“O deus Dinheiro, o primeiro terrorismo”, afirma o papa
Entrevista
com Rémi Brague
Filósofo
e cristão, especialista no pensamento medieval árabe e judeu
Caroline
Brizard
Le
Nouvel Observateur
15-08-2016
Ao retornar, no dia 1 de agosto, da Jornada Mundial da
Juventude em Cracóvia, o Papa Francisco declarou no avião:
“No centro da economia mundial está o deus Dinheiro, e
não a pessoa,
o homem e a mulher; este é o primeiro terrorismo”.
PAPA FRANCISCO |
Esta
declaração lapidar do papa merece alguns esclarecimentos. Nós conversamos com Rémi Brague, filósofo e cristão,
especialista no pensamento medieval árabe e judeu.
Confrontado
com o grande medo de ataques islâmicos, o papa escolheu denunciar o terrorismo
na economia.
Eis
a entrevista.
A
denúncia do dinheiro feita pela Igreja é uma constante na história do
Cristianismo, desde o episódio dos mercadores do Templo que foram expulsos por
Jesus, passando pelas figuras da pobreza como São Francisco de Assis?
Rémi Brague: Sim e não. Os fatos aos
quais você se refere têm uma significação religiosa; seu sentido econômico e/ou
político é menos claro. O gesto de Jesus é, sobretudo, profético. No plano
material, ele se contenta provavelmente em derrubar uma mesa ou duas. Se ele
tivesse derrubado mais, a guarda romana teria entrado para impedi-lo.
Devemos
nos situar na Palestina do século I. O Templo é um lugar de constante
sacrifício de animais, desde bois a pombas, uma espécie de gigantesco
abatedouro para onde os judeus levam a moeda de que se serviam em seus países
de origem para pagar suas compras. Ele é, ao mesmo tempo, um grande local de
venda de animais e uma casa de câmbio. Os “mercadores” expulsos do Templo por
Jesus não o foram porque eles praticavam a troca, ou porque eles procuravam os
animais para o sacrifício, mas por causa do lugar onde eles exerciam o seu
ofício, que deveria ter outras funções.
Jesus não denuncia o uso do
dinheiro, mas o culto que se presta a ele, que é de natureza idolátrico. Ele denuncia o fato de comprar, dessa maneira, a graça de Deus e de substituir a
tradição dos profetas que denunciam os sacrifícios, porque eles não substituem
a conversão dos corações.
A
reação dos moradores (os “judeus”, isto é, os habitantes da Judeia) é
significativa: eles não protestam, eles não estão chocados, mas eles pedem um
“sinal” – qualquer coisa que legitime Jesus para agir dessa maneira – que
mostre que também ele é um profeta (Jo 2,18).
Quanto à pobreza de São
Francisco, ela é acima de tudo uma tentativa de imitar a vida dos Doze
Apóstolos, que levaram uma vida errante, que cruzaram a Palestina de alto a baixo, embora
tenham deixado sua vida de pescador, de coletor de impostos. Eles vivem uma existência precária,
seguindo o Jesus que prega e dependendo
da ajuda dada pelas pessoas que encontram. Da mesma forma, a pobreza das
ordens monásticas não é um exemplo. Ela não representa um modelo econômico.
Tem-se
a impressão de que para a Igreja Católica, o dinheiro encarna o mal...
Rémi Brague: O dinheiro representa, em
primeiro lugar, um aspecto tangível de qual
é realmente o mal, a saber: o que o Novo Testamento chama de “riqueza”. Isto não é somente material, mesmo se a riqueza material é mais visível.
Pode
ser também o nascimento, as relações, a situação social, a influência,
o saber real ou imaginário, a posse
de uma visão de mundo “concreto”, no sentido em que pensamos: “Eu entendi, eu não
tenho necessidade de aprender”.
Estar cheio de si representa
uma forma de “riqueza”, menos visível, mas igualmente perigosa. Em síntese, a riqueza engloba tudo o que impede de
reconhecer que nós temos necessidade dos outros e de outra coisa que não eu
mesmo, incluindo o grande Outro que é Deus.
O
Papa tem o sentido da fórmula que impressiona. Podemos realmente falar de um
“terrorismo do dinheiro”?
Rémi Brague: Ele chega, às vezes, a
ultrapassar o seu próprio pensamento. Evidentemente, não é uma questão, para
ele, de colocar no mesmo nível o assassinato puro e simples e as consequências
da economia de mercado. Eu gostaria
de lembrar que nunca houve outra
economia. O “socialismo real” [a realidade dos países socialistas, NDLR]
repousou, de fato, sobre uma economia paralela, subterrânea. Em toda a parte
onde se troca bens ou serviços e, portanto, em toda parte onde se faz mensurar
o valor que do que se troca para que esta troca seja justa, seja no mercado,
seja no mercado negro.
Dito
isto, há um ponto comum entre a
violência física e a ditadura do mercado. Assim como os terroristas
procuram que as pessoas se debrucem diante deles sem lutar, os fenômenos econômicos têm um efeito de
estupefação que se assemelha aos efeitos do terror. Eles dão a impressão de
que não há outra alternativa, que esta ordem é inevitável.
Aqueles
que colocam em prática este terror procuram, por outro lado, muito
conscientemente este efeito de estupefação que provoca a submissão. A
estupefação faz crer que aquele que age é muito mais forte do que realmente é;
ela faz crer que a situação criada é inevitável; ela reduz ao silêncio, de
sorte que não se consegue mais nem nomear o inimigo.
O
senhor acredita que o propósito do Papa seja uma ruptura com as práticas do
Vaticano?
