«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 16 de abril de 2024

A religião instrumentalizada para fins nacionalistas

 Israel: dirigentes laicos lançam mão da religião

 Marius Schattner

Jornalista 

A instrumentalização da religião pelas forças armadas de Israel já é recorrente há anos, mesmo que de forma mais discreta (Foto: Yosi Rot/Creative Commons)

Não há nada de surpreendente que o discurso messiânico seja, hoje, usado para justificar a devastadora guerra travada pelo Exército israelense em Gaza

“Juntos venceremos!”Ao slogan central da guerra de Gaza, a direita israelense no poder acrescenta sistematicamente os termos “com a ajuda de Deus”, conferindo uma dimensão religiosa ao conflito com o Movimento de Resistência Islâmica Hamas. 

Em duas ocasiões, durante uma conferência de imprensa em Tel Aviv, em 28 de outubro de 2023 e depois em 3 de novembro, numa carta aos soldados parabenizando-os pelo “combate contra os assassinos do Hamas”, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu citou o Deuteronômio da Bíblia Hebraica (25,17): “Lembre-se do que Amaleque te fez” (ver o box ao final deste artigo). A declaração foi feita embora ele se mantenha afastado de qualquer prática religiosa, e ainda o obrigou a se defender da acusação de incitar o genocídio, em resposta às denúncias da África do Sul perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ) [1]. 

Rabino AVICHAI RONTZKI

Embora recorrer a esse registro tenha o intuito de conferir um caráter religioso ao conflito com o Hamas, não se trata de uma reação isolada às atrocidades cometidas em 7 de outubro pelo movimento islâmico. Na realidade, as autoridades israelenses têm utilizado essa retórica há vários anos, embora de forma mais discreta. O depoimento nº 482.683 de um oficial da Brigada de Infantaria Golani publicado pela Breaking the Silence (Quebrando o silêncio) – ONG que reúne ex-soldados contra a ocupação dos territórios palestinos – é uma evidência: durante a Operação “Chumbo Fundido” em 2008-2009, o rabino-chefe do Exército, Avichai Rontzki, ordenou aos soldados do “exército de Deus” que fossem implacáveis para com o inimigo, referindo-se às guerras de conquista de Canaã, a Terra Prometida. Em 2014, durante a Operação Margem Protetora, ainda em Gaza, o general Ofer Winter, comandante da Brigada de Infantaria Givati, proclamou: “A história nos escolheu como ponta de lança da luta contra o inimigo terrorista de Gaza que insulta e amaldiçoa o Deus dos Exércitos de Israel” [2]. Na época, comentários como esses, vindos da boca de um militar de alta patente, causaram um escândalo; e também contribuíram para encurtar sua carreira como oficial. 

Atualmente, esse tipo de declaração parece menos chocante. O discurso nacionalista-religioso tornou-se comum, banalizado: alguns ministros da extrema direita o defendem, como Itamar Ben-Gvir, um supremacista judeu à frente da segurança nacional, ou Bezalel Smotrich, responsável pela Fazenda, assim como outros membros do governo e deputados afiliados ao Likud, o partido de Netanyahu. Também se ouve essa narrativa no Exército, particularmente nos escalões inferiores, e nas unidades de combate em que o número de oficiais de academias religiosas pré-militares tende a ser maior. 

Rabino AMICHAI FRIEDMAN discursando para as tropas de Israel

Duas sequências viralizaram nas redes sociais. No primeiro vídeo [3], que data do início de novembro, Amichai Friedman, rabino do centro de treinamento da brigada Nahal, afirma que a guerra deve permitir o restabelecimento dos assentamentos de Gush Katif, desmantelados durante a retirada israelense em 2005, na Faixa de Gaza e muito além. “Este país é nosso, incluindo Gaza, incluindo o Líbano, tudo é a Terra Prometida”, afirma o capitão ovacionado pelos soldados. Inicialmente desaprovado pelo comando militar, e suspenso por trinta dias, acabou ganhando outro posto rabínico no mesmo regimento. 

