A guerra dos tradicionalistas ao Papa Francisco
Entrevista
com Andrea Grillo*
Pierluigi Mele
Rai
News
02-08-2016
Papa Francisco, inevitavelmente, é atacado por quem tem
medo da Reforma da Igreja e de perder poder. Mas são grupos marginais e sem
alguma figura de destaque entre eles.
ANDREA GRILLO Teólogo e Liturgista italiano |
Nos
últimos dias, Massimo Franco,
comentarista político e especialista nos assuntos do Vaticano do Corriere della Sera, em um texto
intitulado “Os tradicionalistas contra
Francisco”, relata, no artigo, o apelo feito, por meio do blog
ultraconservador Corrispondenza romana,
por 45 teólogos e historiadores que pedem ao Colégio Cardinalício a intervenção
junto ao Papa para que repudie «os erros presentes no documento de modo
definitivo e final, e declare com autoridade que não é necessário que os fiéis
acreditem naquilo que é afirmado em “Amoris
Laetitia”». Esse é o último de uma
série de episódios da guerra dos tradicionalistas contra Francisco. Vamos
conversar com Andrea
Grillo, professor de Teologia e Filosofia da Religião do Pontifício
Ateneo Sant’Anselmo, de Roma.
Eis
a entrevista.
Professor,
a impressão que se tem é que o dissenso está aumentado. É isso? Ou é apenas um
exagero da mídia?
Andrea Grillo: Acredito que seja uma boa
ideia, mesmo para os jornalistas famosos, verificar as fontes nas quais
fundamentam seus artigos. O documento do
qual se fala no artigo citado é um texto escrito em uma linguagem de 150 anos
atrás, e assinado por alguns desconhecidos. Os únicos signatários
conhecidos pertencem a setores isolados, marginais e autorreferenciados da
Igreja Católica. Fazer disso uma
oposição a Francisco é uma operação midiática sem qualquer fundamento. É
engraçado. Além dos jornalistas, eu diria àqueles que têm problemas, de
demonstrarem algum argumento fundamentado, qualquer raciocínio convincente. Até o momento, apenas apresentaram
propaganda velha e desespero presunçoso.
Qual
a adesão que estes posicionamentos têm sobre o povo de Deus?
Andrea Grillo: Estes posicionamentos chamam
atenção – e são também estimulados – apenas em alguns ambientes curiais –
romanos ou periféricos – que nada têm a ver com o povo de Deus. São jogos de poder de quem vê posto em
discussão o próprio papel clerical, que antes estava fora de controle e agora
não goza mais de liberdade. Papa
Francisco, inevitavelmente, é atacado por quem tem medo da Reforma da Igreja e
de perder poder. O povo de Deus não tem nada a ver e, com razão, não se
interessa por isso.
PAPA JOÃO XXIII convocou o Concílio Vaticano II justamente para colocar a Igreja em diálogo com o mundo moderno! |
O
que assusta os tradicionalistas na abordagem de Francisco? A leitura complexa
da modernidade?
Andrea Grillo: O Papa Francisco sai explicitamente do antimodernismo que caracterizou
fortemente a cultura católica antes e também depois do Concílio Vaticano II.
Nós confundíamos frequentemente o
catolicismo com o antimodernismo. Ser católico era ser “contra os trens”,
“contra a luz elétrica”, “contra o cinema”, “contra o voto feminino”, “contra
os anticoncepcionais”... De uma forma
muito simples, mas com extrema coerência, Francisco rejeita uma leitura
unilateral e hostil da modernidade.
Esse
aspecto é insuportável para os tradicionalistas, mas é também de difícil compreensão
por aqueles que, sem serem tradicionalistas, aceitaram passivamente uma leitura
“de conveniência” da relação entre Igreja e mundo. Na realidade, inquieta aqueles que se refugiaram em uma
“autorreferenciação” consoladora, felizes de estarem sem saída e de não
precisarem nunca “sair”.
Uma
das críticas que o fronte conservador faz ao Papa é a de ser mais preocupado
com a “realidade” do que com a “verdade”. Eu, francamente, acho isso um insulto
a Francisco. Há fundamento nessa acusação?
