«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 25 de agosto de 2018

21º Domingo do Tempo Comum – Ano B – Homilia

Evangelho: João 6,60-69

Naquele tempo:
60 muitos dos discípulos de Jesus que o escutaram, disseram: «Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?»
61 Sabendo que seus discípulos estavam murmurando por causa disso mesmo, Jesus perguntou:
«Isto vos escandaliza?
62 E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?
63 O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida.
64 Mas entre vós há alguns que não creem». Jesus sabia, desde o início, quem eram os que não tinham fé e quem havia de entregá-lo.
65 E acrescentou: «É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim a não ser que lhe seja concedido pelo Pai».
66 A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele.
67 Então, Jesus disse aos doze: «Vós também vos quereis ir embora?»
68 Simão Pedro respondeu: «A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna.
69 Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus».

FRAY MARCOS RODRÍGUEZ
Teólogo dominicano espanhol

AO INVÉS DE MORDER O OUTRO, DEIXAR-SE COMER

Estamos no final do capítulo 6 do Evangelho Segundo João. Chega a hora do desenlace. A alternativa está clara: ou chegar à verdadeira Vida, ou permanecer preso na pura materialidade. Não tomar nenhuma decisão é manter o caminho fácil do hedonismo, no qual estamos. Que resultado teve a oferta de Jesus?

«Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la Claro que são inaceitáveis estas palavras, para eles e para nós. Vão contra toda lógica. Querem levar-nos além do razoável.  Todo aquele que se deixar guiar pelo senso comum, se «escandalizará». O que nos pede Jesus é sair do EU (ego) e entregar-se aos outros. Que disparate! Do ponto de vista religioso, trata-se de substituir Deus pelo homem. Como podemos deixar de servir a Deus para dedicar-nos aos outros? O primeiro dever do ser humano não é dar «glória» a Deus?

A incapacidade de compreender as palavras de Jesus é consequência do desejo de entender a partir da carne. E cuidado, pois não se trata de desprezar ou esmagar a carne... Trata-se de descobrir o verdadeiro sentido da vida fisiológica e terrena, para um ser humano, o verdadeiro sentido da carne está na transcendência; isto é, descobrir as possibilidades mais sublimes que o ser humano tem de crescer e ser mais que simples vida biológica. A vida terrena, caduca, transitória, não pode ser meta para o homem. A meta é desfazer-se na entrega total.

«O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada». Este versículo é chave para entender todo o capítulo. Aqui, carne e espírito não se referem a duas realidades concretas e opostas, mas a duas maneiras de afrontar a existência humana. Somente uma atitude espiritual pode dar pleno sentido a uma vida humana. Viver somente a partir das exigências da carne, traz consigo uma limitação radical e, portanto, cerceia a verdadeira meta do ser humano.

Em teoria se entende muito bem e são aceitáveis estas palavras de Jesus, porém, na prática, quem crê, de verdade, que a carne não serve para nada? Por que lutamos? Por que nos esforçamos? Qual é a nossa verdadeira preocupação?

Depois de destacar, por várias vezes, que se havia de comer sua carne, agora nos diz que a carne não serve para nada; que a única coisa que vale é o espírito. Estas palavras nos obrigam a fazer um esforço sobre-humano para poder compreender o que nos quer dizer Jesus. Não é nenhuma contradição. Trata-se de descobrir que o valor da «carne» vem do fato de estar enformada pelo espírito. Com o espírito, a carne é tudo. Sem o espírito, a carne não é nada. Novamente, fica claro o profundo sentido que João dá à encarnação.

«As palavras (exigências) que vos falei são espírito e vida». As palavras não têm valor por si mesmas. Devemos ir além das palavras e descobrir o ESPÍRITO ao qual elas fazem referência. Como no discurso de Nicodemos e da Samaritana, a referência ao espírito é chave para entender a mensagem de Jesus. «O que nasce da carne é carne, o que nasce do espírito é espírito» (João 3,6). «Deus é espírito, e há de aproximar-se dele em espírito e em verdade» (João 4,24).

Todo o capítulo 6 vem dizendo que ele é o pão... Agora, nos diz que são suas palavras as que dão a Vida. Para um ser humano, a única proposta que pode levar à plenitude é aquela que faz Jesus, com sua VIDA e com suas PALAVRAS.

«É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim a não ser que lhe seja concedido pelo Pai». O projeto criador é do Pai que oferece ao homem a plenitude de Vida.

Jesus não faz mais que executá-lo. Quem rejeita o projeto de Deus, nunca aceitará Jesus. O espírito é indispensável para entrar na dinâmica da entrega/amor. Sem uma experiência de Deus, as palavras mais sublimes restam em palavrório vazio. Já dizia Plotino: «Falar de Deus sem uma autêntica virtude, é pura conversa fiada».

«A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele». Neste processo de distanciamento entre Jesus e os que o escutam, se dá o último passo, o abandono. Notem bem que, até agora, aqueles que criticavam e murmuravam eram «os judeus», agora são «os discípulos» que decidem abandonar Jesus. Talvez, a maioria dos ouvintes já o havia abandonado antes. Recordemos que, todo o capítulo, foi proposto como um processo de iniciação. Terminado o processo, deve-se tomar uma decisão.

