«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 2 de abril de 2019

O machismo e a Bíblia

O fundamentalismo está presente

Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo

O uso de textos sagrados para reforçar comportamentos misóginos
deve ser rechaçado a partir de uma leitura que considere
o contexto histórico das Escrituras
FÉ E IGUALDADE
Feministas protestam contra o sexismo na religião:
é hora de mudar a visão evangélica sobre a mulher

(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Os equívocos hermenêuticos da visão bíblica e teológica a respeito da mulher deveriam ter ficado na poeira da história, mas ressurgiram com força no Brasil contemporâneo — um reflexo de antigos ensinamentos fora de contexto propagados em igrejas lideradas por homens e da mentalidade de setores evangélicos que ocupam a cada dia mais espaço no noticiário. Intérpretes fundamentalistas defendem a ideia de que os textos bíblicos exigem a subordinação total da mulher ao homem ou, no mínimo, sendo a mulher casada, que ela deva ser submissa ao marido.

As passagens mais utilizadas para sustentar essa desigual relação entre homem e mulher são extraídas dos escritos de São Paulo. Diz, por exemplo, o apóstolo: “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja” (Efésios 5,22-23), e “a mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio” (1 Timóteo 2,11-12). Interpretados fora de seu contexto histórico e tomados como mandamentos literais, tais textos perpetuam a estrutura patriarcal e machista das culturas que foram o berço da tradição bíblica.

Os tempos bíblicos, tanto do Velho quanto do Novo Testamento, eram absolutamente masculinos. Dias difíceis para ser mulher. O mundo helênico onde viveu o apóstolo Paulo não guardava o menor apreço pelo gênero feminino. Aristóteles acreditava que a mulher era “um homem malfeito”. Seria destituída de alma racional e destinada apenas à procriação. Platão e Sócrates citam um dito popular que encorajava os homens a agradecer três bênçãos ao destino: ter nascido humano, e não animal; homem, e não mulher; grego, e não bárbaro. Talvez daí tenha vindo a oração comum aos judeus dos dias de Jesus, que agradeciam a Deus o fato de não terem nascido mulher, cachorro ou samaritano — isto é, miscigenado. Por isso, o bom entendimento da Bíblia nos dias atuais exige que se leve em conta o mundo em que ela foi escrita.

O apóstolo Paulo é, na verdade, um injustiçado nessa matéria. Embora ainda limitado às tradições de seu tempo, ele foi responsável por grandes guinadas na maneira como a mulher passou a ser percebida e tratada. É de sua pena também a expressão que demanda que o marido ame a esposa como Cristo amou a Igreja (Efésios 5,22-33), conceito subversivo e revolucionário para os ouvintes originais, de um período em que o cuidado com a mulher não se mostrava uma prioridade. Em sua epístola de orientação ao jovem Timóteo, Paulo trata da questão da relação homem-mulher, discorrendo a respeito dos dois principais argumentos utilizados em sua época para afirmar a primazia do homem: “Primeiro foi formado Adão, e depois Eva. E Adão não foi enganado, mas sim a mulher, que, tendo sido enganada, tornou-se transgressora” (1 Timóteo 2,13-14). Os dois argumentos fundamentais são o princípio da ordem da criação — o homem foi criado primeiro — e o princípio da ordem do pecado — a mulher foi enganada primeiro.

Ao voltarmos ao início da Bíblia, encontraremos no Gênesis a ordem da criação acompanhada de versículos que, se lidos com a intenção de exaltar o gênero masculino, reforçam a condição subalterna da mulher. “E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea” (Gênesis 2,18). As traduções restringem a mulher aos papéis de “ajudadora idônea (para o homem)”, “auxiliar que corresponda (ao homem)”, “alguém que ajude (o homem) como se fosse sua outra metade”, “alguém que ajude e complete (o homem)”. O acolhimento literal e isolado desse relato reforça a noção de que a mulher foi criada por causa do homem e está a serviço dele.

Não se deve esquecer, entretanto, aquilo que diz o mesmo Gênesis, em seu primeiro capítulo, versículos 26 e 27:Então disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão. Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Ou seja: homem e mulher foram criados à imagem de Deus — e em pé de igualdade. Na ordem da criação, portanto, a relação homem-mulher articula-se a partir de conceitos como a diversidade e a complementaridade. A imago Dei — ou seja, a imagem de Deus — não repousa exclusivamente no homem ou na mulher, mas na unidade humana; não foi somente o homem criado à imagem e semelhança de Deus, mas toda a raça humana, numa unidade indissociável entre masculino e feminino.
ED RENÉ KIVITZ
Autor deste artigo

Desde Eva, a mulher foi estigmatizada como causadora de males. Uma ideia perigosíssima que, perpetuada, faz com que até hoje mulheres sofram abusos e violências físicas. Basta ver os absurdos ditos por Tertuliano (160-220), o primeiro autor cristão, chamado de “Pai da Igreja”: “Você, mulher, é o portão de entrada do inferno; é a primeira desertora da lei divina. Você destruiu, e de modo tão frívolo, a imagem de Deus, que é o homem. Como consequência da sua deserção — isto é, a morte —, até mesmo o Filho de Deus teve de morrer”.

É imprescindível que líderes religiosos revejam a maneira como a mulher é tratada dentro dos templos — até pelo impacto que suas pregações possam ter sobre o destino delas fora das igrejas. A síntese bíblico-teológica da equidade na relação homem-mulher é irrefutável. Apesar de ter sido criado primeiro, o homem perpetua sua existência ao nascer da mulher, e nisso se reafirma a interdependência de ambos — verdade fundamental do Novo Testamento, outro conceito revolucionário de São Paulo (1 Coríntios 11,11-12). Machismo e misoginia são heranças históricas, sociais e culturais sustentadas por equivocadas tradições da interpretação bíblica e precisam ser urgentemente rechaçadas, inclusive com a autoridade da própria Bíblia. O texto sagrado aponta sempre na direção da superação de todas as injustiças e da afirmação de todos os seres humanos no mesmo patamar de dignidade, como seres criados à imagem e semelhança de Deus.

Fonte: revista VEJA – Página aberta – Edição 2628 – ano 52 – nº 14 – 3 de abril de 2019 – Págs. 72-73  Internet: clique aqui.

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