Por que escândalos não abalam a reputação de políticos evangélicos?
Discursos de fé
Entrevista
com Sarah Posner
Jornalista investigativa norte-americana
Lúcia
Guimarães
O encontro entre pastores evangélicos e a política é
uma invenção americana – que pegou bem no Brasil. Com retórica moralista, a
bancada evangélica tem quase 40% dos assentos do Congresso. O que a experiência
da direita cristã dos Estados Unidos ensina sobre o Brasil de Eduardo Cunha,
Jair Bolsonaro e Marco Feliciano, expoentes do conservadorismo no País?
A jornalista investigativa americana Sarah Posner,
especialista na relação entre política e religião, explica o poder de atração
desse grupo e por que escândalos financeiros e sexuais não abalam sua reputação
SARAH POSNER |
A
confluência de pastores evangélicos com
a política na era pós-televisão é uma exportação norte-americana. É também
um casamento notadamente oficiado pelo
Partido Republicano, desde o governo de Richard Nixon, na década de 1970.
As igrejas evangélicas não detêm o monopólio dos escândalos, como fica claro
por décadas de denúncias sobre pedofilia na Igreja Católica, afinal tratadas
com maior transparência pelo Papa Francisco.
Mas
o tele-evangelismo produziu uma forma
de varejo religioso que frequentemente ocorre fora de denominações protestantes
tradicionais, e atrai um tipo de
charlatanismo que convive com a democracia norte-americana de maneira
intrigante. A jornalista investigativa Sarah
Posner é uma das maiores conhecedoras da direita evangélica nos Estados
Unidos. Ela é autora do livro God's Profits: Faith, Fraud, and the
Republican Crusade for Values Voters (Lucros de Deus: Fé, Fraude e a
Cruzada Republicana pelos Eleitores de Valores Morais), uma exposição da aliança republicana com tele-evangelistas
corruptos que exploram os chamados value
voters, eleitores cujo voto é motivado por questões como aborto e
homossexualismo.
Posner
tem analisado esta mais incomum das campanhas presidenciais e narrado o racha
que ocorre entre os evangélicos tradicionais e os que dão apoio maciço a Donald
Trump. O apelo de Trump para um nicho demográfico – trabalhadores brancos de
indústrias em declínio, com pouca educação, cada vez mais excluídos pela
economia globalizada, se completa com sua mensagem: “Restaurar a América” (e a brancura) a um período de glória e
dominação. É a volta a um paraíso que,
tanto esses eleitores, como os fiéis de certos tele-evangelistas, nunca
conheceram.
Quanto
procurei a autora Sarah Posner para conversar com o Aliás, ela soltou uma exclamação sobre este dado: 38% do Congresso brasileiro é constituído
por políticos evangélicos, um crescimento extraordinário, se levamos em
conta que não passavam de 9% no começo do milênio. O censo do IBGE, em 2010,
apontou que 22,4% dos brasileiros se
declaravam evangélicos e 65% da
população se declarava católica. Como explicar esse peso político
desproporcional da chamada bancada da Bíblia? Na conversa com Sarah Posner, ela
oferece uma análise da situação norte-americana que ajuda a explicar. Os indignados – os que são contra a
legalização do aborto, por exemplo – se
mobilizam mais para se organizar e ir às urnas, especialmente num país onde o
voto não é obrigatório. Quando uma sociedade se liberaliza e se torna mais
secular, o zelo religioso tende a se tornar mais vocal. Uma década antes de a
Suprema Corte Americana confirmar o casamento entre pessoas do mesmo sexo,
grupos religiosos conseguiram passar leis definindo o casamento como
instituição entre um homem e uma mulher em 13 estados – uma discussão que vemos
hoje no Brasil, com o estatuto da família defendido massivamente pela frente
parlamentar evangélica.
Como a emergência de
moralistas políticos vai marcar o Brasil dos deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ)
e Marco Feliciano (PSC-SP)? E como a experiência da direita cristã, agora desafiada pela evolução
demográfica de um país cada vez mais diverso como os Estados Unidos, pode jogar
luz sobre o momento brasileiro? No século 18, o filósofo alemão Immanuel Kant, em seu ensaio clássico “Paz Perpétua” expressou confiança no
político moral. Mas o moralista
político, escreveu, forja a moralidade de forma a moldá-la para obter vantagens.
A seguir, a conversa com Sarah Posner.
O
que marcou a emergência recente da direita cristã nos Estados Unidos?
Sarah Posner: O fenômeno não é tão
recente como pensam. O fim da segregação racial nas escolas e a proibição de
oração e bíblias em escolas públicas foram catalisadores da insatisfação de
brancos cristãos. Lembro também que, durante
a Guerra Fria, a direita religiosa foi ativa na luta anticomunista. Mas,
com a decisão da Suprema Corte, em 1973, que legalizou o aborto, a direita
cristã se aliou de maneira mais organizada ao Partido Republicano. A eleição de Ronald Reagan, em 1980, marca
o primeiro engajamento maciço dos evangélicos em uma campanha presidencial.
Agora temos o marco da passagem do casamento entre pessoas do mesmo sexo, na
Suprema Corte. Eles não esperavam isso, especialmente após ter obtido vitórias,
na eleição de 2004, passando leis estaduais contra o casamento gay. Como estão
reagindo? Cerram fileiras em torno da
“liberdade de religião”. É um slogan que se refere à liberdade de religião
garantida pela Constituição, mas quer promover a ideia de que, se um
comerciante cristão não quiser atender encomendas para um casamento gay,
poderia fazê-lo porque estaria exercendo seu direito, acima da lei civil. Mesmo sabendo que vão se tornando minoria,
querem demarcar território para seu conservadorismo.
