«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

2º Domingo da Quaresma – Ano B – HOMILIA

 Evangelho: Marcos 9,2-10 

Naquele tempo: 2 Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles. 3 Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar. 4 Apareceram-lhe Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus. 5 Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: «Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.» 6 Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo. 7 Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: «Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!» 8 E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles. 9 Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. 10 Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer «ressuscitar dos mortos». 

Alberto Maggi

Frade da Ordem dos Servos de Maria (servitas) e renomado biblista italiano

A morte não nos destrói, mas nos liberta 

O evangelista Marcos, nas tentações de Jesus no deserto, não pretendeu apresentar um período da vida do Senhor, mas toda a existência de Jesus, a qual foi no deserto, tentado por Satanás. E no decorrer do Evangelho, o evangelista mostrou quem é esse satanás. Quando Jesus, pela primeira vez, anuncia aos seus discípulos que não vai a Jerusalém para conquistar o poder, mas para ser morto pelo poder, surge a reação violenta e temerária, e um dos discípulos, Simão, a quem Jesus deu um apelido negativo, indicando sua teimosia, Pedro, tão duro como uma pedra, agarra Jesus e este se dirige ao discípulo com palavras terríveis chamando-o de «satanás». Ele não o afugenta, mas diz «Para trás de mim, Satanás». Assim é Simão, apelidado de Pedro por sua teimosia, a teimosia que, posteriormente, o levará a trair Jesus, que vem por Jesus e pelo evangelista identificado como o Satanás tentador. 

Mas não é à toa que se chama Pedro, aqui ainda continua a tentar Jesus e, imediatamente após este confronto entre Jesus e os seus discípulos, que não aceitam o fato de o Messias poder morrer, Jesus mostra-lhes qual é a condição do homem que passa pela morte. É a passagem do evangelho de hoje, conhecida como o episódio da transfiguração, capítulo 9 do Evangelho de Marcos. Que começa com uma indicação muito importante, «No sexto dia ou seis dias depois». O sexto dia lembra o dia da criação do ser humano; eis o que evangelista nos apresenta como homem criado segundo Deus:

... o homem que não sucumbe com a morte, mas que com a morte começa uma nova existência luminosa.

«Seis dias depois Jesus levou consigo» e leva consigo os três discípulos mais difíceis aos quais colocou um apelido negativo que indica seu caráter: Simão, que se chama Pedro [= pedra], o teimoso, e depois Tiago e João, que ele definiu em aramaico «boanerges», isto é, «os filhos do trovão», por sua violência, por sua ambição, aqueles que, portanto, correrão o risco de arruinar e dividir o grupo. 

«Sobre um alto monte» que indica a condição divina «e foi transfigurado diante deles». Jesus mostra qual é a condição do ser humano que passa pela morte.

A morte não apenas não destrói o indivíduo, mas libera todas as suas energias e o fortalece.

Por isso, o evangelista usa uma expressão que pode parecer banal, ele diz «Suas roupas tornaram-se tão brilhantes, que nenhum lavador na terra poderia torná-las tão brancas»; significa que não é com esforço humano que essa condição é alcançada, mas por meio da energia divina que é comunicada ao ser humano. 

Nessa ocasião, Elias apareceu a eles com Moisés. O que chamamos de Antigo Testamento no mundo judaico era dividido entre a lei, a lei que foi transmitida por meio de Moisés, e o maior dos profetas, aquele que, com violência, fez respeitar a lei, o profeta Elias. Eles, Moisés e Elias, conversam com os discípulos, conversam com Jesus. Elias e Moisés nada mais têm a dizer aos discípulos de Jesus, se não filtrar sua mensagem através dos ensinamentos e obras de Jesus. 

E aqui, novamente, Simão continua sua ação como um estranho tentador. Na verdade, o evangelista escreve: «Tomando a palavra» e coloca apenas o apelido negativo, «Pedro», que indica o teimoso, «disse ele a Jesus» e o chama exatamente como Judas Iscariotes o chamará, «Rabbi» [= Mestre], uma expressão de respeito com a qual se dirigia aos escribas, aqueles que ensinavam a lei. «É bom para nós estarmos aqui», e surge a tentação, «façamos três cabanas». Por que três cabanas? Houve e ainda há uma festa no mundo judaico entre setembro e outubro que comemora a grande libertação da escravidão egípcia. Para celebrar este acontecimento, por uma semana, as pessoas vivem em cabanas e a tradição dizia que o novo libertador de Israel chegará na recordação do antigo libertador, portanto o novo messias se manifestará na recordação de Moisés. 

