«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Missa da Ceia do Senhor – Quinta-feira Santa – Homilia

 Evangelho: João 13,1-15 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

"Jesus lava os pés de Pedro" - Afresco de GIOTTO - Capela Scrovegni - Pádua (Itália)

Deus não está onde o poder é exercido, mas o serviço!

Denominamos Tríduo Pascal, do latim Triduum Paschale, o conjunto das três celebrações que marcam três acontecimentos fundamentais para o cristianismo. Trata-se da:

* Instituição da Eucaristia e do serviço aos irmãos(ãs) como síntese do ministério do cristão, simbolizado pelo lava-pés: Missa da Ceia do Senhor, na quinta-feira santa à noite.

* A contemplação da entrega total do Filho de Deus à humanidade, mediante a sua morte de cruz, às 15 horas, na sexta-feira santa: Celebração da Adoração da Cruz.

* A vida vence a morte violenta e o pecado humano, Jesus, o Nazareno, ressuscita dos mortos: Vigília Pascal, na noite de sábado santo.

Portanto, hoje, quinta-feira santa, inicia-se esse percurso que nos conduz à Páscoa, à libertação definitiva. 

João 13,1: «Era antes da festa da Páscoa. Jesus sabia que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai; tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.»

Com esta solene introdução, João permite-nos prever que importantes discursos ou ações importantes serão realizadas por Jesus em seu último encontro com os discípulos. A expectativa é reforçada pela forma como o evangelista anuncia que o amor com que Jesus amou os seus discípulos atingirá a sua expressão máxima: “amou-os até o fim”. Com isso o evangelista repete o que está escrito no livro do Deuteronômio, “quando Moisés tinha terminado de escrever as palavras da Lei num livro até o fim” (Dt 31,24 ― versão grega: LXX). João faz-nos compreender que uma nova aliança está para ser proclamada, onde não um livro, mas um homem é a Palavra de Deus (cf. Jo 1,14), onde não a Lei, mas o amor será a norma de comportamento na comunidade de Jesus (cf. Jo 1,17; 13,34). 

João 13,2: «Estavam tomando a ceia. O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus.»

Mas esta atmosfera solene é arruinada por um hóspede que não foi convidado: o diabo. O jantar que o evangelista descreve não é o jantar pascal (realiza-se antes da festa da Páscoa), e não aparece nenhum elemento do jantar ritual judaico, mas é a Eucaristia, a ceia do Senhor (1Cor 11,20). Neste clima, que deveria ser de acolhimento e de doação, de amor recebido e de amor comunicado, a presença do diabo lança sobre os presentes uma sombra de morte. O diabo já tinha sido apresentado, no Evangelho, como sendo o pai das autoridades religiosas (cf. Jo 8,44). Em Judas, um dos discípulos de Cristo, o diabo encontrou um aliado precioso. O que não chega a ser novidade!

Quando, em Cafarnaum, uma boa parte de seus discípulos o abandonou (cf. Jo 6,66), Jesus permaneceu com um pequeno grupo e disse que um deles, Judas, era um diabo (cf. Jo 6,64.70-71). Ele é apresentado, também, como ladrão e mentiroso (cf. Jo 12,6), tal como os líderes do povo, Judas, assim como eles, não vem “a não ser para roubar e matar” (Jo 10,1.8.10). 

João 13,3-5: «Jesus, sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido.»

A atmosfera é cheia de suspense. Jesus sabe (cf. Jo 13,3). O que ele vai fazer? Ele enfrentará o discípulo traidor? Ninguém compreende as intenções de Jesus, que num determinado momento interrompe o jantar, “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura” (Jo 13,4).

Ninguém lhe pergunta o que ele pretende fazer. Nem sequer seus discípulos têm tempo porque Jesus, depois de deitar água em uma bacia, “começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido” (Jo 13,5). O que é esta novidade?

Lavar os pés do hóspede era uma tarefa repugnante, reservada a indivíduos considerados inferiores aos seus superiores: o escravo não-judeu para com o senhor, a mulher para com o marido (cf. 1Sm 25,41), os filhos para com o pai e os discípulos para com o mestre. E, em todo o caso, fazia-se sempre antes de sentar-se à mesa (cf. Lc 7,44; Gn 18,4) e não durante o jantar, como neste caso.

Aos discípulos que pretendiam fazer dele seu rei (cf. Jo 6,15), Jesus responde tornando-se seu servo, demonstrando a verdadeira realeza, a do amor que se transforma em serviço.

O Senhor faz o trabalho de um servo para que os servos se sintam senhores.

Na sua comunidade não existem hierarquias nem categorias, mas todos são igualmente senhores, para se tornarem servos uns dos outros, porque só quem é senhor, ou seja, livre, pode tornar-se verdadeiramente servo dos outros.

Ao lavar os pés dos discípulos, Jesus não se rebaixa, mas eleva os outros. Mostra o significado de um Deus que está a serviço dos seres humanos e, ao mesmo tempo, destrói a ideia de Deus criada pela religião, segundo a qual os seres humanos devem servir à divindade.

A verdadeira grandeza, a de Deus, consiste em servir os outros e não em deixar-se servir.

Se Jesus, que é Deus, se coloca ao serviço dos seres humanos, aqueles que pretendem dominar e comandar distanciam-se dele. Deus não está onde o poder é exercido, mas o serviço! Toda forma de serviço, toda obra de libertação do ser humano vem de Deus, mas nenhuma forma de poder ou de dominação pode ser legitimada em nome de Deus

João 13,6-8: «Chegou a vez de Simão Pedro. Pedro disse: “Senhor, tu me lavas os pés?” Respondeu Jesus: “Agora, não entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás”. Disse-lhe Pedro: “Tu nunca me lavarás os pés!” Mas Jesus respondeu: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo”.»

Por último, Jesus dirige-se a Simão, o discípulo cujo apelido (Pedro = “pedra”) corresponde ao seu carácter teimoso e obstinado. Na verdade, ele é o único a reagir horrorizado: “Senhor, tu me lavas os pés?” (Jo 13,6). Simão não aceita o gesto de Jesus, o mestre que lava os pés de um discípulo.

O único discípulo que protesta é na verdade o único que compreendeu as consequências da ação do Senhor. Se Jesus, o mestre, lava os pés dos seus discípulos, a partir de agora, ninguém do grupo poderá se considerar superior ao outro.

Não, isto é inaceitável: “Disse-lhe Pedro: ‘Tu nunca me lavarás os pés!’” (Jo 13,8). Pela primeira vez no Evangelho o discípulo é apresentado apenas com o apelido negativo “Pedro”, nunca usado por Jesus, que sempre o chamará pelo nome, mas usado pelo evangelista para apontar todas as vezes que Simão se opõe a Cristo (cf. Jo 18,27; 21,20). A reação de Pedro não é um sinal de humildade, mas, pelo contrário, indica a sua recusa em agir como Jesus: não aceita o seu gesto porque não está disposto a comportar-se como ele. Ele defende a posição de Jesus porque, na realidade, quer defender a sua!

