A nova modalidade do terror!
Terrorismo “faça você mesmo”
Gabriel
Zacarias
Afinal, de que “terror” estamos falando? Para o
historiador Gabriel Zacarias, os assassinatos em massa recentes resistem à
narrativa clássica do “ataque vindo de fora”. Atos de terror se confundem cada
vez mais com explosões individuais de violência cega – um quadro nebuloso que,
usado por extremistas para amplificar o medo, faz a barbárie parecer próxima,
prestes a acontecer em qualquer lugar
Quem
seguiu o noticiário nas últimas semanas teve a impressão de que a Europa vive
uma onda de ataques terroristas sem precedentes. Porém, em vez dos habituais
“homens-bomba” ou dos tradicionais fuzis Kalashnikov, vimos uma predominância de ataques de armas brancas ou ainda casos mais
inusitados, como o do ataque em Nice, onde se usou um veículo pesado (sem carga
de explosivos) como meio de assassinato em massa. Ataques, ademais, perpetrados por indivíduos isolados, com poucas ou mesmo nenhuma conexão
explícita com organizações terroristas. Cabe então perguntar – de que
“terrorismo” estamos falando?
Desde
que um novo momento de atentados terroristas se iniciou na França, com o ataque
ao semanário Charlie Hebdo em janeiro de 2015 – a onda anterior de terrorismo
no país havia sido em 1996 como decorrência de conflitos na Argélia –, impôs-se
como inquestionável a narrativa do ataque vindo de fora, de uma “situação de
guerra”, como afirma insistentemente o presidente francês François Hollande.
Mas, em muitos pontos, os fatos têm resistido à narrativa. Os autores de ataques são, em geral, franceses nascidos e criados no
país, e são poucos os casos daqueles cujas relações materiais com o Estado
Islâmico – de treinamento, financiamento ou orientação – tenham sido já
comprovadas. Na maior parte dos casos, a relação se dá no plano da
representação, com uma adesão aos símbolos do Estado Islâmico, e ao frequentar
redes sociais dedicadas aos jihadistas. Na
última leva de ataques, o descolamento entre os fatos e a narrativa se tornou
maior do que nunca, e a vontade de dobrar os fatos à narrativa ganhou
traços caricaturais. A melhor prova de
“radicalismo islâmico” apresentada no caso de Mohamed Lahouaiej-Bouhlel –
que jogou um caminhão alugado sobre uma multidão em Nice – foi o fato de que este deixara sua barba crescer pouco antes de cometer
o ato.
Já
na Alemanha – onde a série recente
de pequenos ataques foi vista por conservadores como consequência do
acolhimento dado aos refugiados –, a prova de que o jovem de 17 anos, que
atacou com um machado os passageiros de um trem em Wurtzbourg, seria na verdade
um terrorista internacional, estaria no fato de que este possuía um desenho da
bandeira do Estado Islâmico – desenho, aliás, feito de próprio punho. No bolo
da suposta onda de ataques ainda entrou o caso do refugiado sírio que atacou
uma colega com o facão da cozinha do restaurante onde trabalhavam em
Reutlingen, ferindo depois outros passantes em sua fuga, até ser atropelado. Um
acontecimento sem dúvida violento, mas que, como reconheceu o jornal francês Le Monde, está mais para um fait divers.
Todos esses casos
dificilmente podem ser igualados de maneira simples à chacina ocorrida em Paris
em novembro de 2015 – onde era necessário planejamento coletivo e porte de
armas pesadas.
Mas o que dizer do assassinato do padre
Jacques Hamel em Saint-Etienne-du-Rouvray, no início da semana? O autor do crime era monitorado pela
polícia antiterrorista, tendo sido preso ao tentar evadir-se à Síria, e a
escolha do alvo foi sem dúvida por motivos religiosos. Apesar disso, a
forma do ataque é semelhante à dos demais, um ato simples, um ataque de arma
branca executável com pouco planejamento. Outro ponto comum entre este e alguns
dos autores dos últimos ataques: muitos
tinham histórico de distúrbios psiquiátricos – Lahouaiej-Bouhlel, o assassino de Nice, tinha um passado de
violência e usava medicamentos controlados, enquanto Adel Kermiche, o assassino de Saint-Etienne-du-Rouvray, passava por
instituições psiquiátricas desde os 6 anos de idade.
Em
meio a esse quadro pouco claro, o fio comum que salta aos olhos é o uso de uma
forma de violência que nos parece bárbara. E se essa violência é bárbara, é por
ser percebida como externa ao domínio da cultura. Isso se deve menos ao seu
caráter quantitativo, pouco importante nos ataques recentes, e mais ao seu
aspecto qualitativo. Ou seja, é a forma
de violência que esses acontecimentos colocam em evidência que parece escapar
às formas de violência socialmente codificadas. Segundo o sociólogo alemão Jan Philipp Reemtsma, a formação da
cultura ocidental foi acompanhada por uma crescente normatização da violência,
implicando no rechaço das formas de violência que não se enquadrassem nos
preceitos da racionalidade instrumental. Isso quer dizer que nossa cultura reconhece – mesmo que para
rechaçar – a violência que é subordinada a fins práticos, isto é, que é apenas
um meio para obtenção de outros objetivos. Nesses casos, a destruição do
corpo do outro pode ocorrer, mas só como efeito colateral – por exemplo, no caso de um homicídio
durante um assalto, cujo fim principal é a obtenção de riqueza. Há, porém,
uma forma de violência que visa como fim principal a destruição do corpo. Essa
forma de violência é chamada por Reemtsma de “violência autotélica”, pois possui
seu fim (telos) em si mesma. Essa forma de violência não se enquadra, portanto, na racionalidade
ocidental moderna, que é uma racionalidade-orientada-para-os-fins, sendo
tratada como “loucura” ou “barbárie”.