Aqui, então, está a tentação de Pedro: ele quer que Jesus se manifeste assim, como? Eis o que Pedro diz: «Vamos fazer três cabanas, uma para você, uma para Moisés e uma para Elias».

Quando há três personagens, onde está o mais importante? No centro.

No centro para Pedro, ainda, não está Jesus, no centro está Moisés. Aqui está o messias que eu quero, aquele que vive de acordo com a lei de Moisés e a faz cumprir de acordo com o espírito violento do profeta Elias. É a tentação de ser um messias do poder. 

Mas, escreve o evangelista, ele não sabia o que estava dizendo. E aqui está a intervenção de Deus através da nuvem, imagem divina, e sua voz diz «Este é meu filho, o amado», o amado significa o herdeiro, «nele está tudo de mim». E, então, uma ordem imperativa «Ouça-o». Eles não precisam mais ouvir Moisés ou Elias e os ensinamentos deles devem ser filtrados e interpretados de acordo com os ensinamentos e as obras de Jesus. Aqui está o convite imperativo «Ouça-o». 

«E, de repente, olhando em volta, não viram ninguémAinda procuram Moisés e Elias porque é a tradição, o que lhes dá segurança, e encontram apenas Jesus e se sentem perdidos. Jesus ordena-lhes que não falem sobre o que viram, porque já experimentaram a condição do homem que passa pela morte, mas ainda não sabem o que será essa morte, a infame morte de cruz. 

Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.


Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

Não é de hoje que os seres humanos, pensando estar interpretando fielmente a vontade de Deus e seus projetos, apresentam um deus, uma religiosidade, uma vivência que não se assemelham, minimamente, com a verdadeira face de nosso Criador e de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Esse é o caso do messianismo. O que deveria ser, de fato, o Messias? Os judeus, inclusive os discípulos de Jesus, estavam convictos de uma imagem de messias-rei, messias-guerreiro, messias-soberano absoluto que restauraria os velhos e bons tempos do Israel antigo. O povo voltaria a ter independência, autonomia e soberania. Os invasores seriam expulsos e a “verdadeira tradição judaica” difundida e vivida por toda a população.

Ainda hoje, encontramos muitas pessoas que se dizem “cristãs”, mas que apresentam muita dificuldade em aceitar quem Jesus foi, de verdade, em seu tempo. A imagem que fazem de Jesus é mais romântica que real, mais idealizada que histórica, mais adocicada que profética, mais inofensiva que transformadora. É um cristianismo de apaziguamento psicológico e não de conversão de vida. Aqueles que embarcam nesse tipo de cristianismo, erram feio o objetivo, o caminho, e suas ações não ajudam a mudar, realmente, o mundo em que vivemos. É um cristianismo que “constrói cabanas para preservar o status quo, a situação desigual e injusta deste mundo em que vivemos”.

Porém, é muito interessante o modo como Jesus trata esses seus discípulos iludidos por um falso messianismo! Ele não os despreza, ele não os marginaliza, mas convida-os a estarem, ainda, mais próximos dele! Jesus quer ensiná-los a conhecer o verdadeiro Deus, o verdadeiro Messias. Errando, sendo corrigidos (como Deus corrigiu Pedro no Evangelho de hoje) e sendo amados, esses discípulos foram, aos poucos, compreendendo o sentido de seguir Jesus e de tê-lo por Mestre.

Será que tudo isso não tem muito a nos ensinar, nesses tempos de tanta polarização, divisão, visões e práticas equivocadas de cristianismo? 

Fonte: CENTRO STUDI BIBLICI “G. VANNUCCI” – Videomelie e trascrizione – II Domenica Quaresima – 28 febbraio 2021– Internet: clique aqui (acesso em: 27/02/2021).

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Desgraça pouca é bobagem

 Vejam, só, a lei que desejam aprovar na Câmara e no Senado

 Gonzalo Vecina

Médico sanitarista, professor da FSP-USP e da EAESP-FGV 

Não podemos permitir uma destruição tão grande como a que está em marcha no Congresso Nacional

Unidade de Terapia Intensiva (UTI) lotada na cidade de Araraquara, interior do Estado de São Paulo. A pandemia aumenta em ritmo alucinante no Brasil!

