pp. 127-136). O prazer
inebriante de uma união sexual é bem ilustrado pelo Cântico dos Cânticos.
Elogia-se o amor novo e inebriante de dois jovens, dos quais nenhum vínculo
matrimonial é mencionado.
A união sexual não é apenas
genitalidade, mas também abrange todo o mundo das pessoas, implicando uma
festa para todos os sentidos. No livro, fala-se do tato, da audição, do
olfato (com toda uma série de referências a perfumes e bálsamos), da visão. Não
se deseja apenas “provar repetidamente o prazer sexual, mas sim o desejo de
permanecer constantemente no clima de felicidade com a pessoa amada e de
experimentar sua unicidade (2,3; 6,9)” (p. 131).
A autora se debruça para
descrever a figura dos amantes do Cântico dos Cânticos, descritos entre o
desejo ardente e a satisfação. Trata-se de textos de alto teor erótico,
exaltando o amor sexual e a intimidade pessoal. É fonte de espanto –
nascido sobretudo apenas a partir do século passado – que um livro da Bíblia
seja inteiramente dedicado à sexualidade realizada sem um contexto conjugal.
Hoje, aprecia-se sem falsos pudores esse elogio da sexualidade humana, depois
de séculos de interpretações marcadas pela alegorização (amor entre Deus e a
alma, a Igreja etc.). Os cânticos são postos na boca tanto do homem quanto
da mulher, que se descrevem com admiração mútua e sem sentir nenhuma vergonha
pela nudez assumida. |
"O Cântico dos Cânticos" - pintura de Elena Kotliarker |
Violência sexual e
sexualizada
O capítulo
nono é dedicado à análise da
violência sexual e sexualizada nos textos narrativos (pp. 137-162). Irmtraud distingue sobretudo o assédio sexual
da denúncia sexual. Com o primeiro, “entendem-se ações importunas cujo objetivo
principal não é extorquir atos sexuais com a violência, mas podem servir tanto
para iniciá-los – embora de modo inadequado – quanto para degradar o gênero de
uma pessoa. A denúncia sexual, por outro lado, refere-se à difamação de
uma pessoa, acusando-a de atos sexuais que não cometeu” (pp. 137-138).
Uma vítima masculina de
violência sexual é José pela mulher de Potifar (Gn 37). A autora afirma que
José não é jogado na prisão, mas colocado em uma casa de custódia de
“prisioneiros políticos”, ou seja, personalidades importantes que caíram em
desgraça. José sofre um assédio contínuo no local de trabalho, que no fim
degenera em denúncia sexual por se recusar a obedecer. Se fosse uma escrava,
teria sido estuprada, e ninguém teria vindo em seu auxílio.
Um adultério rejeitado seguido
de uma denúncia sexual é o narrado em Dn 13, a história deuteronômica de Susana.
A versão mais antiga da Susana é mais curta. É “uma narrativa hierárquica que
retrata a comunidade representada por Susana (chamada de ‘a judia’ em Dn 13,22)
nas mãos de chefes imorais da comunidade” (p. 141). Os dois voyeurs são juízes,
mas não necessariamente anciãos. Na versão de Susana, falta a oração de Susana,
e Susana não é representada como “uma pessoa cumpridora da lei, segura de si e
incorruptível, que está disposta a enfrentar sua morte inocentemente de olhos
abertos, mas sim uma mulher intimidada e abatida que invoca seu Deus apenas no
pânico antes da execução da sentença. No entanto – continua a autora – a
narração de ambas as narrativas leva ad absurdum a prática judicial da
falta de separação das funções individuais no tribunal e expressa uma crítica
social de que as mulheres são gravemente desfavorecidas no tribunal,
especialmente quando os anciãos que devem pronunciar o juízo são réus” (p.
144).
Nm 5,11-31 relata uma denúncia
sexual de outro tipo. É o ordálio [= prova judiciária feita com a
concorrência de elementos da natureza e cujo resultado era interpretado como um
julgamento divino; juízo de Deus] do ciúme. “Trata-se aqui de um duplo
caso legal em que um marido acusa sua mulher de adultério, que é culpada ou
inocente [...] O procedimento conclui expressamente com a observação de que,
seja qual for o resultado, o marido é irrepreensível [...] Esse ordálio do
ciúme certamente é uma das leis mais misóginas de todo o Antigo Testamento”
(p. 145), afirma indignada a autora. Basta o ciúme do homem para criar uma
má imagem pública da mulher no templo. O casamento provavelmente já
fracassou, e o homem quer se livrar da mulher sem um divórcio e acordo
correspondentes.
