«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

4º Domingo da Páscoa – Ano A – Homilia

 Evangelho: João 10,1-10 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Em Jesus, somos plenos de vida e liberdade!

Por ter aberto os olhos ao cego de nascença, Jesus foi acusado de pecador porque para eles o pecado é a transgressão da lei divina (cf. Jo 9,1-41). Pois bem, responde Jesus, afirmando que eles — os fariseus — são os pecadores, porque, para Jesus, o pecado é o que ofende o homem e é aos fariseus que Jesus dirige a advertência, que está contida no capítulo décimo do Evangelho de João; dirige-a aos fariseus de então, mas também aos de hoje. Vamos ouvir o que o evangelista nos escreve. 

João 10,1: «Em verdade, em verdade vos digo: quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, esse é ladrão e assaltante.»

Em verdade, em verdade”, quando esta expressão é usada no Evangelho de João significa: eu vos asseguro, vos digo com firmeza. “Vos digo”: portanto o discurso é dirigido aos fariseus — “quem não entra no redil” — aqui o evangelista, para o termo “cercado”, usou aquele que se usa não para ovelhas, mas para o átrio do templo λή, lê-se aulê), porque ele quer fazer as pessoas entenderem: “atenção, não se trata de cercas e ovelhas, mas de uma questão de pessoas e instituição religiosa”. Jesus é muito claro, está falando aos fariseus:

“Vocês são ladrões, porque vocês se apoderaram do povo de Deus. Jesus era o Deus, era o verdadeiro pastor e, acima de tudo, vocês são bandidos, porque vocês usaram de violência para subjugar esse povo”.

No fundo da denúncia de Jesus está toda a acusação que o profeta Ezequiel, especialmente no capítulo 34, faz contra os pastores, que governam o rebanho apenas para seu próprio interesse, para sua própria comodidade, e não estão interessados ​​no bem e no bem-estar das ovelhas. 

João 10,2-3a: «Quem, porém, entra pela porta é o pastor das ovelhas. Para este o porteiro abre, as ovelhas escutam a sua voz...»

Jesus afirma ser, como Deus, o verdadeiro pastor de seu povo. Por que as ovelhas ouvem sua voz? Porque reconhecem, na voz de Jesus, a resposta à necessidade, ao desejo de plenitude de vida que cada pessoa traz dentro de si. 

João 10,3b-4: «... ele chama cada uma pelo nome e as leva para fora. E depois de conduzir para fora todas as que são suas, ele caminha à frente e as ovelhas o seguem, porque conhecem sua voz.»

Jesus não tem uma relação com a multidão, com a massa, com o rebanho, mas Jesus tem uma relação especial com cada indivíduo, com cada ovelha. “E ele as leva para fora”, o verbo usado pelo evangelista é o mesmo usado no livro do Êxodo para indicar a libertação da escravidão, rumo à terra da liberdade. “Depois de conduzir para fora” – literalmente expulsar – “todas as que são suas” – Jesus, no episódio da entrada em Jerusalém, já havia expulsado as ovelhas do templo. Jesus liberta as ovelhas do recinto da instituição religiosa, mas não as encerra em outro recinto, ainda que melhor, concede-lhes plena liberdade. 

João 10,5-6: «A um estranho, porém, não seguem, mas fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos”. Tal foi a comparação que Jesus lhes propôs, mas eles não entenderam o que ele queria dizer.»

Essa palavra de Jesus não é uma constatação, é um conselho que ele dá:mas fogem dele” — devemos fugir destes que se apresentam como pastores e, ao contrário, como veremos, são apenas lobos vorazes. As ovelhas conhecem a voz de quem as ama e não de quem as quer explorar, reconhecem, na voz dos falsos pastores, o desejo de poder, o desejo de dominação. “Tal foi a comparação que Jesus lhes propôs” — portanto ele se dirige aos fariseus, no entanto, aqui está a surpresa: “mas eles não entenderam o que ele queria dizer”. Como eles podem não entender? Simples, porque não são suas ovelhas, porque não são surdos, mas estão obstinados em sua tentação de poder, de ambição. 

João 10,7-8: «Então, Jesus tornou a falar: “Em verdade, em verdade vos digo: eu sou a porta das ovelhas. Todos quantos vieram antes de mim são ladrões e assaltantes, mas as ovelhas não os escutaram.»

Em verdade, em verdade vos digo: eu sou...”, e esta é a reivindicação do nome de Deus, portanto a plenitude da condição divina que se manifesta em Jesus. Em seguida, Jesus reitera a acusação contra os líderes religiosos de terem se apoderado do rebanho que pertencia a Deus — Deus era o pastor — e tê-lo subjugado pela violência. “Mas as ovelhas não os escutaram”, eis a observação de Jesus: o povo pode ter sido subjugado por medo, mas não por escolha própria

João 10,9: «Eu sou a porta. Quem entrar por mim, será salvo; entrará e sairá, e encontrará pastagem.»

Este entrar e sair significa que Jesus não encerra o rebanho em outro recinto, e a porta não se fecha. O fechamento da porta indica segurança para o rebanho, mas falta de liberdade; não, seguindo Jesus, a liberdade é total, se entra e sai. “E encontrará pastagem”: e aqui o evangelista joga com os termos da língua grega, pois “pastagem”, na língua grega, diz-se nome, enquanto para “lei”, diz-se nomos.

Então, com Jesus, não se encontra uma LEI a obedecer, mas se encontra pastagem, isto é, um ALIMENTO que dá vida. 

João 10,10: «O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância.”»

E na conclusão, Jesus usa para esses autodenominados pastores as mesmas características dos lobos, portanto não são pastores, mas são lobos, é preciso ter cuidado! E aqui está o eco da acusação que o profeta Ezequiel já havia feito, no capítulo 22, versículo 27:

Os príncipes no seu meio são como lobos que despedaçam a presa, derramando sangue e destruindo vidas em sua avidez de lucro”.

