As escolas pós-pandemia

Coronavírus terá efeito colateral de ampliar desigualdade na educação

Alexandre Schneider*

Estudantes não podem ser vítimas de processo em que
se finge que se ensina e se aprende
Coronavírus terá efeito colateral de ampliar desigualdade na ...
Sem lápis, canetas e caderno para desenhar, Raphaela dos Santos, 4 anos, contou que a brincadeira
que mais gosta são os jogos no celular

Foto: Marlene Bergamo / Folhapress

Ao redor do mundo a pandemia do novo coronavírus desafia estudantes, pais, professores, escolas, redes públicas e privadas. Neste momento há mais dúvidas que certezas em relação:
* ao método mais adequado para garantir a aprendizagem por ensino remoto,
* quando e como deve ser realizado o retorno às aulas presenciais e
* o que deve ser feito no retorno para recuperar as aprendizagens dos alunos.
* Por fim, há ainda a dúvida em relação ao impacto da pandemia na educação básica: o que muda?

Se temos uma certeza nos dois hemisférios é a de que a desigualdade educacional será ampliada nesse período. A articulista do The New York Times Dana Goldstein listou três estudos interessantes sobre o impacto da epidemia da Covid-19 no desempenho dos 55 milhões de estudantes americanos. Nenhum deles nos dá notícias alvissareiras.

O primeiro deles, do Annenberg Institute da Universidade de Brown, indica que os estudantes norte-americanos devem voltar às escolas em setembro com uma perda de aprendizagem da ordem de 30% em leitura e de 50% em matemática.

Pesquisadores da Universidade Harvard e da Universidade Brown realizaram uma pesquisa para avaliar o efeito do uso de um software de matemática antes e depois da pandemia com 800 mil alunos. De janeiro a abril o desempenho dos estudantes de baixa renda caiu 50%, enquanto os de estudantes que vivem de comunidades de renda mais alta não tiveram alteração de desempenho. Já em junho a queda foi de 78% para os de baixa renda.

A consultoria McKinsey também produziu uma análise indicando que os estudantes “perderão” sete meses, com os estudantes negros e latinos perdendo em média 10 meses de aprendizado por causa do fechamento das escolas.

Por compreender os efeitos da pandemia na ampliação da desigualdade educacional, a cidade de Nova York decidiu não reprovar estudantes este ano. Aqueles com desempenho abaixo do esperado serão acompanhados e terão atividades de reforço nas férias e no próximo ano letivo.
Sem internet, merenda e lugar para estudar: veja obstáculos do ...
Alunos do sertão nordestino recebiam merenda em centros educacionais - com aulas suspensas,
passam fome e sede. Projeto voluntário coloca em prática ações emergenciais para ajudar a população.

Foto: Divulgação/Amigos do Bem

No Brasil, onde a desigualdade é ainda maior do que a americana, é urgente adotar medidas capazes de recuperar as aprendizagens dos estudantes. Se o dilema de um pai de classe média é dividir o computador que usa para trabalhar com o filho que realiza tarefas da escola, os mais pobres não têm sequer um espaço em casa para estudar.

É preciso coragem para flexibilizar o currículo, escolher aquilo que deve ser ensinado até o fim deste ano com qualidade, entender este ano letivo e o próximo como um ciclo e garantir que todos aprendam o esperado em dois anos letivos.

Nossos estudantes não podem ser vítimas de uma prática cruel: o simulacro, um processo em que se finge que se ensina e se aprende.

No momento em que escrevo esse artigo chega a notícia de que Pequim cancelou a volta às aulas porque foram registradas transferências comunitárias de Covid-19 na cidade. O Brasil, onde a epidemia é mais grave que na China, está abrindo suas cidades.

Qual o melhor caminho no caso da educação? Começar pela educação infantil, para facilitar a volta ao trabalho das mães? Ou pelos maiores, onde o risco de transmissão é mais baixo? Usar o critério técnico ou o político?

Aprendemos algumas coisas nesta pandemia, como a capacidade de reinvenção e de entrega dos professores, que na maioria das vezes com recursos próprios têm se desdobrado para dar aulas ou elaborar materiais para uso remoto.

Nenhum profissional é hoje tão acompanhado quanto o professor. Com os filhos em casa, pais e responsáveis têm clareza de que a docência não é trabalho para amadores.

Também aprendemos a necessidade de repensar a relação entre tecnologia e educação:
* O fetiche das salas de aula hiperconectadas deverá ser substituído pelo uso mais intensivo da tecnologia como suporte à aprendizagem e
* a uma mudança na organização das aulas, com menos tempo dedicado à transmissão de conhecimento e mais às atividades coletivas.

A fotografia que emerge na educação após 90 dias de isolamento não é bela. Mas nos dá a oportunidade de compreender o tamanho das nossas desigualdades educacionais e enfrentá-las.

Basta eleger a redução dessas desigualdades educacionais como meta, em detrimento da compra de sistemas e aplicativos milagrosos.

* Alexandre Schneider é pesquisador visitante e professor adjunto da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP, consultor e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.