«Vós também vos quereis ir embora Quão distante está Jesus da busca, por todos os meios, da aprovação geral! Tanto os políticos como os meios de comunicação condicionam tudo à audiência. O importante é vender, a qualquer preço. Jesus aceita o desafio que sua doutrina provoca. Está disposto a ficar completamente sozinho, antes que ceder um milímetro na radicalidade de sua mensagem. A pergunta expressa uma pitada de profunda amargura. Porém, deixa muito clara a convicção que tem daquilo que está propondo.

«A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras (exigências) de vida eterna». Pedro dá a única resposta que se pode dar às palavras de Jesus: «Nos cremos». A imensa maioria dos que escutam Jesus se sente mais segura com o cumprimento da Lei, que com as promessas de nova Vida que ele lhe faz.

Na multiplicação dos pães eram cinco mil. Ficam doze. Mais tarde, demonstrariam que eles, tampouco, o entenderam. Para entenderem Jesus tiveram que passar pela experiência pascal [paixão, morte e ressurreição]. Antes dessa experiência nem o povo, nem os discípulos, nem os Doze entenderam nada. João deixa claro que o fundamento da Igreja que começa a se organizar são os Doze, e que Pedro é a cabeça que a dirige.

Devemos recordar que, este esquema de progressivo distanciamento se adverte nos Evangelhos Sinóticos [Mt, Mc e Lc]. Em todos, Jesus começa sendo aclamado com entusiasmo pela multidão, porém termina sendo abandonado por todos, incluindo seus discípulos. «Todos o abandonaram e fugiram» (Mc 14,50).

Se hoje em dia, quase dois bilhões de pessoas se declaram cristãos, deve-se a que não se exige a radicalidade de sua mensagem e estamos no engano do que Jesus nos pode dar, não na consciência daquilo que ele nos exige. Se descobríssemos que a medula da mensagem de Jesus é que temos de deixar-nos comer, quantos ficariam? Isso é, exatamente, o que nos pede Jesus. Antes de morder o outro, deve-se deixar-se comer.

Neste discurso, João procura esclarecer as condições de pertença à comunidade de Jesus:
* a adesão a Jesus e
* a assimilação de sua proposta de amor.
Sua «exigência» é uma dedicação ao bem do homem através da entrega pessoal.

O messianismo triunfal fica definitivamente excluído. Contrariamente ao que se continua dizendo nos dias de hoje, Jesus não busca nem glória humana ou divina nem a promete aos que o seguem. Seguir Jesus significa renunciar a toda ambição, e aceitar a entrega total de si mesmo em benefício dos demais. [...]

Até a Eucaristia, que é o símbolo (sacramento) da entrega, a convertemos em objeto de adoração, para evitar o compromisso de deixar-nos comer. Não queremos nem ouvir falar da realidade significada: o dom de si mesmo.

É desencorajador, continuar pensando que Deus esteja mais presente em um pedaço de pão, que no ser humano que sofre e espera nossa compreensão e ajuda.
É decepcionante, que a celebração da Eucaristia não tenha nenhuma repercussão em nossa vida real nem me exija mudar nada em minha vida!

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: feadulta.com – Acesso em: 25/08/2018 – às 17h30 – Internet: clique aqui

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Abusos na Igreja: é hora de agir!

Reação à carta do Papa:
palavras bonitas, mas chegou a hora de agir

Christopher White e Inés San Martín
Crux
21-08-2018 
MARIE COLLINS
Irlandesa que sofreu abuso por parte de um clérigo e
integrou comissão do Vaticano para a proteção dos menores
Embora o Papa Francisco tenha recebido elogios de sobreviventes por boas intenções depois de lançar uma carta na segunda-feira sobre a crise dos abusos [para ler esta carta do Papa, clique aqui], na qual confessou que «a Igreja não mostrou nenhum cuidado para com as crianças», a reação geral talvez pudesse ser resumida em «já ouvimos isso antes».

«Declarações do Vaticano ou do Papa devem parar de nos dizer como o abuso é terrível e passar a como todos devem ser responsabilizados», disse no Twitter a irlandesa Marie Collins, sobrevivente de abuso.

Nos fale o que você está fazendo para responsabilizá-los. É isso que queremos ouvir. “Trabalhar nisso” não é uma explicação aceitável para décadas de “atraso”», Collins twittou.

Falando ao Crux um dia antes da carta papal dirigida ao Povo de Deus, Collins disse que quando Francisco for à Irlanda de 25 a 26 de agosto, em vez de «mais desculpas», ela quer ouvir explicações e passos concretos para garantir que os bispos que acobertaram abusos sejam responsabilizados.

Em sua carta, Francisco se referiu à «dor de cortar o coração» das vítimas de abuso sexual por padres e bispos, «que clama ao céu», e que foi «por muito tempo ignorada, mantida em silêncio».

«Mas seu grito foi mais forte do que todas as medidas que tentaram silenciá-lo ou, inclusive, que procuraram resolvê-lo com decisões que aumentaram a gravidade caindo na cumplicidade», ressaltou o Papa.

O sobrevivente chileno Juan Carlos Cruz vem denunciando seu agressor, Padre Fernando Karadima, há mais de uma década. No início do ano, Cruz estava no Vaticano, junto com outros dois sobreviventes dos agressores de Karadima, onde eles se encontraram com Francisco.