Então Jesus identifica esses pastores como lobos, deve-se ter cuidado, deve-se fugir, afinal o que fazem é “roubar, matar e destruir”. As verdadeiras vítimas da adoração no templo são as pessoas:Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância”. Portanto, é um convite de Jesus a emancipar-se destes pastores, que impõem, que obrigam e para acolher o dom da plenitude de vida que Jesus oferece incondicionalmente a cada pessoa que escuta a sua voz. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 6. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2022. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«O farisaísmo está vivo hoje, visto que segue abundando religião que domina e faltando Evangelho que liberta!»

(Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo)

É desconcertante o fato de Jesus fazer um ataque tão duro e direto aos pastores mais observantes dos rituais religiosos e normas morais bíblicas daquela época, ou seja, os FARISEUS! Todo o problema reside no fato de que os rituais e normas religiosos acabam sendo um fim em si mesmos! Quem os pratica se convence de que o importante é a obediência a esses ritos e normas! Esquecem-se que o fundamental, para Cristo, é a conduta de vida, a conduta moral, a vida que devemos ter como pessoas que creem em Deus. 

Traduzindo, isso significa que existem muitas pessoas que se acham “extremamente religiosas e piedosas” pelo fato de frequentar assiduamente a Eucaristia, grupos de terço, participar de pastorais ou movimentos ou equipes que existem em nossas comunidades, ser dizimista, contribuir em campanhas da Igreja etc., etc., etc. Porém, a vida dessas mesmas pessoas como empresário(a), empregado(a), marido, esposa, estudante, namorado, namorada, mãe, pai, filho, filha... não expressa, absolutamente, o amor, a doação de si mesmo, a misericórdia, o perdão e a justiça que Jesus Cristo tanto vivenciou em seu dia a dia! 

As pessoas confundem qual é a PORTA que, de fato, conduz à vida, à salvação, à eternidade! Essa porta não é a IGREJA, em si mesma, mas JESUS, em pessoa! Jesus, somente Ele, é a porta tanto para as ovelhas, quanto para aqueles que devem ser os pastores (cf. Jo 10,7.9)! Quem não vivencia, em sua vida, aquilo que Ele fez, pregou e manifestou em tudo o que Ele foi, não pertence ao seu rebanho! Não é dos d’Ele! Não é seu discípulo ou discípula! Infelizmente, há muitos maus e falsos pastores, ainda, hoje em nossa Igreja! Pois, eles preferem massagear, apaziguar, tranquilizar as consciências de tantas pessoas que deveriam se converter, mas se sentem “salvas”, pois há pastores que não lhes pregam o Evangelho, mas uma pseudodoutrina cristã! Com isso, se beneficiam de presentes, viagens, dinheiro e tantas outras coisas mundanas das quais deveriam ser livres, se fossem, de verdade, discípulos de Cristo! 

Afinal, a “voz do verdadeiro pastor”, que é Jesus Cristo (cf. Jo 10,11-18), não se confunde com tradicionalismo, com o conservadorismo, com o saudosismo, mas é algo inovador, por isso, o conteúdo da pregação de Jesus recebeu o nome certo em língua grega: euangélion = boa nova, boa notícia, novidade das novidades! Vivamos o Evangelho, não o mofo de um passado que não nos diz mais nada para sermos cristãos e cristãs autênticos nos tempos atuais! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«O Senhor é o pastor que me conduz; / não me falta coisa alguma. / Pelos prados e campinas verdejantes / ele me leva a descansar. / Para as águas repousantes me encaminha, / e restaura as minhas forças. / Ele me guia no caminho mais seguro, / pela honra do seu nome. / Mesmo que eu passe pelo vale tenebroso, / nenhum mal eu temerei; / estais comigo com bastão e com cajado; / eles me dão a segurança! / Preparais à minha frente uma mesa, / bem à vista do inimigo, / e com óleo vós ungis minha cabeça; / o meu cálice transborda. / Felicidade e todo bem hão de seguir-me / por toda a minha vida; / e, na casa do Senhor, habitarei / pelos tempos infinitos.»

(Fonte: Salmo 22[23],1-3a.3b-4.5.6)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni –IV Domenica di Pasqua – Anno A – 3 maggio 2020 – Internet: clique aqui (Acesso em: 24/04/2023).

É hora de refletir...

 A Igreja Católica no Brasil: entre a insignificância e a irrelevância?

 Geraldo De Mori

Padre e teólogo jesuíta, professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) – Belo Horizonte (MG) 

60ª Assembleia Geral Ordinária da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizada no Centro de Eventos Pe. Vítor Coelho de Almeida, em Aparecida (SP): 19 a 28 de abril de 2023

“Já não vemos mais prodígios, já não temos mais profetas, ninguém sabe, entre nós, até quando isto será!” (Sl 73[74],9)

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) realizou, entre os dias 19 e 28 de abril, sua 60ª Assembleia Geral, que elegeu os membros da Presidência, o Secretário Geral e os bispos encarregados de acompanhar as diferentes Comissões que compõem a instituição e animam a vida pastoral da Igreja Católica no país. Fora dos ambientes eclesiais quase não se ouviu falar dessa Assembleia, do que nela foi discutido e decidido. É como se a Igreja Católica não existisse para a imprensa nacional laica. Uma das únicas notícias publicadas trazia uma denúncia sobre a “branquidão” dos novos membros da Presidência da entidade, indício de um possível racismo no seio da hierarquia. 

Desinteresse pela Igreja: as causas estão fora? 

Esse desinteresse dos grandes meios de comunicação do país pela Igreja Católica pode ser visto de várias maneiras. Uma delas consiste em associá-lo à lógica dos veículos de imprensa, que privilegia notícias “quentes”, como as de escândalos e intrigas, ausentes numa eleição interna à instituição eclesiástica. Uma segunda consiste em remeter a ausência da imprensa em um momento crucial da instituição Católica à falta de formação em questões religiosas ou eclesiais por parte dos novos profissionais da comunicação. Uma terceira consiste em identificar o desinteresse a um boicote ao que faz a Igreja no Brasil. Todas essas explicações situam o problema fora da Igreja, não levando em conta que as razões podem encontrar-se nela mesma e no que se tornou aos olhos dos grupos que detêm o poder de veicular o que vale ou não a pena ser visto. 

