Vivemos em tempos precários
“Três décadas de orgia consumista resultaram em uma
sensação de urgência sem fim”
Entrevista
com Zygmunt Bauman
Sociólogo
polonês, professor emérito das universidades de Varsóvia e de Leeds
Maria Fernanda
Rodrigues
«O que pensávamos ser o futuro está em débito conosco.
Para superar a crise, temos de “voltar ao passado”, a um modo de vida
imprudentemente abandonado»
ZYGMUNT BAUMAN Sociólogo e Filósofo polonês |
Zygmunt
Bauman presenciou os principais acontecimentos do século 20 e na virada do
milênio criou uma teoria que levaria seu nome para além do campo da sociologia
e o tornaria um escritor best-seller – sobre a liquidez da sociedade, das
relações, do nosso tempo. Um dos principais pensadores da modernidade, este
polonês prestes a completar 91 anos não perde um debate, e tudo que o inquieta
é transformado em livro. Fecundo autor, já
escreveu cerca de 70 títulos – entre os mais de 30 publicados no Brasil,
todos pela Zahar, estão Modernidade
Líquida, Amor Líquido e o mais
recente A Riqueza de Poucos Beneficia
Todos Nós? [1] Ele está lançando agora Babel – Entre a Incerteza e a Esperança,
mas, nesta entrevista concedida ao Aliás,
já anuncia uma nova obra para 2017, Retrotopia, e comenta sobre Strangers at Our Door, de 2016 e ainda
inédito aqui.
Babel fala do interregno – termo usado por Bauman e
pelo jornalista Ezio Mauro, seu
interlocutor na obra – em que estamos vivendo. Um tempo entre o que não existe
mais e o que não existe ainda. De incertezas e instabilidade. Para eles, não há, no momento, movimento político que
ajude a minar o velho mundo e esteja preparado para herdá-lo. Um período em
que testemunhamos uma guinada conservadora geral, a instalação do medo devido a
ameaças terroristas constantes – a ponto de um grupo de espanhóis confundir uma
flashmob [2] com
um ataque e entrar em pânico – e as crises diversas – econômica, política,
migratória, e, sobretudo da democracia que, depois de muito esforço para
derrotar ditaduras, ainda precisa lutar diariamente por sua supremacia e para
provar sua legitimidade, como apontam os autores. A seguir, trechos da entrevista de Bauman, professor emérito das
universidades de Varsóvia e de Leeds.
Quando
o sr. criou o conceito de modernidade
líquida, vivíamos tempos melhores ou piores? O conceito ainda se aplica
hoje ou já caminhamos para um outro tempo? Que interregno é esse que estamos vivendo e o que acontece depois?
Zygmunt Bauman: Como medir a relativa
excelência do nosso estilo de vida? Em que aspectos, por quais critérios? E quem são os “nós” cuja vida queremos
analisar? Entre os diferentes
setores da sociedade nem o ritmo e nem as direções tomadas são coordenadas
(pense no fabuloso crescimento da renda e da riqueza dos 1% que estão no topo
da hierarquia social frente à estagnação ou mesmo piora do nível de vida dos
restantes 99%, e a outrora confiante
classe média se juntando ao “proletariado” ortodoxo para formar uma nova
categoria, do “precariado” – notória pela posição social frágil e suas
perspectivas indefinidas). No geral, podemos dizer que 15 anos depois da
publicação de Modernidade Líquida, a
nova era, ainda incipiente e pouco percebida em meio a 30 anos de orgia consumista, de gastar dinheiro não ganho e de viver o pouco tempo que resta em novos
bairros já moribundos está chegando à sua total fruição: estamos vivendo à
sombra de suas consequências. E isso significa:
* incerteza existencial,
* medo do futuro,
* uma perpétua ansiedade e uma sensação
de urgência sem fim,
* com a primeira geração do pós-guerra sentindo a queda do nível de bem-estar
social conseguido por seus pais e,
* na vida pública, a perda total de confiança na capacidade
dos governos cumprirem suas promessas e o dever de proteger os direitos dos
cidadãos e atender aos seus interesses.
O
fim desta confiança gera, por outro lado, um ambiente em que “ninguém assume o controle”, em que os assuntos do Estado
e seus sujeitos estão em queda livre, e prever com alguma certeza que caminho
seguir, sem falar em controlar o curso dos acontecimentos, transcende a
capacidade humana individual e coletiva. O “interregno” [3] significa que
velhas maneiras de agir não dão mais resultado, contudo, as novas ainda
precisam ser encontradas ou inventadas. Ou: tudo pode acontecer, mas nada pode
ser feito e visto com certeza.
De
repente, parece que o mundo virou de ponta-cabeça: ameaças terroristas, crises
econômicas, sociais e migratórias – e uma guinada conservadora está em curso.