A pandemia está ganhando contornos cada vez piores, estamos tendo um brutal crescimento do número de casos, as UTIs estão cheias, os hospitais não conseguem receber todos os pacientes. Mas as ruas também estão cheias, as pessoas não usam máscaras e se aglomeram. Parece que tudo que se tem falado não é ouvido. É um clima de já passou. Vamos viver como se fossem os últimos dias.

Os governos de todos os níveis resolveram, com raras exceções, que não vão contrariar eleitores e vão deixar a vida correr... para o ralo.

Estamos batendo recorde em cima de recorde no número de mortos. As vacinas não chegam e pior: as poucas doses disponíveis terminaram em todo o País. Atraso na chegada da matéria-prima da China por culpa das autoridades federais do Itamaraty rompe com as programações de entrega de vacinas da Fiocruz e do Butantan. O Ministério [da Saúde], além:

* de propor o uso de drogas [medicamentos] que não funcionam,

* resolveu parar de financiar leitos de UTI – que estão em falta –,

* se recusa a comprar mais imunizantes, e

* se envolve em estéreis discussões sobre quem será responsável por reações adversas.

Os congressistas [deputados federais e senadores] querem colocar a Anvisa de joelhos, justo o único órgão federal que cumpriu com todas as promessas de celeridade e de verificação de segurança e eficácia de pelo menos três vacinas até hoje. Mas o líder do governo quer que a Anvisa fique de joelhos e aprove produtos sem estudos de fase 3. Só precisam ser aprovados em seus países de origem, independentemente do tipo de vigilância sanitária que tenham e, pior, independentemente de terem ou não doses para vender. Parece inacreditável, mas são as vacinas russa Sputnik V e a indiana da Bharat Biotech.

Mas não bastam essas desgraças todas, que estão evoluindo e destruindo a nossa capacidade de sobreviver à pandemia. Enquanto países como o Chile estão vacinando a maior parte da população, e europeus saem de severos isolamentos sociais, nós estamos passando por uma tempestade perfeita.

Mas o Congresso e o nosso presidente não estão satisfeitos, ainda tem mais coisas para destruir.

No passado pós-ditadura a sociedade brasileira se aproximou de criar um país melhor. Construiu um projeto de educação que ainda está longe do que precisamos, mas caminhamos, evoluímos um pouco e isso deve ser destruído. E, além de tudo, tem mais um problema: esse detestável SUS, que conseguiu evitar um total desastre sanitário ao longo da pandemia – ele tem de ser destruído.

Ministro da Economia Paulo Guedes (à esquerda) e Senador Márcio Bittar (MDB-AC) relator da PEC que extingue a obrigatoriedade da União, Estados e Municípios gastarem um percentual mínimo com saúde e educação. Um projeto bem ao gosto do governo!

No altar do deus do mercado, a saúde e a educação devem ser imoladas. Com o que sobrar, veremos como usar para construir um país “DE” poucos “E” para poucos. Se esquecem nossos legisladores que estamos longe da civilização e as conquistas sociais recentes da educação e da saúde somente foram possíveis graças às imposições constitucionais. Não podemos permitir que nossos representantes nos imponham uma destruição tão grande como a que está em marcha. 

Para saber mais sobre um terrível Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que está sendo apreciado pelo Congresso, clique aqui e aqui.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Saúde / Pandemia do Coronavírus – Quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021 – Pág. A11 – Internet: clique aqui (acesso em: 25/02/2021).

Querem nos dividir!

 Um câncer se instalou em nosso corpo eclesial e social; um câncer chamado Bolsonaro

 Pe. Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos

Arquidiocese de Londrina – PR 

Devemos ficar atentos e fiéis ao Evangelho de Jesus de Nazaré, dos pobres, dos miseráveis, da acolhida

Padre Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos - autor desta carta aberta

Queridos irmãos católicos “conservadores”! 

Creio que em nome dos valores que partilhamos, deveríamos fazer uma reflexão séria e desapaixonada. Poderíamos começar pelo seguinte:

* Não é a Campanha da Fraternidade ou o texto escrito por irmãos evangélicos, que está gerando uma polêmica dentro da Igreja Católica.

* Não é a questão da mentalidade ou formação teológica, ou até o histórico, das pastoras que o escreveram.

Nada disso nos teria incomodado, se esse texto tivesse sido escrito há sete anos atrás!