JOHANN BAPTIST METZ (1928-2019): teólogo católico alemão, foi professor na Universidade de Münster, Alemanha, e aluno de Karl Rahner

Uma Igreja que provocava sentido e era relevante 

A teologia política da segunda metade do século XX, representada sobretudo pelos teólogos alemães Johann Baptist Metz e Jürgen Moltmann, elaborou duas categorias importantes para entender a relação entre a religião e os indivíduos no mundo moderno e entre a religião e a sociedade:

a) significado e

b) relevância.

Uma religião “interessa” se ela oferece algum significado ou sentido para um indivíduo, respondendo às grandes questões existenciais que não cessam de emergir ao longo de sua vida. Mas a religião não existe somente para responder aos problemas dos indivíduos. Elas também impactam a sociedade, podendo ou não ser relevantes, interferindo em aspectos fundamentais da construção do “nós” coletivo, formando imaginários que podem definir engajamentos em lutas por mais justiça, defesa da vida e solidariedade. 

Na mesma época, a América Latina elaborou uma reflexão teológica que partia de uma contemplação da realidade, identificando nela os principais “sinais dos tempos”. A esse momento, denominado “ver”, se seguia, o do “julgar”, que consistia em discernir, à luz da Palavra de Deus e da tradição teológica e doutrinal da Igreja, os apelos de Deus presentes nos “sinais dos tempos”. Ao julgar se seguia uma ação ou uma práxis, visando a mudança da realidade contemplada inicialmente no ver.

Partindo da VIDA, o olhar teológico voltava de novo à VIDA, tentando oferecer a quem fazia o caminho, elementos para pensar sua vida enquanto cristão/ã, levando-o/a a um COMPROMISSO TRANSFORMADOR.

Nos dois casos, a religião ou o cristianismo se traduzia em significado e relevância e a instituição que o encarnava também despertava interesse, porque, ao mesmo tempo, oferecia a seus fiéis sentido para a vida e uma incidência ao ato de crer, identificado na América Latina com a opção preferencial pelos pobres e um modo profético de ser Igreja. Não por acaso, no Brasil a Igreja Católica foi por várias décadas, no período que se seguiu ao Concílio Vaticano II, uma das instituições mais respeitadas, pelo papel que desempenhou, de defesa da vida, engajamento junto aos mais pobres, luta pela justiça

JÜRGEN MOLTMANN (nasceu em 1927 - 97 anos atualmente): teólogo reformado alemão, foi professor em Bonn e Tübingen, na Alemanha

Causas da perda de sentido e relevância da Igreja:

1. Fatores internos 

Vários intérpretes do catolicismo no Brasil contemporâneo comparam a ousadia profética da Igreja entre o final do Concílio e a década de 1980, e o arrefecimento da profecia entre a década de 1990 e o período atual. Em parte, essa mudança teria sido determinada pela política eclesiástica de João Paulo II e Bento XVI, que nomearam bispos mais preocupados com a disciplina e a doutrina do que com o compromisso com o mundo dos pobres. Segundo os mesmos intérpretes, a essa política haveria que associar o modelo eclesial que passou a ser valorizado, não mais o da eclesiologia “povo de Deus”, baseada na igual dignidade de todos os fiéis, conferida pelo batismo, que deu origem às inovadoras experiências das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e das pastorais comprometidas com os mais pobres, mas o de uma eclesiologia hierárquica, centrada nos ministros ordenados e preocupada mais com a liturgia do que com a vida. 

2. Fatores externos 

Essa interpretação, verdadeira em muitos aspectos, nem sempre se dá conta de que o Brasil dos anos 1960-1980 não é o mesmo dos anos 1990-2020. De fato, o período pós-conciliar, marcado por mudanças estruturais no país, ainda não conhecia a irrupção do pluralismo de princípio que irrompeu no país a partir da década de 1990. A uma sociedade que saía do mundo rural e se urbanizava rapidamente sucedeu uma sociedade já urbanizada, que trazia em si todas as contradições da história do Brasil acrescentadas às novas contradições de um mundo urbano hostil, cheio de ameaças para os indivíduos e as coletividades, com novas formas de pensar e viver a afetividade, a sociabilidade, as relações com as diferenças, figuradas pela condição social, étnica, de gênero e religiosa. 

A pluralidade provoca a fragmentação não só dos indivíduos, mas também das instituições que compõem as várias dinâmicas da sociedade e da cultura. Mesmo as religiões são fortemente impactadas. No caso do protestantismo, pela multidão de novas Igrejas, muitas delas respondendo a situações particulares de grupos que vivem num bairro, sem nenhuma filiação com as confissões mais institucionalizadas. No catolicismo, a fragmentação vai na direção dos movimentos, que proliferam e dificultam qualquer pastoral de conjunto, oferecendo sentido aos fiéis, mas nem sempre os associando a um nós mais amplo, representado pela própria identidade “Católica” da Igreja.

Em alguns casos, chega-se a viver um verdadeiro “cisma silencioso”, em que muitos fiéis seguem mais aos “gurus” e “influencers” do que às orientações dos bispos, da CNBB e do Papa.

Nessa aparente “Babel” de religiões, que afeta inclusive a Igreja Católica, ser significante para os indivíduos e relevante para a sociedade torna-se muito mais difícil. Isso não significa que a profecia seja impossível ou que uma Igreja comprometida com os mais pobres, em defesa da justiça, tornando-se samaritana, seja inviável. Ela continuará existindo, certamente não mais com uma grande adesão como a que se seguiu ao Concílio, mas com um papel fundamental, o de alimentar a esperança da grande multidão de “descartados” do sistema

Provavelmente na Bíblia, o profetismo, incômodo e provocante, sempre tenha sido uma minoria crítica, que incomodava o sistema e a religião instituída. Essa figura profética e crítica da Igreja certamente não interessa ao sistema, nem a seus porta-vozes. Por outro lado, seu lugar não são os holofotes da mídia e das redes sociais, mas o mundo dos que sofrem e lutam para encontrar soluções para os principais problemas da vida, dando-lhes esperança contra toda esperança, suscitando novas formas de fazer se aproximar deles/as o reino de Deus

PE. GERALDO DE MORI - jesuíta - autor deste artigo

Fonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE on-line – s/d – Internet: clique aqui (Acesso em: 28/04/2023).

quinta-feira, 20 de abril de 2023

3º Domingo da Páscoa – Ano A – Homilia

 Evangelho: Lucas 24,13-35 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Jesus se faz ver em cada partilha do pão

A morte de Jesus causou dispersão, confusão no grupo de discípulos. As mulheres vão procurá-lo onde não está, o Senhor, no sepulcro, e encontram dois homens que dizem às mulheres: «Por que procurais entre os mortos aquele que vive?». Os homens, ao contrário, os discípulos, dirigem-se para a história, para o passado, para um lugar glorioso em Israel, que os recorda a grande vitória de Israel sobre os povos pagãos. Vejamos o que nos escreve o evangelista Lucas no capítulo 24, a partir do versículo 13. 

