O Concílio Vaticano II é normativo e é a palavra mais importante sobre pastoral e doutrina na Igreja Católica
O fim da “reforma da reforma” e as 14 estações
dos lefebvrianos
Andrea Grillo*
blog
“Come Se Non”
01-08-2016
É preciso reiterar, de acordo com as intenções
explícitas – embora talvez ingênuas demais – de Bento XVI, que o motu proprio Summorum pontificum não é uma nova regra
para entender o Concílio, mas apenas uma exceção
para favorecer a reconciliação com alguns. Um rito
extraordinário que não substitui o ordinário e que não fundamenta
nenhuma “reforma da reforma”.
D. GUIDO POZZO Secretário da Comissão Ecclesia Dei para dialogar com os cismáticos lefebvrianos |
Depois
dos acontecimentos do fim de junho e do início de julho – a entrevista dos lefebvrianos que fecham as portas a
Francisco, a conferência em Londres
do cardeal Sarah e o comunicado da
Sala de Imprensa da Santa Sé sobre o assunto, com o pedido explícito de «não usar mais a expressão “reforma da
reforma”» – o secretário da Comissão
Ecclesia Dei** concedeu, no fim de julho,
uma entrevista a uma revista alemã na qual emerge com evidência uma série de
questões que merecem atenção.
O
Concílio Vaticano “não é um superdogma pastoral”
Na
sua entrevista, Dom Guido Pozzo,
diante da dificuldade de uma aceitação do Concílio Vaticano II por parte da Fraternidade Sacerdotal São Pio X
(FSSPX), afirma: «O Concílio não é um
superdogma pastoral, mas faz parte da tradição inteira e dos seus ensinamentos
permanentes. [...] Embora a tradição
da Igreja continue evoluindo, nunca é no sentido da inovação, que estaria em
contraste com o que já existe, mas, ao contrário, rumo a uma compreensão mais
profunda do depositum fidei, do
patrimônio autêntico da fé. Todos os documentos da Igreja devem ser
interpretados nesse sentido, incluindo os do Concílio. Essa premissa, junto com
o compromisso com a profissão de fé, o reconhecimento dos sacramentos e a
supremacia papal, formam a base para a declaração doutrinal que será submetida
à Fraternidade para ser assinada. São esses os requisitos com os quais um
católico pode estar em plena comunhão com a Igreja Católica».
Depois
dessa resposta, evidentemente, nasce a
curiosidade de saber melhor o que Dom Pozzo pretende dizer. Perguntado se a
Fraternidade não deve mais receber
todas as declarações conciliares, incluindo os textos referentes ao ecumenismo
e ao diálogo inter-religioso, o arcebispo respondeu: «A Fraternidade se compromete com as doutrinas definidas e as verdades
católicas que foram confirmadas pelos documentos conciliares». Ele dá como
exemplo a «natureza sacramental do episcopado (...) além da supremacia papal e
do Colégio dos Bispos junto com o seu presidente, assim como foi estabelecido
na constituição dogmática Lumen gentium
e interpretado na Nota Explicativa
Praevia, requerida pela máxima».
«A
Fraternidade considera problemáticos vários aspectos da Nostra aetate referentes ao diálogo inter-religioso; da declaração Unitatis redintegratio referente ao
ecumenismo; da Dignitatis humanae, a
"Declaração sobre a Liberdade Religiosa"; além de várias questões
referentes à relação do cristianismo com a modernidade», acrescentou.
Pozzo reiterou que os
diversos documentos do Vaticano II têm um peso doutrinal diferente. «No entanto, estas não são
doutrinas da fé», especificou, «e também não são nem afirmações definitivas.
São, em vez disso, sugestões, instruções, diretrizes orientativas para a
prática pastoral. Esses aspectos pastorais podem ser discutidos para mais
esclarecimentos depois do reconhecimento canônico».
Depois,
pergunta-se a Dom Pozzo: «Como o
Vaticano chegou à decisão de que os diversos documentos do Concílio têm valores
dogmáticos diferentes?».
A
sua resposta: «Não foi uma conclusão nossa, mas já era um fato inequívoco na
época do Concílio. No dia 16 de novembro de 1964, o secretário-geral do
Concílio, cardeal Pericle Felici, declarou: “Esse Santo Sínodo define como vinculante para a Igreja apenas aquilo
que está expressamente declarado como tal em termos de fé e de moral”.
Apenas os textos que foram especificamente declarados como vinculantes pelos
Padres conciliares o são. Não foi “o Vaticano” que decidiu isso. Está escrito
nas Atas do Vaticano II».