A coerção sexual implica
sempre o constrangimento físico, psicológico ou jurídico e difere do
estupro pela ausência de força física bruta. Como exemplo de coerção sexual, a
autora estuda 2Sm 11 (o episódio de Davi e Betsabeia). O estupro
encontra dispositivos legais em Dt 22,23-29. Não há estupro se ocorrer na
cidade, mas o dado narrativo diz o contrário. Gn 34,1ss fala da violência
sexual contra Dina. A autora lembra como Siquém a sequestra, dorme com ela e
não tanto a “estupra”, mas a “priva dos direitos civis” (*’nh) - como traduz
a autora.
Eloquente é o relato da violência
praticada por Amnon contra sua meia-irmã Tamar, filha de Davi (2Sm 13,1-22). A
conclusão é a perda dos direitos civis (Tamar rasgará a túnica enquanto caminha
pela cidade). Tamar volta para a casa de seu meio-irmão Absalão, que vai
vingá-la. Amnon também implementa uma estratégia de culpabilização da vítima.
O fato gerará a desavença entre os irmãos, e a história se tornará uma
recordação perigosa que não permite que o infrator e seus cúmplices saiam
impunes e revela uma estratégia de encobrimento.
Vários textos jurídicos vetam
o incesto e as relações sexuais com parentes próximos por via matrimonial
(cf. Lv 18; 20; Dt 27,20-23). Em Gn 35,22, encontra-se a brevíssima nota sobre
o incesto de Rúben, que se une a Bala, a concubina de seu pai. Pode haver uma
menção no fato de Abraão apresentar Sara como sua irmã, na realidade como sua
meia-irmã, o que, segundo Abraão, removia o impedimento incestuoso ao
matrimônio (cf. Gn 20,12). A problemática do incesto é tematizada em Gn 38 em
relação a Judá e Tamar, a quem foi negado um marido de acordo com a lei do
levirato.
Gn 19,30-38 narra detalhadamente
o incesto de Ló com suas duas filhas. A autora nota a ausência da mãe e
recorda a suspeita de que a iniciativa deva ser inequivocamente atribuível às
duas mulheres. O texto não critica de modo algum o comportamento das filhas,
que lutam para ter sua prole de forma nada convencional. Outro caso é o do terror
sexualizado, descrito em Gn 19 (Sodoma) e em Jz 19 (a concubina do levita).
A autora afirma que não se trata de episódios de homossexualidade masculina,
mas sim de atos com os quais se pretende esclarecer quem manda na cidade.
Sexo e gênero como cenas de
combate são apresentados em vários textos. A violência sexual contra as
mulheres torna-se um meio de humilhar seus maridos, pérfida técnica de
guerra, ainda muito utilizada. Jz 20,48 lembra que, para vingar a concubina do
levita, matou-se praticamente tudo o que se movia. É preciso sequestrar as
mulheres em Silo para fornecer mulheres aos benjamitas. Am 7,10-17 recorda que
o profeta anuncia que a mulher de Amasias será violentada e sobreviverá
exercendo a prostituição. Jz 5,28-30 relata um exemplo repugnante de
violência contra as mulheres em guerra, quando a mais sábia das princesas
consola a mãe de Sísara, lembrando que sem dúvida os homens que tardam estão se
divertindo depois da vitória, estuprando as mulheres, reduzidas apenas à sua
parte genital (“útero sobre útero”).
Alguns cantos de vitória são
cantados por mulheres poupadas da violência porque seus guerreiros venceram
(cf. Jz 5; 1Sm 18,6s; Jdt 15,12-16,17; Ex 15,20s). A cidade vencida é às
vezes representada como uma mulher violentada (cf. Is 47,1-3), e a vingança
na mesma moeda é invocada com força nos ditos proféticos sobre os povos (cf. Is
13,16; Lm 4,21). |
Ló com as suas duas filhas |
Eros e sexo no
imaginário de Deus
O último
capítulo lembra que eros e sexo
fazem parte do imaginário de Deus presente no Antigo Testamento (pp.
163-174). No Antigo Testamento, há a metáfora do casamento que abrange uma
vasta área do imaginário teológico erótico-sexual para a relação entre o
Deus imaginado como masculino e o povo representado como feminino. A Escritura
apresenta também a imagem divina do marido ciumento, que pune a
infidelidade de sua esposa às vezes por meios marciais, mas depois acusa
aqueles que realizaram essa escalada da violência e vinga os crimes com golpes
de retaliação igualmente drásticos.