Lucas 24,13: «Naquele mesmo dia, dois dos discípulos iam para um povoado, chamado Emaús, a sessenta estádios de Jerusalém.»

A cena se passa no dia da ressurreição: “Naquele mesmo dia”. “Dois deles” (assim está no original grego) — estes “eles” são os apóstolos, a última referência foi aos apóstolos — “iam para um povoado, chamado Emaús”. Por que eles vão para Emaús? Emaús é famosa na história de Israel, encontramos as indicações no primeiro livro dos Macabeus, no capítulo quarto, para uma batalha que Judas, o Macabeu, travou contra os pagãos, derrotando-os; foi uma grande vitória e, como está escrito neste primeiro livro dos Macabeus: “E todas as nações saberão que existe Alguém que resgata e liberta Israel” (1Mc 4,11). O messias, que se esperava, era quem deveria ter redimido e salvado Israel e ao invés disso Jesus foi derrotado, foi uma grande decepção. Dos Evangelhos parece emergir que os discípulos estão mais desapontados com a ressurreição de Jesus do que com a sua morte, porque se Jesus tivesse simplesmente morrido, isso significava que eles estavam errados. Nessa época surgiram muitos pseudomessias, basta pensar em Judas o Galileu, Teudas, que criavam uma massa, que se revoltava contra os romanos, e sempre terminava em massacre. Bem, uma vez que um messias morria, esperava-se outro. Mas, se Jesus ressuscitou, significa que todos os seus sonhos de glória, precisamente de restauração, de libertação de Israel, de domínio sobre os romanos, tudo está chegando ao fim. 

Lucas 24,14-21: «Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido. Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles. Os seus olhos, porém, estavam como impedidos de reconhecê-lo. Então Jesus perguntou: “O que andais conversando pelo caminho?” Eles pararam, com o rosto triste, e um deles, chamado Cléofas, lhe disse: “És tu o único peregrino de Jerusalém que não sabe o que lá aconteceu nesses dias? Ele perguntou: “Que foi?” Eles responderam: “O que aconteceu com Jesus, o nazareno, que foi um profeta, poderoso em obras e palavras diante de Deus e diante de todo o povo. Os chefes dos sacerdotes e as nossas autoridades o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. E nós esperávamos que fosse ele quem libertaria Israel; mas, com tudo isso, já faz três dias que essas coisas aconteceram!»

Mas vamos ver o texto. Jesus é o pastor que não abandona os seus discípulos. Mas, escreve o evangelista: “Os seus olhos, porém, estavam como impedidos de reconhecê-lo”. Como os olhos desses discípulos são impedidos de reconhecê-lo? É claro, eles olham para o passado e não conseguem ver o presente e o futuro, para onde Jesus os conduz. Cléofas é a abreviação de Cleópatros, que significa “do pai glorioso, do pai ilustre”, o que nos faz entender a atitude, o sentimento desses discípulos, eles buscam a glória de seu povo. E esse Cléofas se maravilha e diz: “És tu o único peregrino de Jerusalém”, e fala-lhe de Jesus, o Nazareno. Eis que para eles Jesus era o Nazareno; Nazareno significava “o desordeiro, o revolucionário”. Isso é o que acreditavam que estivessem seguindo: um messias que derrotaria os romanos. E aqui está a decepção com “os chefes dos sacerdotes e as nossas autoridades”; é grave que esses discípulos, esses apóstolos, definam “nossas autoridades” como aqueles que assassinaram seu mestre. E aqui está a decepção que mencionamos anteriormente: “nós esperávamos que fosse ele quem libertaria Israel”. Aqui está a grande desilusão: esperavam o messias, mas ele morreu, e a prova de que Jesus não era o messias é que morreu, porque o messias não podia ter morrido, e por isso a desilusão da comunidade que tinha colocado todas as suas esperanças em Jesus. 

Lucas 24,22-24: «É verdade que algumas mulheres dentre nós nos deixaram espantados. Elas tinham ido, de madrugada, ao túmulo e, como não encontraram o corpo dele, voltaram dizendo que tinham visto anjos, os quais afirmaram que ele está vivo. Alguns dos nossos foram ao túmulo, e não encontraram »

A ida das mulheres ao túmulo de Jesus e o testemunho delas são narrados com relutância, eles não afirmam que não acreditaram nas mulheres, no entanto, para aquela sociedade as mulheres não eram testemunhas confiáveis. O evangelista escreve “Estes [os Onze], porém, acharam tudo o que informaram um delírio e não acreditaram” (Lc 24,11). 

Lucas 24,25-27: «Então ele lhes disse: “Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Não era necessário que o Cristo sofresse tudo isso, para entrar na glória?” E começando por Moisés e passando por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, o que se referia a ele.»

E aqui está a resposta de Jesus diante dessa descrença; é uma resposta que se traduz em uma repreensão, “Como sois sem inteligência e lentos para crer” - isto é, teimosos. A locução verbal “ser necessário”, literalmente, “devia”, indica a vontade de Deus de que o Cristo passasse por esses sofrimentos. “E começando por Moisés e passando por todos os Profetas, explicou-lhes” ― ou melhor, interpretou-lhes ― “em todas as Escrituras, o que se referia a ele”. Esse verbo “explicar, interpretar” é importante: é o verbo de onde vem o termo técnico hermenêutica. O que é hermenêutica? É a arte ou técnica de interpretar textos. Jesus não apenas lê os textos de Moisés ou dos profetas ou os conta, mas os interpreta. O que isso significa? Este é um critério válido para todos nós hoje, (significa) que, para ler a Escritura, deve-se interpretá-la, como? Com o mesmo espírito que a inspirou. E qual é esse espírito que inspirou as Escrituras? O AMOR DO CRIADOR por todas as suas criaturas: este é o único critério que permite entender as Escrituras. 

