Vito Mancuso
Teólogo e escritor
italiano
Il Foglio
16-01-2019
O
ódio é uma doença do espírito:
não
por acaso, a tradição cristã, mas também judaica e islâmica,
considera
que Satanás é um anjo decaído,
e
o anjo é precisamente puro espírito.
VINCENT CASSEL Ator francês em cena do filme "O Ódio" (1995), dirigido por Mathieu Kassovitz |
Um prefeito de
política aberta e solidária é esfaqueado até a morte na cidade do [sindicato] Solidarnosc.
Um terrorista criminoso chega à Itália, e muitos rangem os dentes,
porque, se pudessem, o abocanhariam até dilacerá-lo. Nas curvas dos estádios,
cantam-se hinos racistas e antissemitas. Alguns garotos pegam um
cachorro e fazem um rojão explodir em sua boca.
São apenas alguns exemplos
recentes de uma paixão destrutiva e assassina que permeia a nossa história: Caim
mata Abel, Rômulo mata Remo, Etéocles e Polinices matam-se um
ao outro, Sócrates é morto pelos democratas, Jesus é morto pelos
teocratas e pelos imperiais, os sicários de Antônio decepam as mãos e a cabeça
de Cícero, e depois?
Depois, as guerras sem fim,
pulsões atávicas de vingança, execuções capitais que reúnem
multidões aos gritos de prazer sádico, e nem sequer vou abrir o capítulo na
história do século XX, porque todos sabemos já quanto sangue e quanto ódio
contém.
O ódio, justamente. Depois, há a sua versão fria, aquela
que corresponde aos círculos infernais, onde os condenados são aprisionados no
gelo, e que se expressa naquela voz maligna que, diante de um navio de seres
humanos com pele de cor diferente que pedem apenas para poder desembarcar,
sussurra friamente: que morram todos afogados, ou de fome, de frio, que
padeçam!
A pergunta neste ponto é simples:
* que papel tem o
ódio na estrutura do mundo?
* É algo
congênito, estruturalmente presente e, portanto, natural?
* Ou é algo não
congênito, inesperado e, portanto, inatural?
* O que o ódio tem
a ver com a lógica da vida no mundo?
A minha resposta vai
contra a corrente, é inatual, é um desafio, porque defende que o ódio não é
natural, mas é uma patologia, e que, portanto, a sua dissolução, que também
podemos chamar de perdão, é um retorno à
fisiologia, isto é, uma cura.
Paweł Adamowicz - prefeito da cidade polonesa de Gdańsk - foi assassinado no dia 14 de janeiro de 2019 |
Com o que o ódio constitui
uma patologia? Com aquela condição estrutural que Heráclito chamava de polemos,
e Empédocles, de neîkos. De acordo com Heráclito, “o conflito (polemos)
é o pai de todas as coisas e de tudo é rei” (fr. 14, ed. Diano),
afirmação que deve ser posta ao lado da consciência complementar da harmonia,
aquela segundo a qual: “Aquilo que contrasta contribui, e a partir de
elementos que discordam tem-se a mais bela harmonia” (fr. 24). Para
Empédocles, o mundo físico e humano é regido por duas forças contrastantes, por
ele denominadas de philòtes e neîkos, isto é, concórdia
e discórdia, entendimento e desentendimento, amizade
e rancor.
Decorre daí que tanto os
elementos naturais quanto os seres humanos “às vezes, pela concórdia,
contribuem com um único cosmos, às vezes, cada um, por conta própria, é
arrastado pelo desafio do rancor” ("Poema físico", 22).
Heráclito e Empédocles foram
os primeiros no Ocidente a trazer à consciência a condição antinômica e
conflituosa que estruturalmente é inerente ao ser.
Hoje a ciência confirma essa
visão. Na natureza há conflito, seja já a partir da condição da matéria.
Os astrofísicos descrevem o
espaço em termos de “imensas catástrofes que parecem ser a administração
comum de inteiras regiões do cosmos”. São palavras de Guido Tonelli
(La Lettura, 21 de outubro de 2018), que escreve em “cosmos” em itálico
para se distanciar do significado original do termo grego (cosmos, cosmética),
e enfatizar, em vez disso, o primado do caos no universo, descrevendo os
eventos do espaço com termos como “rugir, devorar, dançar macabro”.