Três
perguntas ao secretário Dom Pozzo
A sequência das afirmações,
assim como relatadas pela imprensa, despertam não só perplexidade, mas também
uma evidente preocupação. Se aquele que dirige esses encontros não tem clareza sobre algumas
das aquisições fundamentais do Concílio Vaticano II, como ele poderá conduzir
adequadamente as negociações? Por isso, considero
útil levantar três questões:
a) utilizando uma declaração
secundária do secretário do Concílio de 1964, Dom Pozzo pensa que pode passar
por cima dos discursos inaugurais e conclusivos do Concílio, onde nada menos
do que dois papas diferentes – João
XXIII e Paulo VI – afirmam inequivocamente que não se pode tratar o Concílio
Vaticano II com o mesmo metro dos concílios anteriores. Porque a sua «natureza pastoral» impõe que a sua
autoridade seja lida com critérios diferentes em relação àquilo que é «definido
dogmaticamente» e, portanto, vinculante de acordo com a lógica do dogma. Se
Dom Pozzo impusesse ao Concílio o critério de «autoridade» da tradição
pré-conciliar, ele cairia imediatamente na lógica
de Marcel Lefebvre, que, desde o
início, quis considerar o Concílio Vaticano II como «não vinculante» no plano
litúrgico, eclesiológico, bíblico, jurídico, espiritual, ministerial, na
relação com o mundo e com a tradição. Com esse errado «instrumento de
mediação», simplesmente se deixa definir a questão pela outra parte. Aceita-se que a outra parte imponha as suas
categorias. Ao contrário, não se deveria estar
convencido da «novidade conciliar», ao invés de «negá-la a priori», como faz Pozzo?
b) A distinção que é proposta entre conteúdo
dogmático forçoso e forma pastoral
não forçosa esquece que todo o Concílio se coloca no segundo nível, mas com
uma pretensão de autoridade diferente. Essa configuração, senão
anticonciliar, já é, por si mesma, preterconciliar. Transforma em uma "négligeable quantité" não só a reforma
litúrgica, mas todo o Concílio. Se, no Concílio Vaticano II, eu esqueço o «método pastoral», eu o traio
profundamente e o desfiguro, tornando-o simplesmente «acessório». Se, para o
reconhecimento canônico, eu faço deslizar todas as questões «pastorais» para o
segundo plano, eu posso conceder o reconhecimento independentemente do
Concílio. E isso, francamente, parece não só paradoxal, mas também perigoso.
Não porque se «ceda» ao externo, mas porque se «compromete» o interno.
c) Em terceiro lugar, eu nem
sequer gostaria que se pedisse aos lefebvrianos mais do que aquilo que os
próprios membros da Comissão Ecclesia Dei
estão dispostos a conceder. Tanta insistência no reconhecimento da autoridade
do papa não é uma afirmação arriscada demais? Quantos membros da Ecclesia Dei
defenderiam, por exemplo, a Amoris
laetitia? E a Evangelii gaudium?
E a Laudato si’? Eles consideram
esses documentos como magistério vinculante? Ou pensam que pode ser suficiente
citar uma frase deles na Quaresma para ser «católico»? A questão, nesse caso, não me parece ser o reconhecimento canônico da Fraternidade
Sacerdotal São Pio X, mas a representatividade
eclesial e magisterial da Comissão Ecclesia
Dei. Em outras palavras: eu
gostaria de dizer que, em relação ao reconhecimento da autoridade suprema do
papa, eu não me sentiria muito seguro ao estabelecer de qual lado da mesa se
encontra o problema mais grave. [Dizendo mais
claro ainda: o autor deste artigo duvida da fidelidade dos membros dessa
comissão vaticana ao próprio magistério papal de Francisco!]
SESSÃO PLENÁRIA DO CONCÍLIO VATICANO II (1962-1965) Em destaque temos, à esquerda, o Papa João XXIII que convocou o Concílio e, à direita, o Papa Paulo VI que o concluiu |
Um
exemplo litúrgico, para me explicar melhor
Na
discussão sobre as posições expressadas por Dom Pozzo, emerge, com plenos
direitos, a preocupação com um reconhecimento que não assumisse a Nostra aetate e a Dignitatis humanae como critérios para a reconciliação. Se os irmãos judeus ainda pudessem ser
descrito como «pérfidos» e se a liberdade de consciência ainda pudesse ser
definida como uma «perversão», qual comunhão católica teríamos realizado?
Mas
gostaria, agora, de chamar a atenção para algo mais comum e habitual na
experiência católica, ou seja, para a missa. Um leitor distraído da tradição
conciliar que lesse a Sacrosanctum
concilium apenas com os óculos da velha dogmática poderia ignorar com
desenvoltura – quase esticando as pernas sob a escrivaninha e fumando
tranquilamente o seu cigarro – toda a reforma litúrgica.
Mas,
na Sacrosanctum
concilium, tudo o que deve se tornar objeto de conversão pastoral é a
riqueza bíblica, a homilia, a oração dos fiéis, a unidade das duas mesas, a
língua vulgar, a concelebração e a comunhão sob as duas espécies. Com o
critério de Dom Pozzo, tudo isso se torna negligenciável, e importa apenas
aquilo que o Concílio Vaticano II simplesmente pressupõe como horizonte
adquirido e sobre o qual não há nenhum problema.