Lucas 24,28-29: «Quando chegaram perto do povoado para onde se encaminhavam, ele fez de conta que ia adiante. Eles, porém, insistiram: “Fica conosco, pois já é tarde e o dia está declinando!” Ele entrou para ficar com eles.»

A aldeia/povoado é sempre um lugar de tradição, do passado, isso mostra que os discípulos, ainda, não entenderam, querem ir para o passado ― Jesus mostra que vai mais longe. Eles vão para o velho e Jesus, ao contrário, para o novo. Os discípulos insistem com Jesus, e ele, o pastor que não perde suas ovelhas, permanece com eles. 

Lucas 24,30: «Depois que se pôs à mesa com eles, tomou o pão, pronunciou a bênção, partiu-o e deu a eles.»

Aqui, o evangelista nos oferece a cena da última ceia, com os mesmos gestos e as mesmas ações: “pronunciou a bênção, partiu-o e deu a eles”. Para compreender esta passagem, recordemos que Lucas é o único evangelista que, à hora da ceia, Jesus pronuncia as palavras “fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19). Então Jesus repete a sua presença, a sua memória. 

Lucas 24,31-35: «Então os olhos deles se abriram e o reconheceram. Ele, porém, desapareceu da vista deles. E diziam um para o outro: “Não estava ardendo o nosso coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos abria as Escrituras?” Naquela mesma hora, levantaram-se e voltaram a Jerusalém, onde encontraram reunidos os Onze e os outros discípulos. E estes confirmaram: “Realmente, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!” Então os dois relataram o que acontecera no caminho, e como o haviam reconhecido ao partir do pão.»

É quando Jesus se manifesta como aquele que parte o pão, ou seja, a própria vida pelos seus discípulos, que eles, os discípulos, o reconhecem. “Ele, porém, desapareceu da vista deles”, aqui o verbo realmente não é sumir, sumir significa desaparecer; não, escreve o evangelista “fez-se invisível”, é outra coisa. Desaparecer significa que se foi, invisível significa que está lá, mas você não pode vê-lo. Por que Jesus se faz invisível? O evangelista nos conta, no final desta passagem, “eles relataram” – depois que voltaram a Jerusalém – “o que acontecera no caminho, e como o haviam reconhecido ao partir o pão”. Esta é a mensagem que Lucas, o evangelista, deixa às comunidades e aos crentes de todos os tempos:

Jesus é invisível, porque se faz visível cada vez que a comunidade parte o pão.

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 6. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2022.  

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Não é bastante amar, é preciso prová-lo!»

(Santa Teresa de Lisieux: 1873-1897 — freira carmelita descalça francesa)

Nessa cena dos discípulos que se dirigem ao povoado de Emaús vê-se, claramente, as duas partes de nossa Eucaristia: a liturgia da Palavra (a partilha do pão da Palavra de Deus — Lc 24,27) e a liturgia Eucarística (a partilha do corpo e sangue de Cristo — Lc 24,30). Muitas vezes, acentua-se a importância do “partir o pão” para a identificação e confirmação da presença de Cristo em meio à comunidade! No entanto, sem a “explicação das Escrituras” como Jesus fez àqueles discípulos, a compreensão deles teria ficado a desejar! Seguiriam no escuro, sem compreender o porquê o Cristo sofreu tanto e terminou a sua vida daquele modo escandaloso! 

As Escrituras eram conhecidas, mas não bem interpretadas! A Igreja dos primeiros tempos teve dificuldade em assimilar a experiência com Jesus, justamente porque se manteve atrelada à interpretação das Escrituras — leia-se Antigo Testamento — tal como se dava no judaísmo! A chave de leitura estava equivocada, pois o Messias aguardado por Israel era fruto de uma má e imperfeita interpretação das Escrituras (Antigo Testamento). O nacionalismo, o belicismo, a violência e o revanchismo predominavam nessa visão messiânica! Israel esperava um Messias somente seu! Enquanto, Deus enviou seu Filho para o mundo, tal como expressou bem o autor do Evangelho de Lucas, na segunda parte de sua obra, em Atos dos Apóstolos: “recebereis a força do Espírito Santo que virá sobre vós e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, até os confins da terra” (1,8). 

O engano das lideranças religiosas judaicas e dos próprios discípulos de Jesus foi prenderem-se ao PASSADO, pretendendo restaurá-lo em modo nostálgico-idealista, sem ter os pés na realidade! Tanto é verdade que, quando eclodiram as duas principais revoltas judaicas contra Roma, a derrota foi fragorosa e terrível! Vejamos:

* Primeira Revolta de 66 a 70 d.C., com Vespasiano (que se tornou imperador durante esse período) e seu filho Tito destruindo Jerusalém, o Templo e matando milhares de judeus;

* Segunda Revolta de 131 a 135 d.C., durante o governo do imperador Adriano, sob o comando do revoltoso Simeão Ben Koseba. 

Hoje, corremos um risco muito semelhante, pois há grupos dentro de nossa Igreja que idealizaram o passado, também! Há os saudosistas da época do concílio de Trento (1545 a 1563), da missa celebrada em latim (Missal de São Pio V – 1570), da época da cristandade, na qual a Igreja estava unida ao Estado e funcionava apoiada pelo mesmo (a cristandade colonial brasileira durou de 1500 a 1759). O curioso que essas pessoas tão “saudosistas” dessas práticas que não nos dizem mais nada e não são próprias para os tempos de hoje, jamais viveram ou foram formadas nessa época, ou seja, no século XVI! Portanto, é uma aberração! Elas têm saudades daquilo que jamais conheceram ou viveram! Continuam presas ao passado, enquanto Jesus demonstrou que temos de olhar e nos preocuparmos com o presente e o futuro! 