Tenho a certeza que teríamos lido o manual e feito algumas críticas corriqueiras que em nada afetariam o desenvolvimento da Campanha. Porém, 2021 não é um ano qualquer.

Um câncer se instalou no nosso corpo eclesial e social; um câncer chamado Bolsonaro! Que ameaça tornar-se uma metástase!

Não só está acabando com a nossa Amazônia e os órgãos de proteção ambiental, como é o responsável direto por essa mortandade de 240.000 brasileiros [hoje, mais de 250 mil].  Numa infelicidade total, entrou pior do que a covid-19, no nosso organismo eclesial e está destruindo as nossas células de proteção e a harmonia que tínhamos, apesar de tantas diferenças que sempre coexistiram na Igreja Católica.

O demônio existe sim. Ele tem vários rostos e vários nomes e ele entra para dividir, como se explica etimologicamente.

Para dividir e para destruir a obra de Jesus, mesmo que para isso tenha que se travestir em defensor da Santa Igreja Católica Apostólica! Nós conhecemos muito bem este inimigo; devemos ficar atentos e fiéis ao Evangelho de Jesus de Nazaré, dos pobres, dos miseráveis, da acolhida. Esse é o Jesus que venceu as três tentações e nos obriga a identificá-las constantemente e a continuar lutando contra esse mesmo demônio! 

Não tenhamos dúvidas! Bolsonaro é o grande divisor de águas:

* de um Brasil sério para um Brasil pária internacional,

* das políticas públicas e saída da fome, para a miséria e o retrocesso,

* da harmonia na religião e na política, para um radicalismo e uma polarização, alimentados por um gabinete do ódio. 

Não é a diversidade dentro da igreja entre conservadores e progressistas que está em causa! Isso sempre existiu!  O que está em causa, é uma força externa que conseguiu entrar no nosso organismo com o intuito de nos destruir, na linha dos romanos, divide et impera [= dividir para conquistar, em tradução livre] ou como diria Napoleão, divide ut regnes [= divida a fim de reinar, tradução livre]. 

Jair Bolsonaro, em campanha eleitoral, é acolhido por padres e leigos em sua visita à sede da Canção Nova, no Vale do Paraíba, em 2018

Alguns de nós, incautos e mal formados, estão se amparando nesse “mito” para se entrincheirarem e defenderem a sua “fé”! 

A prova do que estou dizendo, é a total anestesia ética perante aberrações gritantes desse demônio:

1) Ao avançar com a boiada sobre a Amazônia, tolerar e apoiar os inúmeros incêndios, tem o silêncio de católicos!

2) Ao desmantelar os principais órgãos de proteção ambiental e reduzir a pó a fiscalização, gerando a sensação de impunidade, tem a complacência a até aplausos dos mesmos!

3) Ao legislar compulsivamente a favor das armas, fazendo do país um exército civil, tem a anuência desses grupos.

4) Ao debochar do vírus Covid 19, negar a sua gravidade, provocar aglomerações, atrasar a compra de vacinas e gastar milhões em tratamentos impróprios, tem a euforia dos ditos conservadores.

5) E o que dizer da rachadinha da família?

6) Do réquiem da lava Jato?

7) Do Queiróz?

8) Das ameaças às Instituições Democráticas?

9) Da compra bilionária do Centrão?

10) Da velha política como norma em seu governo?

11) Dos impropérios e ameaças à Imprensa Livre?

12) E o silêncio covarde, perante as 700 toneladas de picanha e milhares de litros de cerveja consumidos pelo exército? 

Meus queridos amigos católicos conservadores! Há incongruências gritantes na vossa postura, que vos trai! Sei que vocês gostam de gritar contra o aborto, como se a vossa Igreja se omitisse! No entanto, ao desejarem bandidos mortos e chamarem pobres de vagabundos, vosso posicionamento cai por terra! 

A vida humana é para ser defendida de A a Z! Do início ao fim, passando pelo meio! Vida é vida! Vida digna para todos, com os seus direitos inalienáveis defendidos!

Ao defenderem o direito absoluto à propriedade, já estão subjugando o valor dessa vida humana a um pedaço de coisa qualquer! Ao abominarem o discurso da Igreja sobre justiça social, racismo estrutural, ou combate a qualquer discriminação e preconceito, já se afastam anos luzes, da Doutrina da Igreja que dizem defender, tão querida aos papas que também dizem admirar! 