A reação de Jesus é seca: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo” (Jo 13,8).

Quem não aceita o serviço nada tem a ver com um Deus a serviço dos seres humanos.

Quem aceita ser submisso não entendeu quem é Jesus e não tem nada em comum com o Cristo que liberta as pessoas. 

João 13,9-10: «Simão Pedro disse: “Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça”. Jesus respondeu: “Quem já se banhou não precisa lavar senão os pés, porque já está todo limpo. Também vós estais limpos, mas não todos”.»

Astuto como sempre, Simão tenta evitar a condição que Jesus lhe impõe e, encurralado, tenta a última cartada, a do ritual. Ele não aceita o gesto de Jesus como expressão de serviço, mas, contornando o obstáculo, interpreta-o como um rito purificatório: “Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça” (Jo 13,9). Simão quer um rito purificatório em vista da Páscoa, como faziam os peregrinos que “tinham subido a Jerusalém para se purificarem antes da Páscoa” (Jo 11,55).

Simão não entendeu que não é um rito de purificação que permite acolher o amor de Deus, mas, pelo contrário, acolher o amor de Deus torna-nos puros! Ao terem aceitado Jesus, os discípulos já são puros: “Vós sois puros pela palavra que vos falei” (João 15,3). Porém, precisam acolher o lava-pés para compreender o serviço de Deus para com eles e deles para com os irmãos e irmãs.

Não é o fato de ter os pés lavados que torna um ser humano puro, mas a sua disposição de lavar os pés dos outros.

João 13,11: «Jesus sabia quem o ia entregar; por isso disse: “Nem todos estais limpos”.»

Porém, a sombra das trevas recai sobre a ação de Jesus, que, aos poucos, ampliará sua influência nefasta: apesar do gesto de amor feito por Jesus, nem todos são puros, outra pessoa, além de Pedro, resiste ao seu amor. Jesus também lavou os pés do discípulo traidor, mas ele não aceitou o amor inerente ao gesto.

Jesus é a expressão tangível do amor de Deus que não exclui ninguém do seu amor, nem mesmo o discípulo que, em breve, o trairá, entregando-o à morte. É o discípulo que, ao rejeitar este amor, exclui-se da vida que Jesus comunica, permanecendo assim nas trevas.

Terminado de lavar os pés dos discípulos atônitos, recalcitrantes como Pedro, ou indiferentes como Judas, Jesus pega o manto e volta a deitar-se sobre a espreguiçadeira, mas não retira a toalha, que se torna assim o sinal distintivo do agir de Cristo.

Comer deitado em espreguiçadeiras era típico dos senhores, que podiam se dar ao luxo de serem servidos. Pois bem, Jesus combina os dois aspectos: retém consigo a toalha, sinal de serviço, e deita-se sobre a espreguiçadeira, sinal de ser Senhor. Ser Senhor e servir não se contradizem, mas são uma expressão um do outro.

O Cristo de João não usa as vestes sagradas dos sacerdotes, mas os distintivos comuns do serviço: não as vestes da casta sacerdotal, mas o avental dos servos. 

João 13,12-15: «Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto e sentou-se de novo. E disse aos discípulos: “Compreendeis o que acabo de fazer? Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz”.»

Para garantir que isto permaneça fixo na mente dos seus discípulos, Jesus explica o significado do gesto realizado: “Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13,13-14). Sublinhando que é o único Mestre e o único Senhor, Jesus apresenta-se não só como aquele que ensina a amar e a servir, mas que comunica a força para o fazer.

Para Jesus, ser Mestre e Senhor não significa colocar-se acima dos discípulos, mas colocar-se ao seu serviço e torná-los capazes de amar.

Se os discípulos o reconhecem como Mestre, devem aprender dele a servir, e se reconhecem Jesus como Senhor, devem assemelhar-se a ele no amor.

Ter compreendido a ação de Jesus só se demonstra traduzindo-a em atitudes concretas. Lavar os pés do outro não é uma demonstração de virtude, mas um dever, o cumprimento de uma dívida que se tem para com o irmão: “Não fiqueis devendo nada a ninguém, a não ser o amor que deveis uns aos outros” (Rm 13,8).

Jesus não se apresenta como um modelo externo a ser imitado, mas como um dom que gera o comportamento dos discípulos. Não um exemplo, mas um gesto de amor que permite aos discípulos praticar o mesmo amor (cf. Jo 13,15). 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Não vos desvinculeis, comei o vínculo que vos une; não vos estimeis pouco, bebei vosso preço... transformai-vos também vós no corpo de Cristo.»

(Santo Agostinho: 354-430 ― Doutor da Igreja, filósofo e teólogo)

Muitos podem se perguntar: Mas na celebração da Ceia do Senhor, na festa da instituição da Eucaristia, não caberia melhor um Evangelho que descrevesse o momento da ceia no qual tudo isso se deu, como, por exemplo: Mc 14,17-25; Mt 26,20-29 e Lc 22,14-23? 

Ocorre que o relato do gesto do lava-pés, ao mesmo tempo histórico e simbólico, de Jesus é a concretização das palavras que Jesus pronunciou nesta sua derradeira ceia: “Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória... Este cálice é a nova aliança, em meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei isto em minha memória” (1Cor 11,24.25). O lava-pés, assim como estas palavras eucarísticas, serve para mostrar o sentido da cruz: o amor que se torna serviço, doação de vida até o fim (cf. Jo 13,1). 

Portanto, a “comunhão eucarística” não se trata de uma mera aceitação racional, emotiva ou teórica da presença de Jesus no pão e no vinho, os quais, pela fé, se convertem em corpo e sangue do Cristo! Comungar significa assumir, em nossa vida concreta, o exemplo de Jesus de amor e serviço (cf. Jo 13,15). Sem isso, não há comunhão! O que ficou claro, no comentário do texto evangélico acima, quando se menciona a resistência de Pedro que não aceita um Messias Servo (cf. Jo 13,8). 

A Eucaristia seria fonte de uma grande e profunda transformação de vida, se a compreendêssemos do modo correto: celebração do amor, do serviço, da doação total de vida para que seus participantes façam o mesmo! Como estamos distantes dessa realidade! Pois, aquilo que era para ser um gesto concreto tornou-se, apenas, simbólico, ritualístico e devocional! Quem sabe, seja por isso que tantos cristãos dizem, ainda hoje, “eu vou assistir à missa”! Como se a Eucaristia fosse algo externo a cada um de nós, portanto, algo a ser observado, visto, assistido e não vida que se faz celebração e compromisso! 

