«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 18 de março de 2019

A “doença” dos indignados!

Epidemia de indignação destrói capacidade
de discutir, diz autor

Salvatore Scibona
Escritor, é autor do romance “The Volunteer”,
dirige o Centro Cullman para Acadêmicos e Escritores da
Biblioteca Pública de Nova York

Para escritor, é preciso que nos libertemos da tirania de opiniões
e julgamentos
SALVATORE SCIBONA
Escritor

Em “The Country Husband”, conto de John Cheever de 1954, um homem vai a um jantar em um subúrbio de Nova York e reconhece a nova empregada de seu anfitrião, mas de onde? De repente, a cena lhe volta à mente: anos antes, no fim da Segunda Guerra Mundial, em um vilarejo francês para onde fora destacado, ele tinha visto essa mesma mulher –a "escolhida" do comandante alemão que controlava a aldeia– ser levada para o meio da rua. Seus vizinhos zombavam enquanto um homem baixinho cortava o cabelo da moça e depois lhe raspava a cabeça. A seguir, forçaram-na a tirar as roupas. Alguém cuspiu nela. Chorando, nua, a não ser pelos sapatos gastos, ela se afastou do povoado sozinha.

Imagine, se conseguir, esse episódio nos dias de hoje: o vídeo viral, a cena registrada, compartilhada, arquivada, nunca esquecida, sua popularidade medida em visualizações. Em vez da aglomeração de algumas dezenas de pessoas em uma cidadezinha com uma igreja e um único restaurante, pense nos milhares, ou milhões, propagando sua culpa nas seções de comentários, tuítes e postagens de blog, muitos dos quais disponíveis para sempre, para qualquer um, o tempo todo. Ao “réu” é negada até a benevolência do exílio.

Estamos vivendo uma revolução industrial da exposição alheia, na qual as novas tecnologias expandiram drasticamente nossa capacidade de fazer e distribuir um produto — no caso, o julgamento que fazemos uns dos outros.

E, como em fenômenos semelhantes no passado, a manufatura em massa e o uso de um item que antes era disponível apenas para poucos, ou em pequenas quantidades, nos dão o poder de causar danos em uma escala até então inimaginável.

Os réus, levados para o meio da rua virtual, são não só figuras públicas como pessoas que até então passavam despercebidas –o bêbado em um estacionamento, a garota que compartilha em excesso no Instagram. Um dia é o ator acusado de forjar um crime de ódio, no outro é o político que admite ter participado de um concurso de dança com o rosto pintado de preto, é o sorriso do estudante que parece incorporar o privilégio desdenhoso de sua classe social, é o massacre do grupo que descreveu o tal sorriso para constranger o garoto, baseado em evidências preliminares. Mencionar qualquer um desses exemplos é convidar à objeção: “Dessa vez foi bem merecido!” Talvez, mas será que não há outra maneira de debater essas controvérsias sem que se tenha de discutir se o infrator merecia a punição?

A cultura da mídia encontrou um espaço perfeito no consciente coletivo: a revolta. As manchetes são trabalhadas nela, prometendo injustiça. É uma isca estranha, pois nos dá a impressão de ser errado não a morder. Uma vez que ignorar a iniquidade quase sempre resulta em sua perpetuação, podemos nos sentir na obrigação de clicar, ler o tal artigo e ficar fulos. Até a pessoa mais discreta, que não tuíta nem compartilha seus pensamentos em público, se deixa envolver, a consciência exigindo a solidariedade do julgamento no coração, se não em voz alta.

Por mais correta e necessária que seja essa deliberação, será que ela o faz se sentir assim tão bem? Será que não o deixa com uma sensação horrível imediata?

A sabedoria popular nos adverte contra o rigor do julgamento (atire a primeira pedra etc. etc.), mas talvez ele seja consequência do interesse não só pela francesa que Cheever descreve, mas também pela pessoa que nela cospe. Interessante que se descreva o desprezo como sendo “amargo”, como se pudéssemos prová-lo, feito veneno. Dispensá-lo não parece muito melhor que consumi-lo, mas o que mais poderíamos fazer?
JOHN CHEEVER (1912-1982) - escritor norte-americano

O julgamento serve a um propósito crucial, tanto na vida pública quanto na privada. A abolição, o voto feminino, os direitos civis – foi preciso que muita gente denunciasse essas questões para que as coisas começassem a mudar; o problema é que a tecnologia multiplicou tanto as revoltas com que nos deparamos que embotou nossa capacidade de discutir qualquer outra coisa. O que antes eram controvérsias remotas hoje fazem parte da nossa vida de tal maneira que exigem que algo seja feito, agora, por tudo. Ora, esse é um padrão impossível e desmoralizador; até o ativista mais dedicado pode ajudar a resolver apenas uma pequena parte do que afeta sua consciência. Revoltar-se contra o resto insufla seu desejo de agir, mas não muda nada; no máximo, é a recusa de reconhecimento dos limites de seu poder.

