«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Enfrentando a sociedade do ódio

Maior gesto contra o ódio é não se isolar,

diz filósofa alemã

 Fernanda Mena

Entrevista com Carolin Emcke

Filósofa e jornalista alemã


É importante apontar que não existe nada “natural” no ódio coletivo...

Trata-se de algo criado e reproduzido por aqueles que se aproveitam dele

 A filósofa e jornalista alemã Carolin Emcke, autora de "Contra o ódio" (Ed. Ayiné)

Numa era em que conflitos políticos, religiosos e culturais são movidos por ressentimentos contra inimigos elaborados a partir de estereótipos e generalizações — ou mesmo de informações falsas — o espaço para o diálogo e o debate parece ter encolhido na mesma proporção em que aumentou o do ódio, demonstrado de maneira pública, sem constrangimentos.

Foi assim nos atos do último final de semana, em Berlim, na Alemanha, quando mais de 20 mil pessoas ligadas a grupos de direita e extrema-direita, incluindo grupos neo-nazistas, protestaram contra as medidas de prevenção ao coronavírus. Os atos foram seguidos de contra-protestos com faixas e banners contra o ódio e o racismo.

É da normalização dessas demonstrações que trata o livro “Contra o ódio” (editora Ayiné), da jornalista e filósofa alemã Carolin Emcke. Nele, ela explora como a digitalização da vida amplificou as manifestações violentas contra pessoas e grupos, orquestradas de maneira coletiva e ideolótica, produzindo uma representação assimétrica de percepções e sentimentos expressos por uma fração minoritária da sociedade.

Assistimos à escalada do poder explorador, abusivo e sem controle das mídias sociais. Com apenas algumas companhias controlando todo o mercado de comunicação e o discurso global, precisamos nos perguntar: como podemos garantir a distribuição de conhecimento e informação?”, escreveu ela em entrevista à Folha de S.Paulo por e-mail.

Considerada uma das grandes figuras intelectuais de nosso tempo, Carolin já recebeu o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, que teve como recipientes prévios grandes nomes do pensamento crítico contemporâneo como Susan Sontag, Ohran Pamuk, Amos Oz e Jürgen Habermas.

Habermas, o grande teórico da Escola de Frankfurt sobre a esfera pública, foi seu orientador mestrado em que desenvolveu tese sobre desobediência civil e o direito de resistir, algo que têm praticado ao longo de sua trajetória profissional e intelectual, cobrindo conflitos em países como o Afeganistão e combatendo discriminações de raça, gênero e orientação sexual com ideias.

[...]

Para ela, o ódio é uma das grandes ameaças civilizatórias da atualidade, está por trás da ascensão de regimes populistas autoritários de extrema direita e, para ser combatido, precisa que seus oponentes elaborem narrativas e visões de mundo “atrativas, desejáveis e divertidas”, que sejam divulgadas da maneira mais ampla possível para ganhar mentes e corações.

O gesto mais importante contra o ódio talvez seja não se isolar. Não se deixar confinar na tranquilidade da esfera privada, na proteção fornecida pelo próprio abrigo ou pelo círculo social mais próximo”, escreve ela no livro.

“Talvez o movimento mais importante seja sair para fora de si e avançar em direção aos outros para, com eles, reabrir juntos os espaços sociais e públicos.”

O ódio é mais prevalente hoje do que foi nas últimas décadas ou é apenas proclamado mais abertamente?

Carolin Emcke: Sempre houve ódio, racismo, antissemitismo, misoginia, homofobia e transfobia. Mas há uma diferença na falta de vergonha e no exibicionismo com que são ostentados agora. E, por conta das mídias sociais, o poder incitar o ódio, de mobilizar a violência e a velocidade de sua distribuição foram transformados.

Como o ódio se tornou uma expressão coletiva e ideológica, como você o representa no livro?

Carolin Emcke: Primeiramente, é importante apontar que não existe nada “natural” no ódio coletivo. Não é algo que está “aí”, não é “normal”. Trata-se de algo criado e reproduzido por aqueles que se aproveitam dele. Existe toda uma indústria do ódio: editores, movimentos políticos e regimes que identificam e constroem um “outro”: um grupo que supostamente “não pertence”, que é supostamente “perigoso” ou “perverso”, porque tratam-se de pessoas diferentes da alegada norma, ou cujo desejo difere da suposta norma ou cujos corpos diferem daquilo considerado como norma e o ódio é canalizado para esse “outro”.

Como a pandemia pode promover ainda mais ódio?

Carolin Emcke: A pandemia criou uma situação de medo e insegurança. É uma crise com muitos níveis e com impactos sociais, econômicos, políticos e psicológicos assombrosos. E é com essa constelação de inseguranças que os falsos profetas e teóricos da conspiração, mas também os políticos populista-autoritários, tentam fomentar ódio e ressentimento como uma distração contra sua própria insegurança e incompetência. Você não pode simplesmente negar um vírus quando pessoas estão morrendo por conta dele em todo o mundo. Ao mesmo tempo, a pandemia representa uma ameaça a populistas narcisistas como Donald Trump, Bolsonaro e Boris Johnson.

Você argumenta que o ódio se constrói sobre certezas que parecem imunes aos questionamentos. Como ódio se relaciona ao negacionismo e ao anticientificismo?

Carolin Emcke: Não se pode odiar sem precisão. Não é possível odiar com dúvidas. Se, em vez de odiar, você olhar cuidadosamente para algum fenômeno ou alguém, descobrirá mentiras, as falsas projeções, o essencialismo contido em manifestações de racismo, antissemitismo, homofobia ou transfobia. E é isso o que assistimos hoje: uma negação do raciocínio científico, como no caso da negação das evidências da Covid-19. Não é uma coincidência que esses movimentos se conectem e incluam ódio e ressentimento.

