O Brasil chega à Olimpíada caindo na real
Eliane Brum*
«Entre 2009 e 2016 aconteceu muita coisa. Mas aconteceu principalmente
2013. Se há algo que não vira passado facilmente é 2013, o incontornável que
tantos querem contornar. É nos protestos
das ruas que fica evidente que o imaginário de conciliação não poderá mais ser
sustentado. Desde então, não há combinação, recolocação ou arranjo possível
que dê uma imagem coesa ao Brasil – ou uma cara “brasileira” ao Brasil. As fraturas que historicamente foram
ocultadas ou maquiadas já não podem ser. O Brasil ou os Brasis tornaram-se
irredutíveis à conciliação também na produção de imagens e de símbolos.»
O mais fascinante desta
Olimpíada no Rio é a negação de uma ideia de Brasil. É a impossibilidade de apresentar um imaginário coeso sobre o país para
fora – e também para dentro. É a
total impossibilidade de conciliação. Esta é a potência do momento – confundida
às vezes com fracasso, com estagnação ou mesmo com impotência. O Brasil chega à
Olimpíada sem que se possa dizer o que o Brasil é.
Para
que isso se torne mais claro, é preciso
voltar ao ano de 2009, ao momento em que o Brasil foi escolhido para sediar a
Olimpíada de 2016. Há vários vídeos sobre o discurso de Lula após o anúncio. Não o discurso oficial, mas o
discurso do então presidente feito para as câmeras de TV. Aquele que é
espetáculo dentro do espetáculo. Particularmente, prefiro o da Globo (assista
abaixo), pelo que esta rede de comunicação representa na história recente
do país, e pela linguagem que escolhe ao contrapor a fala de Lula com a reação dos
apresentadores e comentaristas. Quando se pensa que essa “conciliação” foi
possível apenas sete anos atrás, tudo fica ainda mais interessante.
Clique sobre a imagem abaixo para assistir ao vídeo:
Sugiro assistir a estes sete
minutos, preciosos para compreender aquele e este momento. Mas também transcrevo aqui a fala de Lula, para
que se torne mais fácil refletir sobre os tantos sentidos desse discurso, agora
que podemos olhar para ele pelo retrovisor. E para que seja possível prestar
atenção nos personagens então secundários, congelando a imagem por um momento.
Lula está emocionado. Não acredito que esteja
fingindo se emocionar. Ainda que ele fale com a consciência de que está produzindo
um documento para a história, consciência que ele sempre mostrou ter ao longo
de seus dois mandatos como presidente do país, ele acredita no que diz. Como
Lula vê o país e como entende o povo brasileiro é crucial para compreender o
Brasil atual, dada a importância do personagem e o papel de protagonista
que desempenhou e desempenha. Naquele
momento, há uma festa de comemoração nas areias de Copacabana, como se a
multidão que ali está tivesse a função de produzir a imagem capaz de comprovar
a tese de seu líder.
Lula diz para as câmeras de
TV, e ao
dizer o líder carismático está num de seus momentos de maior carisma:
– O Rio perdeu muitas coisas. O Rio foi
capital, o Rio foi coroa portuguesa, e foi perdendo... Eu acho que essa
Olimpíada é um pouco uma retribuição ao povo do Rio de Janeiro que muitas vezes
aparece na imprensa, só nas páginas dos jornais... É preciso respeitar porque o
povo é bom, o povo é generoso. Acho que o Brasil merece. Aqueles que pensam que
o Brasil não tem condições vão se surpreender. Os mesmos que pensavam que nós
não tínhamos condições de governar esse país vão se surpreender com a
capacidade do país de fazer uma Olimpíada.
Diante da pergunta de por
que o Rio ganhou de cidades como Madri, Tóquio e Chicago, que disputavam ser
sede da Olimpíada, Lula afirma:
– A gente tava com a alma, com o coração. Ou
seja, era o único país que queria de verdade fazer uma Olimpíada. Porque para
os outros seria mais uma. Nós tínhamos que provar a competência de fazer uma
Olimpíada. Então eu acho que as pessoas veem isso nos olhos da gente. (...)
Essa foi a diferença. Esse país precisa ter uma chance. Não é possível que esse
país não tenha, no século 21, a chance que não tivemos no século 20.
Sobre onde ele e o país
estariam neste futuro apoteótico, Lula diz:
– Eu não vou estar na presidência, mas
estarei como cidadão brasileiro, colocando minha alma, o meu coração, pra que a
gente faça o que tem de melhor nesse país. Tem de comemorar porque o Brasil
saiu do patamar de um país de segunda classe e se tornou um país de primeira
classe.
