Papa emérito, Bento XVI, diz porque renunciou
Ratzinger, a confissão:
“Muito cansado, por isso deixei o ministério petrino”
Elio Guerriero
Jornal “La Repubblica”
24-08-2016
«Depois da experiência no México e em Cuba, não me
sentia mais apto a fazer uma viagem difícil como aquela para a Jornada Mundial
da Juventude, em 2013, no Rio de Janeiro. Onde, pela perspectiva dada por João
Paulo II, a presença física do Papa era indispensável».
PAPA EMÉRITO BENTO XVI Nome de batismo: Joseph Aloisius Ratzinger, nasceu em 16 de abril de 1927, está com 89 anos. |
Em
Roma, o céu está carregado de nuvens ameaçadoras, mas quando chego a Mater Ecclesiae, a residência do Papa emérito, um inesperado raio de sol enaltece,
abaixo, a harmonia da cúpula de São Pedro e dos jardins do Vaticano. “O meu
paraíso”, havia comentado, em uma visita anterior, Bento XVI. Sou levado a sala
que é, atualmente, a biblioteca privada e, de forma espontânea, penso no título
do livro de Jean Leclercq, O amor às letras e o desejo de Deus,
citado por Bento XVI no famoso discurso no Colégio dos Bernadinos em Paris. [Este livro está traduzido em português, veja foto da capa
abaixo]
O
Papa chega depois de alguns minutos, cumprimenta com o sorriso e a cortesia de
sempre, e logo me diz: “Estou no quinze”.
Não entendo, por isso repete: “Li quinze
capítulos”. Estou verdadeiramente surpreso. Alguns meses antes, enviei-lhe
boa parte do livro, mas nunca esperaria que o lesse por inteiro. Ofereço-lhe os
outros capítulos e lhe digo que agora falta pouco. Ele está contente com aquilo
que leu e assim acrescento: “Importa-se se fizer algumas perguntas na forma de
entrevista?”. Responde como sempre, gentil e prático: “Faça-me as perguntas,
depois me mande tudo e veremos”. Obviamente, sigo as instruções. Algum tempo
depois, me escreve consentindo com a publicação. Resta-me agradecer novamente
pela confiança depositada.
Livro mencionado pelo teólogo entrevistador. Publicado no Brasil pela PAULUS EDITORA, no ano de 2012. |
Eis
a entrevista.
Santidade,
visitando pela última vez a Alemanha, em 2011, o senhor disse: “Não se pode
renunciar a Deus”. E ainda: “Onde há Deus, lá há futuro”. Não lhe desagradou
ter que sair no ano da fé?
Papa emérito Bento
XVI: Sem
dúvida, tinha em mente concluir o ano da fé e escrever a Encíclica da Fé que
deveria finalizar o percurso iniciado com Deus
caritas est. Como disse Dante, o amor que move o sol e outras estrelas, nos
impulsiona, nos conduz à presença de Deus que nos doa esperança e futuro. Em
uma situação de crise, o melhor comportamento é aquele de se colocar frente a
Deus com o desejo de encontrar a fé para poder prosseguir no caminho da vida.
Da sua parte, o Senhor é feliz de acolher o nosso desejo, de nos dar a luz que
nos guia na peregrinação da vida. É a experiência dos santos, de São João da
Cruz ou de Santa Terezinha do Menino Jesus. Em 2013, todavia, existiam
numerosos compromissos que eu acreditava não mais conseguir finalizar.
Quais
eram esses compromissos?
Bento XVI: Em especial, já estava
definida a data da Jornada Mundial da Juventude que deveria acontecer no verão
de 2013, no Rio de Janeiro, Brasil. A respeito disso, tinha duas convicções bem
precisas. Depois da experiência de viagem ao México e à Cuba, não me sentia
apto a cumprir uma viagem tão desafiadora. Além disso, com a perspectiva dada
por João Paulo II a essas jornadas, a presença física do Papa é indispensável.