Se, depois, voltarmos a nossa
atenção para a história da vida, as coisas não mudam, ao contrário, tornam-se
até mais perturbadoras, porque entra em cena o sangue, o elemento da vida e, ao
mesmo tempo, da morte. [...]
Mas atenção: nas estrelas,
nos quasares, nos pulsares, nos buracos negros, assim como nos seres vivos que
lutam pela vida e que se alimentam da vida alheia, não há ódio. O leão não
odeia a gazela, assim como a gazela não odeia a grama; as bactérias, os vírus,
as células cancerígenas e qualquer outro ente natural também não são capazes de
ódio.
Não há ódio nem mesmo
naqueles comportamentos animais que
um professor de zoologia da Universidade de Pádua, Giuseppe Fusco,
descreve em termos de escravismo em relação a certas formigas, de fratricídio
para muitas aves de rapina, de matricídio para algumas aranhas, de uxoricídio
para os louva-a-deus, até mesmo de violência sexual para certos insetos.
O estudioso explica: “Esses
comportamentos, sob nenhuma circunstância, devem ser classificados sob o rótulo
de ‘comportamentos desviantes’, porque, para as espécies animais que os
praticam, eles fazem parte do seu ciclo vital normal” (Competizione e
cooperazione, em L’altruismo, Udine: Forum, 2018, p. 37).
No mundo natural, não há
ódio, porque nele não há a condição necessária para o ódio, isto é, a evolução
da mente, sendo o ódio justamente uma patologia da mente, mais precisamente
uma patologia daquele conflito que é inerente estruturalmente ao ser.
De fato, uma conta é ser adversário, outra é odiar. A primeira obra da literatura ocidental, a “Ilíada”,
ensina que também se pode cantar a epopeia vitoriosa de uma guerra sem odiar o
inimigo; o mesmo ocorre no ideal da cavalaria medieval.
O adversário é, sim, objeto
de aversão, mas não necessariamente de ódio; o inimigo é, sim, objeto de
inimizade, mas não necessariamente de ódio. Qual a diferença? A diferença
está no fato de que se quer ganhar, vencer, derrotar, até mesmo pesadamente, o
inimigo e o adversário, mas não extinguir ou aniquilar.
Ao contrário, se refletirmos
com ponderação, entenderemos que, sem o adversário, ou seja, sem o adversus
que representa o polo oposto em relação ao nosso versus, a nossa
própria identidade seria completamente diferente ou até não seria: assim como a
esquerda sem a direita, os ateus sem os crentes, a Inter sem a Juventus.
O ódio, ao contrário, quer
aniquilar. E, no seu furor cego que o
torna ignorante, não compreende que a aniquilação do inimigo significaria
também o desaparecimento de si mesmo, da própria identidade, que, sem o
inimigo, não teria mais o polo com base no qual pode se fortalecer e se
determinar.
Quem é capaz de ódio? Só o
espírito pode odiar, isto é, a liberdade. O
termo “espírito” em latim (spiritus), em grego (pneuma) e
em hebraico (ruah) significa, acima de tudo “vento”, “ar que se move”, e
foi escolhido pelas civilizações na base da nossa tradição para indicar
precisamente a nossa capacidade de liberdade.
A liberdade não nos vem do
fato de sermos corpo, nem de sermos psique. Mesmo assim, se a admitirmos (entendendo por
liberdade a possibilidade de consciência, criatividade e responsabilidade), é
preciso identificar a condição de possibilidade que nos permite ser livres,
que, se não é o corpo e se não é a psique, requer outro nome. A tradição nos
entrega o termo “espírito”.
Pois bem, o ódio é uma doença
do espírito: não por acaso, a tradição cristã, mas também judaica e islâmica,
considera que Satanás (que o Alcorão chama de Iblis) seja um anjo
decaído, e o anjo é precisamente puro espírito.
Quando a liberdade adoece,
põe a consciência e a criatividade não mais a serviço da responsabilidade, mas
do seu contrário, isto é, da negação,
da aversão, da destruição. Assim, tem-se a malignidade,
isto é, a lúcida vontade de mal.
Tal vontade maligna pode
ser dirigida contra:
* uma PESSOA,
* um GRUPO,
* um POVO,
* uma INSTITUIÇÃO, ou pode ser geralmente dirigida
contra
* o MUNDO e conduzida pelo mero prazer do mal, pelo
gosto sádico e perverso de infligir sofrimento, destruição, morte.