Em outro vídeo [4], filmado no mesmo mês durante uma cerimônia após a devastação da cidade palestiniana de Beit Hanoun, o comandante Yair Ben David, oficial da reserva do Batalhão 9208, apela não apenas à erradicação do Hamas, objetivo oficial da campanha israelense, mas também à aniquilação de Gaza. Apoiando-se no Antigo Testamento, ele traça um paralelo entre a destruição dessa cidade no nordeste do enclave e a terrível vingança exercida pelos filhos do patriarca Jacó, Levi e Simeão, contra os habitantes de Siquém (nome hebraico para a atual Nablus, na Cisjordânia), após o estupro de sua irmã Dinah pelo filho do rei da cidade. A Bíblia registra que os dois irmãos mataram todos os homens da cidade à espada, apesar da promessa de poupar suas vidas (Gênesis 34).

“Simeão e Levi compreenderam que a honra está acima de tudo e todos no Oriente Médio. Eles fizeram em Siquém o que fizemos em Beit Hanoun. Mas a tarefa não está concluída”, alerta o comandante. “Toda Gaza deve sofrer o destino de Beit Hanoun […] com a ajuda de Deus, Siquém ou qualquer outra cidade que se atrever a levantar-se contra Israel terá o mesmo destino que Beit Hanoun”, completou.

O oficial, no entanto, deixa de mencionar o resto da história e a desaprovação de Jacó quanto ao massacre e ao perjúrio. Em seu leito de morte, diz a Bíblia, ele “amaldiçoou a ira” que se apoderou de seus dois filhos, “porque era má”, e apelou aos seus outros filhos para “não se juntarem aos seus desígnios” (Gênesis 49,6). 

Blindados do Exército de Israel

À medida que o vídeo circula, parte do público teme que ele possa alimentar a acusação de “incitamento ao genocídio” e degradar ainda mais a imagem de Israel no cenário internacional. A indignação não é apenas formal. Também diz respeito ao conteúdo. Isso é evidenciado por um comentário mordaz publicado no jornal diário Yediot Aharonot, de ampla circulação, em 22 de dezembro de 2023.

Assassinar, pilhar, destruir: é assim que os soldados aprendem a Bíblia e a tradição judaica. São formados em meio a mentiras tanto sobre as instruções dadas ao Exército como sobre as narrativas bíblicas.”

DISCURSO DA VINGANÇA

Os ultranacionalistas não fazem distinção entre o Hamas e o resto da população palestina acusada de o apoiar, uma amálgama mortal levada a cabo em nome de uma pretensa visão ética. “A guerra não é uma provação. Não matamos um inimigo porque ele é culpado e não o poupamos porque ele é inocente. É um confronto de um coletivo contra outro, de uma nação contra outra”, diz uma das figuras mais populares dessa corrente, o carismático rabino Oury Cherki, originário da Argélia. Ao ficarem do lado do mal, ao trabalharem para a destruição do povo de Israel como os nazistas, os palestinos de Gaza, afirma este autor de numerosas obras sobre o âmbito universal do judaísmo, teriam perdido o direito de figurar “na comunidade das nações”. Aos seus olhos, a ação levada a cabo pelo Exército israelense em Gaza seria, portanto, “perfeitamente ética”, ao contrário da exigência de poupar os civis a todo o custo [5]. 

No dia 28 de janeiro, em Jerusalém, diante de milhares de apoiadores entusiasmados, a extrema direita, sentindo-se liberta dos constrangimentos de linguagem impostos pela unidade nacional no início da guerra, lançou uma campanha pela retomada da colonização na Faixa de Gaza e uma “transferência de população” para o Egito – o que as autoridades do Cairo refutam – ou para qualquer outro país, um eufemismo para expulsão em massa, limpeza étnica. 

Por outro lado, os grupos ultraortodoxos (que representam 12% da população judaica de Israel), o partido Shas (tradicionalmente sefaradita) e o Judaísmo da Torá (partido Ashkenazi), pedras angulares da coalizão governamental, não mostram nenhum interesse no restabelecimento de assentamentos em Gaza. Eles aceitaram tacitamente o seu desmantelamento em 2005 e os seus rabinos estão cautelosos com os excessos messiânicos dos ultranacionalistas… sem, no entanto, denunciá-los em plena luz do dia, dada a crescente popularidade da extrema direita entre o seu rebanho. 