Esta é a consequência de se separar a fé da vida! Como se a primeira, a fé, fosse algo meramente íntimo e individual! Por isso, nós, os cristãos, somos tão pouco relevantes nesta atual sociedade! O mundo segue o seu próprio caminho, indisturbado por aqueles que deveriam ser “sal da terra e luz do mundo” (Mt 5,13-14), bem como, “ter amor uns pelos outros” (Jo 13,35), como nos pediu Jesus! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Jesus, vem, meus pés estão sujos. Torna-te um servo para mim, despeja água na bacia; vem, lava meus pés. Eu sei que o que estou te dizendo é imprudente, mas temo a ameaça de tuas palavras: “Se eu não te lavar, você não terá parte comigo”. Portanto, lava os meus pés, para que eu tenha parte contigo.»

(Fonte: Orígenes. Homilia 5 sobre Isaías)

Fonte: Anotações do próprio autor – Acesso em: 27/03/2023.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Domingo de Ramos da Paixão do Senhor – Ano B – Homilia

 Evangelho: Marcos 14,1-9 (Extrato de: Mc 14,1-15,47)

 Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Jesus propõe uma mulher como modelo de seguidor

Para o Domingo de Ramos, a liturgia apresenta-nos a Paixão de Cristo segundo o evangelista Marcos. Esta é a oportunidade de conhecer o único episódio que Jesus pediu para ser divulgado ao mundo inteiro. No entanto, este episódio nunca é lido na liturgia dominical, isto é muito estranho; trata-se da unção de Betânia. Leiamos então o Evangelho de Marcos, capítulo 14, o início. 

Marcos 14,1-3a: «Faltavam dois dias para a Páscoa e para a festa dos Ázimos. Os sumos sacerdotes e os mestres da Lei procuravam um meio de prender Jesus à traição, para matá-lo. Eles diziam: “Não durante a festa, para que não haja um tumulto no meio do povo”. Jesus estava em Betânia, na casa de Simão, o leproso. Quando estava à mesa, veio uma mulher com um vaso de alabastro cheio de perfume de nardo puro, muito caro.»

Há o anúncio de que as autoridades decidiram assassinar Jesus pela Páscoa. Enquanto o povo celebra a antiga libertação, as autoridades decidem eliminar o novo libertador. Pois bem, o evangelista apresenta-nos agora a reação da comunidade ao anúncio da morte de Jesus e Marcos escreve que “Jesus estava em Betânia”. Bet-ânia significa “a casa dos pobres”, ele estava “na casa de Simão, o leproso”. O pobre, o leproso nos faz entender que se trata de uma comunidade de marginalizados e “enquanto ele estava à mesa”, esta citação é importante porque é tirada do primeiro capítulo do Cântico dos Cânticos onde o rei está à mesa e a esposa do rei espalha seu perfume que, como neste caso, é de nardo (cf. Ct 1,12). Na verdade, Marcos escreve: “Veio uma mulher”, a mulher é anônima, a mulher representa a parte da comunidade que dá adesão a Jesus, a um Jesus crucificado. E o evangelista prossegue: “com um vaso de alabastro cheio de óleo perfumado de nardo genuíno”. Além disso, o nardo, este perfume precioso, é genuíno e o evangelista usa o termo grego que indica fé, expressa a fé da mulher, a mulher que dá adesão total a Jesus

Marcos 14,3b: «Ela quebrou o vaso e derramou o perfume na cabeça de Jesus.»

A mulher quebra o vaso, significa que o dom é completo, ela não retém nada. E, aqui, está a surpresa porque: “Ela derramou o perfume na cabeça dele”. Nos Evangelhos lemos outras duas unções de Jesus, mas ambas nos pés:

* no Evangelho de Lucas (7,37-38) foi a da pecadora em agradecimento a Jesus pelo perdão dos seus pecados,

* no Evangelho de João (12,1-3), é Maria, a irmã de Lázaro, em agradecimento pela ressurreição do irmão, mas tanto a pecadora como Maria ungem os pés.

Aqui, porém, o gesto da mulher é surpreendente e também desconcertante, ela unta a cabeça. Por que na cabeça? A unção da cabeça era uma ação reservada aos sacerdotes e profetas com a qual o rei era consagrado, o Messias era consagrado. Então o evangelista está nos dizendo que o papel desta mulher da comunidade de Jesus é aquele de desempenhar uma função sacerdotal e profética: ela reconhece em Jesus o rei Messias, o rei crucificado e dá-lhe tudo de si, todo o seu amor. 

Marcos 14,4-5: «Alguns que estavam ali ficaram indignados e comentavam: “Por que este desperdício de perfume? Ele poderia ser vendido por mais de trezentas moedas de prata, que seriam dadas aos pobres”. E criticavam fortemente a mulher.»

E aqui está a reação da comunidade: “Alguns que estavam ali”, sabemos que são os discípulos, mas o evangelista evita defini-los como discípulos, não seguem Jesus, acompanham-no, não dão adesão, estão indignados com ele e falam sobre desperdício. Para eles dar a vida é um desperdício, não entendem o valor e usam a desculpa do valor desse perfume. Eles dizem ‘trezentos denários’, achamos que a diária de um trabalhador era de um denário, portanto, essa soma corresponderia a quase um ano de salário. Dizem: “seriam dados aos pobres”. Mas não é só pela razão, pelo pretexto que encontram nos pobres: eles entendem que esta mulher realizou uma ação que é excluída das mulheres, está reservada não só aos homens, mas aos sacerdotes e aos profetas, aquela de ungir a cabeça de Jesus, a ação sacerdotal profética. 

Marcos 14,6-7: «Mas Jesus lhes disse: “Deixai-a em paz! Por que aborrecê-la? Ela praticou uma boa ação para comigo. Pobres sempre tereis convosco, e quando quiserdes podeis fazer-lhes o bem. Quanto a mim, não me tereis para sempre.»

Pois bem, Jesus toma a defesa da mulher, diz que ela fez uma boa obra, o termo é tirado do livro de Gênesis na criação onde Deus cria e as suas são boas obras, a mulher completa a ação criadora em Jesus e diz que os discípulos não compreenderam nada sobre os pobres. Os pobres não são elementos externos à comunidade que devam ser beneficiados, em suma, fazem parte da comunidade. A esmola pressupõe um benfeitor e um beneficiário e é sempre humilhante, mas Jesus convidou à partilha e a partilha gera irmãos e elimina distâncias. A comunidade cristã primitiva compreendeu tanto isto que falou do pobre como vigário de Cristo: a presença dos pobres representa a figura de Cristo na comunidade. 

Marcos 14,8-9: «Ela fez o que podia: derramou perfume em meu corpo, preparando-o para a sepultura. Em verdade vos digo: em qualquer parte que o Evangelho for pregado, em todo o mundo, será contado o que ela fez, como lembrança do seu gesto”.»