Rémi Brague: Quais práticas? Trata-se de apresentar a pessoa do
Papa com menos decoro. Há várias décadas os papas vêm renunciando pouco a pouco
aos sinais de ostentação do poder, como, por exemplo, a sedia gestatoria [o
trono móvel sobre o qual o papa era carregado para poder ser mais facilmente
visto pelos fiéis nas cerimônias públicas em Roma, NDLR]. Eu gostaria de
recordar que o “papamóvel”, que substitui a sedia gestatoria, é a consequência
direta da tentativa de assassinato de João Paulo II.
Se
se trata da maneira como o Vaticano administra sua fortuna, que, lembro, não é
grande coisa comparada com aquela do menor dos emirados do petróleo, temo que o
problema seja acima de tudo a incompetência das pessoas que tem este encargo,
que as coloca à mercê de todo tipo de criminoso. Nós imaginamos o Vaticano com base no modelo do Pentágono; na verdade,
é antes uma subprefeitura...
O
Papa apela a um retorno à pobreza, a uma economia menos gananciosa, mais
sóbria?
Rémi Brague: A pobreza não é a miséria,
ela pode ser voluntária, como nós vimos. Mas a miséria é sempre sofrida. Pelo
contrário, eu gosto da palavra
“sobriedade”. Ela é o contrário da embriaguez. Ser sóbrio, como em inglês “sober”, significa aquela pessoa que evita o álcool ou a droga e que tem uma
conduta mensurada.
A
embriaguez distorce a nossa visão da realidade; a sobriedade torna capaz de
vê-la. Uma ECONOMIA SÓBRIA começaria por
levar em conta as nossas necessidades reais, e procurar satisfazê-las, em
vez de tomar a ela mesma por objeto.
PAPA FRANCISCO FAZ QUESTÃO DE ENCONTRAR-SE COM OS REJEITADOS, OS DESCARTADOS PELA SOCIEDADE DO BEM-ESTAR Aqui ele se encontra com refugiados sírios no Campo de Mória, na Grécia |
Podemos
moralizar as trocas econômicas e colocar a economia a serviço da pessoa? Como?
Quais mudanças isso poderia induzir?
Rémi Brague: Tentou-se este tipo de
coisas com a economia social de mercado, na Alemanha do pós-guerra, e ainda há
por lá belos exemplos disso. A tendência ainda é de dar menos ênfase ao
adjetivo “social”...
Existe um ensinamento (ou “doutrina”) social da Igreja.
Ele desenvolveu-se a partir do século XIX para responder às novas condições
criadas pela Revolução Industrial e a emergência de novas relações sociais.
Mas ele se funda sobre
regras que foram formuladas a partir da Idade Média e do Renascimento. Ao contrário das outras
religiões que entram nos detalhes das regras relativas à alimentação, ao
vestuário e à vida cotidiana, este
ensinamento permanece voluntariamente no nível dos princípios gerais
(respeito das pessoas, subsidiariedade, etc.) e deixa à inteligência humana os métodos que permitem sua aplicação.
O ensinamento social da Igreja baseia-se na inteligência humana para declinar
destes grandes princípios – o kit de sobrevivência da humanidade, que se
resume, em última instância, aos 10 Mandamentos – em suas aplicações práticas.
Assim,
a doutrina social da Igreja permite afirmar, por exemplo, que não é bom reduzir as pessoas à miséria, de
modo que elas trabalhem a qualquer preço. É tarefa de cada pessoa
preocupar-se com isso.
O
senhor acredita que as desigualdades sociais produzidas pela economia são
inevitáveis?
Rémi Brague: As desigualdades produzidas
pela economia não são as únicas presentes nas sociedades. Mas, as nossas
sociedades modernas, democráticas, substituem cada vez mais as desigualdades
que repousavam, nas sociedades aristocráticas do Antigo Regime, sobre os
privilégios de nascimento. Para não falar das castas indianas.
Quanto
às desigualdades socioeconômicas,
parece-me que elas são toleráveis apenas
a partir do momento em que a mobilidade social é suficientemente grande para
garantir que essas desigualdades sejam apenas provisórias.
Se
a economia não pode conter o terrorismo do deus dinheiro, quem pode desempenhar
este papel? O Direito? O Estado?
Rémi Brague: O Direito? Sem dúvida, desde
que seja executado por um espírito público suficientemente claro sobre as
prioridades da vida. Por si só, o
Direito não tem grande força se não estiver em sintonia com as grandes
tendências sociais.
O
Estado? O problema é que, em um ponto capital, ele puxa na mesma direção do
mercado: obter indivíduos isolados, dóceis como cidadãos ou como consumidores.
Como
o indivíduo pode incorporar na sua vida cotidiana esta denúncia do terrorismo
do dinheiro?
Rémi Brague: É tão difícil, assim, não
buscar o sentido da sua vida na maximização dos milhares de euro? [Lembrando que o Euro é a moeda europeia]
Não se orientar imediatamente para as profissões mais lucrativas? De fazer com
que os outros se aproveitarem da sua riqueza? Não trocar de carro ou de
computador antes que esses objetos estejam sem condições de uso? Não tratar as
pessoas à maneira das coisas, que podemos comprar, alugar, descartar, quando
estão obsoletas?
Adotar atitudes “sóbrias”,
para retomar a expressão, é sem dúvida mais fácil para os indivíduos do que
para as instituições. Para fazer evoluir as instituições, pode ser que as escolhas
individuais tenham influência, se atingirem uma “massa crítica”. Veja que eu
sou cauteloso...
Traduzido do francês por André Langer, com correções e adequações de Telmo José Amaral de Figueiredo. Para acessar a versão original
desta entrevista, clique aqui.
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