A maior urgência de nossa Igreja é fazer o possível e o impossível para que o Evangelho esteja nas mãos e na mente de nossos fiéis! Se o coração de tantos fiéis não arde mais, não consegue fazer uma experiência viva com o Cristo Ressuscitado, é porque não é apresentado, do modo correto, à palavra de Cristo nos evangelhos! Por melhor que sejam preparadas e executadas, as homilias das missas não bastam para evangelizar, de verdade, o nosso povo! Faz-se necessário criar outros momentos e espaços para a reflexão, meditação e compreensão correta da Palavra de Cristo na Igreja. Sem isso, o nosso futuro não será nada bom! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor Jesus, agradecemos-te a tua palavra que nos conduziu passo a passo, como os discípulos de Emaús, a compreender melhor a vontade do Pai. Deixa que teu Espírito ilumine nossas ações e nos dê forças para seguir o que tua Palavra nos mostrou, realizando assim a "ressurreição" de nossas mortes para nós como foi para os discípulos naquele dia de Páscoa. Que nós, como Maria, tua Mãe, possamos não só ouvir, mas também praticar a Palavra e que os nossos irmãos e irmãs possam ver em nossa vida o testemunho vivo de uma adesão sempre nova e pessoal a ti. Tu que vives e reinas com o Pai na unidade do Espírito Santo por todos os séculos. Amém.»

(Fonte: MESTERS, Carlos O.Carm. 3ª Domenica di Pasqua: orazione finale. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico A. Leumann [TO]: Elledici, 2010, p. 248.)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni –III Domenica di Pasqua – Anno A – 26 aprile 2020 – Internet: clique aqui (Acesso em: 19/04/2023).

terça-feira, 18 de abril de 2023

Pessoas artificiais

 Como seria uma cidade habitada por pessoas com inteligência artificial? Cientistas testaram

 Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais" 

FERNANDO REINACH

A mente artificial já poderia tomar o lugar de nosso cérebro e nos guiar nas tarefas diárias?

Nos últimos meses surgiram as primeiras inteligências artificiais realmente poderosas. Nós já podemos conversar com uma dessas inteligências, o chatGPT, através de uma caixa de diálogo num website (https://chat.openai.com/). Eu descrevi essa experiência faz algumas semanas e tentei mostrar como é difícil para um ser humano distinguir se está conversando com outro ser humano ou com um computador. 

O que muitos se perguntam é se essa mente artificial já poderia tomar o lugar de nosso cérebro e nos guiar nas tarefas do dia a dia. O experimento ideal para testar essa ideia seria retirar o cérebro de uma pessoa e substituí-lo por uma dessas inteligências, da mesma maneira que trocamos nossos joelhos por um joelho de metal. Como isso não é possível, os cientistas criaram no computador as funções do resto do corpo de um ser vivo em volta dessa inteligência. 

Na verdade, eles criaram 25 dessas “pessoas” e as colocaram em um mundo virtual, inspirado em um videogame. Esse mundo virtual possui casas, escolas e ruas. As casas têm vários ambientes com cadeiras, geladeiras, fogões, camas, portas e tudo mais. E aí deixaram essas 25 pessoas guiadas por inteligências artificiais viverem suas vidas de forma independente, sem interferência humana. 

Para construir essas 25 pessoas artificiais (PAs), os cientistas acrescentaram várias capacidades ao redor da inteligência artificial. Primeiro, eles adicionaram a capacidade de observar o ambiente. Assim, a PA percebe se está na sala ou no quarto de uma das casas, consegue saber o horário e determinar se uma porta está aberta fechada ou trancada. Consegue perceber a aproximação de outra PA. Além disso, consegue captar o que a outra PA fala. 

Cidade criada para 25 pessoas com Inteligência Artificial viverem de forma independente. Foto: Reprodução/Estudo: "Generative Agents: Interactive Simulacra of Human Behavior"

Todas essas informações são estocadas em uma memória individual de cada PA, que guarda tudo que acontece com ela ao longo de sua vida. Essa memória pode ser acessada pela inteligência artificial da PA e é utilizada para tirar conclusões sobre o ambiente a cada momento (são 9h da noite e estou no quarto com fome, ou é de manhã estou na rua, e esse na minha frente é o PA da casa ao lado, que já encontrei ontem e conversei sobre o tráfego). 

A partir dessas conclusões, construídas usando a memória, e tudo que a inteligência artificial sabe sobre o mundo, um terceiro módulo da PA planeja e executa ações (ir à escola, voltar da escola, cozinhar, ir ao banheiro, fechar a porta, andar e conversar com outra PA). 

Após construir esses 25 PAs idênticas, a memória de cada uma delas foi iniciada com uma breve descrição da sua identidade (sou o José, tenho 25 anos e estudo música. Toco piano e sou sociável). Fora esses dados iniciais, os 25 PAs eram idênticos. Eles foram então distribuídos nas diversas casas do pequeno mundo virtual. Em seguida os cientistas iniciaram o sistema e não interferiram no que acontecia

De fora, os cientistas podiam observar o movimento dos PAs, observar o que ia se acumulando na memória de cada uma delas, tanto quando observavam o ambiente quanto quando conversavam entre si. Isso mesmo, conversavam uma com a outra, como nós conversamos com o chatGPT. As PAs passaram a viver de forma independente e autônoma na sua pequena cidade virtual. 

Os cientistas observaram o aparecimento de uma série de fenômenos sociais entre as PAs. Logo as PAs aprenderam o nome, as características, interesses e profissões uns dos outros. Observaram que algo dito por um deles se espalhava na comunidade através das conversas. 

Estudo mostra a maneira como os humanos artificiais, de forma espontânea, se relacionaram no experimento. Foto: Reprodução/Estudo: Reprodução/Estudo: "Generative Agents: Interactive Simulacra of Human Behavior"

Os PAs aprenderam a esperar na porta de um banheiro se outro estava lá dentro. Todos dormiam à noite, acordavam, se alimentavam, iam para seus trabalhos e trocavam experiências. Num dos eventos mais marcantes, um deles decidiu fazer uma festa de Halloween. Ele comunicou a todos a intenção, fez os convites e escolheu a data e o local. Muitos outros combinaram de ir juntos à festa. Alguns apareceram na casa do organizador na data prevista. Outros faltaram e depois se justificaram. Tudo isso ocorreu dentro desse mundo virtual, sem interferência humana, com a inteligência artificial de cada PA comandando seus atos

Os cientistas concluíram que muitos comportamentos sociais típicos de seres humanos surgem espontaneamente nesse mundo virtual habitado por PAs (pessoas artificiais).