Como chegamos até aqui? Isso foi uma surpresa?
Zygmunt Bauman: A probabilidade dos
fenômenos que você mencionou foi sugerida – na verdade, inferida – pelos
sintomas que se acumulam da cada vez mais ampla separação, beirando o divórcio, do poder (ou seja, a capacidade
de realizar as coisas) e da política (a capacidade de decidir quais coisas necessitam ser feitas). Essas duas condições indispensáveis para
uma ação efetiva até mais ou menos 50 anos atrás caminhavam de mãos dadas no
Estado-nação, mas se separaram e seguiram destinos diferentes: enquanto o poder em grande medida ficou “globalizado”
– e se tornou “extraterritorial”, livre de controles, direção e orientação por
instituições políticas – a política permaneceu como antes, local, confinada
ao território do Estado e impotente diante da influência importante dos poderes
que não se submetem a controles e que são os que importam na escala global.
Hoje, os poderes emancipados do monitoramento e da supervisão política
enfrentam políticos pé no chão e sofrendo o contínuo, e até agora incurável,
déficit de poder. Vivemos uma crise
institucional permanente. Os instrumentos de ação coletiva herdados dos
nossos ancestrais e cujo fim foi servir à causa da independência de estados
territorialmente soberanos não são mais adequados nesta situação de
interdependência mundial criada pela globalização
do poder.
A
atual crise da democracia, e, portanto, a crise das instituições democráticas,
como o sr. coloca, são importantes tópicos de “Babel” [livro]. O senhor diz que os governos democráticos
são instáveis porque tudo está fora de controle, e que a democracia não é autossuficiente.
Qual é a real ameaça que enfrentamos? E qual é a origem desta crise?
Zygmunt Bauman: Uma advertência: “crise de
democracia” é uma abreviação, uma noção limitada. Em países com constituições
democráticas, a crise de um Estado-nação territorialmente confinado é culpa
(afirmação fácil, mas não muito competente) de seus órgãos e características
definidos constitucionalmente, com a divisão de poderes, liberdade de
expressão, equilíbrio de poderes, direitos das minorias, para citar alguns. Mas
se a democracia está “em crise” é porque
o Estado-nação territorialmente soberano (concebido em 1648 pelo Tratado de
Westfalia e cuja fórmula é cuius regio
eius religio – os súditos obedecem ao governante) está em crise, incapaz de atacar e enfrentar, sem falar em solucionar,
problemas gerados pela nova interdependência da humanidade. Houvesse um
governo autoritário ou ditatorial substituindo um regime democrático, os órgãos
políticos resultantes não estariam livres da fragilidade dos órgãos de governos
democráticos que ele substituiu e pela qual a democracia hoje é acusada. Quero acrescentar que o veredicto atribuído
a Winston Churchill (“democracia é o
pior dos sistemas políticos, à exceção de todos os outros”) continua verdadeiro até hoje. Para não
dar confusão, acho que é aconselhável evitar atribuir responsabilidades pela
impotência observada hoje dos Estados territorialmente soberanos e, em vez
disso, analisar a incongruência fundamental do nosso tempo ansiando por uma
revisão radical das ideias e uma reformulação das formas de coabitação da
humanidade na Terra. Segundo Ulrich Beck,
essa incongruência deriva do fato de que nós
todos, gostemos ou não, já estamos inseridos numa situação cosmopolita, mas não
nos preparamos seriamente para a tarefa extremamente urgente de desenvolver e
assimilar a consciência cosmopolita.
No
Brasil existe um grupo pedindo a volta dos militares ao poder e outro dizendo
que o processo de impeachment contra
a presidente Dilma Rousseff é golpe político. Na Turquia, os militares tentaram
tomar o poder. De onde vem essa vontade de “ordem”? O quão prejudicial isso
pode ser para o atual estado das coisas? Enquanto isso, Trump conquista
legitimamente mais e mais eleitores. O que sua vitória pode representar para o
mundo? E o que sua ascensão nos diz sobre os EUA de hoje?
Zygmunt Bauman: O problema não é o número
crescente, em vários países, de pretendentes a regimes autoritários, mas do
ainda mais rápido crescimento de seus devotados apoiadores. Não é uma questão sobre os que querem o
poder (eles sempre serão muitos, já que a demanda popular por eles é
abundante), mas sobre a ampliação da
demanda pelos serviços que eles falsamente prometem que constitui
indiscutivelmente o mais perigoso dos desafios futuros que enfrentaremos.