Andrea Grillo: Isso me parece um dos pontos que Francisco trouxe
uma mudança decisiva. O primado do tempo
sobre o espaço e da realidade sobre
a ideia – afirmado com grande força em todos os textos magisteriais de
Francisco, Evangelii Gaudium, Laudato Si’ e Amoris Laetitia – constitui uma
“tradução da tradição” que recoloca em relação verdade e realidade. A
acusação contra Francisco pressupõe que o relacionamento com a verdade pode
dispensar a realidade. Com essa abordagem – que depende do antimodernismo do
fim do século XIX e do início do século XX – a Igreja perdeu a relação com a realidade e se fechou em uma
autorreferenciação perigosa e infrutífera.
Um
outro “projeto” do fronte tradicionalista é contrapor Wojtyla e Ratzinger a
Bergoglio. O senhor não vê uma continuidade?
Andrea Grillo: Todas estas posições ressentidas – que são de
tradicionalistas radicais, mas também de alguns Bispos e Cardeais – buscam
enfatizar as “contradições” entre Francisco e seus dois antecessores.
Aqui
é necessária boa compreensão. Não há
nenhuma ruptura. Mas não há também
uma simples continuidade. A tradição
continua traduzindo-se de modo novo. Este é também o significado mais
autêntico das palavras de Bento XVI, quando, em 2005, falou da “hermenêutica da reforma” como solução
às duas hermenêuticas equivocadas do Concílio, ou seja, aquelas da pura
continuidade e do puro rompimento. Francisco não rompe, mas reforma. Mas é consciente da urgência da reforma,
enquanto que aqueles que se opõem, com o pretexto de uma suposta ruptura,
apenas têm medo do novo, que na Igreja é sempre apresentado como uma benção nos
momentos de crise.
PAPA FRANCISCO E O PAPA EMÉRITO BENTO XVI não há ruptura entre os dois pontificados, mas uma renovação e uma forma mais direta de assumir o Concílio Vaticano II |
O
comportamento do Papa emérito perante ao atual Papa é exemplar. Na realidade,
Ratzinger manifestou grande apreço em relação a Bergoglio. E mesmo assim
continua essa instrumentalização contra Francisco. Por quê?
Andrea Grillo: Não há dúvida que o
relacionamento pessoal entre o Papa atual e o Papa emérito seja bom e cordial.
O ponto não é esse. Todavia, entre o magistério de Bento e de Francisco existem
algumas diferenças significativas,
sobretudo com relação ao Concílio Vaticano II. Francisco está plenamente convencido da reforma invocada do Vaticano
II, enquanto Bento foi hesitante, impreciso, às vezes, até mesmo assustado e
meramente defensivo. Em três anos, Francisco encontrou a confiança em um magistério que assume novas
responsabilidades, enquanto que o magistério de Bento – e o último de João
Paulo II – estava paralisado pelas tradições e totalmente negativo. Ao assumir
essa grande iniciativa, Francisco teve que cumprir, não sem dificuldades, as escolhas
diferentes dos seus predecessores.
Um
outro fronte de crítica formado pela parte tradicionalista que encontra apoio
na área política de direita, é aquele da opinião sobre o Islamismo. Em resumo,
para eles, Bergoglio é muito benévolo. Mais uma infâmia com relação a
Francisco. Qual é a sua opinião a respeito?
Andrea Grillo: Aqui também é necessário
considerar apenas as coisas sérias. Nesse assunto, as opiniões influentes não
são muitas e os boatos são muitíssimos. A posição com relação ao Islamismo
encontra sua origem em uma abordagem
reconciliadora com as “outras religiões”, que com Francisco encontrou
profunda revitalização. Nenhuma concessão às generalizações propagandísticas e
considerações da complexidade das tradições singulares. Na entrevista de
retorno da Jornada Mundial da Juventude, Francisco
lembrou que o fenômeno do “fundamentalismo” não identifica nenhuma tradição
religiosa. “Mesmo entre nós”,
lembrou, “encontramos muitos”.
Acrescenta-se que sobre o tema do relacionamento com o Islamismo devemos, antes
de mais nada, ter clara a qualidade e a densidade da nossa tradição.