Não se podia pensar em uma transmissão televisiva ou em outras formas de
tecnologia. Essa também era uma circunstância pela qual a renúncia era, para
mim, um dever. Havia, enfim, a confiança necessária que, mesmo sem a minha
presença, o ano da fé seria, de qualquer maneira, um sucesso. A fé, na verdade,
é uma graça, uma dádiva generosa de Deus aos fiéis. Eu tinha, portanto, a firme
convicção de que o meu sucessor, assim como ocorreu, teria, da mesma forma, o
êxito desejado pelo Senhor, na iniciativa por mim iniciada.
Visitando
a Basílica de Collemaggio em Áquila, o senhor fez questão de deixar o pálio
sobre o altar de São Celestino V. Pode me dizer quando chegou à decisão de
dever renunciar ao exercício do ministério petrino para o bem da Igreja?
Bento XVI: A viagem ao México e à Cuba
foi para mim bela e comovente de muitos pontos de vista. No México fiquei
comovido ao encontrar a fé profunda de tantos jovens, experimentando sua alegre
paixão por Deus. Da mesma forma, fiquei impressionado com os grandes problemas
da sociedade mexicana e com o esforço da Igreja para encontrar, a partir da fé,
uma resposta ao desafio da pobreza e da violência. Não há, no entanto,
necessidade de recordar especialmente como, em Cuba, me afetou ver o modo como
Raul Castro quer conduzir o seu país por um novo caminho sem romper a
continuidade com o passado imediato. Mesmo aqui, fiquei muito impressionado com
o modo que os meus irmãos de episcopado tentam encontrar a orientação neste difícil
processo da fé. Naqueles dias, todavia, experimentei, com grande força, os
limites da minha resistência física. Sobretudo, me dei conta de não ser mais
capaz de enfrentar, no futuro, voos transoceânicos pelos problemas do fuso
horário. Naturalmente, falei desses problemas com o meu médico, o Prof. Dr.
Patrizio Polisca. Tornava-se, desta forma, claro que não estaria em condições
de participar da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, no verão de
2013, ao qual se opunha evidentemente o problema do fuso horário. A partir
desse momento, tive que decidir, em um tempo relativamente breve, a data da
minha aposentadoria.
Depois
da renúncia, muitos imaginavam cenários medievais com portas batendo e
denúncias clamorosas. De tal modo que, os próprios comentaristas ficaram
surpresos, quase desiludidos, com a sua decisão de permanecer nos confins de
São Pedro, de subir ao Mosteiro Mater
Ecclesiae. Como chegou a essa decisão?
Bento XVI: Havia visitado muitas vezes
o Mosteiro Mater Ecclesiae desde sua
origem. Frequentemente, dirigia-me ali para participar das Vésperas, para
celebrar a Santa Missa para todas as religiosas que ali estavam. Por último,
estive ali por ocasião da ocorrência do aniversário de fundação das Irmãs
Visitandinas. No passado, João Paulo II decidiu que a casa, que anteriormente
servia de residência ao diretor da Radio Vaticana, devia tornar-se um local de
oração contemplativa, como uma fonte de água viva no Vaticano. Sabendo que
naquela primavera terminava o triênio das Visitandinas, foi-me proporcionada,
quase obviamente, a percepção de que este seria o local onde poderia me
recolher para continuar, ao meu modo, o serviço de oração para o qual João
Paulo II havia destinado a casa.
BASÍLICA DE SÃO PEDRO, NO VATICANO é atingida por um raio justamente no dia da renúncia do Papa Bento XVI |
Não
sei se o senhor também viu uma fotografia de um enviado da BBC que retratava,
no dia da sua renúncia, a cúpula de São Pedro ser atingida por um raio (ver
imagem acima) (Bento faz sinal com a
cabeça de haver visto). A muitos, aquela imagem sugeria a ideia da decadência
ou mesmo do fim do mundo. Agora, porém, devo dizer: esperavam ter pena de um
vencido, um derrotado pela história, mas eu vejo aqui um homem sereno e
confiante.
