Usando o medo para controlar-nos!
“Cuidado com os políticos que fazem dos nossos
sentimentos um instrumento de poder.”
Entrevista com Zygmunt
Bauman
Sociólogo e Filósofo polonês
Giulio Azzolini
Jornal “La Repubblica” – Roma (Itália)
05-08-2016
“Os vínculos se despedaçam, o espírito de solidariedade
enfraquece, a separação e o isolamento tomam o lugar do diálogo e da cooperação”
ZYGMUNT BAUMAN |
Eis
a entrevista com o sociólogo polonês.
Professor
Bauman, passaram-se 10 anos desde que o senhor escreveu “Medo líquido” (Editora
Zahar). O que mudou desde então?
Zygmunt Bauman: O medo ainda é o sentimento
predominante do nosso tempo. Mas, acima de tudo, é preciso que nos entendamos sobre que tipo de medo se trata. Muito
semelhante à ansiedade, a uma incessante e generalizada sensação de alerta, é
um medo multiforme, exagerado na sua
imprecisão. É um medo difícil de se
captar e, por isso, difícil de
combater, que pode arranhar até os momentos mais insignificantes da vida
cotidiana e afeta quase todas as camadas da convivência.
Para
o filósofo e psicanalista argentino Miguel Benasayag, a nossa época é a das “paixões
tristes”. O que acontece quando o medo abraça a desconfiança?
Zygmunt Bauman: Acontece que os laços humanos se despedaçam, que o espírito de solidariedade enfraquece,
que a separação e o isolamento tomam o
lugar do diálogo e da cooperação. Da família à vizinhança, do local de
trabalho à cidade, não há ambiente que
permaneça hospitaleiro. Instaura-se uma atmosfera sombria, em que cada um
alimenta suspeitas sobre quem está ao seu lado e é, por sua vez, vítima das
suspeitas alheias. Nesse clima de
desconfiança exagerada, basta pouco para que o outro seja percebido como um
potencial inimigo: será considerado culpado até que se prove o contrário.
MIGUEL BENASAYAG Psicanalista e filósofo franco-argentino - 63 anos |
Contudo,
a Europa já conheceu e derrotou a hostilidade e o terror: o político das
Brigadas Vermelhas na Itália e da RAF na Alemanha, o étnico-nacionalista do ETA
na Espanha e do IRA na Irlanda. O nosso passado ainda pode nos ensinar algo, ou
o perigo de hoje é incomparável?
Zygmunt Bauman: Os precedentes certamente
existem. No entanto, poucos mas decisivos aspectos tornam as atuais formas de
terrorismo muito diferentes dos casos que você lembrava. Estes últimos se
aproximavam a uma revolução (visando, como as Brigadas Vermelhas ou a RAF, a
uma subversão do regime político) ou a uma guerra civil (apontando, como o ETA
ou o IRA, à autonomia étnica ou à libertação nacional), mas sempre se tratava
de fenômenos essencialmente domésticos. Pois bem, os atos terroristas atuais não pertencem a nenhuma dessas duas
situações: a sua matriz, de fato, é completamente diferente.
Qual
é a peculiaridade do terrorismo atual?
Zygmunt Bauman: A sua força deriva da capacidade de corresponder às novas
tendências da sociedade contemporânea: a globalização,
por um lado, e a individualização,
por outro. Por um lado, as estruturas que promovem o terrorismo se
globalizam muito além das capacidades de controle dos Estados territoriais. Por
outro lado, o comércio de armas e o princípio de emulação alimentado pela mídia
global fazem com que quem empreenda ações de natureza terrorista sejam indivíduos isolados, movidos talvez por
vinganças pessoais ou desesperados por um destino infeliz. A situação que brota
da combinação desses dois fatores torna quase totalmente invencível a guerra
contra o terrorismo. E é bastante
improvável que ele abdique de dinâmicas já autopropulsivas. Em suma,
repropõe-se, sob novas formas, o mítico problema do nó górdio, que ninguém sabe
desfazer: e são muitos os chamados herdeiros de Alexandre Magno, que,
enganando, juram que as suas espadas conseguiriam cortá-lo.
