Reflexões de uma favelada sobre a vitória de Rafaela Silva
Ana Paula
Lisboa*
“O mérito faz as pessoas crerem, falsamente, que basta
ser trabalhador, lutador, dedicado e inteligente para chegar onde Rafaela
chegou. Na verdade, a questão maior é que é necessário um esforço descomunal
para chegar a lugares que alguns poucos alcançam, muitas vezes sem suor algum.
Rafaela é brilhante, mas muitos de nós, tão brilhantes quanto ela, ficamos pelo
caminho por conta de balas perdidas, falta de financiamento, violência policial
e racismo”.
RAFAELA SILVA exibindo a medalha de ouro que ganhou no judô durante a Olimpíada Rio 2016 |
Os
amigos da Cidade de Deus, narradores de timeline,
me serviram desde cedo para contar orgulhosos da menina nascida e criada na
comunidade, Rafaela Silva, desta vez lutando ao lado de casa, já que o Parque
Olímpico fica a poucos quilômetros dali. Eu perdi a luta final ao vivo, só me
dei conta do momento histórico depois que todas as redes sociais foram cobertas
por enxurradas de lágrimas e declarações de amor valorosas. Tudo ia bem, até que ela chegou: a meritocracia.
Eu
e boa parte da minha geração que cresceu nas favelas e subúrbios cariocas somos
frutos de projetos sociais. O boom das Organizações
Não-Governamentais (ONGs) aconteceu principalmente depois das chacinas de
Vigário Geral e Candelária (não é à toa a Pira estar acesa por lá) e trouxe projetos que tentavam trazer a
inserção social de crianças e adolescentes através, principalmente, de
preparação para o mundo do trabalho, da arte e do esporte.
Era
o clássico: "Bota os meninos para
fazer alguma coisa, pra não ficar na rua fazendo besteira". Assim
surgiram nomes como os do projeto Dançando Pra Não Dançar e o sonho de
toda mãe preta de ter uma filha como bailarina do Municipal. Mas quantas mães
realizaram esse sonho?
Conto
tudo isso porque Rafaela é a
"história perfeita", a própria encarnação da Jornada do Herói.
Nascida e criada na Cidade de Deus, começou a lutar ainda criança, foi
desclassificada nas Olímpiadas de Londres e ganha o ouro olímpico lutando em
casa – competindo nas semifinais com a mesma adversária de 2012. É ou não é
roteiro de O Grande Dragão Branco? E
que maravilha ela ser isso tudo e muito mais!
O problema é que o mérito faz as pessoas
crerem, falsamente, que basta ser trabalhador, lutador, dedicado e
inteligente para chegar onde Rafaela chegou. "Basta
um pouquinho mais de suor". Quando, na verdade, a questão maior é que é necessário um esforço descomunal para chegar a
lugares que alguns poucos alcançam, muitas vezes sem suor algum. Rafaela é
brilhante, mas muitos de nós, tão brilhantes quanto ela, ficamos pelo caminho
por conta de balas perdidas, falta de financiamento, violência policial e
racismo. Não basta mérito, é preciso
sorte também.
E quando se fala de uma mulher negra, essa questão é ainda mais profunda,
já que:
* nós somos as que mais
morremos vítimas de assassinato,
* as que mais apanhamos,
* as que temos muitas vezes o trabalho doméstico como a única alternativa,
e não o esporte.
Festejamos Rafaela, choramos
com ela e sua família, seus amigos, mas não nos esquecemos dos outros que
ficaram pelo caminho. Não nos esquecemos do racismo que ela sofreu em 2012, e mais ainda do
que ela sofre todos os dias.
Rafaela
deveria voltar para casa ovacionada, passear de carro aberto pelas ruas da
Cidade de Deus, afinal, ela estava há poucos minutos do lugar onde cresceu. Mas
isso não foi possível, desde sábado a
comunidade sofre com intensos tiroteios. Cidade de Deus é ouro, e é chumbo.
Assista este vídeo que traz uma música de protesto
contra a atual situação da cidade do Rio de Janeiro,
clique sobre a imagem abaixo:
* ANA PAULA LISBOA tem 27 anos, é a mais velha de quatro
irmãos, filha de dois pretos. Moradora do Complexo
da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, faz parte nesse território do Coletivo Palafita, agência e produtora
com foco na arte e cultura das favelas, além de ser repórter d’AzMina. Formada em Letras e escritora
desde os 14 anos, publicou contos e poesias em coletâneas nacionais e
internacionais como a “Estrelas
Vagabundas”, “26 novos autores da
FLUPP” (Festa Literária das Periferias), “Eu me chamo Rio” e na “Je
suis Favela”. Em 2014 recebeu o 1º Prêmio
Carolina de Jesus, dado a pessoas que tiveram suas vidas mudadas pela
Literatura. Desde 2012 faz parte da equipe de coordenação da Agência de Redes para Juventude, projeto
que tem como missão mudar a relação da cidade com a juventude de favela.
Fonte: Portal UOL – Coluna AzMina – Terça-feira, 9 de agosto de
2016 – 13h08 – Internet: clique aqui.
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