Netanyahu: popularidade em baixa

De acordo com várias sondagens consistentes, no entanto, a atual coalizão não seria renovada no caso de eleições legislativas antecipadas, uma perspectiva que Netanyahu – cuja popularidade entrou em colapso – quer evitar a todo o custo. A direita mais radical não colheria, portanto, os benefícios das frustrações da população judaica desde o desastre de 7 de outubro, que a fez alavancar cerca de 15 assentos dos 120 no Knesset. Ela seria excluída de um futuro governo, que permaneceria de direita, mas menos radical que o atual. 

Sociólogo YAGIL LEVY

As ideias professadas por seus partidários ainda encontram eco numa sociedade israelense afetada durante décadas pela “desumanização” dos palestinos que vivem sob ocupação, como observa o sociólogo Yagil Levy [6]. Para esse investigador:

... a dimensão religiosa dada à guerra de Gaza serve, sobretudo, para justificar a sede de represália, ao mesmo tempo que confere um “significado superior à missão” dos combatentes.

O “discurso de vingança tornou-se predominante no Exército desde o início da guerra, embora até então fosse considerado excepcional”, explica, com consequências desastrosas na condução racional das operações. Levy observa, assim, que no início da ofensiva israelense, o comando militar limitou-se a notificar, às tropas, a proibição de saques. 

Só quando três reféns israelenses foram mortos por engano em Gaza é que o chefe do Estado-Maior Herzi Halevi insistiu, em 16 de dezembro de 2023, em vários canais de televisão, na “proibição de abrir fogo contra aqueles que brandissem uma bandeira branca e pedissem rendição”. E apenas um mês depois de Israel ter sido pressionado pela Corte Internacional de Justiça a prevenir atos genocidas é que o general apelou aos seus soldados “para não usarem a força quando não for necessária, e diferenciar entre terroristas e civis”, reforçando que o Exército israelense, ao contrário do Hamas, estaria impregnado de valores humanos e não se envolve em “assassinatos, atos de vingança, genocídios”. [7] 

“A vingança, essa reação instintiva, é inútil. Pelo contrário, corre o risco de nos destruir por dentro, mesmo que prevaleçamos no território.”

Esta foi a confidência do rabino do Instituto Matan em Jerusalém, Daniel Epstein, em janeiro último. De acordo com a tradição talmudista, o filósofo alerta contra as miragens da febre messiânica, “uma solução fácil que nos permitiria escapar às duras realidades e questões levantadas pelo 7 de outubro. Esta tragédia continua a nos surpreender”. 

Rabino DANIEL EPSTEIN

Referências:

[1] Ler Anne-Cécile Robert, “La Cour internationale de justice évoque un ‘risque plausible de génocide’ à Gaza” [Corte Internacional de Justiça fala de “risco plausível de genocídio” em Gaza], Le Monde Diplomatique, fev. 2024.

[2] Citado por René Backmann, “L’armée israélienne en danger de ‘théocratisation’?” [O exército israelense em perigo de “teocratização”?], Confluences Méditerranée, n.122, Paris, 2022.

[3] “Rabbi at Israeli military training base says ‘whole country’ is ‘ours’, including Gaza and Lebanon” [Rabino em base de treinamento militar israelense diz que “todo o país” é “nosso”, incluindo Gaza e Líbano], 7 nov. 2023, www.haaretz.com.

[4] Canal 13 da televisão israelense, 20 dez. 2023, https://13tv.co.

[5] Entrevista com Oury Cherki, “Sur l’éthique de la guerre à propos de ce qui se fait à Gaza” [Sobre a ética da guerra em relação ao que está sendo feito em Gaza], 16 out. 2023, www.yozevitch.com.

[6] Yagil Levy, “A emergência do discurso da vingança” (em hebraico), 20 dez. 2023, https://telem.berl.org.il.

[7] Ordem do dia n. 4 de 20 de fevereiro de 2024. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Edição 201 – Abril/2024 – Terça-feira, 2 de abril de 2024 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/04/2024). 