Por
que escândalos financeiros e de natureza sexual não parecem abalar a reputação
dos tele-evangelistas?
Sarah Posner: É uma subcultura com veia autoritária. O pastor foi ungido para falar em
nome de Deus. Ele é o mensageiro da verdade. Quem se coloca contra o pastor é
acusado de estar contra Deus ou seu apóstolo. E críticas que vêm de fora são caracterizadas como coisa do demônio,
inclusive as que partem da mídia. É um mundo
binário, do bem contra o mal, e os
fiéis se veem no papel de combater o mal. Sabemos que há temor de denunciar
líderes de uma igreja. Entrevistei vários ex-membros de igrejas que descrevem o
mesmo tipo de intimidação, seja para denunciar uma falcatrua financeira ou um
malfeito sexual. Mas note também que há
circulação de fiéis entre as igrejas. Como
quem vai às compras eles podem trocar de pastor, em busca de uma mensagem
que melhor lhes convém.
O
seu trabalho expôs a demagogia de pastores de igrejas que não têm denominação
protestante tradicional, pregadoras do “evangelho da prosperidade”. Por que continuam
impunes?
Sarah Posner: Eles convencem os fiéis de que o dízimo é prova de sua devoção a Deus.
Há tanta gente em dificuldades financeiras que continua a doar, enquanto vê
seus pastores em carros de luxo, em mansões milionárias. A reação frequente é achar que o pastor fez algo certo. Quando
reclamam, ouvem críticas à força de sua fé, e que é preciso doar mais para ter “retorno” no investimento. Conversei
com uma mulher da igreja do controverso pastor John Hagee. Trato dele no livro.
A igreja disse a ela que sua obrigação era pagar o dízimo antes de pagar o
aluguel. É o que evangélicos chamam de “primeiros frutos”, a obrigação
primordial é com a igreja.
JOHN HAGEE é pastor e fundador da megaigreja pentecostal Cornestone Church em Santo Antônio, no Texas, fundou uma organização sionista-cristã e tem posições políticas e sociais muito controversas. |
Seu
livro narrou casos de exploração de fiéis com perfil bem escolarizado. Como se
deixam enganar?
Sarah Posner: A psicologia desta dinâmica
é complicada. Nos povos que valorizam
sucesso material, a atração pela teologia
da prosperidade é maior, pela sensação de certeza que ela traz. A TV é
um instrumento forte de propagação. Redes cristãs como a Trinity e a Christian
Broadcasting Network têm público internacional e são imitadas no exterior. O público vê um estilo de vida afluente,
celebridades e diz: não é ganância, é a vontade de Deus. Mesmo na Igreja
Católica, não vejo disposição da Conferência Nacional dos Bispos para promover
frugalidade [simplicidade de vida] como prega o Papa Francisco. Sabemos de bispos com estilo de vida muito
abastado. Em 2014, tivemos uma explosão de indignação com o arcebispo de
Newark, que usou US$ 500 mil da igreja para transformar sua casa de fim de
semana numa mansão.
Os
escândalos de pedofilia na Igreja Católica vê o fim da impunidade garantida.
Como evangélicos lidam com seus escândalos sexuais?
Sarah Posner: Eles apareceram em várias
igrejas, especialmente sem denominação protestante tradicional, inclusive nas
suas escolas. E o jornalismo investigativo está expondo os casos, como no
escândalo da Bob Jones University. É
uma escola fundamentalista cristã, que lidou
com denúncias de estupro e abusos durante décadas acusando as vítimas de ser
responsáveis pelos ataques que denunciavam. Há essa cultura de culpar
vítimas e proteger homens no poder. Mas a cultura de proteger poderosos não é
exclusiva de igrejas. Veja o escândalo atual com o fundador da Fox News, agora
demitido, Roger Ailes, o executivo
mais influente da mídia conservadora. Ele
é acusado de assédio por mais de 20 mulheres. Várias pessoas em posições de
poder vieram em sua defesa.
Donald
Trump já defendeu o aborto, quase não menciona religião e tem passado notório
de farras em Nova York. Seu perfil é o oposto do eleitor que seleciona o
candidato por uma plataforma moral. Mesmo assim, mais de dois terços dos
evangélicos brancos parecem dispostos a votar em Trump. Como explicar este
apoio?
Sarah Posner: A surpresa não é menor entre
quem acompanha os evangélicos. Quando perguntamos a eles como podem apoiar
Trump, se contorcem em explicações que se resumem assim: está tudo errado com o
país. Não dá para ter só batalhas em questões como aborto ou homossexualismo.
Os Estados Unidos precisam de um homem forte que vai libertá-los do caminho do liberalismo ideológico e moral e do
secularismo. Ele fala contra muçulmanos, é atraente porque ressalta essa
história do choque de civilizações. E a
maneira como ele ataca o politicamente correto agrada demais, especialmente
a evangélicos. Entenda que atacar o politicamente correto, neste caso, é
linguagem em código para atacar
feministas, movimentos negros como o Black Lives Matter, que denuncia a
violência policial contra negros. Estamos vendo maior flutuação nas
pesquisas. No momento, o eleitorado
evangélico branco é crucial para Trump. Há décadas, os republicanos que chegaram à Casa Branca não têm recebido menos do
que 70% do apoio destes eleitores. Trump depende deles.
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