Lula
agradece a Eduardo Paes (PMDB), a
quem chama de “esse menino”, então em seu primeiro mandato como prefeito do
Rio, e ao “companheiro” Sérgio Cabral
(PMDB), na época governador do Rio. Assim como ao ministro dos Esportes Orlando Silva e ao chefe do Comitê
Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur
Nuzman. Uma voz lembra ao presidente: “Michel”. Lula ignora e segue
falando. A voz repete na sequência: “Michel Temer”. Lula é obrigado a citar:
“Ao Temer que está aqui”. A cabeça
do então presidente da Câmara dos Deputados descola-se por um momento das
costas de Lula, onde ele havia estrategicamente se posicionado e de onde não
arredou pé.
Temer tinha sido reeleito
deputado federal em 2006. Com apenas 99.000 votos, sua soma individual era insuficiente para
garantir mais um mandato. Ele só entrou
devido ao quociente eleitoral, reeleição garantida pelo total de votos
dados ao seu partido, o PMDB. Em 2009,
conseguiu se tornar presidente da Câmara dos Deputados, com o apoio do governo.
Ele seguirá até o final da entrevista colado nas costas de Lula. Toda vez que
Lula procura alguém ao redor para agradecer, dá de cara com Temer. Mas não faz
mais nenhuma menção a ele. E a câmera volta a fechar no presidente mais popular
da história do Brasil pós-ditadura.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA e MICHEL TEMER Em 2009, Temer era o Presidente da Câmara dos Deputados e buscava aproveitar da popularidade de Lula |
Um repórter pergunta sobre a
“decantada” beleza do Rio. E Lula responde:
– Eu acho que alma do nosso povo, o olhar do
nosso povo, o calor do nosso povo, o gingado do nosso povo, a cor do nosso povo,
o sorriso do nosso povo é imbatível. Acho que finalmente o mundo reconheceu: é
a hora e a vez do Brasil.
E
segue:
– Eu tava com um orgulho imenso – imenso – de
estar defendendo o Brasil. Hoje foi um dia sagrado pra mim. Eu confesso a vocês
que, se eu morresse agora, já teria valido a pena, sabe, viver. Porque o Rio de
Janeiro, o Brasil provou ao mundo que nós conquistamos cidadania absoluta.
Absoluta mesmo. Ninguém agora tem mais dúvida da grandeza econômica do Brasil,
da grandeza social, da capacidade nossa de apresentar um programa.
Bem ao final, Lula agradece
a Henrique Meirelles, então presidente do Banco Central:
– (Quero) agradecer ao Meirelles, que fez uma
defesa extraordinária, anunciando inclusive que o Banco Mundial já disse que o
Brasil será, em 2016, a quinta economia do mundo.
Fim da Olimpíada de 2009. Agora, a de 2016.
Como
o tempo desta época é acelerado, 2016 olha para 2009 como um passado remoto. No futuro que chegou, Lula é anunciado como
réu (por suposta obstrução da Justiça na Operação Lava Jato) uma semana antes da abertura oficial da
Olimpíada. Dilma Rousseff, a
sucessora que ele conseguiu eleger por duas vezes está afastada pelo processo
de impeachment. E o carrapato
colado nas costas de Lula em 2009 é hoje o presidente
interino que possivelmente governará o Brasil até 2018. Lula e Dilma
anunciaram que não irão à cerimônia tão acalentada. E Temer finalmente ficará por um instante em primeiro plano, ao
anunciar a abertura dos jogos.
O Brasil não se tornou a
quinta economia do mundo, mas o mesmo Henrique Meirelles é hoje o ministro da
Fazenda do Governo provisório, chacoalhando ameaças de aumento de impostos sempre
que tem a oportunidade. Descobrir quem saiu e quem ficou, assim como quem mudou
de posição (sem de fato mudar de posição), tornou-se um dos jogos mais
interessantes da Olimpíada.
A Olimpíada,
assim como a Copa do Mundo, foram sonhadas como
apoteoses do eterno país do futuro que finalmente havia chegado a um presente
glorioso.
Não é um acaso que para representar esta inflexão histórica tenham sido
escolhidos dois eventos de exibição para o mundo. O discurso de Lula em 2009 é explícito. Ele pega todos os estereótipos
associados ao que se chama de povo brasileiro ou “povo do Rio” (o povo bom,
o povo generoso, o povo que tem coração, o povo que tem gingado, o povo que tem
alma) e os coloca como o diferencial que levou o país a uma vitória em outro
campo, o da política e o da economia. O
Brasil teria alcançado um lugar entre os grandes ou “a primeira classe” com
este povo. Não apesar de, mas por
causa de. E com Lula, um homem de fato “do povo”, na liderança, imagens
fundidas entre o representante e o representado. O Brasil teria sido escolhido como sede da Olimpíada por causa do
“coração” e da “alma”. Do desejo.
