Como chegamos a este caos?
Estamos em um período de cobiça e temor
Roberto Savio
Apostolado
Social da Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina, CPAL
08-08-2016
Vivemos em “tempos interessantes”, onde somos
perturbados
e atingidos por acontecimentos dramáticos
Uma
maldição chinesa diz: “Que você viva tempos interessantes”,
já que acontecimentos em demasia perturbariam o elemento essencial da harmonia,
base do panteão chinês.
E
estes são, por certo, tempos
interessantes, em que se acumulam acontecimentos dramáticos:
* de terrorismos a
* golpes de Estado e
* de desastres climáticos, passando pelo
* declive de instituições,
* a agitação social.
Seria
importante, mesmo que difícil, repassar brevemente como chegamos a esta situação de “falta de harmonia”.
Comecemos
por algo conhecido. Após a Segunda
Guerra Mundial, houve consenso na necessidade de evitar que se repetisse o
horror vivido entre 1939 e 1945. A Organização das Nações Unidas (ONU) foi o
foro que reuniu quase todos os países e a consecutiva Guerra Fria propiciou a
criação de uma associação de jovens estados recém-independentes, os Países Não Alinhados, provenientes de
uma zona de contenção entre Oriente e Ocidente.
A distância entre o Norte e
o Sul do globo se tornou o assunto mais importante das relações internacionais. Tanto é assim que, em 1973, a Assembleia Geral da ONU
adotou de forma unânime uma resolução sobre a Nova Ordem Econômica
Internacional (NOEI). O mundo pactuou um plano de ação para reduzir as
desigualdades, incentivar o crescimento global e fazer da cooperação e o
direito internacional a base de um mundo em harmonia e em paz.
Após
a adoção da NOEI, a comunidade internacional começou a trabalhar nesse sentido
e depois da reunião preparatória de Paris, em 1979, foi organizada uma cúpula
com os mais influentes chefes de Estado e de governo, no balneário mexicano de Cancún, em 1981, para adotar um plano
de ação global.
Entre
os 22 chefes de Estado e de governo presentes, estavam o presidente
estadunidense Ronald Reagan
(1981-1989), eleito poucas semanas antes, que se encontrou com a primeira-ministra
britânica Margaret Thatcher
(1979-1990), e ambos mandatários atuaram
para anular a NOEI e a ideia de cooperação internacional. Os países
planejariam políticas segundo seus interesses nacionais e não se inclinariam
diante de nenhum princípio abstrato.
A ONU iniciou o seu rebaixamento como
âmbito para fomentar a governança. O
lugar para a tomada de decisões passou para o Grupo
dos Sete (G7) países mais poderosos, até então um órgão técnico, e
para outras organizações dedicadas a defender os interesses nacionais das
nações mais fortes.
MARGARET TATCHER e RONALD REAGAN respectivamente primeira-ministra da Inglaterra e o presidente do Estados Unidos tiveram um papel determinante na transformação do mundo a partir dos anos 1980 |
Além
disso, outros TRÊS ACONTECIMENTOS ajudaram
Reagan e Thatcher a mudar o rumo da história.
O PRIMEIRO
foi a criação do Consenso de Washington,
em 1989, pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, que impuseram
a política segundo a qual o mercado era o único
motor das sociedades e os estados passaram a
ser um obstáculo e precisavam se encolher o máximo possível. Reagan,
inclusive, cogitou a eliminação do Ministério da Educação.
O
impacto do Consenso de Washington no chamado Terceiro Mundo foi muito doloroso.
Os ajustes estruturais reduziram drasticamente o frágil sistema público.
O SEGUNDO,
foi a queda do Muro de Berlim,
também em 1989, que trouxe consigo o
fim das ideologias e a obrigatória adoção
da globalização neoliberal, que resultou ser uma ideologia ainda muito mais
rígida. A globalização neoliberal se
caracterizou pelo:
* predomínio do mercado,
* que liberou as empresas “livres” ou privadas de qualquer obrigação com o Estado,
* a redução do gasto público em serviços sociais, destruindo as redes
de proteção social,
* a desregulamentação, a diminuição de qualquer regulação estatal que pudesse
reduzir os lucros e a privatização,
* a venda das empresas estatais, de bens e serviços para investidores privados.
Além
disso, significou a eliminação do
conceito de “bem público” ou “comunitário” e o substituiu pela
“responsabilidade individual”, obrigando
as pessoas mais pobres a buscar soluções por conta própria para sua falta de
atenção médica, de sistemas de educação e de seguridade social e, depois,
culpando-as por seu fracasso, considerando-as “frouxas”.
POPULAÇÃO ALEMÃ ORIENTAL E OCIDENTAL CONCENTRADA SOBRE O MURO QUE SEPARAVA AS DUAS ALEMANHAS - 1989 |
O TERCEIRO,
foi a eliminação
progressiva das normas que regiam o setor financeiro, iniciada por
Reagan e completada por Bill Clinton (1993-2001), em 1999, no marco da qual os bancos de depósitos puderam utilizar o
dinheiro de seus clientes para a especulação.