«Fico feliz que o Vaticano e o Papa estejam usando uma linguagem de “crime, delinquência, ir à justiça civil, encobrir”», disse Cruz ao Crux sobre a carta.
JUAN CARLOS CRUZ
Um dos muitos chilenos abusados pelo padre Fernando Karadima

Sistemas de justiça civil e católicos comuns usam essa linguagem há algum tempo, disse Cruz, e «como de costume, os que estão ficando para trás são os bispos».

Recentemente, o Ministério Público do Chile entrou nos arquivos de várias dioceses e da sede da Conferência Episcopal e convocou o Cardeal Ricardo Ezzati, de Santiago, para ser interrogado por suspeita de encobrimento. O interrogatório do cardeal estava programado para terça-feira, mas, a pedido da defesa, foi adiado.

«Eu tenho muita esperança nesta carta, mas o dano causado é irreparável, e não devemos deixar de ajudar as vítimas. Os bispos que continuam tentando se proteger acusando as vítimas de atacar a Igreja deveriam partir, porque esses dias acabaram», disse Cruz.

Menos conversa e mais ação, por favor

Sobreviventes não foram os únicos a reagir. Vários membros da hierarquia também se pronunciaram à carta do Papa, incluindo o arcebispo Mark Coleridge, presidente da Conferência dos Bispos da Austrália.

«Compartilhamos a determinação do Santo Padre de proteger os jovens e adultos vulneráveis», escreveu Coleridge em nome dos bispos australianos.

«Estas são palavras importantes do Papa Francisco, mas as palavras não são suficientes. Agora é a hora de ação», escreveu.
DANIEL DINARDO
Cardeal-Arcebispo de Galveston-Houston e Presidente da Conferência Episcopal dos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, o cardeal Daniel DiNardo, de Galveston-Houston e presidente da Conferência dos Bispos, divulgou uma declaração em nome de todo o corpo dizendo que as palavras do Papa «devem provocar ação, especialmente pelos bispos».

Entre os leigos, muitos demonstraram sentimentos semelhantes.

A atriz Patricia Heaton, por exemplo, conhecida - entre outras atividades - por seu papel em Everybody Loves Raymond e que no ano passado foi mestre de cerimônias de um jantar oferecido pelo cardeal Timothy Dolan de Nova York, um herói do movimento católico pró-vida por sua franqueza contra eugenia de bebês em gestação com Síndrome de Down, foi ao Twitter para expressar sua frustração.

«Esta é a última vez que vou comentar sobre a Igreja - não me prendo a isso - eles parecem encontrar novas maneiras de causar raiva. Finalmente, recebemos uma carta do @Pontifex, que não oferece medidas ​​contra os criminosos e seus facilitadores», escreveu ela.

William Bradford Wilcox, diretor do National Marriage Project da Universidade da Virgínia, também ressaltou sua frustração, dizendo: «A menos que seja acompanhada por sanções reais pelos fracassos na liderança entre os bispos dos EUA (ou seja, a renúncia dos bispos), isso significa muito pouco @Pontifex: Nós precisamos ver uma disciplina real para aqueles no Vaticano que não fizeram nada depois de serem avisados ​​sobre McCarrick».
ANNE BARRET DOYLE
Co-diretora do bishopaccountability.org

«Eu estava esperando um plano de ação e não o encontrei. Senti como se estivesse lendo um “recorta e cola” de cartas anteriores. Não é que ele não possa se repetir, pois pensamentos importantes merecem repetição, mas acho que foi uma profunda leitura equivocada do que o povo católico esperava e desesperadamente anseia - que é um plano para acabar com isso», disse Anne Barret Doyle, co-diretora do BishopAccountability.org.

«Com a situação chilena fiquei impressionada com o que ele estava dizendo e fazendo. Pensei, estamos à beira de uma reforma sistêmica. Pela primeira vez, acreditei. Achei que iríamos ver um novo mecanismo para punir bispos e superiores religiosos, mas com essa carta parece haver uma falta de reconhecimento de seu próprio poder e responsabilidade», disse Doyle ao Crux, na terça-feira.

As crianças antes de tudo

A comissão do Papa para a proteção de menores divulgou um comunicado na terça-feira, um dia após a carta, no qual o grupo se intitula como «encorajado» pelas palavras de Francisco e pela promessa de responsabilização por encobrimento.

A professora Myriam Wijlens, membro da comissão e especialista em direito canônico, elogiou a decisão do Papa de vincular abuso sexual a abuso de poder e abuso de consciência.

«A resposta de pedir perdão e procurar reparação nunca será suficiente. Uma resposta voltada para o futuro implica pedir uma mudança radical de cultura, em que a segurança das crianças é prioridade máxima», disse Wijlens.

«Proteger a reputação da Igreja implica a segurança das crianças em primeiro lugar. Só o clero não será capaz de provocar uma mudança tão radical, nos diz o Papa Francisco em sua carta: através da humildade eles terão que pedir e receber ajuda de toda a comunidade».

Traduzido do inglês por Victor D. Thiesen. Acesse a versão original deste artigo, clicando aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 22 de agosto de 2018 – Internet: clique aqui.