Não
há nada de banal nessa construção. Ela é muito rica. Se os estereótipos são
viciados, e é da natureza do estereótipo ser viciado assim como estar a serviço
de ocultamentos, há algo de novo nessa
apropriação que Lula faz. Há algo de novo no que ele faz com o velho. O que não impede que continue girando em
falso.
VILA DOS ATLETAS Mais de trinta edifícios construídos especialmente para abrigar os atletas e delegações participantes da Olimpíada Rio 2016 |
Há
que se perceber ainda que a escolha de
eventos para o mundo ver é também a escolha de se
olhar com a medida do outro. E não qualquer outro, mas um outro que
se coloca – e é reconhecido – como “primeiro mundo” ou “primeira classe”. E que
a “cidadania absoluta”, neste momento, é
igualada à acesso ao consumo. Essa construção também não é banal. E é bem
diferente de construir uma linguagem própria a partir das extraordinárias
experiências de diversidade dos vários Brasis.
Vale lembrar que Lula é o
grande conciliador: um ano depois da escolha do Rio como sede da Olimpíada, ele terminará seu mandato com a maior
popularidade da história desde que há institutos de pesquisa para medi-la. Entre as várias razões, está a quimera de
reduzir a pobreza sem tocar na renda dos mais ricos, o que só foi possível graças à exportação de commodities, promovida como se fosse durar pra sempre e sem que o enorme custo socioambiental fosse incluído na conta.
Neste sentido, a Olimpíada seria não apenas a conciliação dos povos, mas também
a dos vários Brasis amalgamados num só, conflitos e contradições magicamente
apagados.
Entre
2009 e 2016 aconteceu muita coisa. Mas aconteceu principalmente 2013. Se há algo que não vira passado facilmente
é 2013, o incontornável que tantos querem contornar. É nos protestos das
ruas que fica evidente que o imaginário
de conciliação não poderá mais ser sustentado. Desde então, não há
combinação, recolocação ou arranjo possível que dê uma imagem coesa ao Brasil –
ou uma cara “brasileira” ao Brasil. As fraturas que historicamente foram
ocultadas ou maquiadas já não podem ser. O Brasil ou os Brasis tornaram-se
irredutíveis à conciliação também na produção de imagens e de símbolos.
Assim,
o Brasil chega à Olimpíada real demais:
* Na lama que rompeu a
barragem de Mariana,
* na merda boiando nas águas
da Guanabara,
* no genocídio dos jovens
negros pela Polícia Militar,
* na ciclovia que desaba
matando gente no dia em que a tocha olímpica é acendida na Grécia.
* Na onça assassinada durante
a passagem da tocha olímpica pela Amazônia.
Dá
para ficar enfileirando exemplos por parágrafos.
* Até o samba de Tom Jobim se
contamina quando é o mosquito da dengue,
do zika e da chicungunha que passa a ter asas abertas sobre a Guanabara.
Mesmo
a disputa narrativa entre golpe e não golpe pode expressar uma tentativa
desesperada de identificação em meio a identidades
que se desmancham. Como a de um
Governo de esquerda [PT] que há
muito já não era de esquerda, como a de apoio de movimentos sociais ao mandato
de uma presidente que sancionou uma lei que criminaliza movimentos sociais,
como a de fingir que quem está hoje no poder não era o aliado de ontem. Para
além de estratégias e agendas, a falsa
polarização pode também ser uma tentativa de colar um rosto que já não cabe na
cara. Ou de vestir uma roupa porque qualquer roupa, mesmo uma fantasia, é
menos desestabilizadora que a nudez.
Diante
da fragmentação da autoimagem despontam várias reações identitárias. Uma delas
é a de reeditar um outro estereótipo viciado, o do Brasil como “republiqueta de
bananas”, o que não consegue fazer nada direito, o do fiasco diante do mundo, o
do eterno país de segunda classe, com todos os preconceitos atrelados aos
trópicos. O que antes foi positivado é negativado sempre que convém. E o que
aqui está seria uma espécie de punição à ousadia de querer ser grande.
“Nós”
expostos ao julgamento do “primeiro
mundo”, curiosamente confundido com
o mundo dos adultos, o que só pode ser uma piada diante dos acontecimentos
internacionais recentes:
* O
Brasil ridicularizado pelo Reino Unido onde o
voto do Brexit [saída da União Europeia] venceu?
* Pelos Estados Unidos que tem um Donald Trump com chances de
vencer a presidência?