Aproveito para citar, neste aspecto, um fragmento do meu recente livro Strangers At Our Doors [trad. livre: Estranhos à nossa porta]: “Numa
flagrante violação da intenção e das promessas modernas de substituir as
incertezas do destino por uma ordem coerente das coisas, sem ambiguidades,
orientada por princípios morais de justiça e responsabilidade – assegurando
assim uma correspondência estrita entre as aflições dos humanos e suas opções
comportamentais –, os humanos hoje
veem-se expostos a uma sociedade repleta de riscos, mas vazia de certezas e
garantias. A primeira causa é a transcendental “individualização”, codinome
dos que representam para a imaginada insistência da “sociedade” em subsidiar a
tarefa de resolver os problemas gerados pela incerteza existencial com recursos
eminentemente inadequados exigidos dos próprios indivíduos. (...)
BYUNG-CHUL HAN Filósofo e Teórico Cultural sul-coreano - Leciona na Universidade das Artes de Berlim (Alemanha) |
Como Byung-Chul Han sugere, nossa “sociedade de desempenho” se especializou
numa mudança no campo da manufatura e no expurgo de “depressivos e desajustados” [4].
Eles são simultaneamente vítimas e cúmplices do seu fracasso e da depressão que ao mesmo tempo é causa e
consequência. (...) Com os poderes do alto lavando as mãos e rejeitando seu
dever de tornar a vida das pessoas suportável, as incertezas da existência humana são privatizadas, a responsabilidade
para enfrentá-las tem de ser arcada pelo frágil indivíduo, enquanto as
opressões e calamidades existenciais são descartadas como tarefas tipo “faça
você mesmo” a serem executadas pelo indivíduo que padece. (...) Para o
indivíduo que se vê abandonado e desalojado com a retirada do Estado, a “individualização” pressagia uma nova
precariedade da condição existencial: uma situação ruim que se torna cada
vez pior. Agora este é um contexto psicossocial em que a ânsia de um homem forte (ou mulher) que proponha “me deem o poder
absoluto e eu o libertarei das tormentas de riscos que você não consegue
enfrentar e das decisões que não consegue tomar”, só se expande.
Onde
estão nossas utopias? Estamos perdendo nossa capacidade de sonhar?
Zygmunt Bauman: Acho que uma mudança
transcendental é provável. Ao sonharmos com uma sociedade mais acolhedora e uma
vida decente e significativa, avançamos gradativamente da utopia (lugar ainda
inexistente, mas à espera no futuro) para o que chamo de “retrotopia” (“volta ao passado”,
ao modo de vida que foi exageradamente, irrefletidamente e imprudentemente
abandonado). Trato disso no meu novo livro, Retrotopia, a ser
publicado pela Polity Books em 2017. Podemos concluir que passado e futuro
estão nesse quadro intercambiando suas respectivas virtudes e vícios. Agora é o futuro que parece ter chegado ao
tempo de ser ridicularizado, sendo primeiro condenado pela falta de
confiança e dificuldade de manejar e que está em débito. E agora o passado é o
credor – um crédito merecido porque neste caso a escolha ainda é livre e o
investimento é na esperança na qual ainda se acredita.
O
senhor é otimista com relação ao futuro próximo do mundo? A esperança é mesmo
imortal, como o senhor afirma em “Babel”?
Zygmunt Bauman: Procuro seguir o preceito de
Antonio Gramsci: ser pessimista a curto prazo e otimista a
longo prazo. Afinal, esta não é a
primeira crise na história da humanidade. De alguma maneira, as pessoas
encontraram meios para superá-las no passado. Eles podem (e é essa capacidade
que nos torna humanos) repetir a façanha mais uma vez. A única preocupação é: quantas pessoas pagarão com suas vidas
desperdiçadas e oportunidades perdidas até que isto ocorra?
N O T A S
[ 1 ] Para saber quais são
os livros de Zygmunt Bauman
publicados, até o momento, no Brasil, clique aqui.
[ 2 ] Flash Mobs são aglomerações
instantâneas de pessoas em certo lugar para realizar determinada ação inusitada
previamente combinada, estas se dispersando tão rapidamente quanto se reuniram.
A expressão geralmente se aplica a reuniões organizadas através de e-mails ou
meios de comunicação social, notadamente pelas redes sociais digitais. Fonte: Wikipédia.
[ 3 ] Interregno é o intervalo entre
dois reinados, durante o qual não há rei hereditário ou eletivo. A partir
disso, interregno pode significar um intervalo, interrupção momentânea;
interlúdio.
[ 4 ] As obras de Byung-Chul
Han já publicadas em língua portuguesa são: A Sociedade do Cansaço (Ed. Vozes, Petrópolis, Brasil, 2015); pela
Relógio D'Água Editores, de Lisboa, Portugal, foram publicados os seguintes
livros: A Sociedade da Transparência;
A Agonia de Eros; A Salvação do Belo; Psicopolítica; O Aroma do
Tempo.
Tradução de Terezinha Martino.
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