PROPOSTA DE UM TEÓLOGO

“A Igreja não terá solução se não mudar 
o clero”

José María Castillo
Teólogo espanhol
Religión Digital
21-08-2018

Teólogo discute duas saídas para a atual crise da Igreja:
“1º) Eliminar o clero, da forma como ele hoje está 
organizado e gerido;
2º) Recuperar as ordenações "invitus" e "coactus" da Igreja antiga”
JOSÉ MARÍA CASTILLO
Teólogo espanhol

O papa Francisco acaba de publicar uma carta dirigida ao «povo de Deus», na qual denuncia os abusos sexuais que não poucos clérigos vêm cometendo contra menores de idade há vários anos. «Um crime que gera profundas e dolorosas feridas», sobretudo nas vítimas, disse o papa.

Este assunto é gravíssimo, como bem sabemos. Grave para as vítimas. Grave para aqueles que o cometem. Grave para a sociedade e para a Igreja. Por isso já foram escritos centenas de artigos e muitos livros alertando sobre o perigo que tudo isso implica. E oferecendo soluções de todo tipo. Não irei discutir agora quem tem razão – e quem não tem – na análise e solução deste enorme problema. Quem sou eu para isso?

Só acredito que posso (e devo) dizer algo que me parece fundamental. O papa Francisco não hesita em dizer que o «crime», que são os mencionados abusos sexuais, foi cometido «por um notável número de clérigos e pessoas consagradas». Mas, quando se refere às consequências, o próprio papa afirma que «o clericalismo, seja favorecido pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma cisão no corpo eclesial». Ou seja, o clericalismo partiu a Igreja, destruiu-a. E uma Igreja quebrada, acaba rompendo até as consciências dos culpados e a vida dos mais frágeis.

Falar de «clero» não é a mesma coisa que falar de «clericalismo». O dicionário da RAE [Real Academia Espanhola] diz que «clericalismo» é a «intervenção excessiva do clero na vida da Igreja, que impede o exercício dos direitos dos demais membros do povo de Deus». O papa faz bem em responsabilizar, não tanto ao «clero», mas mais propriamente ao «clericalismo». E digo que o papa tem razão, ao utilizar esta distinção linguística, porque sabemos muito bem que, se falamos de «clero», não se pode generalizar. Pelo mundo todo, há «homens de Igreja» (clérigos) que são pura e simplesmente exemplares e até heroicos.

Outra coisa é se falamos de «clericalismo». Porque a teologia e o direito eclesiástico são pensados e geridos de forma que «inevitavelmente» todo «homem de Igreja», que não seja um santo ou um herói, acaba exercendo o mais refinado e talvez brutal «clericalismo». Pela simples razão de que, se cumpre com o que a «teologia» e o «direito» da Igreja lhe impõem, não tem alternativa a não ser «impedir o exercício dos direitos dos outros». Por exemplo, tem que impedir que as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens. E assim, tantas e tantas outras coisas.

Isso tem solução? Claro que tem. O termo «clero» significa «sorte», «herança», «benefício». Segundo o Evangelho, Jesus não fundou nenhum «clero», nesse sentido. Pelo contrário. O que mandou a seus apóstolos é que fossem os «servidores» dos demais. Até os proibiu que, para difundir o Evangelho, levassem dinheiro, mochila ou economias.

Tinham que seguir pela vida lavando os pés dos outros, como se sabe que faziam os escravos. Tornar-se padre não é fazer carreira, não é subir na vida e na sociedade. Tornar-se padre é viver o Evangelho tal e como Jesus mesmo viveu. Ou seja, é assumir uma forma de presença na sociedade, como a que Jesus assumiu. Uma forma de vida que lhe custou a própria vida.

Então, isso tem conserto?
Claro que tem. Mas supõe e exige dois passos, que são (ou seriam) muito difíceis de assumir:
1º) Eliminar o clero, da forma como ele hoje está organizado e gerido.
2º) Recuperar as «ordenações» «invitus» e «coactus» da Igreja antiga.

Estes dois termos latinos significam que eram «ordenados» ministros da comunidade cristã, não aqueles que desejavam ou pediam, mas os que não queriam. Ou seja, os que eram eleitos pelo povo, em cada diocese e em cada paróquia.

Isso é o que mandavam os sínodos e concílios. E foi uma prática que durou séculos. De maneira que inclusive os grandes teólogos escolásticos dos séculos XII e XIII discutiam ainda sobre este assunto. Assim demonstrou, com ampla e séria documentação, o professor Yves Congar (em Revue des Sciences philosophiques et théologiques, vol. 50 [1966] 161-197).
Primeira página do artigo de Yves Congar citado pelo autor

Já estou terminando. Mas não posso me calar diante disso: Enquanto «se tornar padre» significar «fazer carreira», a Igreja continuará partida. E, além disso, continuará perdendo espaço na sociedade. E o que é mais grave: uma Igreja, na qual seus padres são homens que buscam (talvez sem se darem conta do que fazem) um «status social» elevado e, sobretudo, buscam ter uma sólida «segurança econômica», a Igreja continuará quebrada, nela se seguirão cometendo abusos (não só sexuais) e, para completar, o inevitável clericalismo continuará ocultando o mundo obscuro do clero que, como os sacerdotes e mestres da lei do tempo de Jesus, continuará vivendo na «hipocrisia» que tão duramente denunciou o próprio Jesus de Nazaré.