Então,
as finanças, consideradas o
lubrificante da economia, seguiram seu
próprio caminho, embarcando em operações muitos arriscadas e sem relação
com a economia real. Atualmente, para
cada dólar de bens e serviços produzidos, são gerados 40 dólares em transações
financeiras.
Ninguém
mais defende o Consenso de Washington, nem a globalização neoliberal. Ficou
claro que embora do ponto de vista macro, a globalização aumentou o comércio e
impulsionou o crescimento financeiro e global, em escala micro, resultou um
desastre.
Os defensores da
globalização neoliberal sustentavam que o crescimento chegaria ao mundo todo. Ao contrário,
concentrou-se cada vez mais em um número crescente de mãos. Em 2010, 388
pessoas concentravam a riqueza de 3,6 bilhões de pessoas. Em 2014, este número
foi reduzido para 80 pessoas e, em 2015, para 62.
Tanto
é assim, que agora o FMI e o Banco
Mundial pedem que o Estado seja reforçado como regulador indispensável.
Desde a queda do Muro de Berlim, a Europa perdeu 18 milhões de pessoas da
classe média, e os Estados Unidos 24 milhões. Além disso, no momento, existem 1.830 multimilionários com um capital líquido de
6,4 bilhões de dólares. Na Grã-Bretanha se prognostica que, em 2025, a
desigualdade será a mesma que em 1850, em plena era vitoriana e quando nascia o
capitalismo.
O novo mundo criado por
Reagan se baseou na cobiça. Alguns historiadores
sustentam que a cobiça e o medo são os dois motores da história, e os valores e
as prioridades mudam em uma sociedade cobiçosa.
Voltando
a nossos dias, temos um novo grupo de cavaleiros do Apocalipse, os danos dos passados
20 anos (1981-2001) se agravam nos seguintes 20 anos (2001-2020), que ainda não
transcorreram.
NESTA MANIFESTAÇÃO CONTRA O PODER DO SISTEMA FINANCEIRO, LÊ-SE NO CARTAZ: "Povo acima dos Bancos", "Povo acima dos Mercados" e "Humanidade antes do Lucro" O caminho é por aí... |
O PRIMEIRO
CAVALEIRO foi o colapso
do sistema bancário nos Estados Unidos, em 2008, por especulações absurdas com os créditos hipotecários. A
crise se expandiu para Europa, em 2009, baseado na queda do valor dos títulos
imobiliários, como os gregos.
Recordemos
que para salvar o sistema financeiro, os
países destinaram cerca de 4 trilhões de dólares, uma quantia enorme, caso
se leve em conta que os bancos continuam tendo cerca de 800 bilhões de dólares
em ativos tóxicos.
Enquanto
isso, os bancos tiveram que pagar 220
bilhões de dólares em multas por atividades ilegais, mas nenhum gerente foi
condenado. A Europa não voltou à situação em que estava antes da crise.
Além disso, numerosos postos de trabalho desapareceram por conta do
deslocamento da produção a lugares mais baratos e aumentaram os empregos de
baixos salários, além dos precários.
Segundo
a Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE), um
trabalhador ganha atualmente, em termos reais, 16% menos que antes da crise,
atingindo principalmente os setores mais jovens, com 10,5% do emprego médio
na Europa. No entanto, o único estímulo
ao crescimento é para o setor bancário, para o qual o Banco Central Europeu
destina 80 bilhões de dólares por mês. Esse montante resolveria facilmente
a falta de emprego juvenil.
Atualmente,
os economistas falam de uma “Nova
Economia”, na qual o desemprego é
estrutural. De 1959 a 1973, o crescimento mundial ficou acima de 5% ao ano,
sendo reduzido para 3%, em 1973, com a crise do petróleo, que marcou uma
mudança. E, desde 2007, não conseguimos chegar a 1%. [Quer
dizer, essa “nova economia” admite que o desemprego é algo que fará sempre
parte do panorama da sociedade! E não haveria nada a se fazer!]
Além
disso, é preciso adicionar o desemprego
crescente propiciado pelo desenvolvimento tecnológico. As fábricas
necessitam de uma proporção menor de trabalhadores. A Quarta Revolução Industrial, que implica a produção robotizada e que
agora representa 12% do total, subirá para 40%, em 2025.
Alguns
economistas, como o estadunidense Larry
Summers, uma voz oficial do sistema, dizem que estamos em um período de estagnação que durará vários anos. O temor pelo futuro se tornou uma realidade,
avivado pelo terrorismo e o desemprego e pelo sonho de muitas pessoas que
acreditam que é possível voltar a um passado melhor.
