Você já se perguntou por que faz aquilo que faz?
A nova geração – os jovens – chegam ao mercado
de trabalho bem-escolarizada, mas mal-educada!
Ela quer “fazer o que gosta” e realizar-se
sem esforço.
Entrevista
com Mario Sergio Cortella
Educador,
filósofo e escritor
Ingrid
Fagundez
Em seu último livro, Cortella se interroga:
“Por que fazemos o que fazemos?”,
pergunta que é o próprio título de sua obra.
MARIO SERGIO CORTELLA |
Segunda-feira,
seis da manhã. O despertador toca e você não quer sair da cama. Está cansado? Ou
não vê sentido no que faz?
Na
introdução de seu novo livro, o filósofo e escritor Mario Sergio Cortella
coloca em poucas palavras o questionamento central da obra, "Por
que fazemos o que fazemos?". Lançada em julho, a obra trata da busca por um propósito no
trabalho, uma das maiores aflições contemporâneas.
Em
entrevista à BBC Brasil, Cortella,
também doutor em Educação e professor, fala como um mundo com muitas possibilidades levou as pessoas a negar que sejam
apenas mais uma peça na engrenagem. E explica como a combinação de um
cenário imediatista, anos de bonança e pais protetores fez com que a
"busca por propósito" dos jovens seja muitas vezes incompatível com a
realidade.
"No dia a dia, a pessoa
se coloca como alguém que vai ter um grande legado, mas fica imaginando o
legado como algo imediato", diz.
Essa
visão "idílica", diz o filósofo, torna escritórios e salas de aula em
palcos de confronto de gerações.
"Parte da nova geração chega nas empresas
mal-educada. Ela não chega mal-escolarizada, chega mal-educada. Não tem noção
de hierarquia, de metas e prazos e acha que você é o pai dela."
Leia
os principais trechos da entrevista abaixo:
O
que desencadeou a volta da busca pelo propósito?
Mario Sergio
Cortella: A
primeira coisa que desencadeou foi um tsunami tecnológico, que nos colocou
tantas variáveis de convivência que a gente fica atordoado.
A
lógica para minha geração foi mais fácil. Qual era a lógica? Crescer, estudar.
Era escola, e dependendo da tua condição, faculdade. Não era comunicação em
artes do corpo. Era direito, engenharia, tinha uma restrição.
Essa overdose de variáveis
gerou dificuldade de fazer escolhas. Isso produz angústia em relação a esse polo do
propósito. Por que faço o que estou
fazendo? Faço por que me mandam ou por que desejo fazer? Tem uma série de
questões que não existiam num mundo menos complexo.
Não foi à toa que a
filosofia veio com força nos últimos vinte anos. Ela voltou porque grandes
questões do tipo "para onde eu vou?", "quem sou eu?",
vieram à tona.
Podemos
dizer que nesse contexto vai ser cada vez menor o número de pessoas que não tem
esses questionamentos?
Cortella: Cada vez menor será o número
de pessoas que não se incomoda com isso. O próprio mundo digital traz o tempo
todo, nas redes sociais, a pergunta: "por que faço o que faço?",
"por que tomo essa posição?". E aquilo que os blogs e os youtubers estão fazendo é uma
provocação: seja inteiro, autêntico. É a expressão "seja você mesmo", evite a vida de gado.
No
seu livro, você fala da importância do reconhecimento no trabalho. Qual é ela?
Cortella: O sentir-se reconhecido é
sentir-se gostado. Esse reconhecimento é decisivo. A gente não pode imaginar
que as pessoas se satisfaçam com a ideia de um sucesso avaliado pela conquista
material. O reconhecimento faz com que
você perca o anonimato em meio à vida em multidão.
No fundo, cada um de nós não
deseja ser exclusivo, único, mas não quer ser apenas um. Eu sou um que importa. E
sou assim porque é importante fazer o que faço e as pessoas gostam.
Pelo
que vemos nas redes sociais, os jovens estão trazendo essa discussão de forma
mais intensa. Você percebeu isso?
Cortella: Há algum tempo tenho tido
leitores cada vez mais jovens. Como me tornei meio pop, é comum estar andando
num shopping e um grupo de adolescentes pedir para tirar foto.
Uma
parcela dessa nova geração tem uma perturbação muito forte, em relação a não
seguir uma rota. E não é uma recuperação do movimento hippie, que era a recusa
à massificação e à destruição, ao mundo industrial.
Hoje é (a busca por) uma
vida que não seja banal, em que eu faça sentido. É o que muitos falam de “deixar a minha marca na trajetória”.
Isso é pré-renascentista. Aquela ideia do herói, de você deixar a sua marca,
que antes, na Idade Média, era pelo combate.
O destaque agora é fazer bem
a si e aos outros. Não é uma lógica franciscana, o "vamos sofrer sem
reclamar". É o contrário. Não
sofrer, se não for necessário.
Uma
das coisas que coloco no livro é que não há possibilidade de se conseguir
algumas coisas sem esforço. Mas uma das
frases que mais ouço dos jovens, e que para mim é muito estranha, é: quero
fazer o que eu gosto.