Traduzido do espanhol por Graziela Wolfart. Acesse a versão original deste artigo, clicando aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 22 de agosto de 2018 – Internet: clique aqui.

PROPOSTA DE UMA TEÓLOGA

Mudança real contra abuso começa com estrutura dos leigos e clero da Igreja

Mary E. Hunt*
Teóloga norte-americana
National Catholic Reporter
21-08-2018

O suposto e reiterado abuso de poder de Theodore McCarrick sobre os subordinados (não esquecendo um caso de abuso de menor, mas concentrando nos casos relacionados ao trabalho no momento) aumenta o espectro do clericalismo e clama por mudança.

O teólogo e padre Bryan Massingale concorda com o cardeal de Chicago Blase Cupich que o sentimento de ter direitos que prevalece entre alguns homens ordenados poderiam levar a comportamento de exploração. Ambos concordam que a questão não é se os homens são gays ou hetero (ou, devo acrescentar, algo além desse quadro binário), mas se têm, em virtude de seu status clerical, acesso a privilégio e poder dentro da comunidade eclesiástica que podem livrá-los de prestar contas.

Massingale e Cupich citam que o clericalismo é o problema. Eu concordo até certo ponto, mas acho que o problema é mais profundo, na verdade está localizado na base, enraizado na bifurcação entre clérigos e leigos que embasam a instituição Católica Romana.

Esta estrutura de cima para baixo, dividida entre clero e leigos, condiciona relacionamentos e funções na Igreja. O Catecismo da Igreja Católica diz que a ordenação «confere um caráter espiritual indelével» a um padre que «não pode ser repetido nem conferido para um tempo limitado», que «fica para sempre» (n. 1583). O padre é considerado ontologicamente diferente do leigo. Seu lugar na estrutura hierárquica reflete essa diferença. Seus papéis como celebrante sacramental e tomador de decisões são contingentes.

Além disso, em dioceses e ordens, a instituição que paga, alimenta e inclusive o enterra é construída para manter o bem-estar da instituição e de si próprio; espera-se que tenha lealdade semelhante à instituição.

Não admira que os bispos e superiores tenham transferido, acobertado e protegido os criminosos do clero. É simplesmente assim que o sistema funciona, não é um caso raro e anormal como eu esperaria que algum participante honesto poderia dizer. O desastre da Pensilvânia é prova disso. Mas é possível mudar. Mesmo que todos os bispos dos Estados Unidos renunciassem (ou tivessem de sair) e fossem substituídos por outros clérigos, prevejo que pouco melhoraria. A estrutura é o problema, não apenas os indivíduos que cometem erros, e estruturas podem mudar.

A ordenação é a linha vermelha brilhante de divisão deste esquema. Imagine uma pirâmide com uma linha um pouco abaixo do topo, que é onde está o clero no sistema eclesiástico. Os números estão bem abaixo de 1% dos bilhões de católicos, mas este sistema acaba dividindo a comunidade em estratos muito desiguais.
ELISABETH SCHÜSSLER FIORENZA
Teóloga bíblica feminista norte-americana

A teóloga bíblica feminista Elisabeth Schüssler Fiorenza convenientemente chamou isso de «kiriarcado» para sinalizar as muitas formas de "domínio" dos que têm privilégios de raça, gênero, classe, entre outros, e também, nesse caso, clerical. O que está em questão é a estrutura e não apenas o abuso; o sistema clerical/leigo, não apenas o clericalismo.

O caso McCarrick deixa isso muito claro. Como observou o padre jesuíta Thomas Reese, «a punição eclesial normal para sacerdotes que abusam de crianças é a expulsão (excomunhão) do sacerdócio».

Em outras palavras, o pior que pode acontecer a McCarrick é ser excomungado, ou seja, ter de deixar o pedestal clerical.

Sendo claro, por suas muitas e variadas acusações de transgressão, o pior que pode acontecer é ele passar a ser como a maioria de nós, devendo viver de forma decente sem o status clerical. Ele será de novo o que era quando foi batizado: leigo.

Ouso dizer que há destinos piores e punições mais severas.

Claro que para os sacerdotes excomungados há outras consequências, principalmente de questões econômicas e reputação. Mas as raízes de todos estão na mesma estrutura.

A linguagem usada pela Congregação para a Doutrina da Fé não é ao acaso na redação das normas para «redução [ênfase nossa] ao status de leigo, dispensando das obrigações ligadas à ordenação sagrada». É para isso que serve. Tenho certeza de que é assim que seria recebido por pessoas como McCarrick, cujas décadas de acesso irrestrito às crianças, presunção de virtude pessoal sem provas e incontáveis oportunidades de se envolver em discurso religioso, político e social os condiciona a sentidos irrealistas de si mesmos.

Mas quando tudo isso acabar, em círculos religiosos, grande parte dos crimes hediondos e dos terríveis atos de má fé dos sacerdotes farão com que voltem ao status de leigos, com o qual o resto das pessoas vive a vida inteira. Algo está muito errado neste panorama.
THEODORE McCARRICK
Ex-cardeal e arcebispo de Washington - Estados Unidos

Não é a minha intenção acusar e condenar Theodore McCarrick (agora cuidadosamente chamado «arcebispo» em vez de «cardeal» pelos colegas eclesiásticos, um lembrete sutil de que perdeu apenas o título a que renunciou, não seu privilégio eclesiástico, como o direito a vale-refeição). Pelo contrário, quero indiciar todo o sistema eclesiástico que cria as condições para tal desigualdade. O sistema é injusto para todos, embora de forma diferente dependendo da posição, incluindo até mesmo McCarrick na velhice.