Nestes tempos férteis para a recriminação, precisamos encontrar uma forma de guardar nosso julgamento para os casos que valham as consequências que geram nos outros e em nós mesmos. Em nome dos achincalhados injustamente e da nossa própria saúde mental, poderíamos usar uma alternativa ao julgamento.

Acho que consigo encontrar uma na literatura. Estou falando de histórias que pegam uma pessoa comum e a observam, por horas, anos a fio, por dentro e por fora, e procuram ser, se não objetivas, pelo menos imparciais. George Eliot vê as personagens fazendo bobagens e ainda pede ao leitor que não seja muito duro com elas; Cormac McCarthy consegue usar uma linguagem tão isenta de julgamento que parece, enganosamente, pouco preocupado com a consciência. Em algum ponto entre um e outro, Cheever possui a incrível capacidade (como Joan Didion disse das pessoas com respeito próprio) “de amar e permanecer indiferente”.

Os três têm a habilidade da observação profunda. Quando descrevem em detalhes um conflito que nos força à tomada de posição, mas se abstêm explicitamente de fazê-lo, não estão ignorando os riscos morais, mas sim nos forçando a uma reação que é mais um desafio do que aprovação ou desaprovação. Sob a influência do nosso comedimento, nossa consciência se envolve de outra maneira, como testemunha.

Essa palavra tem um significado mais amplo do que normalmente lhe permitimos. O “Dicionário de Inglês Oxford” define testemunha como, entre outras coisas, “aquele que está ou esteve presente e pode comprovar o fato a partir da observação pessoal”. E também inclui um significado mais antigo: “conhecimento, compreensão, sabedoria”.

Cheever descreve o “meio sorriso vazio” da mulher, o banquinho de três pernas no qual ela se senta, o bigode grisalho do homem que leva a navalha ao couro cabeludo dela –informações neutras, sensoriais, que se enchem de tensão por causa da crise moral. Basta acrescentar uma palavra julgadora como “diabólico” antes de “bigode” para ver a crise se transformar em um sermão bizarro que não tem o poder de atingi-lo no íntimo.

Testemunhar é ignorar o menos possível. Uma vez que o julgamento quase sempre afeta a capacidade de perceber o que não está de acordo com ele, a testemunha opta por se abster de julgar, pelo menos temporariamente.

Se ela assiste a um documentário sobre a suposta história de abuso infantil de um cantor, não pode contar com a desculpa esfarrapada de que não pôde deixar de ver, pois está admitindo que optou por ver. E, tendo escolhido, tem a responsabilidade consigo mesma de notar o que vê –as cores mutantes dos guarda-chuvas do cantor, que variam a cada dia a caminho do tribunal, a cadeira de couro na qual o denunciante se senta em frente às câmeras.

É o olhar irrefletido –embasbacado, fixo, capaz de absorver somente os aspectos mais indecentes da história– que leva ao acesso de fúria, súbito, forte, nauseabundo. Mas a testemunha, atendo sua sensibilidade a esses detalhes neutros, e não só às alegações revoltantes, interrompe o hábito de condenar e permite criar uma reação moral própria.

É muito comum nos sentirmos presos à tribuna dos jurados, mas a verdade é que nos colocamos ali – e, se o fazemos, também podemos optar por sentar à cadeira das testemunhas. Livres da responsabilidade de chegarmos a um veredito, nosso novo papel é separar o que é suposição de conhecimento. Observar o mundo dessa forma, seja nas páginas ou na rua, nos liberta da tirania de nossas próprias opiniões, mesmo em relação àqueles que se comportaram de maneira considerada imprópria.

E não é uma reação menos consciente, em relação à moral, do que julgar alguém.

Observação: este artigo foi publicado originalmente no New York Times (Estados Unidos).

Fonte: Folha de S. Paulo – Ilustríssima – Quinta-feira, 14 de março de 2019 – 22h16 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui.

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