Jesus continua falando que esta mulher fez o que pôde, ungindo previamente o corpo para o seu sepultamento. Qual é o significado? O efeito da morte, sabemos, é o mau cheiro, o perfume é o efeito da vida. O evangelista deixa claro que aquela de Jesus será a vitória da vida, a vitória do perfume sobre a vida. E, seguem as palavras de Jesus, que infelizmente parecem um tanto inéditas, as quais constituem o único episódio de sua existência para o qual Jesus diz: “Em verdade vos digo: em qualquer parte que o Evangelho for pregado, em todo o mundo, será contado o que ela fez”. Isto porque Jesus propõe uma mulher como modelo de seguidor, mas esta passagem do Evangelho, como dissemos no início, nunca é lida na liturgia. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Nisto conhecemos o amor: Jesus deu a vida por nós. Ora, também nós devemos dar a vida pelos irmãos.»

(1João 3,16)

Uma mulher desafia todo o establishment (a elite social, econômica e política) da sociedade israelita da época de Jesus! Sim, mas como? Fazendo algo que era reservadíssimo aos profetas e, sobretudo, sacerdotes: ungir uma pessoa, especialmente o rei, o messias. Então ela faz o que nenhum seguidor de Jesus havia pensado e fazer ou feito: reconhecer oficialmente Jesus como o Messias (a unção significa isso), o enviado de Deus para salvar o seu povo. E, como muito bem destacou frei Maggi, a liturgia católica não obedece ao pedido de Jesus que disse: “em qualquer parte que o Evangelho for pregado, em todo o mundo, será contado o que ela fez, como lembrança do seu gesto” (Mc 14,9). O machismo e a misoginia predominavam na antiguidade e seguem dominando, ainda, nos tempos atuais, sem dúvida! 

Neste domingo denominado de “ramos”, não podemos nos esquecer que os ramos não significam proteção, como um amuleto mágico. Há pessoas que o levam para casa, após serem benzidos, a fim de se protegerem de pragas e má sorte. No entanto, os ramos agitados pelo povo, à entrada de Jerusalém, significavam que se reconhecia em Jesus o enviado de Deus para salvar o povo, aquele que viria trazer o reino de Davi (cf. Mc 11,9-10). Portanto, os ramos significam perigo. Jesus é um perigo para o establishment da sociedade judaica, por isso, ele será morto! No entanto, aqui, há uma incompreensão por parte do povo. Pois Jesus não entrou em Jerusalém como um filho de Davi, mas como um humilde servo de Deus, como havia descrito o profeta Zacarias (cf. Zc 9,9-10). 

Por isso, os pequeninos, os mais humildes, pobres e sem importância na sociedade ― como é o caso de Simão, o leproso, que acolhe Jesus em sua casa ― são os que aderem mais facilmente a Jesus e ao seu reino. Como bem constatou José Antonio Pagola:

«Nem o poder de Roma nem as autoridades do Templo puderam suportar a novidade de Jesus. Sua maneira de entender e viver Deus era perigosa. Não defendia o Império de Tibério, convidava todos a buscar o Reino de Deus e sua justiça. Não se importava em romper a lei do sábado nem as tradições religiosas, somente, preocupava-se em aliviar o sofrimento das pessoas enfermas e desnutridas da Galileia».

Portanto, celebrar a Paixão de Cristo é aceitarmos que não podemos prestar culto a Deus sem levar em consideração os pobres e desvalidos deste mundo. Não podemos separar o Cristo Crucificado das milhões ou bilhões de pessoas que sofrem nesta terra devido à miséria, fome, guerras e a violência. Na cruz, todos os sofredores deste mundo podem sentir o mesmo grito de dor: deles e do Messias! 

Porém, assim como Jesus, obediente ao seu Pai até o fim, conseguiu vencer a morte, todos os que crerem nele e buscarem contribuir para que o Reino de Deus comece, nesta Terra, também alcançará a vitória! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor Jesus, oramos a ti pelo homem que luta contra a morte e que o mal ameaça nas encruzilhadas do nosso mundo desumano e que o pecado oprime, como o senhor ao escravo. Senhor Jesus, nós somos o homem que não fizeste para morrer; tu, vencedor da morte, liberta-nos de sua tirania e permita-nos encontrar a verdadeira vida em ti. Que eu siga o caminho indicado pelo “véu” rasgado do templo. Entre no “santo dos santos” dos sofrimentos de Jesus Cristo. Ali encontrarei o amor santo e bendito do Pai, do Filho e do Espírito Santo: o amor do Pai que preparou a crucificação, o amor do Filho que se deixou crucificar, o amor do Espírito Santo que triunfa com o poder da cruz. Assim tu, ó Deus, amaste o mundo. Amém.»

(Fonte: FILARETE. Orazione finale. In: In: CILIA, Anthony, O.Carm. [a cura di]. Lectio divina sui vangeli festivi per l’anno liturgico B. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 175)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – Domenica delle Palme – Anno B – 28 marzo 2021– Internet: clique aqui (Acesso em: 19/03/2023).

quinta-feira, 14 de março de 2024

5º Domingo da Quaresma – Ano B – Homilia

 Evangelho: João 12,20-33 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

É na morte de Jesus na cruz que se verá o amor universal de Deus

Perto da conclusão da passagem evangélica de hoje, que é o capítulo 12 do Evangelho de João, no versículo 28 Jesus pede: “Pai, glorifica o teu nome” e o evangelista nos escreve: “Então uma voz veio do céu: ‘Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!’”. Bem, a reação das pessoas é estranha. O evangelista comenta: “A multidão, que estava presente e tinha ouvido, disse que tinha sido um trovão. Outros diziam: ‘um anjo falou com ele’”. Como isso é possível? Deus fala e, ainda assim, alguns pensam que seja um trovão e outros um anjo? Estes são os efeitos nocivos da religião, que, por um lado, apresenta um Deus distante dos homens, que não se dirige diretamente a eles, que precisa de mediadores, por isso dizem “um anjo”, e, por outro lado, um Deus que assusta, o trovão é o que é assustador. Pois bem, Jesus na sua atividade, no seu ensinamento apresentou um Deus que não está longe, mas que está próximo, que é íntimo do homem, um Deus que não causa medo, mas o afasta.

Pois bem, a reação das autoridades religiosas diante desta nova proposta da imagem de Deus não é de alegria, mas de alarme. Houve uma dramática reunião do Sinédrio, onde o sumo sacerdote disse: “Se o deixarmos fazer isso, todos acreditarão nele” (Jo 11,48). Há alarme entre as autoridades religiosas e, pouco antes do início da passagem de hoje, estão os fariseus, agora desconsolados, que dizem uns aos outros: “Estais vendo que nada conseguis? Olhai, o mundo se foi atrás dele” (Jo 12,19). Por que isso? Em cada pessoa existe um desejo de plenitude de vida e as pessoas sentem em Jesus, no rosto do Pai que ele apresenta, a resposta ao seu desejo de plenitude de vida. Por isso, todos acorrem a Jesus. 