A boa notícia é que não começamos do zero a construir o catolicismo pós-moderno. Muitos grupos — de base e/ou comunidades eucarísticas, grupos religiosos de mulheres, capítulos do Dignity, entre outros — têm experimentado novas formas de ser Igreja por décadas. A teologia sacramental e a eclesiologia necessárias para desmantelar o sistema hierárquico e substituí-lo por estruturas igualitárias, globalmente conectadas e com bases funcionais de acordo com o Evangelho já consta na literatura.

Esses novos modelos suprem as necessidades dos católicos da atualidade e, se houver algum, dos católicos do futuro. Seria um legado digno dos melhores momentos de McCarrick como ser humano sem apagar seus pecados como clérigo. E poderemos verdadeiramente receber a todos cantando «All Are Welcome» [tradução: Todos são Bem-Vindos].

Traduzido do inglês por Luísa Flores Somavilla. Acesse a versão original deste artigo, clicando aqui.

* MARY E. HUNT é teóloga feminista e co-fundadora e co-diretora da Women's Alliance for Theology, Ethics and Ritual (WATER), em Silver Spring, Maryland.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 22 de agosto de 2018 – Internet: clique aqui.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

“Vergonha e arrependimento”

Papa Francisco escreve carta dura sobre abusos sexuais na Igreja Católica

Joana Amaral Cardoso

O líder da Igreja Católica condena «fortemente estas atrocidades»,
falando em «cultura de morte». 
E postula: «as feridas nunca prescrevem»
PAPA FRANCISCO

O Papa Francisco, sob pressão na sequência de mais um caso de abusos sexuais cometidos no seio da Igreja Católica, escreveu esta segunda-feira uma carta aberta [leia abaixo] em que admite “vergonha e arrependimento” pela forma como a instituição lidou com estes crimes. E pede a ajuda de todos os católicos para eliminar "esta cultura de morte", reconhecendo "nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado".

Esta é, segundo um porta-voz do Vaticano, a primeira vez que a figura máxima da Igreja Católica se dirige aos fiéis e ao mundo para falar de abusos sexuais. No passado, recorda a Reuters, têm sido os bispos e outros altos representantes a falar publicamente destes casos. A missiva do Papa Francisco, datada desta segunda-feira, surge numa altura em que centenas de casos de abuso sexual no seio da Igreja Católica, e o seu papel no seu encobrimento, estão a ser notícia nos Estados Unidos da América (EUA), mas também de problemas similares na Irlanda (que irá visitar no final do mês), Chile e Austrália.

Os termos da missiva são diretos e duros:
«Com vergonha e arrependimento, reconhecemos como comunidade eclesiástica que não estivemos onde devíamos ter estado, que não agimos de forma atempada, percebendo a magnitude e a gravidade dos danos causados a tantas vidas».

Evocando São Paulo, o sumo pontífice refere-se ao «sofrimento vivido por muitos menores por causa de abusos sexuais, de poder e de consciência cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas» e refere-se à impossibilidade de reparar os danos retroativamente. Mas quer fazer tudo para «gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas».

«Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso nas nossas comunidades, sem a participação ativa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista», acrescenta.

Na semana passada, um relatório judicial revelou que mais de 300 padres abusaram sexualmente de mais de mil crianças na Pensilvânia [EUA] nos últimos 70 anos. Um silêncio inicial do Vaticano sobre o tema foi rompido ao fim de 48 horas com uma condenação pelo porta-voz do Papa que já falava em «vergonha» e «crimes horríveis». Agora, é a vez de o líder espiritual de 1,2 mil milhões de católicos falar sobre o tema que desde 2002, quando o escândalo de pedofilia na Igreja Católica de Boston pôs em xeque o papel das autoridades religiosas no encobrimento desses casos. Francisco refere-se diretamente ao relatório da Pensilvânia, mencionando que «a maioria dos casos corresponde ao passado» mas ressalvando que constata «que as feridas nunca desaparecem». E por isso «obrigam a condenar veementemente essas atrocidades, bem como unir esforços para erradicar essa cultura da morte; as feridas “nunca prescrevem”».
Theodore Edgar McCarrick - Arcebispo emérito de Washington (EUA)
Ele se tornou no mês passado o primeiro cardeal a perder seu chapéu vermelho e título

(Alessandro Bianchi/File Photo/Reuters)

Trata-se, diz logo à cabeça de um longo texto escrito originalmente no seu espanhol natal, de «um crime que gera profundas feridas de dor e impotência, em primeiro lugar nas vítimas, mas também em suas famílias e na inteira comunidade, tanto entre os crentes como entre os não-crentes. Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado».

Depois de uma semana particularmente espinhosa na comunicação sobre o tema para o Vaticano, o Papa diz: «A dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por isso é preciso reafirmar uma vez mais o nosso compromisso em garantir a proteção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade».