Bento XVI: Eu concordo totalmente. Eu
deveria, realmente, me preocupar se não estivesse convencido, como disse no
início do meu pontificado, de ser um simples e humilde trabalhador na vinha do
Senhor. Desde o início, estava ciente dos meus limites e eu concordei, como
sempre procurei fazer na minha vida, no espírito de obediência. Depois,
existiram as dificuldades mais ou menos grandes do pontificado, mas houve
também muitas graças. Eu percebi que tudo aquilo que devia fazer não poderia
fazer sozinho e, assim, eu era quase obrigado a me colocar nas mãos de Deus, a
confiar em Jesus que, conforme escrevia meu livro sobre ele, me sentia ligado
por uma antiga amizade, cada vez mais profunda. Em seguida, havia a Mãe de
Deus, a mãe da esperança, que era um apoio seguro nas dificuldades e que sentia
sempre mais próxima ao recitar o Santo Rosário e nas visitas aos santuários
marianos. Por fim, havia os santos, os meus companheiros de viagem de uma vida:
Santo Agostinho e São Boaventura, os meus mestres do espírito, mas também São
Bento cujo lema “nada antepor a Cristo”
me vinha sempre mais familiar e São Francisco, o pobre de Assis, o primeiro a
sugerir que o mundo é o espelho do amor criador de Deus, do qual viemos e para
o qual estamos a caminho”.
Somente
consolações espirituais, então?
Bento XVI: Não. O meu caminho não era
acompanhado somente de cima. Todos os dias, recebia inúmeras cartas, não apenas
dos grandes da Terra, mas também das pessoas humildes e simples que diziam
estar perto de mim, que rezavam por mim. Assim, mesmo nos momentos difíceis,
tinha a confiança e a certeza de que a Igreja é guiada pelo Senhor e que,
portanto, eu podia colocar nas suas mãos o mandato que Ele me havia confiado no
dia da eleição. Aliás, esse apoio continuou mesmo depois da minha renúncia,
pelo qual só posso ser grato ao Senhor e a todos aqueles que manifestaram e
ainda manifestam o seu afeto.
ELIO GUERRIERO é um teólogo e editor italiano do livro-entrevista com o papa emérito Bento XVI, intitulado "Bento XVI. Últimas Conversas" a ser publicado em setembro em vários países. Para saber mais, clique aqui. |
Na
sua saudação de despedida dos Cardeais, em 28 de fevereiro de 2013, desde então
prometeu obediência ao seu sucessor. Enquanto isso, tenho a impressão que o
senhor também garantiu proximidade humana e cordialidade ao Papa Francisco.
Como é o relacionamento com o seu sucessor?
Bento XVI: A obediência ao meu sucessor
nunca foi colocada em discussão. Mas, então, existe o sentimento de comunhão
profunda e de amizade. No momento da sua eleição, eu experimentei, como tantos,
um espontâneo sentimento de gratidão com relação a Providência. Depois de dois
pontífices provenientes da Europa Central, o Senhor lançava seu olhar, por
assim dizer, a uma Igreja universal e nos convidava a uma comunhão mais ampla,
mais católica. Pessoalmente, eu fiquei profundamente comovido, desde o primeiro
momento, com a extraordinária disponibilidade humana do Papa Francisco em
nossos diálogos. Logo após sua eleição, tentou telefonar-me. Não conseguindo
nessa oportunidade, telefonou-me mais uma vez logo após o encontro com a Igreja
universal da sacada de São Pedro e falou comigo com grande cordialidade. Desde
então, me concedeu uma relação maravilhosamente paternal-fraternal.
Frequentemente, chegam, aqui em cima, pequenos presentes, cartas escritas
pessoalmente. Antes de iniciar grandes viagens, o Papa não deixa nunca de me
fazer uma visita. A benevolência humana com a qual me trata é, para mim, uma
graça particular nessa última fase da minha vida, pela qual somente posso ser
grato. Aquilo que diz da disponibilidade com relação a outros homens não são
apenas palavras. A coloca em prática comigo. Que o Senhor lhe faça, por sua
vez, sentir, todos os dias, a sua benevolência. Por isso, eu oro a Deus por
ele.
Traduzido do italiano por Fernanda Pase Casasola. Acesse a versão
original desta entrevista, clicando aqui.
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