Isso demonstra que inteligências artificiais são capazes, de forma limitada, a comandar um ser artificial com as características de um ser humano.

Agora os cientistas estão começando a fazer experimentos nessa cidade autônoma habitada por PAs. Um dos experimentos é adicionar propositalmente informações na memória de um PA (por exemplo, dizer que outra PA é mentirosa, ou que uma PA vai concorrer para prefeito) e observar o que acontece na sociedade. Outro experimento consiste em um cientista atuar como uma PA, mas usando sua própria mente para comandar suas ações (por exemplo, entrar no mundo e deitar na cama de outro PA). Esses experimentos podem indicar como essas pessoas artificiais, guiadas por inteligência artificial, se comportam nessas situações. Elas xingam? Se tornam violentas? Discutem? 

O problema atual é que esse mundo artificial é caro. Seu funcionamento, a cada dia, custa centenas de milhares de dólares em tempo de computador. É por isso que esses experimentos estão sendo feitos em uma colaboração entre o Google e cientistas de Stanford. Nos próximos anos, teremos inteligências artificiais mais poderosas, PAs mais elaboradas, e cidades ou sociedades mais complexas com milhares de PAs. Aí então vamos poder analisar quão parecidas com nossas sociedades serão as sociedades habitadas por PAs. 

Mais informações (clique sobre): Generative Agents: Interactive Simulacra of Human Behavior arXiv:2304.03442v1 2023. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Coluna – Sábado, 15 de abril de 2023 – Pág. A28 – Internet: clique aqui (Acesso em: 18/04/2023).

Precisamos deter o TikTok

 Causa declínio da saúde mental por ser viciante

 Fareed Zakaria

Colunista do «Washington Post» 

Adolescentes e jovens são os mais “fisgados” pela rede

Na semana passada, argumentei contra o banimento do TikTok. Ao conversar com as pessoas sobre a plataforma, percebi que a verdadeira preocupação que a maioria tinha não era sobre a propriedade chinesa do TikTok, mas sim o quão assustadoramente viciante ele é — e também grande parte da mídia social. Isso é verdade e profundamente preocupante. Devemos fazer algo a respeito — e logo. 

O TikTok é o aplicativo dominante, em downloads nos Estados Unidos em 2022, e tem cerca de 150 milhões de usuários em todo o país. Drew Harwell, do Washington Post, resume bem os dados: em 2021, o site do TikTok foi visitado com mais frequência do que o Google. Dois terços dos adolescentes americanos o usam, com 1 em cada 6 dizendo que o usam “quase constantemente”. 

Também está arrasando com a concorrência. Harwell cita um relatório da Bernstein Research que descobriu que, entre 2018 e 2021, o tempo que os americanos passaram no aplicativo aumentou 67%, enquanto as horas no Facebook e no YouTube cresceram menos de 10%. 

O que o TikTok faz de tão especial? Ninguém sabe ao certo. “É constrangedor sabermos tão pouco sobre o TikTok e seus efeitos”, disse Philipp Lorenz-Spreen, pesquisador do Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano em Berlim, ao jornal britânico The Guardian. Em parte, porque o TikTok é relativamente novo e em parte porque seu algoritmo é altamente sofisticado.

Em vez de uma imagem ou uma postagem escolhida por um amigo, o TikTok apresenta um fluxo de vídeos e avalia o que você gosta para oferecer mais, substituindo “o atrito de decidir o que assistir”, explicam os pesquisadores de Bernstein, com uma “explosão sensorial de vídeos pequenos entregando endorfina hit após hit.” 

Dopamina

A maioria dos psicólogos diz que ele também entrega dopamina, a substância química secretada no cérebro quando se espera uma recompensa, como comida, drogas ou sexo. Qualquer coisa que nos conecte aos outros desencadeia essa sensação de prazer, pois é uma resposta evolutiva — sobrevivemos melhor em grupos do que como indivíduos. Os aplicativos de mídia social capitalizam esse mecanismo de sobrevivência para obter lucro. E o TikTok fornece esse golpe de dopamina talvez mais rápido, melhor e mais prazeroso do que outros aplicativos populares. 

A melhor maneira de entender como a mídia social está afetando nossos cérebros é voltar à psicologia para iniciantes. B.F. Skinner, um dos estudiosos fundamentais no campo, demonstrou como o “condicionamento operante” funciona usando um sistema simples de recompensas contínuas para pombos, e os ensinou a voar em círculos, guiar mísseis e até jogar pingue-pongue.

A versão mais simples é assistir a um treinador de cães, que dará ao animal de estimação uma série de pequenas guloseimas para recompensá-lo por seguir as instruções. Os aplicativos de mídia social fornecem esses pequenos golpes de dopamina com a mesma confiabilidade. 

Tradução da frase do renomado psicólogo social JONATHAN HAIDT: "Nós vivemos em uma bolha, onde os algoritmos confirmam o que nós já queremos acreditar".

Jonathan Haidt tornou-se famoso como crítico das redes sociais. Renomado psicólogo social (ele leciona na Universidade de Nova York), Haidt argumenta que a ascensão da mídia social e seu sistema de recompensa está intimamente relacionado com declínios impressionantes na saúde mental dos adolescentes. Por volta de 2012, ele argumenta, você começa a ver todos os tipos de indícios de declínio da saúde mental, desde busca por ajuda psicológica até hospitalizações e tentativas de suicídio. Ele diz que isso aconteceu nos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e vários outros países com uso generalizado de mídia social.

O aumento da ansiedade, depressão e tentativas de suicídio entre adolescentes é particularmente assustador. E esses números estão piorando a cada ano.