Ainda assim, as palavras do Papa são vistas por Anne Barrett Doyle, do site BishopAccountability.org, um site que agrega os vários casos de abusos sexuais na Igreja Católica, como «retórica reciclada». «Meras palavras que nesta altura aprofundam o insulto e a dor», ao invés de proporem «medidas concretas», cita o diário britânico The Guardian.

Fonte: PÚBLICO (Portugal) – Mundo / Papa Francisco – Segunda-feira, 20 de agosto de 2018 – 13h41 (última atualização) – Internet: clique aqui.

CARTA DO PAPA FRANCISCO
AO POVO DE DEUS

 «Um membro sofre? Todos os outros membros sofrem com ele» (1Cor 12,26). Estas palavras de São Paulo ressoam com força no meu coração ao constatar mais uma vez o sofrimento vivido por muitos menores por causa de abusos sexuais, de poder e de consciência cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas. Um crime que gera profundas feridas de dor e impotência, em primeiro lugar nas vítimas, mas também em suas famílias e na inteira comunidade, tanto entre os crentes como entre os não-crentes. Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas. A dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por isso é preciso reafirmar mais uma vez o nosso compromisso em garantir a proteção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade.

1. Um membro sofre?

Nestes últimos dias, um relatório foi divulgado detalhando aquilo que vivenciaram pelo menos 1.000 sobreviventes, vítimas de abuso sexual, de poder e de consciência, nas mãos de sacerdotes por aproximadamente setenta anos. Embora seja possível dizer que a maioria dos casos corresponde ao passado, contudo, ao longo do tempo, conhecemos a dor de muitas das vítimas e constamos que as feridas nunca desaparecem e nos obrigam a condenar veementemente essas atrocidades, bem como unir esforços para erradicar essa cultura da morte; as feridas “nunca prescrevem”. A dor dessas vítimas é um gemido que clama ao céu, que alcança a alma e que, por muito tempo, foi ignorado, emudecido ou silenciado. Mas seu grito foi mais forte do que todas as medidas que tentaram silenciá-lo ou, inclusive, que procuraram resolvê-lo com decisões que aumentaram a gravidade caindo na cumplicidade. Clamor que o Senhor ouviu, demonstrando, mais uma vez, de que lado Ele quer estar. O cântico de Maria não se equivoca e continua a se sussurrar ao longo da história, porque o Senhor se lembra da promessa que fez a nossos pais: «dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1,51-53), e sentimos vergonha quando percebemos que o nosso estilo de vida contradisse e contradiz aquilo que proclamamos com a nossa voz.

Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava sendo causado em tantas vidas. Nós negligenciamos e abandonamos os pequenos. Faço minhas as palavras do então Cardeal Ratzinger quando, na Via Sacra escrita para a Sexta-feira Santa de 2005, uniu-se ao grito de dor de tantas vítimas, afirmando com força:

«Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta autossuficiência!... A traição dos discípulos, a recepção indigna do seu Corpo e do seu Sangue é certamente o maior sofrimento do Redentor, o que Lhe trespassa o coração. Nada mais podemos fazer que dirigir-Lhe, do mais fundo da alma, este grito: Kyrie, eleison – Senhor, salvai-nos (cf. Mt 8,25)» (Nona Estação).

2. Todos os outros membros sofrem com ele.

A dimensão e a gravidade dos acontecimentos obrigam a assumir esse fato de maneira global e comunitária. Embora seja importante e necessário em qualquer caminho de conversão tomar conhecimento do que aconteceu, isso, em si, não basta. Hoje, como Povo de Deus, somos desafiados a assumir a dor de nossos irmãos feridos na sua carne e no seu espírito. Se no passado a omissão pôde tornar-se uma forma de resposta, hoje queremos que seja a solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, a tornar-se o nosso modo de fazer a história do presente e do futuro, num âmbito onde os conflitos, tensões e, especialmente, as vítimas de todo o tipo de abuso possam encontrar uma mão estendida que as proteja e resgate da sua dor (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 228). Essa solidariedade exige que, por nossa vez, denunciemos tudo o que possa comprometer a integridade de qualquer pessoa. Uma solidariedade que exige a luta contra todas as formas de corrupção, especialmente a espiritual «porque trata-se duma cegueira cômoda e autossuficiente, em que tudo acaba por parecer lícito: o engano, a calúnia, o egoísmo e muitas formas subtis de autorreferencialidade, já que “também Satanás se disfarça em anjo de luz” (2Cor 11,14)» (Exortação Apostólica Gaudete et exultate, 165). O chamado de Paulo para sofrer com quem sofre é o melhor antídoto contra qualquer tentativa de continuar reproduzindo entre nós as palavras de Caim: «Sou, porventura, o guardião do meu irmão?» (Gn 4,9).

Reconheço o esforço e o trabalho que são feitos em diferentes partes do mundo para garantir e gerar as mediações necessárias que proporcionem segurança e protejam a integridade de crianças e de adultos em situação de vulnerabilidade, bem como a implementação da “tolerância zero” e de modos de prestar contas por parte de todos aqueles que realizem ou acobertem esses crimes. Tardamos em aplicar essas medidas e sanções tão necessárias, mas confio que elas ajudarão a garantir uma maior cultura do cuidado no presente e no futuro.