Fonte: Folha de S. Paulo – Coronavírus – Saúde – Domingo, 14 de junho de 2020 – Página B2 – Internet: clique aqui.
Escolas deveriam se tornar ponto de apoio às famílias na periferia ... 
Escolas deveriam se tornar ponto de
apoio às famílias

Adriano Sousa*

Instituições de ensino poderiam fazer distribuição de cestas básicas
no lugar das merendas e dar apoio psicológico

Caminhamos para cem dias sem aulas presenciais nas redes de ensino básico regular de São Paulo e também nas diversas iniciativas de educação popular, como a Uneafro-Brasil, que preparam jovens negras, negros e periféricos para entrarem nas universidades públicas e particulares (neste caso, principalmente as que oferecem bolsas do ProUni e Fies).

Entre as alternativas para “salvar” o ano letivo no ensino básico e manter os estudantes focados na preparação para os principais vestibulares, as ferramentas de EAD (educação a distância) têm despontado como “solução” em tempos de pandemia.

O contexto é grave e até as escolas particulares que tomaram essa medida enfrentam dificuldades. Seu quadro docente está se capacitando às pressas para transportar o ensino presencial para o virtual, em novas plataformas que se multiplicam.

E se é assim nas escolas particulares, que contam com mais estrutura,
no ensino público a dificuldade é infinitamente maior:
como garantir ensino a distância para uma massa de estudantes
que não possui acesso à internet e que, quando se conecta,
o faz a partir de aparelhos defasados e com pacotes de dados limitados?

Quando se discute acesso ao ensino virtual, conseguir estudar em casa tem se mostrado um privilégio de poucos: no Brasil,
* 33% dos domicílios não têm internet e
* 58% não têm nem mesmo acesso a computadores,
segundo dados da pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), publicada em 2019 e referente a 2018.

Esse percentual inclui jovens que estão preocupados com o presente de suas famílias, que perderam o emprego e a renda e se depararam com uma situação crítica, e que agora também correm o risco de serem obrigados a realizar o Enem, mesmo sendo visivelmente os mais prejudicados pela pandemia.

Trata-se da realidade que atinge em cheio trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, moradores das periferias urbanas e dos rincões rurais do país, territórios onde vive uma população de maioria negra e indígena. Como se preparar para o futuro se o presente é uma ameaça?
Alunos de hoje serão formados em mundo revirado pela pandemia - 13 ...
A pedagoga Simone Inácio, com os filhos, Isadora e Isaac, fazendo atividades em casa
Foto: Danielle Lobato / Agência Mural / Folhapress

No ensino básico público, uma alternativa seria tornar as escolas prioritariamente ponto de apoio às famílias:
a) com distribuição universal de cestas básicas para os estudantes no lugar das merendas e
b) a efetivação, em regime de urgência da Lei Federal 13.935/2019, promulgada no final do ano passado pelo Senado, que institui a obrigatoriedade da presença de assistentes sociais e psicólogos nas escolas.

Esses profissionais atuariam nos territórios reforçando a rede de assistência social municipal, orientando a população sobre como acessar renda e serviços, além de apoiá-la psicologicamente nesse momento de relações pessoais fraturadas.

Essas questões deveriam ser prioritárias, pois, segundo depoimentos de professores da rede municipal de ensino da região de Sapopemba, por exemplo, a cada 30 alunos matriculados nas plataformas digitais em média 5 participam das atividades. Somente após a pandemia realmente controlada e com o reforço em aulas presenciais poderemos ter um ensino-aprendizagem de qualidade.

No âmbito da educação popular, o foco tem sido justamente o apoio material e alimentar e as orientações de saúde e psicológicas para alunos e familiares. Como exemplo temos as campanhas Agentes Populares de Saúde e Combate ao Genocídio pela Covid-19, promovidas pela Uneafro-Brasil, oferecendo respectivamente orientações de saúde e arrecadando valores convertidos em cestas básicas para as comunidades periféricas das áreas dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro onde o movimento atua.

Na frente de educação, engrossamos a organização de cursinhos populares, de entidades estudantis de todo o país e da plataforma Nossas na campanha Sem Aula, Sem Enem, que pauta o adiamento da prova para 2021, assim que os anos letivos tenham, de fato, se encerrado.

De todo modo, entendemos que para aqueles que conseguem se preparar para o Enem é essencial o acesso à internet e, por isso, nos juntamos ao mesmo grupo na campanha de financiamento 4G Para Estudar, que pauta o acesso à internet para jovens negros e periféricos a partir de financiamento coletivo para compra de dados de celular.

A campanha tem sensibilizado amplos setores da sociedade, tendo atingido sua primeira meta – R$ 100 mil – em menos de 24h. Agora o grupo trabalha para aumentar a arrecadação até R$ 350 mil, para incluir mais cursinhos e aumentar a cobertura mensal de dados dos estudantes dos pré-vestibulares já contemplados. O funcionamento do Núcleo Virtual da Uneafro, por exemplo, depende em muito do sucesso dessa iniciativa.

De todo modo, percebemos o quanto a educação popular, mesmo com suas limitações materiais, pode fornecer meios para pautar um outro papel para a escola pública, no auxílio geral à população, e o questionamento da exclusão digital de nossos jovens de periferia. Prova de que a organização dos movimentos negros e periféricos muito tem a oferecer para a superação das desigualdades no país.

* Adriano Sousa é Bacharel em história e mestrando em história social na USP; atua como educador popular e coordenador da Uneafro-Brasil na zona leste de São Paulo.

Fonte: Folha de S. Paulo – Coronavírus – Saúde – Domingo, 14 de junho de 2020 – Página B5 – Internet: clique aqui.

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