Meus amigos católicos conservadores! Estão assustados com o Papa Francisco ou com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)?

Como se deixaram seduzir e guiar por esse engodo de questionarem a autoridade da vossa Família?

O Espírito sopra onde quer e provoca fidelidade ao ideário de Jesus e ao seu Evangelho. Foi assim no Vaticano II (que vocês não apreciam) e está sendo assim com Francisco. Não tenham medo! Essa foi a frase de João Paulo II na virada do ano 2000 e essa tem sido a bússola do atual timoneiro na cátedra de Pedro. Não caiam na tentação de ficar fora da vossa Igreja animada pelo Espírito Santo nesta longa manhã de nevoeiro que estamos passando.

Vocês se perderão agarrados às ferrenhas certezas que demonstram bem pouca fé!

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Diga-me com quem andas...

 Barões evangélicos são parceiros de projeto ultraconservador de Bolsonaro

 Bruno Lupion

Deutsche Welle – Brasil, 21-01-2021 

Entrevista com Ronilso Pacheco

Pastor auxiliar da Comunidade Batista em São Gonçalo (RJ) e ativista de direitos humanos. Autor do livro “Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e teologia em tempos de racismo, violência e opressão”, é hoje pesquisador da Fundação Ford e está terminando o mestrado em Teologia na Universidade Columbia, em Nova York (Estados Unidos) 

As igrejas evangélicas poderosas, que dispõem de presença na mídia e influência política, são hoje parceiras de um projeto "ultraconservador" do governo Jair Bolsonaro, que nega direitos e explora a fé dos mais pobres

RONILSO PACHECO

Os "barões da fé", porém, não representam a totalidade do público evangélico, e parte desses fiéis adota no seu cotidiano práticas de acolhimento e respeito das diferenças, na opinião do teólogo Ronilso Pacheco. 

Em entrevista à Deutsche Welle Brasil, Pacheco afirma que o vínculo entre igrejas evangélicas e a atuação política conservadora no país data da sua fundação, no século 19, por americanos brancos e racistas que perderam a Guerra da Secessão, migraram ao Brasil em missão evangelizadora e se aproximaram das elites locais. O vínculo com o poder fortaleceu-se na ditadura, consolidou-se na democracia e atingiu maior radicalismo sob Bolsonaro. 

"Há um conglomerado dos barões da fé, parceiros de um projeto ultraconservador e fundamentalista, negador de direitos e que se recusa ao diálogo inter-religioso. São parceiros de um projeto de poder que exclui os pobres, explorador da fé dos pobres", afirma Pacheco. Segundo ele, a atuação desses setores da igreja só é possível "traindo" a história de Jesus Cristo registrada na Bíblia, como alguém resistente à hierarquia do poder e movido pela missão de "destituir os poderosos, tirar a riqueza dos ricos e dar aos pobres". 

Pacheco identifica uma novidade na relação entre o que chama de igreja evangélica hegemônica e o poder sob a gestão Bolsonaro. Além dos tradicionais parlamentares da bancada evangélica, que buscam prestígio e espaço para as suas igrejas, houve a chegada de líderes religiosos interessados em fazer uma "guerra cultural" para influenciar a construção da identidade da sociedade brasileira. 

São representantes desse movimento no governo o ministro da Educação, Milton Ribeiro, pastor presbiteriano calvinista, o ministro da Justiça, André Mendonça, pastor presbiteriano, e a ministra Damares Alves, "uma evangélica pentecostal fundamentalista e ultraconservadora na condução de direitos humanos", diz Pacheco. "Tudo atravessado pela afirmação de uma supremacia cristã conservadora". 

Ele afirma, porém, que há na comunidade evangélica muitos exemplos de igrejas e pessoas que, por mais que não se identifiquem com a agenda de partidos de esquerda, adotam práticas progressistas no seu dia a dia. Para Pacheco, um "esforço metodológico e pedagógico" e uma abordagem "afetiva" poderia aproximar mais os evangélicos de agendas como direitos LGBT, liberalização de drogas e legalização do aborto. 

"Política e religião, queira ou não, sempre se misturam. Por isso, é melhor reconhecer isso e fazer uma opção que contribua para uma política que respeite os direitos humanos e a liberdade", diz. 

Eis a entrevista.

Ministros evangélicos presentes no governo Bolsonaro, da esquerda para a direita: Damares Alves (Direitos Humanos), André Mendonça (Justiça) e Milton Ribeiro (Educação)

Qual é o papel da religião na esfera pública?