Juntamente com esses esforços, é necessário que cada batizado se sinta envolvido na transformação eclesial e social de que tanto necessitamos. Tal transformação exige conversão pessoal e comunitária, e nos leva dirigir os olhos na mesma direção do olhar do Senhor. São João Paulo II assim o dizia: «se verdadeiramente partimos da contemplação de Cristo, devemos saber vê-Lo sobretudo no rosto daqueles com quem Ele mesmo Se quis identificar» (Carta Apostólica Novo millennio ineunte, 49). Aprender a olhar para onde o Senhor olha, estar onde o Senhor quer que estejamos, converter o coração na Sua presença. Para isso nos ajudarão a oração e a penitência. Convido todo o Povo Santo fiel de Deus ao exercício penitencial da oração e do jejum, seguindo o mandato do Senhor[1], que desperte a nossa consciência, a nossa solidariedade e o compromisso com uma cultura do cuidado e o “nunca mais” a qualquer tipo e forma de abuso.

É impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus. Além disso, toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos, ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas[2]. Isto se manifesta claramente num modo anômalo de entender a autoridade na Igreja - tão comum em muitas comunidades onde ocorreram as condutas de abuso sexual, de poder e de consciência - como é o CLERICALISMO, aquela «atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo»[3]. O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma ruptura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo.

É sempre bom lembrar que o Senhor, «na história da salvação, salvou um povo. Não há identidade plena, sem pertença a um povo. Por isso, ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana: Deus quis entrar numa dinâmica popular, na dinâmica dum povo» (Exortação Apostólica Gaudete et exultate, 6). Portanto, a única maneira de respondermos a esse mal que prejudicou tantas vidas é vivê-lo como uma tarefa que nos envolve e corresponde a todos como Povo de Deus. Essa consciência de nos sentirmos parte de um povo e de uma história comum nos permitirá reconhecer nossos pecados e erros do passado com uma abertura penitencial capaz de se deixar renovar a partir de dentro. Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso em nossas comunidades, sem a participação ativa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista. A dimensão penitencial do jejum e da oração ajudar-nos-á, como Povo de Deus, a nos colocar diante do Senhor e de nossos irmãos feridos, como pecadores que imploram o perdão e a graça da vergonha e da conversão e, assim, podermos elaborar ações que criem dinâmicas em sintonia com o Evangelho. Porque «sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual» (Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 11).

É imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas, clérigos, e inclusive por todos aqueles que tinham a missão de assistir e cuidar dos mais vulneráveis. Peçamos perdão pelos pecados, nossos e dos outros. A consciência do pecado nos ajuda a reconhecer os erros, delitos e feridas geradas no passado e permite nos abrir e nos comprometer mais com o presente num caminho de conversão renovada.

Da mesma forma, a penitência e a oração nos ajudarão a sensibilizar os nossos olhos e os nossos corações para o sofrimento alheio e a superar o afã de domínio e controle que muitas vezes se torna a raiz desses males. Que o jejum e a oração despertem os nossos ouvidos para a dor silenciada em crianças, jovens e pessoas com necessidades especiais. Jejum que nos dá fome e sede de justiça e nos encoraja a caminhar na verdade, dando apoio a todas as medidas judiciais que sejam necessárias. Um jejum que nos sacuda e nos leve ao compromisso com a verdade e na caridade com todos os homens de boa vontade e com a sociedade em geral, para lutar contra qualquer tipo de abuso de poder, sexual e de consciência.

Desta forma, poderemos tornar transparente a vocação para a qual fomos chamados a ser «um sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano» (Concílio Ecumênico Vaticano II, Lumen gentium, 1).

«Um membro sofre? Todos os outros membros sofrem com ele», disse-nos São Paulo. Através da atitude de oração e penitência, poderemos entrar em sintonia pessoal e comunitária com essa exortação, para que cresça em nós o dom da compaixão, justiça, prevenção e reparação. Maria soube estar ao pé da cruz de seu Filho. Não o fez de uma maneira qualquer, mas permaneceu firme de pé e ao seu lado. Com essa postura, Ela manifesta o seu modo de estar na vida. Quando experimentamos a desolação que nos produz essas chagas eclesiais, com Maria nos fará bem «insistir mais na oração» (cf. Santo Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, 319), procurando crescer mais no amor e na fidelidade à Igreja. Ela, a primeira discípula, nos ensina a todos os discípulos como somos convidados a enfrentar o sofrimento do inocente, sem evasões ou pusilanimidade. Olhar para Maria é aprender a descobrir onde e como o discípulo de Cristo deve estar.

Que o Espírito Santo nos dê a graça da conversão e da unção interior para poder expressar, diante desses crimes de abuso, a nossa compunção e a nossa decisão de lutar com coragem.

Francisco

Cidade do Vaticano, 20 de Agosto de 2018.

 NOTAS

[1] «Esta espécie de demônios não se expulsa senão à força de oração e de jejum» Mt 17,21.
[2] Cf. Carta do Santo Padre Francisco ao Povo de Deus que peregrina no Chile, 31 de Maio de 2018.
[3] Carta do Papa Francisco ao Cardeal Marc Ouellet, Presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, 19 de Março de 2018.

Fonte: Vatican0 (site oficial) – Francisco / Cartas / 2018 – Acesso: 21/08/2018 – Internet: clique aqui.