Disso se aproveitam figuras populistas, desde o estadunidense Donald Trump à francesa Marine
Le Pen. Uma das consequências da crise é que em vários países europeus
apareceram partidos populistas, com plataformas nacionalistas e xenófobas,
somando 47 na última contagem realizada. Muitos deles já estão no governo ou
integram coalizões governantes, como na Eslováquia,
Hungria e Polônia, e será preciso prestar atenção nas próximas eleições da
Áustria.
O SEGUNDO
CAVALEIRO DO APOCALIPSE é o resultado das intervenções armadas dos Estados Unidos
no Iraque e, depois, da Europa na Líbia e Síria, com um papel especial do
ex-presidente francês Nicolas Sarkozy
(2007-2012).
Isso fez com que, a partir
de 2012, a Europa começasse a receber uma imigração massiva e para a qual não
estava preparada. De repente, as pessoas sentiram medo da onda humana que vinha e de
seu impacto no mercado de trabalho, cultura, região, etc., convertendo-se em um
elemento importante do medo.
Em
seguida, o TERCEIRO CAVALEIRO foi a criação do Estado Islâmico (EI) na Síria, em 2013, um
dos presentes da invasão do Iraque, encabeçada pelos Estados Unidos. Não
nos esqueçamos da crise global, que começou em 2008, e desde então o populismo
e o nacionalismo começaram a crescer.
O espetacular impacto do Estado Islâmico nos
meios de comunicação e a radicalização de muitos jovens europeus de origem
árabe, em geral marginalizados, acentuou
o medo e foi um presente para o populismo, agora capaz de utilizar a
xenofobia para mobilizar cidadãos e cidadãs inseguros e descontentes.
ESTADO ISLÂMICO É FRUTO DA INVASÃO DO IRAQUE PATROCINADA PELOS ESTADOS UNIDOS entre as piores consequências, temos o aumento e difusão do terrorismo pelo mundo! |
A decadência das instituições europeias
levou muitos países, após o Brexit
[saída do Reino Unido da União Europeia], a pedir uma profunda revisão do projeto europeu. No dia 2 de outubro, a Hungria
consultará seus cidadãos: Aceitaria uma quantia de imigrantes imposta pela
União Europeia (UE) contra a vontade do parlamento húngaro?
Nesse
mesmo dia, serão repetidas as eleições na Áustria por questões de formato,
depois que que a extrema-direita perdeu por 36.000 votos as anteriores. Serão
seguidas por Holanda, França e Alemanha, com a probabilidade de que cresçam os partidos de extrema-direita.
Polônia e Eslováquia também querem realizar referendos sobre a União Europeia. É possível que, em fins de 2017, as instituições
europeias estejam profundamente danificadas.
O
verdadeiro problema é que desde a falida
Cúpula de Cancún, em 1981, os países perderam a
capacidade de pensar juntos. Índia, Japão, China e muitos outros
atravessam uma onda de nacionalismo.
Em
Cancún, todos os participantes, desde o presidente francês François Mitterrand (1981-1995) à primeira-ministra indiana Indira Ghandi (1966-1977 e 1980-1984),
do presidente tanzaniano Julius
Kambarage Nyerere (1964-1985) ao primeiro-ministro canadense Pierre Trudeau (1968-1979), compartilharam certos valores de justiça
social, solidariedade, respeito pelo direito internacional, assim como a
convicção de que as sociedades fortes
eram a base da democracia, exceto, é claro, Reagan e Thatcher, a que
declarou: “não há sociedade, só indivíduos”.
Também consideravam a paz e o desenvolvimento
como paradigmas de boa governança. Tudo isso desapareceu. Os líderes políticos
atuais, sem ideologias e subordinados às finanças, voltaram-se principalmente
ao debate administrativo sobre assuntos pontuais, sem contexto, e onde é
difícil distinguir entre a esquerda e a direita. Claramente, estamos em um
período de cobiça e temor.
O
tempo não ajuda
Em 1900, a Europa
concentrava 24% da população mundial. Em fins
deste século, só 4%.
A Nigéria terá mais habitantes que os
Estados Unidos, e a África, que agora
tem 1 bilhão de habitantes, terá 2 bilhões, em 2050, e 3 bilhões, em 2100.
Seria o momento de se discutir como encarar o mundo que vem. Foram necessários 25 anos para se chegar a
um acordo sobre a mudança climática, e talvez já muito tarde. Em matéria de
migrações e emprego,
esse tempo é uma eternidade.
Além
disso, esse deve ser um acordo global,
não só uma reação impulsiva da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, em completa solidão, sem sequer consultar o atual
presidente da França, François Hollande. Mas, esse tipo de agenda é politicamente inimaginável. Como discutir
algo assim com Le Pen, Trump e outros populistas emergentes no marco do
nacionalismo que se propaga pelo mundo?
Traduzido do espanhol pelo Cepat. Acesse a versão original deste
artigo, clicando aqui.
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