A personificação dessa
força é o chamado Diabo, cuja
essência é exatamente a divisão, a dilaceração, o esquartejamento
do ser: o contrário da harmonia.
Normalmente, não se pensa
que o ódio seja uma patologia, ao
contrário, ele é contraposto ao amor como força de poder igual e contraposto.
Não só isso, também se considera que o ódio ajuda a compreender muito melhor do
que o amor, que tem uma lucidez invejável própria, uma penetração inteligente e
aguda. É verdade que se diz “ódio cego”, mas a referência é mais à raiva,
enquanto o ódio, no seu gélido distanciamento, é entendido como frio,
lúcido, penetrante.
Um sobrevivente de Auschwitz
[campo de extermínio nazista], Sami Modiano, disse: “Não é verdade
que o ódio é cego. Ele tem a visão muito aguda, a de um atirador de elite, e,
se adormece, o seu sono nunca é eterno, retorna”.
Eu não subestimo a força do
ódio, mas contesto que ele seja verdadeiramente inteligente. Ao contrário,
penso que, na realidade, o ódio só sabe ver a si
mesmo e não o outro na sua realidade efetiva; mesmo quando vê o
outro, na realidade, vê somente o próprio preconceito, que o impedirá de
reconhecer o bem e o belo do outro, mas lhe confirmará infalivelmente que o
outro é apenas mal e deformidade.
O ódio vê, mas não vê com
aquele olhar reto, disposto, que faz com que o olho pouse sobre o outro e o
capte naquilo que ele verdadeiramente é; não, o olho vê com um olhar
encurvado, deformado pela energia negativa que o anima, pelo desejo de
destruição que emana do seu olhar.
VITO MANCUSO Teólogo italiano autor deste artigo |
A verdadeira
compreensão, em vez disso, requer retidão, acima de tudo no
sentido de um olhar reto, de “reta visão”, como diz a primeira
disposição do caminho óctuplo ensinado pelo Buda. Daí gera-se abertura
mental e abertura do coração, ou empatia, isto é, “a capacidade de
experimentar as emoções alheias, de compreender aquilo que o outro está
pensando ou sentindo”, condição que só é possível quando uma pessoa é
capaz de “compartilhar o estado afetivo de outro indivíduo” (Franco Fabbro,
Eric Pascoli, L’empatia e l’altruismo alla luce delle neuroscienze, in: L’altruismo,
cit, pp. 119-120), isto é, obviamente quando não
odeia.
O ódio, portanto, não é
inteligente, mas estupidamente circunscrito.
Resta uma última questão: o
ódio é forte? É claro, o ódio é forte, às vezes fortíssimo. Mas o câncer
também é, as células cancerígenas podem ser muito mais vitais do que as células
sadias, são muito famintas, violentas, agressivas. Qual é, porém, o
resultado? A morte do organismo e, portanto, também a delas, isto é, a
máxima impotência.
Isso se explica com base no
fato de que o ser é regido pela lógica do sistema, isto é, pela relação
harmoniosa, e de que aquilo que está em conformidade com tal lógica faz
florescer a vida, enquanto aquilo que não está, faz com que ela murche,
introduzindo a morte.
Platão escreve que até mesmo “um Estado ou um exército,
piratas, ladrões ou qualquer outra classe” não poderia combinar nada “se
não observassem a justiça uns com os outros” (República, I, 351 D
[trad. portuguesa: Maria Helena da Rocha Pereira, ed. Fundação Calouste
Gulbenkian).
Não se trata, portanto, de
ser necessariamente bom, ao escolher combater o ódio. Trata-se, mais
simplesmente, de ser inteligente, de entender a lógica que nos trouxe à
existência e nos mantém nela, e de conformarmo-nos a ela (como um capitão
de um barco à vela que entende o jogo dos ventos e das correntes, e dispõe o
seu barco em conformidade).
Por isso, combater o ódio
dentro do próprio interior, mantendo o conflito, mas não odiando, significa
permanecer saudáveis, rejeitar o mal fora de si. Antes ainda que por
benevolência para com o outro, não deixar que as células cancerígenas do
ódio criem raízes é um grande gesto de cuidado para consigo mesmo.
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto.
A versão original encontra-se, clicando aqui.
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