* Por uma França às voltas com terroristas produzidos por suas
periferias?
* Por uma Europa que envergonha a si mesma ao (des)tratar os
refugiados?
São estas as matrizes que
sabem o que fazem?
Essa
falsificação do “Brasil volte ao seu
lugar” tem pontos de contato com a ideia do retorno de certa elite ao poder
– uma elite que, como se sabe, nunca saiu dele. Tem a ver com a ideia da volta “dos que sabem fazer as coisas”. Ou
“dos que entendem de verdade de economia”. Ou da ideia de que a economia é a
lente com a qual se enxerga a vida, crença laica que desponta com o absolutismo
de um mandamento de Moisés. É preciso
ter cuidado com quem chama o Brasil de “republiqueta de bananas”, porque esta
pessoa ou grupo nunca se coloca neste Brasil, já que se considera a parte
limpinha que foi se ilustrar no exterior. O sujo, o feio, o ignorante é o
outro. Em geral, o “povo brasileiro”, essa abstração em nome da qual tantas
atrocidades são cometidas.
Não é ruim que o Brasil
chegue à Olimpíada sem uma cara. Ou mais semelhante ao antropofágico Abaporu de Tarsila do Amaral. Não é ruim que os estereótipos ruíram e
todos os rearranjos antes possíveis já não parem mais em pé. Não é ruim se
perceber fragmentado. Não é ruim se
desidentificar para que outras identidades, múltiplas, se tornem possíveis.
Já não dá para conciliar o inconciliável.
Não
é um momento qualquer. E talvez a parte mais evidente do peso do que está sendo
disputado seja o fortalecimento do Estado policial para reprimir o
questionamento dos privilégios. E para criminalizar o crescente questionamento
dos privilégios. E para encarcerar quem os questiona. O jogo é cada vez mais pesado, agora que ficou claro que não haverá
conciliação. Agora, que o discurso de 2009 ruiu, e que seu autor, o grande conciliador, virou réu.
Há
muitas razões para que diferentes setores não perdoem Lula. Uma delas é a de
que ele deixou de fazer a grande mágica: a de que a paz no Brasil é possível
sem que os privilégios dos mais ricos sejam tocados. A de que poderá se
reduzir as desigualdades sem que alguém perca não apenas privilégios materiais,
objetivos, mas também culturais e subjetivos. Essa ilusão era cara também para
uma parte das várias elites. Continuar com os privilégios intactos e ainda por
cima se sentir “do bem” é o máximo sonho de consumo.
Já não é possível seguir
tentando colar rostos que não cabem mais. Ou insistir em encaixar faces que só couberam
antes como falsificações. Ou, ainda, que eram apenas máscaras a serviço de
apagamentos. Há muita potência neste
momento em que o Brasil é um ponto de interrogação no espelho, em que o Brasil
não consegue uma unidade no dizer sobre si mesmo, em que há gente tentando
apagar a tocha olímpica com balde d’água. Há muita potência se as
periferias virarem centros, desacomodando olhares viciados. Mas essa potência será perdida se, por não
conseguirmos imaginar um país a partir de outras
premissas, preferirmos carregar por aí rostos em decomposição.
______________
* ELIANE BRUM (nasceu em Ijuí, no Rio Grande do Sul, em março de
1966) é uma jornalista, escritora e documentarista brasileira. Formou-se pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC/RS) em 1988 e ganhou mais de 40 prêmios nacionais e
internacionais de reportagem. Trabalhou 11 anos como repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e 10 como
repórter especial da revista Época,
em São Paulo. Desde 2010, atua como freelancer.
De 2009 a 2013 manteve uma coluna no site da revista Época, e desde outubro de 2013 no jornal El País. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda
(Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê
(Arquipélago Editorial), ganhador do Prêmio
Jabuti de Reportagem em 2007, e O
Olho da Rua (Editora Globo) - e de um livro de crônicas: A Menina Quebrada (Arquipélago
Editorial, Prêmio Açorianos 2013), que reúne 64 de suas colunas escritas no
site da revista Época, além de ter
participado da compilação de reportagens especiais sobre os Médicos sem Fronteiras Dignidade!, que
incluiu também autores como Mario Vargas Llosa. Em 28 de janeiro de 2010, foi
uma das ganhadoras do 27º Prêmio
Internacional de Jornalismo Rei de Espanha, pela reportagem "O Islã dos Manos", sobre a presença
da religião islâmica nas periferias de cidades brasileiras, matéria publicada
na revista Época, em fevereiro do ano
anterior. É codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen
Filme Estrada. Fonte: Wikipédia.
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