Qual é o papel da mídia em normalizar o ódio?

Carolin Emcke: Toda vez que a mídia deixa de se interessar pela verdade, toda vez que se interessa apenas em criar um show voyeurístico para “entreter”, ajuda a normalizar posições que estão nas franjas, trazendo-as para o centro do discurso.

A internet e as redes sociais foram celebradas por democratizar a informação, criando uma esfera pública digital. Em que medida realizaram essa profecia ou a traíram, fomentando o ódio?

Carolin Emcke: Internet e mídias sociais são apenas tecnologias que podem empoderar ou excluir. Eu era muito otimista em 2011 e 2012 com a Primavera Árabe e o papel que as redes sociais tiveram para as vozes críticas e progressistas se unirem, organizarem e comunicarem. Mas, desde então, assistimos à escalada do poder explorador, abusivo e sem controle das mídias sociais. Com apenas algumas companhias controlando todo o mercado de comunicação, com uma oligarquia de empresas de tecnologia dominando o discurso global, precisamos nos perguntar: como podemos garantir a distribuição de conhecimento e informação? Como vai acontecer a formação de uma inclinação democrática? Como protegemos nossas democracias contra ataques internos e externos e contra a manipulação e a subversão do nosso discurso?

Como garantir liberdade de expressão sem promover discursos de ódio ou negacionismos?

Carolin Emcke: Na Alemanha, nós não tomamos a liberdade de expressão como algo absoluto. Há limites, e várias leis que regulam a incitação ao ódio e a reprodução de propaganda nazista ou antissemita. Há leis que proíbem a negação do Holocausto.

Penso que a democracia tem a obrigação de proteger os direitos das minorias, e um equilíbrio entre liberdade de expressão e os ataques incitados, vis e brutais, a certos grupos.

Você escreveu que um dos efeitos do ódio é o de desorientar seus alvos e testemunhas. Como opera esse mecanismo?

Carolin Emcke: Acho que qualquer um que tenha sido marcado como “outro” e discriminado ou excluído, que tenha sido atacado, cuspido ou insultado, se sentiu confuso antes de se sentir mal. Somos seres linguísticos e nos desorienta sermos chamados de nomes. É confuso ser atacado por alguém racista ou sexista ou homofóbico. Muitos alvos ficam mudos e sem ar. E abordar esse ódio é reviver o episódio e seus danos, o que pode ser doloroso.

Aqueles que são espectadores de manifestações de ódio não precisam ser trans para se opor à transfobia nem negros ou muçulmanos para se opor ao racismo, nem pobres para se opor à exclusão social. Aqueles que odeiam e são ressentidos são sempre um grupo minoritário, mas seu nível de agressão, sua ambição ideológica e seu poder de mobilizar dão a eles uma representação assimétrica. E é por isso que todos precisam se manifestar e defender uma sociedade aberta e os direitos dos outros.

É possível dialogar com quem pensa muito diferente?

Carolin Emcke: Não acho que podemos sempre convencer os outros. Alguns são muito fanáticos ou dogmáticos para estarem interessados em qualquer discurso razoável. Então há limites quanto ao que o diálogo pode oferecer. Mas eu também acho o foco no convencimento da extrema-direita, dos racistas e de outros radicais está errado.

O importante é explicar e defender uma narrativa e uma visão de mundo

que sejam mais atrativas, desejáveis e divertidas.

Como a afirmação de novas identidades em termos de raça, gênero e orientação sexual criaram ressentimentos que as tornaram alvo de ódio?

Carolin Emcke: Essa é uma lógica estranha que culpa a vítima. Pessoas LGBTI não são responsáveis pela homofobia e transfobia. Feministas não são responsáveis pelo machismo. A luta por direitos iguais não pode ser culpada pelo levante daqueles defendendo velhas hierarquias e desigualdades. Temos de defender direitos humanos universais, temos de tornar nossas cidades mais inclusivas e menos desiguais. Isso vai criar medos e ressentimentos? Sim. Mas não é argumento contrário a essas posturas.

Mas por que cria ressentimento?

Carolin Emcke: Sabemos, historicamente, que cada movimento emancipatório também produziu medo e foi seguido de um “backlash”, uma tentativa mais ou menos agressiva de prevenir mudanças sociais. Sempre haverá quem tenha medo de perder algo se outros forem aceitos como iguais. Quem não compreenda que direitos humanos não são um jogo de soma zero. Ninguém perde direitos humanos se eles forem atribuídos a todos, mas alguns podem perder seu status ou privilégio exclusivos. Ou seja, muito frequentemente, diferenças e diversidades e pluralidades são hoje retratadas como se ameaçassem a sociedade democrática. Algumas vozes alegam que suas identidades estariam ameaçadas se confrontadas com um “outro”, um LGBTI, um imigrante, um indígena ou qualquer um considerado estranho. O que é interessante nesse processo é que ele faz parecer que a fé, as convicções e até a sexualidade dessas pessoas seriam “infectadas” apenas por enxergarem um outro. Quão inseguras, quão instáveis são essas identidades que se sentem ameaçadas pela mera presença de um outro diferente?

É importante entender:

em uma democracia liberal, aberta,

não precisamos compartilhar da mesma fé, das mesmas práticas ou tradições.

Não precisamos desejar da mesma maneira e não precisamos nem olhar uns para

os outros, mas temos de respeitá-los.

Essa é a beleza da democracia liberal.

Fonte: Folha de S. Paulo – Fronteiras do Pensamento – Quarta-feira, 5 de agosto de 2020 – Publicado às 15h46 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui (acesso em: 05/08/2020).

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