João 12,20-21: «Naquele tempo, havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa. Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: “Senhor, gostaríamos de ver Jesus”.»

E entre aqueles que vão atrás de Jesus, escreve o evangelista, há alguns que subiram para o culto, mas, em vez de irem ao templo, sentem-se atraídos por Jesus, porque nele se manifesta e se torna visível a plenitude do amor do Pai. O evangelista nota que havia também alguns gregos; por “gregos” se quer dizer estrangeiros. Estes não se atrevem a aproximar-se de Jesus porque conhecem a desconfiança dos judeus para com os pagãos, e por isso procuram alguém mais aberto entre os discípulos e encontram-no em Filipe, porque Filipe tem nome grego e por isso se presume que tenha uma mentalidade mais aberta. E lhe perguntam: “Senhor, gostaríamos de ver Jesus”. 

João 12,22-23: «Filipe combinou com André, e os dois foram falar com Jesus. Jesus respondeu-lhes: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado.»

Mas Filipe, que tinha sido tão ousado em levar Natanael a Jesus, desta vez hesita, vai perguntar a quem? A André, o outro dos discípulos que tem nome grego. Isto faz-nos compreender a grande dificuldade de abertura, por parte da comunidade de Jesus, ao mundo dos pagãos, ao mundo dos estrangeiros, a resistência que havia. A resposta de Jesus parece não ter nada a ver com este pedido de ser visto, porque diz: “Chegou a hora de o Filho do Homem ser glorificado”. Jesus está falando sobre sua morte na cruz.

Na realidade a sua resposta significa porque é na morte de Jesus na cruz que se verá o amor universal de Deus: um amor que não está reservado a um povo, a um grupo, mas a todos aqueles que o acolhem. É por isso que na cruz de Jesus o sinal com os motivos de sua morte foi colocado nas três línguas principais: a língua local, o hebraico, a língua dos governantes, o latim, e o que era conhecido na época como universal, a língua grega. O amor de Deus é universal. 

João 12,24-33: «Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto. Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna. Se alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se alguém me serve, meu Pai o honrará. Agora sinto-me angustiado. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome!” Então, veio uma voz do céu: “Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!” A multidão que aí estava e ouviu, dizia que tinha sido um trovão. Outros afirmavam: “Foi um anjo que falou com ele”. Jesus respondeu e disse: “Essa voz que ouvistes não foi por causa de mim, mas por causa de vós. É agora o julgamento deste mundo. Agora o chefe deste mundo vai ser expulso, e eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a mim”. Jesus falava assim para indicar de que morte iria morrer.»

Jesus fala da morte não como uma derrota, mas como uma explosão de vida para o indivíduo e dá um exemplo que todos podem compreender: o grão de trigo. Ninguém, olhando para o pequeno grão de trigo, pode imaginar a energia, a beleza que ele contém; para que isso se manifeste são necessárias condições adequadas. Jesus diz: “Cai no chão, morre e dá muito fruto”. No grão de trigo existe uma energia, uma força que só espera as condições adequadas para se libertar e se manifestar em toda a sua plenitude. Assim é em Jesus e assim é em cada um de nós, a morte não destrói. Em cada um de nós, criados à imagem e semelhança de Deus, existe uma energia, uma capacidade, uma força de amor que não pode ser manifestada no curto e limitado período da nossa existência, por mais longa que seja. Pois bem, quando chega o momento da morte, toda esta energia que está dentro de nós é libertada, manifesta-se e transforma-nos: éramos um grão de trigo, transformamo-nos numa esplêndida espiga de trigo. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Aprende a viver como deves, e saberás morrer bem.»

(Confúcio: nascido entre 552 e 489 a.C. ― pensador e filósofo chinês)

De fato, Jesus é desconcertante e jamais cabe dentro de nossos pobres e limitados esquemas mentais! Para aqueles que desejam encontrá-lo, segui-lo, caminhar atrás dele, ele oferece um sentido único e verdadeiro para o viver de todos nós: o AMOR! Jesus ajuda-nos a descobrir a imensa e poderosa energia de vida que há dentro de todos nós! Ele canaliza essa nossa energia para o serviço amoroso, desinteressado e total aos irmãos e irmãs, especialmente, para com os mais fracos, pobres, humildes e abandonados de nossa sociedade. 

Porém, essa vida de dedicação aos outros (cf. Mt 25,31-46), essa defesa e busca pela VIDA plena (cf. Jo 10,10) cobrará um preço de todos nós! Por mais contraditório que isso possa parecer, à medida que produzimos frutos de vida, de amor, de bondade e de justiça, também estaremos consumindo com a nossa própria vida! Somos como uma vela que, para produzir luz, deve consumir-se e desaparecer em meio à luz que gera! 

Há, no entanto, um sentido em tudo isso! É a chamada “lei do grão de trigo”. Como explica Johan Konings:

“Deus sabe que o endurecimento do povo infiel à Aliança só é vencido pela vítima desse endurecimento. É a vitória do amor, e, quando o adversário quer abafá-la, a verdade do amor se afirma”.

Portanto, ainda segundo Konings: “A justiça se vê afirmada e vencedora na hora em que a violência a quer suprimir”. Portanto, na doação total do Filho de Deus se dá a vitória sobre o mal que nos oprime! O mesmo acontece quando, também nós, nos doamos completamente aos irmãos e irmãs, consumindo a vida que temos nesta terra, transformando-a em uma vida mais plena e digna deste nome. Esta é a vida na intimidade de Deus. 

Porque o sentido último da vida é servir e amar! Enfim, é ser bom e fazer o bem! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor nosso Deus, desvia os discípulos do teu Filho dos caminhos fáceis da popularidade, da glória barata, e leva-os aos caminhos dos pobres e dos flagelados da terra, para que possam reconhecer nos seus rostos o rosto do Mestre e Redentor. Dá olhos para ver os caminhos possíveis para a justiça e a solidariedade; ouvidos para ouvir as questões de sentido e salvação de muitos que estão tateando; enriquece os seus corações com generosa lealdade, delicadeza e compreensão, para que se tornem companheiros de viagem e testemunhas verdadeiras e sinceras da glória que brilha no crucificado ressuscitado e vitorioso. Ele vive e reina em glória contigo, ó Pai, para todo o sempre.»

(Fonte: SEDONDIN, Bruno, O.Carm. Orazione finale. In: In: CILIA, Anthony, O.Carm. [a cura di]. Lectio divina sui vangeli festivi per l’anno liturgico B. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 154)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – 5ª Domenica di Quaresima – Anno B – 21 marzo 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 12/03/2023).

quarta-feira, 13 de março de 2024

Uma reflexão urgente!

 A amizade social é uma tarefa conjunta

 Pe. Alfredo José Gonçalves

Presbítero da Pia Sociedade dos Missionários de São Carlos e vice-presidente do SPM/CNBB (Serviço Pastoral dos Migrantes) 

 Tarefa urgente das Igrejas e instituições: recompor o fio da confiança!