ADEL KERMICHE (à direita) assassinou o padre Jacques Hamel na igreja de Saint-Etienne-du-Rouvray |
Um
caso típico de violência bárbara foi identificado com o nome de amok. O termo se popularizou no começo
do século 20 graças ao romance homônimo
do suíço Stefan Zweig, mas foi
originalmente forjado pela etnologia do século 19. Estudando povos
não-ocidentais, e procurando identificar as formas “bárbaras” da violência, os
etnólogos colonizadores observaram o fenômeno
de indivíduos que, após acumular frustrações e humilhações pessoais, atacavam a
esmo outros indivíduos, em explosões de raiva assassina, geralmente munidos de
armas brancas. Foi esse tipo de fenômeno que batizaram de amok, tomando o termo emprestado da língua malásia. A descrição parece se adequar
aos últimos ataques. Como entender esse curioso parentesco entre o amok e o terrorismo atual?
O
que os casos mais recentes revelam é uma confusão
crescente entre a explosão da violência cega – puras manifestações da violência
autotélica como retorno do reprimido da cultura – e o terrorismo. Essa
confusão é voluntária tanto da parte daqueles que promovem o terrorismo quanto
daqueles que deveriam combatê-lo. Organizações
como o Estado Islâmico não deixam de reivindicar para si qualquer ato que possa
parecer prova de sua capacidade de fazer mal ao Ocidente, passando a
incentivar através das redes um terrorismo capilar ao estilo “faça você mesmo”.
Os chefes de Estado se apressam em
enquadrar todo ato como terrorista, justificando assim a ampliação de seus
poderes sobre a população, com o uso crescente de dispositivos de exceção –
como o Estado de emergência na França, prorrogado pela terceira vez consecutiva
após o incidente em Nice. Um Estado de emergência, aliás, já bastante
recrudescido para garantir a realização da Eurocopa, e cujo aparato policial
foi usado mais para reprimir as manifestações populares contra as reformas
trabalhistas, se mostrando porém ineficaz na prevenção de novos ataques. Grupos de mídia, por sua vez, tampouco
hesitam antes de estampar nas manchetes versões grandiloquentes sobre a “ameaça
terrorista” e o “perigo islâmico”. O extremo parentesco entre as posições
supostamente opostas fica evidente quando comparamos o discurso mobilizado
pelos dois lados. A manchete que o semanário francês de direita Valeurs Actuelles estampava em sua capa
da semana passada, “Destruir os
islamistas”, faz eco ao apelo do Estado Islâmico aos seus seguidores para lutarem uma “contra-cruzada” contra o
catolicismo. E, quanto mais franceses de origem muçulmana forem enquadrados
como inimigos externos e terroristas em potencial, mais o Estado francês estará
fazendo o mesmo jogo do Estado Islâmico, que quer acabar com “zona cinza” entre
“fiéis” e “infiéis”.
ROBERT KURZ |
Talvez
fosse mais proveitoso, em vez de deixarmos todas as explicações na conta do
terrorismo – solução que parece mesmo enobrecer atos muito menos grandiosos –
nos questionarmos sobre o que esses acontecimentos dizem sobre o lugar da
violência na sociedade contemporânea. À época dos ataques às Torre Gêmeas, a
relação entre o terrorismo do século 21 e os casos de amok já havia sido notada pelo teórico crítico Robert Kurz (que pensava então em
um paralelo com os casos de ataques a tiros em escolas, frequentes nos Estados
Unidos desde os anos 1990). Para Kurz, a
vontade cega de destruição do outro e a disponibilidade suicida de destruição
de si andavam de mãos dadas, sendo as consequências extremas do tipo de
subjetividade produzido por uma sociedade capitalista. Ele se colocava
assim no esteio da filósofa Hanna Arendt, que havia identificado na modernidade um processo paulatino de “perda do eu”, um enfraquecimento do
instinto de conservação que decorria da percepção de que todos somos
constantemente substituíveis (notadamente no mundo do trabalho). Mas, com o
avanço do neoliberalismo e sua ideologia de autoempreendedorismo, Kurz notara que esse esquecimento de si era
completado pelo desconhecimento completo do outro, compondo o que chamou de “subjetividade concorrencial totalitária”.
A predisposição ao aniquilamento do outro e à destruição de si não seriam mais
do que os reversos patológicos dessa subjetividade concorrencial. O tempo
parece ter dado razão ainda maior ao teórico. Cada vez mais levado a cabo por
indivíduos desgarrados de inserções coletivas e incentivados à livre ação, o terrorismo ao estilo “faça você mesmo”
aparece hoje como um revés perverso dessa cultura.
*
GABRIEL ZACARIAS, historiador, é doutor em Estudos
Culturais pelas universidades de Perpignan (França) e de Bérgamo (Itália), e
pesquisador de pós-doutorado pela USP e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris.
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