Afirmar,
como fez um famoso jornalista, que os muçulmanos não podem participar da missa
“por que não creem na presença real” me parece a demonstração de uma
aproximação teológica e eclesiástica muito preocupante. E sobre o fundamento
dessa evidente ignorância, essas pessoas pensam que devem dar conselhos ao
Papa...
Até
mesmo em relação à pastoral da “misericórdia” são provocadas críticas. Nos
encontramos diante de duas visões opostas da Igreja. Como fazem para coexistir?
Andrea Grillo: Como escreveu Stella Morra,
em um belo livro intitulado “Dio non si
stanca”, o tema da
“misericórdia/perdão” é central nos ensinamentos de Francisco, não como um
“conteúdo”, mas como um modo de compreender a Igreja e o relacionamento com
Deus. É o “estilo da misericórdia” a tirar a Igreja da sua autorreferência,
a forçar a “sair à rua”, a não “observar em silêncio”, a construir “hospitais
de campanha” e “campos de refugiados”. Essa
linguagem irrita a todos os monsenhores com limusines, abotoaduras, empregadas,
casas com muitos cômodos... [Sem dúvida alguma, o
estilo sóbrio, humilde e pobre de Jesus Cristo passa longe de muitos prelados
católicos! A escuridão incomoda-se com a claridade!]
É um modelo de Igreja e de
Evangelho a ser recolocado em campo e em jogo, depois de décadas de condicionamento ao
exercício do poder formal e do reconhecimento puramente autoritário.
NA CERIMÔNIA DA CEIA DO SENHOR, NO MOMENTO DO LAVA-PÉS, PAPA FRANCISCO lavou e beijou os pés de várias pessoas refugiadas que chegaram à Itália. Castelnuovo di Porto, 24 de março de 2016 |
Até
mesmo no plano litúrgico os tradicionalistas parecem padecer com Francisco. É
isso mesmo?
Andrea Grillo: De um lado, não parece que
Francisco esteja interessado na liturgia quanto era Bento... Mas por outro
lado, as mudanças introduzidas no “Lava-pés” e o recente pedido de «evitar o
uso da expressão “reforma da reforma”» indicam claramente uma orientação para a plena valorização da
“participação ativa” como lógica “popular” da liturgia e da oração cristã.
Aqui também quem quisesse ter protegido seu direito de “estar para trás” se
sente prejudicado. Quando os pés das mulheres e a reforma litúrgica retornam ao
foco central, muitas preocupações curiais e teimosias sobre rubricas se
encontram inesperadamente na extrema periferia!
Última
pergunta: O que parece, na realidade, ser o objetivo final dos conservadores é
a intimação da criatividade do Concílio Vaticano II. É esta a verdadeira
questão?
Andrea Grillo: Na verdade, é melhor não
“personalizar” muito a questão. Com
Francisco nós encontramos, 50 anos depois do Concílio, o primeiro Papa «filho
do Concílio» – ou seja, que é «nascido à vida ministerial na Igreja não pré -,
mas pós-conciliar» – que propõe o Concílio não apenas teoricamente, mas com
o seu modo de pensar a realidade, de comunicar, de estabelecer relações, de
rezar ou de fazer piadas.
Tudo
isso é “concílio posto vivo e eficaz”.
Quem pensava que com João Paulo II e depois com Bento XVI tínhamos “sob tutela”
a arrancada conciliar, agora está surpreso, entristecido e, por vezes, com
raiva. Mas Francisco prossegue sereno.
Como disse diversas vezes, dorme bem à noite. Seria bom que seus interlocutores
mais entusiasmados apaziguassem seus corações e conseguissem pegar no sono à
noite.
* ANDREA GRILLO é teólogo italiano, leigo, especialista em
liturgia e pastoral. Doutor em Teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de
Roma, do Instituto Teológico Marchigiano,
de Ancona, e do Instituto de Liturgia
Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da
Itália. É autor de uma extensa bibliografia, alguns de seus livros em
italiano podem ser conhecidos clicando aqui.
Traduzido
do italiano por Fernanda Pase Casasola.
Acesse a versão original desta entrevista, clicando aqui.
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