AS MIL FACES DE AMALEQUE

Marius Schattner

No judaísmo, Amaleque tem uma conotação sinistra: é o inimigo arquetípico de Israel. Exterminá-lo é um dever, porém ele ressurge a cada geração. Se originalmente designava um povo específico, ao longo dos séculos assumiu um significado mais simbólico, de encarnação do mal absoluto sobre a Terra. 

A Bíblia Hebraica (Torá) conta como Amaleque, neto de Esaú, deu seu nome à tribo que atacou de surpresa o povo judeu, enquanto este último se arrastava à exaustão pelo Deserto do Sinai no êxodo do Egito. Assim, Deus ordenou aos hebreus que travassem uma guerra impiedosa contra os amalequitas, por esse ataque traiçoeiro e por se levantarem “contra o Seu Trono”. Também convocou Seu povo a preservar a memória dessa ofensa até que ela pudesse ser apagada pela conquista da Terra Prometida: a mais implacável das maldições bíblicas (Êxodo 17,14; Deuteronômio 25,19). 

Essa injunção resultará numa ordem explícita dada por Deus ao Rei Saul, para travar uma “guerra de extermínio” contra os amalequitas (1 Samuel 15,18): “Enfrente os amalequitas, destrua-os completamente com todos os seus bens, não deixe nada com vida: mate os homens, as mulheres, as crianças e os recém-nascidos, bois e ovelhas e todos os seus camelos” (1 Samuel 15,3). Saul obedeceu, mas não seria perdoado por ter poupado a vida de Agague, rei dos amalequitas. 

A Bíblia alude ainda a Amaleque no livro de Ester, no qual Hamã, um descendente de Agague, planeja a aniquilação dos judeus do Império Persa. A intervenção de Ester apelando a seu marido Assuero (também conhecido como Xerxes), rei da Pérsia, evita o massacre. Durante a festa de Purim, os judeus celebram essa salvação milagrosa, e na sinagoga são lidas passagens do Pentateuco contra Amaleque. 

Ele realmente existiu? Nem pesquisas históricas, nem as escavações arqueológicas o confirmam. A Bíblia é o único texto que menciona esse inimigo hereditário do povo judeu. Mito ou figura histórica, Amaleque sempre foi significativo na religião. 

Os sábios do Talmud discutiram extensivamente o tema, interpretando livremente as Escrituras para neutralizar seu potencial de violência. Em primeiro lugar, porque consideram impossível identificar esse adversário maligno em meio à mistura de populações na região quando aconteceu a destruição do reino de Israel pelos assírios no século VIII a.C. Assim, o mandamento (mitzvah) “não esqueças o que Amaleque fez a ti” não é acompanhado pelo impossível mandamento de erradicá-lo, reservado para os tempos messiânicos. 

Algumas fontes rabínicas viram uma emanação de Amaleque na supressão das revoltas judaicas pelo Império Romano. Na Idade Média, outras fontes em terras islâmicas identificaram-no com o cristianismo, o que foi contestado pelos mestres do Talmud em terras cristãs. No século XX, o nazismo seria denunciado como um novo Amaleque. 

Por sua vez, a partir do século XIX, importantes pensadores judeus – como o rabino alemão Samson Raphael Hirsch (1808-1888), figura importante da nova ortodoxia, fiel à tradição, porém aberto ao Iluminismo – assimilaram Amaleque ao culto da força, à “glorificação da espada” que Deus ordena erradicar. 

Aparentemente, não é o significado que Netanyahu confere a esse conceito polissêmico no contexto da guerra atual, cujos riscos de excessos foram alertados pelo acadêmico Emmanuel Bloch em 2015: “Se quisermos, como as gerações que nos precederam, escapar à armadilha da violência religiosa, devemos insistir novamente e sempre nas salvaguardas que a nossa tradição desenvolveu ao longo os séculos”. [1] 

Referência:

[1] Emmanuel Bloch, “Y-a-t-il une guerre sainte juive?” [Há uma guerra santa judaica?], Aderaba – Questions juives en chantier, 26 fev. 2015, https://aderaba.fr/djihadjuif/.

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