Um Deus sexualmente violento e os
discursos proféticos de ameaça e julgamento criam um problema. Em alguns
textos, a divindade reage como um marido ciumento com o divórcio (cf. Jr
3,8) ou com o abandono da esposa (cf. Is 50,1). No entanto, desde o
início, a divindade tem a intenção de recuperá-la.
Outro grupo de textos, bem mais
problemático e amplo, mostra o marido traído reagindo violentamente à
infidelidade da esposa. YHWH pune a mulher com uma vara ou manda outros a
castigarem (cf. Ez 16,23). No contexto das metáforas do casamento em Os 2, o
povo e o país, personificados como mulher, são repudiados sob a acusação de
culpa, utilizando a fórmula oficial do divórcio (cf. v. 4). Athalia Brenner falou de “pornografia profética”.
Hoje em dia, esses textos se
tornam insuportáveis, afirma Irmtraud, pois
apresentam um Deus que age por meio da violência sexualizada, um Deus cuja
história começa com sua esposa infiel que abusou de seus filhos. Segundo a
autora, esses textos “não podem mais ser mascarados como prova de uma justa
punição por parte de um Deus soberano, mas devem ser designados com os
conceitos atuais, pois não se trata apenas de textos históricos, mas também de
textos canônicos que reivindicam validade ainda hoje” (pp. 165-166).
A autora analisa Ez 16 e 23, com
os atos violentos cometidos por YHWH contra seu povo infiel e o cálice cheio de
ira mencionado em Is 51,17-23. Vários ditos dos povos, presentes nos textos
proféticos, mostram YHWH ameaçando os povos que se excederam na violência
contra Israel a retribuírem na mesma moeda (cf. Br 4,5-5,9; em Is 13,16
anuncia-se na Babilônia que as esposas serão estupradas). Alguns textos
mencionam o descobrimento dos genitais (cf. Is 47,2s; Jr 13,22.26 e Na 3,5).
Segundo a autora, uma imagem
repugnante é representada por Is 23,15-18, um oráculo contra Tiro no
qual se anuncia que a orgulhosa e rebelde cidade será obrigada a ganhar a vida
como prostituta durante 70 anos. “Em todos esses textos – afirma a autora –
é comum a problemática explosiva de que eles não apenas refletem as condições
dos casamentos patriarcais no antigo Israel, mas também pode-se presumir que, em
situações de separação, as mulheres – como frequentemente ocorre ainda hoje –
foram expostas à brutal violência masculina, mas também que, ao longo
dos séculos, a violência masculina no casamento pôde ser legitimada pelo
testemunho bíblico de um Deus violento contra as mulheres” (p. 168).
A autora aconselha a não eliminar
esses textos do uso pastoral, mas a lê-los “como memoria passionis, como
textos de terror que não escondem o grito das vítimas, mas obrigam as
comunidades religiosas a refletirem até que ponto eles legitimam a violência em
geral e a porem em movimento um permanente exame de consciência para descobrir
como eles também participam do crime de violência contra as mulheres que se verifica
em todo o mundo e até que ponto são, portanto, cúmplices” (pp. 168-169).
A estudiosa conclui sua obra com
um parágrafo sereno sobre o Deus de Israel apresentado como esposo ardente de
desejo e o matrimônio como repertório de imagens para a teologia da aliança.
Esses textos são o outro lado da moeda anteriormente representada e são
temporalmente posteriores e um contraponto a eles. A retomada das imagens da
esposa pode ser encontrada no primeiro Deutero-Isaías do tempo do exílio; a da
esposa e do esposo sobretudo no Trito-Isaías pós-exílico. Is 49,14-21 e 54,1-8
marcam visivelmente a passagem da imagem da esposa (provisoriamente) abandonada
e sacrificada à da noiva e da mulher acolhida no casamento. |
"Oseias e Gomer" - ilustração no estilo iluminura - "Bible Historiale" (1372) |
A mulher estéril Sião ficará rica
em filhos. A alegria de Sião em 61,10s – e não 62,10s, na p. 170 – também deve
ser lida sob o pano de fundo da vergonha e do insulto. Is 62,1-5 apresenta
Jerusalém coroada com um diadema real, destinatária do afeto e do favor de seu
Deus, não mais abandonada e devastada, mas tornada “senhora” (assim Irmtraud traduz be‘ûlâ). YHWH se compraz de
Jerusalém e se casa (b’l) com a terra. Deus exulta por Sião
como um esposo pela esposa.