Início

O momento faz sentido quando você considera que o início dos anos 2010 é quando os adolescentes trocavam seus telefones flip por smartphones carregados com aplicativos de mídia social — e 2009 é quando o Facebook introduziu o “like/curtir” e o Twitter introduziu o recurso “retweet” que imita as guloseimas do treinador de cães. Então, em 2012, ano em que o Facebook comprou o Instagram e sua base de usuários explodiu, um grande número de adolescentes estava “fisgado”

Haidt, que trabalha em um livro sobre este tópico, mantém um banco de dados contínuo de estudos acadêmicos e comentários relacionados em seu Substack, After Babel. Saí totalmente convencido de que ele está certo e precisamos de regras e leis sérias em torno dessa tecnologia

Ele argumenta que a idade em que as empresas de mídia social podem coletar dados infantis sem o consentimento dos pais deve ser aumentada de 13 para 16 anos, protegendo assim os anos mais vulneráveis da puberdade precoce. (O projeto de lei inicial do Senado que definia a idade havia escolhido 16 anos, mas os lobistas das empresas de mídia conseguiram rejeitá-lo.) Pode haver leis federais exigindo mais notificações quando o aplicativo for usado por muito tempo, desligamentos automáticos à noite e muito mais. Para aqueles preocupados com esse tipo de legislação, lembre-se de que as empresas de mídia social são amplamente protegidas contra ações judiciais por um dispositivo generoso, a Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações (que rege a internet nos Estados Unidos). Eles podem ser razoavelmente instados, em troca, a tornar seus produtos mais seguros para as crianças. 

O próximo salto tecnológico é a inteligência artificial generativa. Uma vez que isso esteja totalmente casado com a mídia social, essas empresas terão uma capacidade sobre-humana de criar máquinas de dependência de poder surpreendente que podem nos fisgar permanentemente, talvez até reconectar nossos cérebros com consequências devastadoras. Devemos agir agora, enquanto temos tempo — e atenção. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Internacional – Sábado, 15 de abril de 2023 – Pág. A22 – Internet: clique aqui (Acesso em: 17/04/2023).

domingo, 16 de abril de 2023

O nosso catecismo ajuda a crer em Deus?

 O dinheiro tem um poder de sedução que falta ao mistério de Deus

 Santiago Agrelo

Franciscano espanhol, da Ordem dos Frades Menores, arcebispo emérito de Tanger 

DOM SANTIAGO AGRELO MARTÍNEZ

Hoje como ontem, aqueles que, vendo-te, o virem; aqueles que, reconhecendo-o em ti, se afeiçoarem a ele, encontrarão Jesus

Estes são tempos difíceis para a fé em Cristo Jesus.

Ele disse assim: “Você não pode servir a Deus e ao dinheiro”. E desde sempre até hoje, o Dinheiro tem um poder de sedução que falta ao mistério de Deus.

Aqueles que servem ao Dinheiro são a humanidade poderosa!

A seu lado, como cortejo necessário para a sua impressionante procissão, aglomera-se uma multidão de humanidade atraída e distraída pela sedução da tecnologia, a ilusão do espetáculo, a miragem da felicidade e uma mascote que o ajuda a iludir a solidão. 

Para além desse cortejo processional, fora de vista, há ainda outros, inumeráveis, os da rua, os da sarjeta, os dispensáveis, os últimos, os ninguém

Aquele mundo que escolheu servir ao Dinheiro, não quer saber de Jesus, mais ainda, precisa ignorar Jesus para não saber dos pobres, não saber das vítimas, não saber dos irmãos, não saber de si mesmo!

E você, Igreja em missão, saiba que é enviada a esse mundo escravizado, distraído e solitário; você sabe que este mundo precisa de Jesus. 

Se queres anunciar que Cristo Jesus vive e dá vida, não podes confiar a tua mensagem às palavras: são profanadas, prostituídas, perderam a cor da verdade. 

“Eles preferem esquecer o nome de Jesus” 

O mundo ao qual você se dirige também não é o mundo de Tomé, aquele discípulo que, para acreditar que Jesus vive, exige ver e sentir. Hoje, nem você que já crê nem o mundo indiferente à sua fé não serviriam ao convite de Jesus: “Ponha o dedo... coloca a mão”. Nada disso o levaria à fé: seria apenas um divertido show de ilusões. 

O mundo para onde vais com a tua mensagem, se não é aquele que crucificou Jesus, se não é aquele que o quer morto e sepultado, é o dos que preferem esquecer até o seu nome:

* Eu me pergunto se o seu catecismo ajuda a acreditar em Jesus.

* Eu me pergunto se o seu missal ajuda a conhecer Jesus.

* Pergunto-me se as suas procissões, as suas peregrinações, as suas devoções, os seus ritos conduzem a Jesus ou afastam-no dele. 

Eu me pergunto sobre a linguagem da fé. Como podeis dizer hoje: “Ponha o dedo... coloca a mão», para que se abram os olhos da fé às mulheres e aos homens deste vosso mundo, como ontem Tomé? O que podemos fazer para que a pedra rejeitada seja a pedra angular na vida de tantos que estão longe do Deus de Jesus? 

Hoje como ontem, aqueles que, vendo-te, o virem, encontrarão Jesus; aqueles que, reconhecendo-o em ti, se apegam a ele. 

Detalhe da pintura à óleo de CARAVAGGIO - "A incredulidade de São Tomé" (1601-2)

“Tudo deve ser comum” 

Hoje como ontem, aqueles que, vendo-te, reconhecem o reino de Deus presente, encontrarão Jesus; os que, vendo-te, confessam que o evangelho é pregado aos pobres; aqueles que, vendo-te, descobrem um mundo de homens e mulheres em comunhão, como naquela primeira comunidade em que “os que abraçavam a fé viviam todos juntos e tinham tudo em comum”.

Agora, como então, a fé deve ser comum, o pão comum, a oração comum. Tudo deve ser comum.

Comungar com Cristo Jesus: na comunhão com ele somos um com todos; na comunhão com ele somos evangelho para os pobres; na comunhão com ele tornamos o Reino de Deus presente no mundo

Comungar com Cristo Jesus para que você possa mostrar a Cristo Jesus. 

Feliz Domingo da Divina Misericórdia (2º Domingo de Páscoa – 16/04/2023)! 

Traduzido do espanhol por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo. 

Fonte: Religión Digital – Colunista – Sexta-feira, 14 de abril de 2023 –Internet: clique aqui (Acesso em: 16/04/2023).