Esse
é um pensamento comum entre os jovens quando se fala em carreira.
Muito comum, mas está
equivocado.
Para fazer o que se gosta é necessário fazer várias coisas das quais não se
gosta. Faz parte do processo.
Adoro
dar aulas, sou professor há 42 anos, mas detesto corrigir provas. Não posso
terceirizar a correção, porque a prova me mostra como estou ensinando.
Não
é nem a retomada do “no pain, no gain”
(“sem dor, não há ganho”). Mas é a lógica de que não dá para ter essa visão hedonista, idílica, do puro prazer. Isso
é ilusório e gera sofrimento.
O
sofrimento seria o choque da visão idílica com o que o mundo oferece?
Cortella: A perturbação vem de um
sonho que se distancia no cotidiano. No dia a dia, a pessoa se coloca como
alguém que vai ter um grande legado, mas fica imaginando o legado como algo
imediato.
Gosto
de lembrar uma história com o Arthur Moreira Lima, o grande pianista. Ao terminar
uma apresentação, um jovem chegou a ele e disse “adorei o concerto, daria a vida para tocar piano como você”. Ele
respondeu: “eu dei”.
Há uma rarefação da ideia de
esforço na nova geração. E falo no geral, não só da classe média. Tivemos uma facilitação da vida no país nos últimos 50 anos – nos
tornamos muito mais ricos. Isso gerou
nas crianças e jovens uma percepção imediatizada da satisfação das necessidades.
Nas classes B e C têm menino de 20 anos que nunca lavou uma louça.
Quais
as consequências dessa visão idealizada?
Cortella: Uma parte da nova geração perde uma visão histórica desse processo.
É tudo “já, ao mesmo tempo”. De nada
adianta numa segunda castigar uma criança de cinco anos dizendo: sábado você
não vai ao cinema. A noção de tempo exige
maturidade.
Vejo
na convivência que essa geração tem uma visão
mais imediatista. Vou mochilar e
daí chego, me hospedo, consigo, e uma parte disso é possível pelo modo que a
tecnologia favorece, mas não se sustenta por muito tempo.
Quando
alguns colocam para si um objetivo que está muito abstrato, sofrem muito. Eu
faço uma distinção sempre entre sonho
e delírio. O sonho é um desejo factível. O delírio
é um desejo que não tem factibilidade.
Muitos
deliram nas suas aspirações?
Cortella: Uma parte das pessoas
delira. Ela delira imaginando o que pode
ser sem construir os passos para que isso seja possível. Por que no campo
do empreendedorismo existe um nível de fracasso muito forte? Porque se colocou
mais o delírio do que a ideia de um sonho.
O sonho é aquilo que você constrói como
um lugar onde quer chegar e que exige etapas para chegar até lá, ferramentas,
condições estruturais. O delírio
enfeitiça.
Qual
é o papel dos pais para que a busca pelo propósito dos jovens seja mais realista?
Cortella: Alguns pais e mães usam uma
expressão que é "quero poupar meus
filhos daquilo que eu passei". Sempre fico pensando: mas o que você
passou? Você teve que lavar louça? Ou está falando de cortar lenha? Você está poupando ou está enfraquecendo?
Há uma diferença. Quando você poupa alguém é de algo que não é necessário
que ele faça.
Tem coisas que não são
obrigatórias, mas são necessárias. Parte das crianças hoje considera a tarefa escolar
uma ofensa, porque é um trabalho a ser feito. Ela se sente agredida que você
passe uma tarefa.
Parte
das famílias quer poupar e, em vez de poupar, enfraquecem. Estamos formando uma geração um pouco mais fraca, que pega menos no
serviço. Não estou usando a rabugice dos idosos, “ah, porque no meu tempo”. Não é isso, é meu temor de uma geração
que, ao ser colocada nessa condição, está sendo fragilizada.
Sempre
lemos e ouvimos relatos de conflitos de gerações entre chefes e subordinados,
alunos e professores. Como se explicam esses choques?
Cortella: Criou-se um fosso pelo
seguinte: uma criança ou jovem é criado por adultos, que são seus pais e mantêm
com eles uma relação estranha de subordinação. A geração anterior sempre teve
que cuidar da geração subsequente e essa vivia sob suas ordens.
A
atual geração de pais e mães que têm filhos na faixa dos dez, doze anos, é
extremamente subordinada. Como há por
parte dos pais uma ausência grande de convivência, no tempo de convivência eles
querem agradar. É a inversão da lógica.
Essa lógica faz com que,
quando o jovem vai conviver com um adulto que sobre ele terá uma tarefa de
subordinação, na escola ou trabalho, haja um choque. Parte da nova geração
chega nas empresas mal-educada. Ela não chega mal-escolarizada, chega
mal-educada.
Não tem noção de hierarquia,
de metas e prazos e acha que você é o pai dela. Obviamente que ela também
chega com uma condição magnífica, que é percepção digital, um preparo maior em
relação à tecnologia.
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