Quaresma exige conversão. O conceito de conversão, como metáfora do trânsito urbano, significa mudança de rumo. Converter é virar para um lado ou outro. No caminho rumo ao mistério pascal, a mudança tem duas dimensões:

1ª) uma espiritual, no sentido de aprofundar a intimidade com Deus, deixar-se guiar por sua Palavra viva;

2ª) outra sociopastoral, na tentativa de estender a mão aos irmãos e irmãs pobres e mais necessitados.

Esta segunda dimensão, no Brasil, ganha maior relevo devido ao tema da Campanha da Fraternidade deste ano, Fraternidade e amizade social, que lembra sermos “todos irmãos e irmãs”. 

O País foi sacudido por ondas de ódio, mentira e mútua desconfiança. Ameaças públicas semearam violência dentro de instituições que vão desde a prática política até o interior das famílias, passando pela Igreja e comunidades, sem poupar os laços sagrados que tecem as relações humanas. Daí a fragmentação e a polarização sociopolíticas. Disso resultou o fatal e letal rompimento do fio da confiança, o qual tece o xadrez da vida social.

Sem a confiança, por mais tênue que seja, tampouco haverá ligações vitais de amizade no ambiente familiar, religioso, comunitário ou político-cultural.

Esgarça-se o tecido social, junto com a falta de referências sólidas para orientar a conversão em relação a Deus e à caridade solidária. Passam a bater à porta os espectros da crise, do caos e do medo

Duas são as bases para as referências que orientam nossas frágeis embarcações:

* um berço sadio, revestido de ternura, estima e reconhecimento, que só a família, a casa e o lar podem oferecer; e

* instituições como a escola e a Igreja, entre outras, que procuram traçar as balizas, a bússola e o rumo em direção ao porto seguro.

Nos dias atuais, porém, grande parte das famílias – em especial na base da pirâmide social – não possuem as condições mínimas para oferecer um berço saudável e, ao mesmo tempo, os limites da liberdade. Ocupadas com a sobrevivência, instável e precária, não lhes sobra tempo nem energias para “fazer da necessidade uma virtude”. 

A sociedade moderna, com gritantes disparidades sociais, ao retirar das famílias vulneráveis o direito e o dever de criar berços sadios e estabelecer regras ao bem viver, deixou uma lacuna intransferível. Como pode outra instituição assumir esse compromisso, se ele foi postergado a uma idade em que prevalece a “formação das ruas”?

Sem o substrato familiar de amor, presença, carinho, autoestima e reconhecimento, como esperar das pessoas um comportamento responsável?

Os estigmas da exclusão social, há séculos impressos no corpo e na alma, leva-as aos becos sem saída do trabalho informal, da droga, do álcool, da prostituição, da violência!… 

Aqui, quem vai cuidar dos limites e regras serão as forças policiais, os juízes e os tribunais!… Então, será tarde demais, e a vida pode terminar numa famigerada cracolândia! 

Entra aí o gigantesco desafio da Igreja e das instituições similares. Trata-se da recomposição do fio da confiança! Não é fácil religar o que foi irresponsavelmente rasgado nos palanques, nas praças públicas e nas ruas, mas sobretudo na mídia e nas redes sociais. Sem esse cimento que une os tijolos das relações sociais, nada poderá ser feito com eficácia. A confiança, e somente ela, consiste no único instrumento para refazer ligações íntimas e amizades rompidas. E o caminho desse processo passa, necessariamente, pela proposta sinodal de “caminhar juntos”.

A conclusão lógica é que a amizade social é uma tarefa conjunta. 

Fonte: O São Paulo – Colunista – 13 de março de 2024 – Internet: clique aqui (acesso em: 13/03/2024).

segunda-feira, 11 de março de 2024

Vocações na Igreja hoje

 Alguns aspectos cruciais para o acompanhamento vocacional

 Arison Lopes

Comunicação Institucional ITESP 

Entrevistado: Prof. Dr. Pe. RONALDO ZACHARIAS - salesiano

 Promover uma formação vocacional comprometida com os valores do Evangelho e sensível às mudanças socioculturais e às necessidades do Povo de Deus

Em uma entrevista exclusiva para o site do ITESP, o Prof. Ronaldo Zacharias, doutor em Teologia Moral e Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos, aborda questões essenciais para o acompanhamento vocacional na Igreja, especialmente no que diz respeito à vida sacerdotal e consagrada. 

Zacharias destaca a preocupação com o surgimento de um “magistério paralelo” na Igreja, avesso ao Concílio Vaticano II, a ponto de comprometer a unidade e a credibilidade da Igreja. Ele ressalta a importância de uma formação atenta à capacidade relacional e oblativa dos vocacionados e às necessidades dos mais vulneráveis. 

Além disso, o professor enfatiza a necessidade de lidar com questões relacionadas à sexualidade no acompanhamento vocacional e uma abordagem que integre a sexualidade no próprio projeto de vida de forma saudável e que promova o autocontrole em vista da autodoação

Zacharias também ressalta a importância de uma mudança cultural no processo formativo para combater:

* o narcisismo,

* a duplicidade de vida,

* a legitimação da mediocridade e

* o clericalismo/hierarquismo.

O professor oferece contribuições valiosas para a Igreja, tais como enfrentar os desafios contemporâneos e promover uma formação vocacional comprometida com os valores do Evangelho e sensível às mudanças socioculturais e às necessidades do Povo de Deus. 

O Prof. Ronaldo é Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos (Universidade de Coimbra – Portugal); Doutor em Teologia Moral (Weston Jesuit School of Theology – Cambridge, Estados Unidos); Coordenador da Pós-Graduação em Educação em Sexualidade (UNISAL – São Paulo). Confira a entrevista completa: 

ITESP: Considerando tantos anos de experiência com a formação na Igreja, como você avalia o impacto do chamado “magistério paralelo” no acompanhamento dos vocacionados à vida sacerdotal e consagrada?

Prof. Ronaldo Zacharias: Ser “paralelo”, isto é, caminhar na contramão do Concílio Vaticano II, das Conferências Episcopais Latino-Americanas e do Magistério Pontifício atual deveria ser motivo de preocupação, pois compromete a unidade da Igreja e, consequentemente, a credibilidade da sua missão.

O fato de que “gurus” midiáticos advoguem para si o “direito” a um “magistério” pelo simples fato de discordarem da caminhada feita pela Igreja também deveria ser motivo de preocupação, pois compromete a unidade do Corpo de Cristo e desse modo assumem o testemunho a ser dado ao mundo.

Muitos candidatos ao sacerdócio e à vida consagrada assumem como seus “autênticos” formadores tais gurus midiáticos e identificam-se com o modelo de Igreja proposto por eles. Isso deveria ser motivo de preocupação maior ainda, pois compromete a natureza do próprio ministério e a identidade da Igreja e, consequentemente, a ação do Espírito.

