A geração narcisista! Olha eu aqui!
Sérgio Augusto
Na mais recente contribuição à bibliografia sobre o
narcisismo,
autora oferece um conselho para lidar com todo tipo de
superególatra:
antes que seja tarde, fuja!
Eles
estão por toda parte. Em lugares suspeitos e insuspeitos. A qualquer hora são
vistos, e é justamente isso o que eles mais desejam. Nos Jogos Olímpicos, deram
um show coletivo: de olho no telão,
acenando para as lentes da TV, “Ó, nós
aqui!” Narciso se mirava nas águas de um rio, nossos narcisistas não podem ver um espelho ou uma câmera.
(Leia, depois, o artigo abaixo deste, no qual é melhor explicado o
conceito
de «narcisismo» e quem é Narciso).
Sua
vocação para papagaios de pirata é inexcedível. Se ninguém os filma ou fotografa, uma selfie,
essa cocaína especular, quebra o galho. Suprassumo do onanismo fotográfico,
a selfie foi o maior presente que a era
digital ofertou às pessoas mais carentes de atenção, reconhecimento e adulação.
Ególatras e exibicionistas, não resistem a um flagrante de si mesmos, estejam
onde estiverem, a sós ou acompanhados. Dane-se
a paisagem, dane-se o entorno, dane-se a Monalisa meio desfocada ao fundo. “Ó,
eu aqui!”
Não
foi pelo simples prazer de brincar com as palavras que neologismos como “selfish” e “narcistick” foram inventados. “Selfish”
é um amálgama perfeito de selfie com egoísta,
em inglês; “narcistick”, uma mistura
de narcisista com stick, pau de selfie em inglês. A
pandemia de selfies veio confirmar uma suspeita: o espectro do narcisismo ronda o planeta, germe de outro vocábulo
recente – narcisfera, que é onde os
embeiçados pela própria imagem (não apenas no sentido icônico) gravitam com
mais intensidade e desfaçatez, a inundar
as redes sociais de inanidades verbais e irrelevâncias visuais que deveriam ser
de consumo restrito. E mais outro: narcifobia, que é a aversão que nos
provocam os autocentrados internautas do Facebook, do Instagram e do Twitter.
Como não ter medo de pessoas
com excessiva (e invasiva) autoestima? Medo e, em muitos casos, inveja. Pois se nem toda
selfie evidencia um “transtorno de personalidade narcisista” (para usar o termo
científico popularizado pelo psicanalista Heinz
Kohut, meio século atrás), nem toda autoestima excessiva faz mal à saúde
psíquica; às vezes pode ser saudável, estimulante, terapêutica, defende o
doutor Craig Malkin em Rethinking
Narcissism (“Repensando o Narcisismo”), provocante estudo sobre os
malefícios e benefícios do narcísico culto ao bem-estar, ao protagonismo e à
soberba benigna.
Como estimar qual a taxa
ideal de autoestima?
A partir de que ponto a
autoestima torna-se destrutiva e autodestrutiva?
Ao
contrário da febre, da hipertensão e dos terremotos, não existe um instrumento nem uma escala para mensurar isso. Se
algum cientista por ventura inventá-la, não lhe faltarão nomes mais apropriados
que o seu para batizá-la: Escala Kim Kardashian, Escala Justin Bieber, Escala
Donald Trump, Escala Kenye West. Todos irreprocháveis.
Um
analista político insinuou há tempos a emergência de um novo sistema
bipartidário na América, não mais opondo democratas e liberais a republicanos e
conservadores, mas narcisistas (sob a sigla PN) e seus antípodas (do Partido da
Baixa Estima). Por seu próprio jeito mercurial de ser e por seu fetiche do
excepcionalismo americano, Trump seria filiado ao Partido Narcisista – o mais afinado, por sinal, com a maioria
dos políticos, bons (Franklin Roosevelt), maus (Collor) e ditadores (Hitler,
Stalin, Mao, Gadhafi). Por motivos óbvios, Bill
Clinton seria colega de legenda de
Trump, até porque o impulso libidinal é elemento destacado na caracterização do
narcisista.
Ou
foi, quando Freud enfiou sua colher no conceito colhido na mitologia grega
pelos clínicos ingleses Havelock Ellis
e Paul Näcke, ainda no século 19.
Quatro anos antes de produzir seu estudo sobre o narcisismo, em 1914, Freud já usava o termo para explicar “a escolha de objetos nos homossexuais,
que primeiro tomam-se a si mesmos como
objeto sexual (...) e procuram
jovens que se pareçam com eles, e a quem possam amar como a mãe os amou a eles”.
Depois, sua análise embrenhou-se por outras veredas, para alívio dos gays e das
mulheres, ainda que muitas delas, fiéis ao arquétipo delineado por Freud, não
consigam passar por uma vitrine (até de açougue serve) sem dar uma espiada de
soslaio em sua refletida silhueta.