Ronilso Pacheco: No contexto da América Latina e do Brasil, tem um papel fundamental para a formação da identidade da sociedade e da tradição popular. A religião serve como uma espécie de pano de fundo e orientadora de decisões, e pode ser determinante para legitimar ou deslegitimar uma determinada política. 

Isso não se choca com a laicidade do Estado?

Pacheco: Não, pois laicidade do Estado não é a neutralização da presença da religião, mas a harmonia e o diálogo entre diferentes expressões religiosas. O que fere a laicidade do Estado é a perspectiva de superioridade de uma determinada religião em detrimento da outra, o que tem sido um pouco a nossa tradição. 

Religião e política devem se misturar?

Pacheco: A ideia da separação entre religião e política tem muita influência da perspectiva iluminista, da idade da razão europeia, onde essas distinções são bem marcadas. Mas não faz sentido. Por exemplo, se levarmos em consideração a sociedade indígena, que tem uma forma de viver a política indissociável da perspectiva transcendental. Também é impossível separar o que é a vida política da perspectiva religiosa em algumas sociedades do continente africano.

Mesmo em contextos em que se prega um distanciamento entre a religião e a política, a perspectiva religiosa já se impregnou de maneira decisiva na política. A religião é um pano de fundo da perspectiva constitucional e da organização da sociedade. E também da perspectiva de luta e resistência, de pensar em alternativas. Nos assentamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) ou do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) há uma religiosidade forte, com ênfase na mística.

O movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos é indissociável de grandes lideranças das igrejas, principalmente das igrejas negras. Na América Latina não é diferente, se você pensar nos conflitos no Peru ou na Colômbia, e o papel que as igrejas têm de acolher e organizar a comunidade.

Política e religião, queira ou não, sempre se misturam. Por isso, é melhor reconhecer isso e fazer uma opção que contribua para uma política que respeite os direitos humanos e a liberdade, do que tentar fazer com que isso seja dissociável.

Você mencionou o MST e o MTST, que são movimentos de esquerda. Ao mesmo tempo, há movimentos e partidos de direita e extrema-direita vinculados a igrejas. A Bíblia abrange essas duas perspectivas ou é questão de interpretação?

Pacheco: Não é uma questão de interpretação, é uma questão de escolha das histórias que você quer dar ênfase. A Bíblia contém diversas narrativas sobre como Deus interage com as pessoas, ou como os povos interagem com Deus. Ambas [as perspectivas políticas] se expressam na Bíblia, ali há o contexto do mundo real, marcado por pessoas solidárias, mas também por déspotas, marcado por traidores e gente muito violenta, mas também por gente disposta a lutar por justiça.

Se você escolhe dar ênfase às histórias do Novo Testamento, às histórias de Jesus, não há crises de interpretação. Ao contrário, você é confrontado em como as opções de algumas lideranças [religiosas] são traidoras da memória de Jesus que está nos Evangelhos.

Não é passível de interpretação que Jesus foi acolhedor, alimentando a multidão e estimulando a partilha. Não é questão de interpretação que Jesus foi resistente à ideia de superioridade, de uma hierarquia de poder. No Evangelho de Lucas, Jesus fala que veio para libertar os cativos, para acolher os pobres. Não é passível de interpretação a fala de Maria, quando está grávida de Jesus e diz como que ele seria, de maneira bem expressa: ele virá para destituir os poderosos, tirar a riqueza dos ricos e dar aos pobres. A única maneira de burlar isso não é interpretação, é você trair essa memória.

Agora, você pode voltar ao Antigo Testamento e escolher, por exemplo, quando o povo de Israel invadiu um determinado território e assassinou seus habitantes para tomar conta dele. Você pode escolher usar isso para legitimar uma pretensão de poder. Mas as histórias em que Jesus está envolvido não são passíveis de interpretação, e são diferentes de qualquer perspectiva de superioridade e dominação. 

Encontro de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)

Por que a igreja evangélica é, hoje, predominantemente identificada com a direita?

Pacheco: Eu diria que é a igreja [evangélica] hegemônica. Eles têm tanto poder comunicacional, um império de mídia, que tomam conta da noção sobre o que é a identidade e a estratégia evangélica. Há um conglomerado dos barões da fé, parceiros de um projeto ultraconservador e fundamentalista, negador de direitos e que se recusa ao diálogo inter-religioso. São parceiros de um projeto de poder que exclui os pobres, explorador da fé dos pobres.

