«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Vida que segue???

Crônica das 100 mil mortes anunciadas
pela Covid-19

Antonio Prata
Escritor e Roteirista

E seguimos contando os corpos
que não podemos velar
Brasil supera 100 mil mortes pela Covid-19 - 08/08/2020 ...
Uma das covas da quadra 14 do cemitério São Luiz, em São Paulo, capital, onde foram
enterradas a maioria das vítimas da Covid-19

Cem mil mortos: ontem, hoje ou amanhã. Cem mil mortos e seguimos contando os corpos que não podemos velar. Mais de mil por dia. Dez vezes cem, da manhã à noite. Cem vezes mil, de março a agosto.

Era óbvio, mas segue sendo surpreendente que um 
presidente eleito hasteando a bandeira da morte 
nos entregue, vejam só, a morte.

Prometeu 30 mil cadáveres para resolver o Brasil, nos entregou três vezes isso em meses: e seguimos contando os corpos:
* Cem mil de Covid,
* outras dezenas de milhares de bala,
* de acidente de carro,
* de burrice,
* de séculos de descalabros culminando nos desvarios de um ser humano decrépito apavorado com a sombra da própria masculinidade. Um eunuco existencial arrotando priapismo [= exagero do apetite ou da excitação sexual].

O erro da ditadura foi ter torturado e não matado, ele disse. Agora nos tortura e nos mata diuturnamente. Contra o delírio de um complô mundial de foice e martelo, oferece a foice, somente, ceifando. Nossa bandeira jamais será vermelha. Claro que não. Será preta. Já é preta. Não como Preta Gil ou “Preta, Pretinha” ou “um negro norte-americano forte”. Preta como a noite, a floresta carbonizada por Ricardo Salles, os dedos dos pés dos mortos por asfixia na “gripezinha”.
Estou exposto e sei que corro risco', afirma coveiro - Saúde - Estadão
James Alan, encarregado de quadra no Cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, capital
Foto: Werther Santana / Estadão

Atrás de mim, na televisão, Caetano Veloso canta cercado pelos filhos. “Tigresa”, “Um Índio”, “Pulsar”, “Odara”. Tudo é “divino, maravilhoso”, mas me soa a um réquiem para um país defunto, de projetos defuntos, de esperanças defuntas, com uma autoimagem defunta. Parece o “Canto do povo de um lugar” há muito extinto. “O sonho acabou, quem não dormiu em sleeping-bag nem sequer sonhou”. “A tristeza é senhora”.

Que país é esse em que vivemos no dia 9 de agosto de 2020? Que gente é essa que se cala diante da morte do João Gilberto, manifesta pesar por MC Reaça e desdém pelo falecimento desnecessário e criminoso de 100 mil?

“Careta, quem é você?/ Que não sentiu o suingue de Henry Salvador/ Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô/ E que não riu a risada de Andy Warhol/ Que não, que não”.

Que não, que não, que não, que não. Imbecis. Assassinos. Burros. “Coragem é poder dizer sim”.

Assisto à live do Caetano como se fosse o “Sermão da Montanha”. Aguardo um norte. Uma revelação. Mas quando ele canta as incompetências da América católica (ou neopentecostal), onde “cada paisano e cada capataz”, que “com sua burrice fará jorrar sangue demais” e “sempre precisará de ridículos tiranos”, dói. E quando canta as maravilhas do que já aspiramos a ser, do que já pudemos e poderíamos ser — “os hermetismos pascoais, os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais” — dói ainda mais.

Hermeto tocando chaleira. Garrincha driblando os Joões. Os jardins do Burle Marx. A utopia da miscigenação. Nelson Rodrigues. Pixinguinha. Drummond. Grupo Corpo. Machado de Assis. Luiz Gonzaga. Floresta. Água. Sol. Mar. Peixe. Fruta. A Semana de 22. A Tropicália. Tom e Vinícius. Elis. O recuo da bateria na Marquês de Sapucaí. Tudo isso parece ter sido eclipsado por um vespertino policialesco do SBT. Chacrinha perdeu pro Sílvio Santos. Pegou fogo no museu.

Cem mil mortos: ontem, hoje ou amanhã. Cem mil mortos e seguimos contando os corpos que não podemos velar. Mais de mil por dia. Dez vezes cem, da manhã à noite. Cem vezes mil, de março a agosto. Caetano canta “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”. Espero que esteja certo. Que possamos sonhar novamente com “Alto astral, altas transas, lindas canções/ Afoxés, astronaves, aves, cordões/ Avançando através dos grossos portões”.

Um minuto de silêncio aos que se foram.
Amor e coragem aos que ficam.

Fonte: Folha de S. Paulo – colunas e blogs – Sábado, 8 de agosto de 2020 – 23h15 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui (acesso em: 10/08/2020).

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