Tradução do título do livro: "O Egoísmo dos Outros: um ensaio sobre o medo do narcisismo" Autora: Kristin Dombek |
De
tanto ouvir falar numa “epidemia de
narcisismo” (segunda no ranking de expressões prêt-à-porter, a primeira ainda é “banalidade do mal”) e de ler a
respeito de NPD (a sigla em inglês de Transtorno de Personalidade Narcisista), Kristin Dombek resolveu investigar a
procedência da metástase narcísica e a transformação de um problema psíquico
individual em fenômeno cultural, de resto, retratado (por Tom Wolfe) e
analisado (por Christopher Lasch) em seu primeiro apogeu, na década de 1970,
adrede rotulada de “Me decade”.
Admirada
por seus conselhos de alta (repito: alta) ajuda nas revistas The Paris Review e n+1, Dombek escreveu um
rico e sombriamente engraçado ensaio de 140 páginas, The Selfishness of Others
(“O Egoísmo dos Outros”, a US$ 10 na versão kindle), com ênfase na narcifobia
e como o temor aos que fazem do mundo um espelho pode distorcer nossas relações
interpessoais. É a mais recente contribuição teórica à colossal
narcisobibliografia.
Assim
como existem narcisistas de variada
espécie e periculosidade – inofensivos (a turma do selfie e da autopromoção
nas redes sociais), vaidosos, gabolas delirantes (“eu já transei com mais de 20
garotas da Playboy”), agressivos, fálicos, corporativos (vulgo bozós),
farisaicos, oniscientes – existem livros
que nos ensinam a farejá-los à distância (pelos mimos maternos, pelas postagens
na internet), a distingui-los de perto
(pelo mau comportamento social: loquazes, autorreferentes, espalhafatosos,
arrogantes), e a lidar com cada um deles,
seja para evitá-los, desmascará-los e combatê-los de igual para igual.
Como se defender de um
narcisista extremado?
Joseph Burgo, autor de The
Narcissist You Know (“O Narcisista que Você Conhece”), tem as dicas
necessárias. Como se vingar de um narcisista e usar contra ele as técnicas
secretas da manipulação emocional por ele utilizadas? Leyla Loric e Richard
Grannon ensinam em How to Take Revenge On a Narcissist
(“Como se Vingar de um Narcisista”).
Dombek, de quem já lera
observações inteligentes sobre sexo, aborto e descrença religiosa, navega pela
mitologia grega, a literatura clássica (o inevitável Ovídio), a teoria
psicanalítica (Freud, Alice Miller, Donald Winnicott, Otto Kernberg), por
reality shows, pela autoajuda online, pela psicosociologia pop. Ela faz questão de distinguir bem os
narcisistas prosaicos [comuns]
daqueles que postam mensagens superególatras nas redes sociais, pegam em
armas e invadem shoppings, escolas e cinemas, para extravasar seu instinto
homicida. Seu único conselho: fuja antes
que seja tarde. Dos dois.
Fonte: O Estado de S. Paulo
– Suplemento ALIÁS – Domingo, 28 de agosto de 2016 – Pág. E2 – Internet: clique aqui.
O que é narcisismo?
Maria Laurinda
Ribeiro de Souza*
Com base nas ressonâncias desse termo, Freud
desenvolveu
um dos conceitos mais importantes de sua teoria
ECO & NARCISO Pintura de óleo em tela por John William Waterhouse de 1903 - Museu Nacional (Liverpool - Inglaterra) |
Muitas
vezes a palavra “narcisismo” é utilizada no senso comum de maneira pejorativa,
para designar um excesso de apreço por si mesmo. Para a psicanálise, trata se de um aspecto fundamental para a
constituição do sujeito. Um tanto de amor por si é necessário para
confirmar e sustentar a autoestima, mas o
exagero é sinal de fixação numa identificação vivida na infância.
A ilusão infantil de que o mundo gira ao nosso redor é decisiva
nessa fase, mas para o desenvolvimento
saudável é necessário que se dissipe, conforme deparamos com frustrações e descobrimos que não ser o centro do
universo tem suas vantagens. Afinal, ser “tudo” para alguém (como
acreditamos, ainda bem pequenos, ser para nossa mãe) é um fardo pesado demais
para qualquer pessoa. Alguns, no entanto,
se iludem com o fascínio do papel e passam sua vida almejando o modelo
inatingível de perfeição.
Diz
o mito grego que Narciso era uma criança tão linda e admirada que sua mãe,
Liríope, preocupada com esse excesso, levou-o até o sábio Tirésias. Ele lhe
disse que o menino só teria uma vida longa se jamais visse a própria imagem.
Por muito tempo essas palavras pareceram destituídas de sentido, mas os
acontecimentos que se desenrolaram mostraram seu acerto. Na adolescência, Narciso era um jovem belíssimo, mas muito soberbo.