O fato de que muitos formadores, superiores e bispos se mostrem indiferentes e, não raras vezes, simpatizantes de tal “magistério paralelo” é mais do que preocupante; chega a ser escandaloso o apoio a tal “magistério” e, como consequência, a omissão em tomar as devidas atitudes em vista da qualidade da formação. Parece-me que tanto o apoio quanto a omissão escondem o desejo da volta à grande disciplina e a intenção de exorcizar uma teologia que poderia ser, de fato, libertadora.

Os efeitos de tal “magistério paralelo” são danosos porque:

a) revestem vários tipos de fundamentalismo (bíblico, dogmático, canônico, histórico, moral, litúrgico e pastoral) com o manto da fidelidade à tradição;

b) criam um Jesus à própria imagem e semelhança para justificar o distanciamento do Jesus dos Evangelhos e “negociar” valores autenticamente evangélicos;

c) condenam ao “fogo do inferno” uma Igreja comprometida com a vida dos “últimos”, solidária com as lutas empreendidas por aqueles que querem viver com dignidade, empenhada na transformação da realidade para que todos tenham vida em abundância. 

O que mais me chama a atenção nisso tudo são três aspectos:

* primeiro, o quanto tais “gurus” midiáticos são autorreferenciais, autocontemplativos, narcísicos e se julgam detentores exclusivos da verdade; a impressão que se tem é de que eles são o “deus” deles mesmos;

* segundo, enquanto adornam o que fazem de alienada espiritualidade, vão se enriquecendo, pois tudo o que oferecem tem um preço e o lucro obtido é um dos senhores aos quais servem;

* terceiro, nenhum deles, que dizem amar tanto a Igreja, tem qualquer espécie de compromisso com os mais pobres e sofredores, com os mais frágeis e vulneráveis, com os últimos e sobrantes e, muito menos, com as causas sociais, deixando claro que “amar como Jesus amou” não significa nada mais do que uma bela retórica evangélica. 

Ouso dizer que muitos dos formadores designados para trabalhar na fase de formação inicial dos candidatos à vida sacerdotal e consagrada não estão preparados para lidar com esse fenômeno.

Eles sabem que não são os “reais” formadores. Sabem que, em sentido existencial, seus formandos encontram-se fora de casa, isto é, muito distantes daquilo que lhes é proposto como itinerário formativo, mas plena e devotamente abertos àqueles que consideram seus “verdadeiros” mestres. Mas nem sempre sabem o que fazer

Infelizmente, estamos assistindo ao ressurgimento de um estilo de formação que busca no passado o resgate do pior de uma história que sequer foi vivida pelos interessados. Esquizofrenia total. Não é à toa que o clericalismo voltou a ser um dos problemas mais cruciais da Igreja e, portanto, da formação. O mais lamentável de tudo isso é dar-se conta do hierarquismo que favorece tal esquizofrenia. Tem razão o Papa Francisco quando convida a Igreja a combater tanto a praga e a perversão do clericalismo quanto a do hierarquismo. Como fazer isso não é uma resposta simples de ser dada.

Trata-se de implantar uma nova cultura, que permeie todo o processo de formação inicial e continuada, uma cultura animada pela conformação com os sentimentos de Jesus e com as opções feitas por ele.

Isso implica rever urgentemente um modelo de Igreja que não apenas se alimenta de vários fundamentalismos, mas que também é capaz de gerá-los por ter se distanciado da verdadeira videira.  

ITESP: Diante do panorama atual, marcado por mudanças sociais e culturais, como o acompanhamento vocacional pode responder mais eficazmente às necessidades dos jovens que buscam uma vida consagrada a Deus e ao serviço do seu povo?

Prof. Ronaldo: O critério por excelência de discernimento vocacional deveria ser a capacidade de a pessoa sair de si, sensibilizar-se com as necessidades de quem sofre, pôr-se a serviço de quem mais precisa. Os contextos mudam e não deveríamos nos espantar com isso. O único definitivo, o que não pode mudar, deve ser a essência de uma vida eminentemente ministerial:

... a capacidade relacional e oblativa de quem deseja ser expressão do amor e da misericórdia de Deus no meio do povo.

Tanto a vida sacerdotal quanto a vida consagrada são eminentemente ministeriais. A razão de ser da consagração a Deus é a radicalidade que a missão exige. E, para isso, é preciso focar no que é essencial. Não tem sentido um vocacionado que não se empenha para fazer-se próximo das pessoas e que não seja capaz de estabelecer relações de qualidade com elas.

Também não tem sentido um vocacionado que considera o ministério como apêndice ou que se serve dele para autopromoção.

Parece-me que se presta pouca atenção a tais aspectos no processo de discernimento e acompanhamento vocacional. São dimensões inegociáveis: capacidade relacional e capacidade oblativa

Um outro aspecto que vale a pena considerar: não é possível querer abraçar o sacerdócio ou a vida consagrada e ser indiferente à realidade em que se vive, a começar pelo fato de a realidade ser o lugar onde Deus se manifesta e dá a conhecer a sua vontade. Mais ainda: é necessário intervir nessa realidade e torná-la mais conforme com os valores do Reino que Deus chama.

Deixar-se interpelar e até mesmo indignar por aquilo que acontece é o que deveria levar a “viver como vocacionado”, isto é, continuamente “provocado” por Deus.

Se a abertura à realidade é importante, a interpretação dela é mais ainda. Mas para isso é preciso ter consciência do lugar a partir do qual essa leitura e interpretação são feitas. O lugar deve ser o seguimento radical a Jesus. No esforço para se conformar com os sentimentos dele e fazer as opções que ele fez, o vocacionado descobre que, com os olhos e o coração do Bom Pastor, ele deve procurar entender o que está acontecendo. Isso implica deixar-se conduzir pelo Espírito; é ele que faz colher na realidade os sinais da presença divina, mesmo em meio ao caos e à fragilidade. 

No processo de formação inicial, nem sempre é fácil ou viável sair dos muros dos seminários e casas de formação. Mas isso não exime ninguém – nem formadores nem formandos – de ampliar o olhar sobre a realidade e trazer para dentro de casa os apelos que dela provêm.

Os anos de formação inicial não podem significar isolamento e indiferença em relação às dores e às angústias da humanidade.

Afinal de contas, os anos de intensa preparação para o exercício do ministério não são uma espécie de parênteses entre os quais se coloca a vida por um determinado tempo. São anos de aquisição de competência e habilidades para poder fazer uma leitura adequada da vida das pessoas e do que acontece no mundo à luz da Palavra de Deus. É isso que se espera daqueles que desejam ser para as pessoas expressão do amor compassivo, terno e misericordioso de Deus. 

ITESP: Quais são os principais desafios a serem enfrentados pelos vocacionados à vida sacerdotal e consagrada, e como o acompanhamento vocacional pode auxiliá-los a lidar com eles?