Esse grupo acabou se tornando um rosto do que seria a igreja evangélica no Brasil, mas a igreja evangélica é muito maior e mais complexa que isso. Ela está presente de maneira cotidiana nas periferias das cidades. E, sem se olhar no espelho e dizer "sou progressista", sua prática diária está mais direcionada a agendas progressistas, no sentido do acolhimento, da solidariedade social, do respeito à diversidade, porque está numa periferia com uma complexidade de pertencimentos.

Não que não existam igrejas e lideranças ultraconservadoras a fundamentalistas nas periferias. Mas não diria que isso é a igreja evangélica no Brasil, pois seria desonesto com muitos esforços no território nacional, desde nas comunidades evangélicas do sertão a igrejas importantes nos grandes centros urbanos, que fazem um caminho completamente diferente, inclusive pagando um alto preço por isso. 

À esquerda, temos o "bispo" Edir Macedo e, à direita, o pastor Silas Malafaia, ambos muito próximos ao poder, durante o governo Bolsonaro

Como se deu a aliança entre a igreja evangélica hegemônica e a direita? Há paralelos com o que ocorreu nos Estados Unidos?

Pacheco: Os paralelos são muitos. A presença evangélica no Brasil tem uma herança do universo evangélico conservador dos Estados Unidos. A formação da nossa igreja evangélica se dá com uma imigração significativa de evangélicos cristãos do sul dos Estados Unidos, que perdem a Guerra de Secessão [1861-1865] e vão fazer missões no Brasil. Eles têm um projeto de evangelismo, conquistar territórios, povos, converter almas, abrir novas igrejas. E é um projeto profundamente conservador, inclinado à escravidão como parte da economia. É uma igreja que cresce associada à perspectiva elitista e de poder. Claro que há fissuras, mas há essa influência.

No início do século 20, sobretudo com a ampliação do campo pentecostal, mais ligado à Assembleia de Deus, eles constroem uma relação com governadores, presidentes, e isso se intensifica durante a ditadura militar. Há um apoio forte à ditadura de algumas igrejas, como as convenções da Assembleia de Deus. Essa parceria atravessa a ditadura e entra na redemocratização. O [deputado] Mateus Iansen, da Assembleia de Deus, foi o autor da emenda que permitia a prorrogação do mandato de José Sarney de quatro para cinco anos. Em seguida, foi beneficiado com uma concessão de rádio. Tudo isso para dizer que estamos falando de uma longa jornada, não é algo do governo Bolsonaro. 

O que há de novo na aproximação de parte da igreja evangélica com a extrema direita de Trump e Bolsonaro?

Pacheco: Nos Estados Unidos, há uma convicção do nacionalismo cristão de que ele deve pautar a identidade nacional. Há um mito, sobretudo entre os evangélicos brancos do sul dos Estados Unidos, que eles foram um vencedor moral da Guerra de Secessão, pois têm os valores mais nobres, respeitam os valores cristãos, têm amor à Bíblia e à família. A extrema direita nos Estados Unidos foi construída a partir desse nicho.

No Brasil, se for apontar algo novo, é a maneira como o grupo neocalvinista e calvinista conservador conseguiu fazer parte desse governo [Bolsonaro] de uma maneira significativa, dando outro tom para a atuação da extrema direita. Se já tínhamos a forma mais tradicional dessa influência com a bancada evangélica, com políticos que vêm de longas décadas e têm o objetivo de manter seu poder e influência, o grupo neocalvinista e calvinista conservador traz outro elemento, conectado com o que acontece nos Estados Unidos: assumir uma guerra cultural. Mais do que ter poder e recursos para sua igreja, é como influenciar na construção da identidade da sociedade brasileira. Então, a disputa está na educação, na cultura.

Por isso, mais do que tomar conta do Legislativo, o importante é fazer as disputas certas nesses lugares e estar na área da educação, na área da cultura, na Suprema Corte, para construir uma identidade cultural que marque a supremacia cristã conservadora.

O governo Bolsonaro deu espaço a essa investida, surgiu a oportunidade de não ter vergonha de assumir que a disputa é por uma supremacia cristã. Há a volta do discurso da cristofobia e um presidente que verbaliza isso, inclusive na ONU.