Livro publicado em 2008 no Brasil LEITURA OBRIGATÓRIA ! ! ! |
Para
muitos políticos e muitos comentaristas, as raízes do terrorismo devem ser
buscadas no aumento descontrolado dos fluxos migratórios. Quais são, na sua
opinião, as principais razões da violência contemporânea?
Zygmunt Bauman: Como é evidente, os ganhos
eleitorais que são obtidos estabelecendo um nexo de causa-efeito entre
imigração e terrorismo são muito alentadores para que os concorrentes no jogo
de poder renunciem a eles. Para quem decide, é fácil e conveniente participar
de um leilão sobre o meio mais eficaz para abolir a chaga da precariedade
existencial, propondo soluções falsas,
como fortificar as fronteiras, parar as ondas migratórias, ser inflexível com
os requerentes de asilo... E, para a mídia, é igualmente fácil dar visibilidade
à polícia que invade os campos de refugiados ou difundir as imagens fixas e
detalhadas de um ou dois homens-bomba em ação. A verdade é que é malditamente complicado tocar com a mão as raízes
autênticas de uma violência que cresce em todo o mundo, em volume e em
intensidade. E, dia após dia, torna-se
ainda mais difícil, senão precisamente impossível, demonstrar que os governos
identificaram aquelas raízes e estão trabalhando realmente para erradicá-las.
Isso
significa que os políticos ocidentais também utilizam o medo como instrumento
política?
Zygmunt Bauman: Exatamente. Assim como as
leis do marketing impõem que os comerciantes proclamem incessantemente que o
seu objetivo é a satisfação das necessidades dos consumidores – embora estando
eles plenamente conscientes de que, ao contrário, a insatisfação é o verdadeiro
motor da economia consumista –, assim também os empresários políticos dos nossos dias declaram, sim, que o seu
objetivo é garantir a segurança da população, mas, ao mesmo tempo, fazer todo o
possível, e até mais, para fomentar a sensação de perigo iminente. O núcleo
da atual estratégia de dominação, portanto, consiste em acender e em manter viva a centelha de insegurança...
E
qual seria o propósito dessa estratégia?
Zygmunt Bauman: Se há algo que muitos
líderes políticos não viam a hora de aprender, é o estratagema de transformar as calamidades em vantagens: reacender a
chama da guerra é uma receita infalível para desviar a atenção dos problemas
sociais, como a desigualdade, a injustiça, a degradação e a exclusão, e
fortalecer o pacto de comando-obediência
entre os governantes e a sua nação. A nova estratégia de dominação,
fundamentada no deliberado impulso à
ansiedade, permite que as autoridades
estabelecidas não cumpram a promessa de garantir coletivamente a segurança
existencial. Deveremos nos contentar com uma segurança privada, pessoal,
física.
O
senhor acredita que, desse modo, as instituições correm o risco de perder o
caráter democrático?
Zygmunt Bauman: Certamente, a constante
sensação de alerta afeta a ideia de cidadania, além das tarefas a ela ligadas,
que acabam sendo liquidadas ou remodeladas. O medo é um recurso muito convidativo para substituir a argumentação com a demagogia e a democracia com
a política autoritária. E os
apelos cada vez mais insistentes à necessidade de um Estado de exceção vão nessa direção.
O
Papa Francisco parece ser o único líder disposto a desfazer aquilo que o senhor,
em outro lugar, chamou de “o demônio do medo”.
Zygmunt Bauman: O paradoxo é que é
precisamente aquele que os católicos reconhecem como o porta-voz de Deus na
terra que nos diga que o destino de
salvação está em nossas mãos. A estrada é um diálogo voltado a uma melhor compreensão recíproca, em uma atmosfera de respeito mútuo, em que
estejamos dispostos a aprender uns com os outros.
Escutamos Francisco muito
pouco, mas a sua estratégia, embora de longo prazo, é a única capaz de resolver
uma situação que se assemelha cada vez mais a um campo minado, saturado de explosivos
materiais e espirituais, salvaguardados pelos governos para manter a tensão em
alta. Enquanto as relações humanas não
tomarem o caminho indicado por Francisco, é mínima a esperança de limpar um
terreno que produzirá novas explosões, mesmo que não saibamos prever com
exatidão as coordenadas.
Traduzido do espanhol por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão
original desta entrevista, clicando aqui.
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