Jr 31,2-6 anuncia a reconstrução
e a restauração da vida boa mediante uma declaração de amor. Sf 3,14-17 anuncia
a revogação da condenação contra a filha de Sião, convidada a se alegrar. Os
2,21ss declara novamente seu amor em uma promessa matrimonial, o que, no
entanto, ele faz igualmente após a separação de esposa amada. O Salmo 45 é um
canto descritivo de uma cerimônia nupcial, que menciona o rei ungido por Deus,
mas também teologicamente, de modo direto, o rei divino em sua entronização, em
uma profusão de joias, vestes preciosas, perfumes exaltantes, inúmeros
convidados e dons preciosos.
A autora enfatiza que a
interpretação alegórica do Cântico dos Cânticos referente ao amor entre Deus e
seu povo encontra excelentes ganchos no texto, pois vários termos presentes
podem facilmente remeter a outros textos que falam da relação amorosa entre
Deus e seu povo. O Cântico, portanto, pode ser lido em um duplo sentido, e,
desde que é canônico, também foi lido assim. “A chave dessas imagens
encontra-se nos textos que descrevem YHWH e o povo em uma relação de amor
caracterizada por atenções e desejo de unidade” (p. 173).
A estudiosa recorda que outro
aspecto da relação de amor entre Deus e seu povo, “que desconstrói a concepção do
casamento patriarcal, entra em jogo metaforicamente por meio da personificação
feminina da Sabedoria. Ela é vista em relação a Deus como cocriadora
preexistente (Pr 8,22-31), corregente (Sb 9,4), amada por Deus (8,3) e como
presença real da divindade entre os seres humanos (Eclo 24,1-22; cf. Jo 1,14).
Mediante a personificação feminina da presença divina, mais tarde, em Sb
8,2-16, é até possível inverter as relações de poder das metáforas patriarcais
do casamento: Salomão pode desejar como esposa a mulher-Sabedoria e admirar sua
beleza (v. 2), escolhê-la como companheira (v. 9) e conselheira de governo (v.
10), que lhe dará prestígio entre o povo, no julgamento e no cenário
internacional (vv. 10-15). Na intimidade de sua casa, o rei pode relaxar entre
os braços da mulher-Sabedoria após cansativas incumbências de governo e sentir
com ela júbilo e alegria (v.16), que lhe conferem um novo vigor para suas
tarefas – todos dons que o prazer do amor é capaz de dar. Portanto, não
surpreende – conclui Irmtraud – quando, em
Eclo 24,12-19, a mulher-Sabedoria é descrita com as metáforas do Cântico dos
Cânticos e é apresentada com todo o tipo de plantas e árvores esplêndidas,
que, com seus frutos e suas especiarias, convidam ao prazer com todos os
sentidos. Como em uma relação sexual bem-sucedida, o prazer proporciona uma
satisfação profunda, mas a experiência, que encanta todos os sentidos e é
esculpida profundamente na memória, exige ainda mais e aumenta o desejo (vv.
20ss; cf. Ct 8,7)” (pp. 173-174).
Na conclusão (pp. 175-176), a
autora reafirma que a sexualidade determina toda a vida, pode ser vivida de
forma diferente conforme a idade e a possibilidade ou não da fertilidade, e
isso também em idade avançada. O exercício da sexualidade entre os idosos não
deve ser reprimido. De fato, os rabinos relembram: “Três coisas têm
algo do mundo vindouro: o sábado, o sol e a relação sexual” (Ber 57,b, cit.
p. 176).
As notas de rodapé são esparsas,
e não está indicada uma bibliografia. O livro se fecha com o precioso índice
das passagens bíblicas (pp. 176-183). Uma obra verdadeiramente fascinante,
rica em dados e em avaliações exegético-jurídico-sapienciais, escrita com
entusiasmo e vontade de exaltar um elemento fundamental da vida humana, com uma
atenção particular para a promoção da figura feminina contra o enorme poder
patriarcal, do qual – segundo a autora – algumas Igrejas do nosso tempo
também não estão imunes. |
Edição italiana da obra alemã. Tradução livre do título: "A sexualidade no Antigo Testamento: amor, vício, prazer sexual e sofrimento". Publicado pela Queriniana, em maio deste ano. Observação: não há, por enquanto, edições desta obra em outros idiomas |
L I V R O
:
Autora:
Irmtraud Fischer
Título
da obra: La sessualità nell’Antico Testamento. Amore, vizio, piacere sessuale
e sofferenza
Coleção:
Biblioteca Biblica 38
Editora:
Queriniana (Bréscia – Itália)
Ano
de publicação: 2023 (original em alemão de 2021)
Páginas:
192 páginas
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 26 de junho de 2023 – Internet:
clique aqui – Acesso em: 26/06/2023.