Como enfrentar o fundamentalismo
Leonardo Boff
Filósofo,
teólogo e escritor
Cada um é portador de verdade mas ninguém pode ter o
monopólio dela, nem uma religião, nem uma filosofia, nem um partido político, nem
uma ciência. Todos, de alguma forma, participam da verdade.
Atualmente
em todo mundo, se verifica um aumento
crescente do conservadorismo e de fenômenos fundamentalistas que se
expressam pela:
* homofobia [rejeição ou
aversão a homossexual e à homossexualidade],
* xenofobia [desconfiança,
temor ou antipatia por pessoas estranhas ao meio daquele que as ajuíza, ou pelo
que é incomum ou vem de fora do país],
* antifeminismo [rejeição ao
movimento de luta pelo aprimoramento e a ampliação do papel e dos direitos das
mulheres na sociedade],
* racismo [preconceito
extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente,
geralmente considerada inferior] e
* toda sorte de discriminações. *
O fundamentalista está
convencido de que a sua verdade é a única e que todos os demais ou são
desviantes ou fora da verdade. Isso é recorrente nos programas televisivos das
várias igrejas pentecostais, incluindo setores da Igreja Católica. Mas também
no pensamento único de setores políticos. Pensam que só a verdade tem direito,
a deles. O erro deve ser combatido.
Eis
a origem dos conflitos religiosos e políticos. O fascismo [tendência para ou o exercício de forte controle autocrático ou
ditatorial] começa com esse modo
fechado de ver as coisas.
Como vamos enfrentar esse
tipo de radicalismo? Além de muitas outras formas, creio que uma delas consiste no resgate do conceito bom do relativismo,
palavra que muitos nem querem ouvir. Mas
nele há muita verdade.
Ele
deve ser pensado em duas direções: Em primeiro lugar,
o relativo quer expressar o fato de que todos estão de alguma forma relacionados.
Na esteira da física quântica, insiste a encíclica do Papa Francisco “sobre como cuidar da Casa Comum” (Laudato si’): “tudo está intimamente relacionado; todas as criaturas existem na
dependência uma das outras” (n. 137; 86). Por esta inter-relação todos são portadores da mesma humanidade.
Somos uma espécie entre tantas, uma família.
Em segundo lugar, importa compreender que cada um é
diferente e possui um valor em si mesmo. Mas está sempre em relação com outros
e seus modos de ser. Daí ser importante
relativizar todos os modos de ser; nenhum deles é absoluto a ponto de invalidar
os demais; impõe-se também a atitude
de respeito e de acolhida da diferença porque, pelo simples fato de estar-aí, goza de direito de existir e
de coexistir.
Quer
dizer, nosso modo de ser, de habitar o
mundo, de pensar, de valorar e de comer não é absoluto. Há mil outras
formas diferentes de sermos humanos, desde a forma dos esquimós siberianos,
passando pelos ianomâmis do Brasil, até chegarmos aos moradores das comunidades
da periferia e aos moradores de sofisticados Alphaville’s, onde moram as elites opulentas e amedrontadas. O mesmo vale para as diferenças de cultura,
de língua, de religião, de ética e de lazer.
Devemos
alargar a compreensão do humano para além de nossa concretização. Vivemos na fase da geo-sociedade, sociedade
mundial, una, múltipla e diferente.
Todas
estas manifestações humanas são portadoras de valor e de verdade. Mas são um
valor e uma verdade relativos, vale dizer, relacionados
uns aos outros, inter-relacionados, sendo que nenhum deles, tomado em si, é
absoluto.
O autor desta frase é um renomado sociólogo britânico nascido em 1938 (78 anos) |
Então
não há verdade absoluta? Vale o “everything
goes” de alguns pós-modernos? Traduzindo: “vale tudo”? Não há o vale tudo. Tudo vale na medida em que mantém relação com os outros, respeitando-os
em sua diferença e não prejudicando-os.
Cada
um é portador de verdade mas ninguém pode ter o monopólio dela, nem uma
religião, nem uma filosofia, nem um partido político, nem uma ciência. Todos, de alguma forma, participam da
verdade. Mas podem crescer para uma
compreensão mais plena da verdade, na medida em que se relacionam.
Bem
dizia o poeta espanhol António Machado:
“Não a tua verdade. A verdade. Vem comigo
buscá-la. A tua, guarde-a”. Se a buscarmos juntos, no diálogo e na
recíproca relacionalidade, então mais e mais desaparece a minha verdade para dar lugar à nossa Verdade, comungada
por todos.
A ilusão do Ocidente, dos Estados Unidos e da Europa,
é de imaginarem que a única janela que
dá acesso à verdade, à religião verdadeira, à autêntica cultura e ao saber crítico
é o seu modo de ver e de viver. As demais janelas apenas mostram paisagens
distorcidas.
LEONARDO BOFF Autor deste artigo |
Pensando
assim, se condenam a um fundamentalismo visceral que os fez, outrora, organizar
massacres ao impor a sua religião na América Latina e na África e, hoje,
fazendo guerras com grande mortandade de civis, para impor a democracia no
Iraque, no Afeganistão, na Síria e em todo o Norte da África. Aqui se dá também
o fundamentalismo, de tipo ocidental.
Devemos
fazer o bom uso do relativismo, inspirados, por exemplo, na culinária. Há uma só culinária, a que
prepara os alimentos humanos. Mas ela se concretiza em muitas formas e as
várias cozinhas: a mineira, a nordestina, a japonesa, a chinesa, a mexicana e
outras.
Ninguém
pode dizer que só uma é a verdadeira e gostosa, por exemplo, a mineira ou a
francesa, e as outras não. Todas são gostosas do seu jeito e todas mostram a
extraordinária versatilidade da arte culinária.
Por
que com a verdade deveria ser diferente? A base
do fundamentalismo é essa arrogância que de que o seu modo de ser, sua
ideia, a sua religião e a sua forma de governo é a melhor e a única válida no
mundo.
* Todas as definições que se encontram
entre colchetes foram extraídas de: Dicionário
eletrônico Houaiss da língua portuguesa versão 3.0.
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