Prof. Ronaldo: Acredito que o mais importante desafio a ser assumido, hoje, no processo formativo é o de...

... ajudar os vocacionados a compreender que a sua própria “humanidade” é o primeiro “sacramento” para aqueles que devem servir. Isso implica que devem priorizar a formação do coração.

Se a formação não atingir o coração, isto é, o núcleo da vida da pessoa, o “lugar” no qual se formam as convicções que, por sua vez, iluminam os afetos, será muito difícil haver integridade, doação plena, disponibilidade para um empenho definitivo que vem da decisão de não conservar nada para si. Não é raro ver formandos perfeitamente adequados ao que deles se espera, capazes de aderir com toda inteligência a certas verdades, sem que a vida seja tocada e definida por elas. Em outras palavras, superar a mera formalidade da convenção não é tarefa fácil, mas é de fundamental importância para que os ministérios na Igreja sejam exercidos por pessoas transformadas pelos mistérios que professam. 

Diante da crise de credibilidade que enfrentamos hoje, deveríamos ter a coragem de “revolucionar” o processo formativo e dizer “não”:

* aos que são indiferentes, autorreferenciais, autocontemplativos;

* aos que se contentam com a mera observância das normas e com a mera aparência dos comportamentos;

* aos que são autoritários, arrogantes, caprichosos, distantes;

* aos que são carreiristas e se comportam apenas como consumidores das comunidades;

* aos que não têm capacidade de chorar as dores do povo sofrido;

* aos que não se sentem indignados com a desigualdade, injustiça, opressão, exclusão;

* aos que não se comprometem com a defesa dos direitos inalienáveis dos mais fracos e vulneráveis;

* aos que transformam o ministério num palco em que o único holofote está sobre eles;

* aos que apenas usam o nome de Deus para, depois, ocupar o lugar dele. 

Enfim, hoje a Igreja e o mundo precisam de discípulos missionários que sejam, sobretudo, samaritanos, isto é, que façam a diferença pela coragem de colocar-se no caminho de quem mais precisa. O processo formativo deveria conduzir, naturalmente, a essa experiência. Não é o que observamos, se tivermos presentes as pragas do clericalismo e do hierarquismo que invadiram, inclusive, os seminários e as casas de formação. Enfim acredito ser essa a revolução que precisa ser provocada se quisermos que os ministérios que exercemos não caiam na insignificância e, comprometam, desse modo, o que Deus sonhou para seus filhos e filhas muito amados. 

ITESP: A sua formação desde o Mestrado até o Pós-Doutorado foi na área da sexualidade. Na sua opinião, como lidar, no processo de acompanhamento vocacional, com questões relacionadas à sexualidade, sobretudo num contexto em que os escândalos sexuais têm sido frequentemente associados à vida sacerdotal e consagrada?

Prof. Ronaldo: Os escândalos sexuais envolvendo padres e religiosos em toda a Igreja deixaram muito claro que, se quisermos superar a crise de credibilidade na qual nos encontramos, devemos enfrentar a cultura clericalista-hierarquista que favorece tais escândalos. Embora essa não seja a única razão dos escândalos na Igreja, ela é uma das principais. Trata-se de uma cultura que favorece/promove:

* o narcisismo,

* a duplicidade de vida e

* a legitimação da mediocridade, modos de ser sustentados por uma mentalidade segundo a qual o poder “obtido” por meio da ordenação confere ao sujeito uma espécie de imunidade à sanção, imputabilidade da culpa e fuga da responsabilidade.

Infelizmente, no processo de acompanhamento vocacional, não estamos preparados para ajudar os vocacionados à vida sacerdotal e consagrada a refletir seriamente sobre a própria identidade sexual, a discernir o significado dos desejos que sentem, a ter consciência de que amam e servem como pessoas vulneráveis, a priorizar a qualidade das relações, a viver profundas experiências de autêntica amizade, a superar a dicotomia entre o que são e o que vivem como pessoas sexuais, a integrar vivência da sexualidade e projeto de vida. As causas podem ser variadas: falta de preparação para entender o contexto de onde provêm as vocações, de compreensão holística da sexualidade e de competência para ajudar os formandos a ressignificar as experiências sexuais que tiveram; dificuldade pessoal de lidar com os próprios desejos, de integrar a sexualidade no próprio projeto de vida e de manifestar o amor por meio de gestos concretos.

Os escândalos sexuais evidenciaram que, para abraçar uma vida que requer compromisso com o celibato, a continência e a castidade, é preciso ter condições objetivas para assumir o processo de integração e sublimação da sexualidade.

Em outras palavras, não basta querer ser padre ou religioso; é preciso ser capaz de lidar com as renúncias que fazem parte da vida sacerdotal e consagrada no campo da sexualidade, sem se sentir frustrado, inferiorizado, desolado e, portanto, mais propício a adoecer com o tempo.

Uma pessoa realizada vocacionalmente tem de ser uma pessoa realizada sexualmente. Afinal de contas, a sexualidade é um modo de ser, de se relacionar, de se comunicar e de viver o amor, razão última de toda caminhada vocacional. O amor, quando autêntico, exige, sim, autocontrole, mas em vista da autodoação

O Prof. Ronaldo Zacharias selecionou uma série de ensaios de sua autoria que serviram de base para a entrevista e que são recomendados como bibliografia para um aprofundamento no tema

Indicações bibliográficas 

ZACHARIAS, Ronaldo. Equívocos no processo formativo. In: VEIGA, Alfredo Cesar da; ZACHARIAS, Ronaldo (orgs.). Igreja e escândalos sexuais. Por uma nova cultura formativa. São Paulo: Paulus, 2019, p. 209-252. 

ZACHARIAS, Ronaldo. A ternura no processo de acolhida, acompanhamento, discernimento e integração. In: TRASFERETTI, José A.; ZACHARIAS, Ronaldo (orgs.). Ternura: uma abordagem ético-teológica. São Paulo: Paulus, 2023, p. 215-250. 

ZACHARIAS, Ronaldo. Fragilidade vocacional e institucional: da crise de credibilidade à fidelidade na fragilidade. In: TRASFERETTI, José A.; MILLEN, Maria Inês de Castro; ZACHARIAS, Ronaldo (orgs.). Formação: desafios morais 2. São Paulo: Paulus, 2020, p. 73-102. 

ZACHARIAS, Ronaldo. Orientação afetivo-sexual. Para além da cultura do “não pergunte, não diga”. In: TRASFERETTI, José A.; MILLEN, Maria Inês de Castro; ZACHARIAS, Ronaldo (orgs.). Formação: desafios morais. São Paulo: Paulus, 2018, p. 201-233. 

Fonte: ITESP – Instituto São Paulo de Estudos Superiores – Informativos / Notícias – março de 2024 – Internet: clique aqui (acesso em: 11/03/2024).