É evidente que o critério
apresentado por Dom Pozzo garante apenas aqueles que não querem aceitar o
Concílio Vaticano II e, por isso, deve ser abertamente posto de lado. Não é um instrumento para
favorecer a reconciliação, mas para fornecer, de um lado, um «acordo formal» ao
exterior e, de outro, para promover uma «reforma da reforma» no interior. Não produz paz, mas guerra.
A
pretensão de usar o Moto Proprio “Summorum pontificum” como critério para
interpretar o Vaticano II
Na
realidade, também devemos remeter as palavras de Dom Pozzo à «inércia curial»
de um teorema que, desde 2007, entrou em alguns ambientes eclesiais, ganhou
algum consenso e também alimentou algumas pequenas ilusões. Porque essa ideia de uma «redução do Vaticano II»
a um «concílio menor», a uma experimentação de elites, a uma academia de
teólogos sem povo foi alimentada com o
motu proprio Summorum pontificum,
que, segundo alguns, introduzia uma «relativização do Vaticano II», colocando novamente em vigor todo o velho,
como se nada tivesse acontecido.
A ideia de que isso poderia
ser feito não só com a liturgia, mas também com a: * eclesiologia,
*
com a exegese,
*
com a espiritualidade,
*
com a formação de padres,
* com
a consideração pelos leigos,
*
com o papel das mulheres,
*
com a relação com o mundo tomou algum fôlego e se fez ouvir.
Na
verdade, nunca soube assumir um porte cultural sério e forte. Mas, nas fofocas
de Cúria e no autoritarismo de alguns profetas da desgraça, ela não poupou
golpes. Agora, ela pretenderia ser também «critério» de reconciliação com a Fraternidade
Sacerdotal São Pio X.
Ao contrário, é preciso
reiterar, de acordo com as intenções explícitas – embora talvez ingênuas demais
– de Bento XVI, que o Summorum pontificum
não é uma nova regra para entender o Concílio, mas apenas uma exceção para
favorecer a reconciliação com alguns. Um rito
extraordinário que não substitui o ordinário e que não fundamenta nenhuma
«reforma da reforma».
Um
pequeno conselho: olhar com atenção o filme “Kreuzweg”, de D. Brueggemann
Na
viagem de volta de Cracóvia, o Papa
Francisco, respondendo a uma pergunta sobre o «terrorismo», recordou que o fundamentalismo também está
presente «entre nós». O fundamentalismo
lefebvriano continua sendo motivo de «aflição» para a Igreja. A própria
Comissão que se ocupa dele é intitulada «Ecclesia
Dei adflicta»! A aflição, porém, não
é o Concílio reformador, mas o cisma tradicionalista!
Por
isso, acho que seria bom que a Comissão
que se ocupa dele levantasse o olhar dos papéis e dos documentos preparados
para um entendimento e olhasse para a realidade.
Também para aquela realidade que nos é restituída com tanta força pelos filmes.
O
Papa Francisco disse muitas vezes que aprendeu muitas coisas com o cinema. Por
isso, gostaria de sugerir que os membros
da Comissão Ecclesia Dei e, acima
de tudo, o seu secretário assistissem ao filme Kreuzweg [«14 Estações de
Maria»], de D. Brueggemann.
É a
história do drama de uma família lefebvriana.
História de uma menina, dos seus pais e do seu pároco, todos
rigorosamente tradicionalistas. No filme, veem-se muitas coisas
impressionantes: uma arrepiante aula de catequese, uma alucinante penitência
sacramental, uma crisma com desmaio, uma espiritualidade desumana, uma rigidez
sem limites, um desprezo pela Igreja conciliar e pela realidade «outra»...
Pois
bem, talvez olhando esse filme, os
membros da Comissão poderiam compreender melhor a questão que tentam resolver e
a delicadeza das questões em jogo. E também não é evidente que alguns,
mergulhando nas sequências elegantes do filme, possam descobrir, com uma certa
surpresa, que, sobre esse filme, está escrito com letras de fogo: «de te fabula narratur» [a história é sobre você].
* ANDREA GRILLO, teólogo italiano especializado em Liturgia
e Sacramentos, leigo casado, professor do Pontifício
Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto
Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto
de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Autor de vasta
bibliografia, entre os seus livros, confira alguns aqui.
** A Comissão Ecclesia
Dei
foi constituída pelo Papa João Paulo II, em 2 de julho de 1988, com «a tarefa
de colaborar com os Bispos, com os Dicastérios da Cúria Romana e com os
ambientes interessados, a fim de facilitar a plena comunhão eclesial dos
sacerdotes, dos seminaristas, das comunidades ou de cada religioso ou religiosa
até agora ligados de diversos modos à Fraternidade [Fraternidade Sacerdotal de São Pio X] fundada por Mons. Lefebvre,
que desejem permanecer unidos ao Sucessor de Pedro na Igreja Católica,
conservando as suas tradições espirituais e litúrgicas» (Motu proprio Ecclesia Dei, n. 6a).
Traduzido
do italiano por Moisés Sbardelotto. Acesse
a versão original deste artigo, clicando aqui.
Comentários
Postar um comentário