Ao passear certo dia pelo campo, a jovem Eco o viu e se apaixonou por ele, mas o rapaz a
repeliu. Um dia, cansado, Narciso
dirigiu-se a uma fonte de águas límpidas. Eis então que a profecia se
realiza: ao ver-se refletido no espelho
das águas, enlouqueceu de amor pelo próprio reflexo. Embevecido, não tinha
olhos nem ouvidos para mais nada: não
comia ou dormia. Em vão, Eco suplicava seu olhar. Mas Narciso só olhava
para si. Apaixonado, ensimesmado, busca para aplacar sua dor um outro que, sendo
ele mesmo, não lhe responde. Realiza-se,
então, seu destino: mergulha no espelho e desaparece no encontro impossível.
Sem a possibilidade de
reconhecimento do que é a própria imagem e do que é o outro, o corpo de Narciso
tornou-se pura miragem e desfez-se nas águas... E Eco,
que só a Narciso perseguia, só por ele clamava, só nele vivia, petrificou-se e
perdeu o poder de sua própria palavra. Narciso
não cria laços; não partilha seu encanto. Perde-se na imagem de si. Eco também se perde e, no desencontro,
entrega-se à repetição compulsiva, sem poder se separar da miragem idealizada.
Com base nas ressonâncias
desse mito Freud desenvolverá um dos conceitos mais importantes de sua teoria –
o NARCISISMO.
Mencionado pela primeira vez em seus escritos em 1909, é apresentado como uma fase própria do desenvolvimento humano,
quando se realiza a passagem do autoerotismo, do prazer centrado no próprio
corpo, para o reconhecimento e a busca do amor em outros objetos – diferentes
de si. Passagem importante e cheia de inquietações já que implica a saída da gratificação por aquilo que é
efeito apenas da própria imagem – “Narciso
só reconhece o que é espelho” – para a realização de uma das conquistas
mais importantes da cultura: a possibilidade de viver, aceitar e trabalhar com
a alteridade e, portanto, com as diferenças.
Freud
aborda explicitamente esse conceito – efeito do confronto vivido por ele mesmo
ao deparar com argumentos de Adler e Jung, que questionavam suas teorias acerca
do lugar ocupado pela sexualidade na constituição da subjetividade e na
compreensão das patologias. A legitimidade do conceito justificou-se a partir
da experiência freudiana com a clínica, naquilo que reconheceu como resistência
dos pacientes em abandonar suas posições amorosas, nas manifestações da
onipotência infantil e do pensamento mágico, nas doenças orgânicas e na
hipocondria – quando toda a libido se volta para o corpo doente – e nos
delírios de grandeza das psicoses. Em O mal-estar na civilização, de 1930,
Freud diz que um dos grandes obstáculos
do homem em sua busca pela felicidade, e que lhe traz maiores dificuldades, é o
sofrimento resultante das relações humanas,
pois elas nos colocam em confronto com aquilo que, não sendo espelho, nos
solicita novos posicionamentos.
Toda criança, ao nascer, é
banhada por vários olhares e desejos. Quando se contemplar no espelho, não verá o
simples reflexo físico de uma imagem, mas tudo o que esses olhares depositaram
no seu corpo. É um momento fulgurante de “sua majestade, o bebê!”. Júbilo para a criança e para os pais, que
veem renascer das cinzas sua própria imagem idealizada e todos os seus anseios
irrealizados. Instante de narcisismo primário – constitutivo e alienante. O bebê será um herói, vencerá todos os
perigos; trata-se de um momento necessário, mas cheio de riscos. Se não
ocorre, a imagem de si pode não se constituir, pode se fragilizar, parecendo
insuficiente. Se for excessivo, torna-se
aprisionante, comprometendo o futuro, a possibilidade de construção de projetos
e os ideais.
Se tudo correr bem, a
criança se desligará desse olhar primordial e escapará do destino fatal de
Narciso –
embeber-se, afogado, na tentativa de perpetuar o encontro com a imagem que as
águas lhe devolviam. Os desdobramentos do narcisismo são de fundamental importância
para a análise do mundo em que vivemos. A
valorização da imagem e do sucesso a qualquer custo reduz a tolerância das
mínimas divergências – o que Freud chamou de narcisismo das pequenas
diferenças – e acirra os conflitos, seja
nas pequenas discordâncias do cotidiano ou nos grandes conflitos bélicos.
Se o outro não me satisfaz, se não é espelho daquilo que almejo, se tenta opor
se às minhas vontades e ameaça minha autoestima, eu o aniquilo. O terreno é propício para preconceitos,
fanatismos e violência.
A
tragédia vivida por Narciso não nos abandona. Deixa sempre restos que nos fazem
seguir pela vida tentando reencontrar o olhar mágico que nos enlevava e nos
dizia tudo que éramos. Busca incessante de certezas, de entrega passiva às
ilusões...
*
Maria Laurinda Ribeiro de Souza é psicanalista,
membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso Psicanálise, do mesmo Departamento. É autora de Mais além do sonhar (com aquarelas de
Ada Morgenstern), Marco Zero, 2003 e de Violência,
Casa do Psicólogo, 2005, entre outras publicações.
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