Há postos-chave do governo ocupados por nomes que se orientam por essa lógica. Você tem um pastor presbiteriano calvinista no Ministério da Educação [Milton Ribeiro], um pastor presbiteriano no Ministério da Justiça [André Mendonça], um católico ultraconservador no Ministério das Relações Exteriores [Ernesto Araújo] e uma evangélica pentecostal fundamentalista e ultraconservadora na condução de direitos humanos [Damares Alves], fazendo a disputa do que é direitos humanos e do que não é direitos humanos. Tudo atravessado pela afirmação de uma supremacia cristã conservadora, indiferente ao debate da tolerância e do diálogo inter-religioso. 

Culto promovido pela Bancada Evangélica nas dependências do Congresso Nacional

Qual é a representatividade da visão progressista hoje na igreja evangélica?

Pacheco: É um número muito significativo, mas conceituo o evangélico progressista de maneira mais aberta. Se você perguntar se ele é progressista, ele provavelmente vai dizer que não, ou que não sabe o que é isso. Oriento-me mais pela prática e pela ética de movimentos e grupos de pessoas do que propriamente um compromisso com uma agenda.

Há muitas comunidades importantes em várias localidades, sobretudo nas periferias. Como por exemplo a Igreja Batista do Pinheiro, que fica em Maceió e foi expulsa da Convenção Batista Brasileira porque passou a aceitar casais homoafetivos na sua congregação e dar a eles o direito de participar da liturgia do culto. Há evangélicos fazendo isso sem alarde, que são acolhedores com o povo LGBTQI+. Há comunidades que têm relação de amizade com lideranças religiosas de outras tradições, como de matriz africana, à revelia dos ataques diários sofridos por muitos terreiros. Essa rede de solidariedade está além dos debates, por exemplo, sobre o aborto. Quando a realidade do aborto chegar, a comunidade vai pensar no que fazer. Ela não está dentro de um debate de legalizar ou não legalizar o aborto. 

E como avalia a relação atual entre os partidos políticos de esquerda e centro-esquerda com o público evangélico?

Pacheco: Esse grupo ainda está meio perdido. As derrotas têm sido sucessivas, e há impossibilidade de comunicar e construir alternativas desde o fim da era Lula. No primeiro mandato Lula, houve uma participação mais expressiva de evangélicos progressistas.

Também tem um pouco de uma mentalidade iluminista da esquerda, no sentido de ser dona da razão, de saber propor e apontar os caminhos, de decidir o que é melhor na disputa pelos direitos humanos. Ou de empurrar determinadas agendas que são difíceis de entender, se você não gastar tempo em como tornar aquilo acessível e mostrar que é importante para a sociedade.

O campo progressista de esquerda está com muito receio desse diálogo, há muito pisar em ovos, mas está aberto a aprender que caminhos podem ser construídos. 

É forte e viva a presença evangélica nas periferias urbanas brasileiras

O campo progressista tem chance de ampliar seu apoio entre os evangélicos se continuar defendendo pautas como direitos da comunidade LGBT e liberalização das drogas e do aborto, ou teria que reduzir o apoio a esses temas?

Pacheco: Não tem como reduzir o apoio, porque essa é a identidade progressista, são agendas das quais não se pode abrir mão. É muito mais pensar em como fazer isso ser compreendido e importante no dia a dia.

Alguns lidam com isso na realidade do dia a dia, como em relação à liberação das drogas. Há pessoas que perderam o filho, vizinhos, parentes, amigos. Mas não é imaginar que você vai fazer uma cartilha sobre a liberação das drogas com uma linguagem voltada para o público evangélico e isso vai resolver o problema de comunicação.

Precisa estar vinculada à construção de uma relação afetiva.

O campo fundamentalista conservador tem uma aproximação em uma linguagem mais afetiva, e o campo progressista tem uma linguagem mais estética. E, às vezes, a estética não comunica. Precisa de um esforço metodológico e pedagógico de se aproximar e aderir às diversas camadas da comunidade e de fazer com que uma agenda seja compreendida. A mesma coisa com relação à questão do aborto e à questão LGBT. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021 – Internet: clique aqui (acessado em: 23/02/2022).

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O valor dos arrepios

 A dor nos torna humanos

 Marco Ventura

La Lettura, 21-02-2021 

Entrevista com Byung-Chul Han

Estudou Filosofia, Cultura alemã e Teologia em Freiburg e Munique e ensinou Filosofia e Estudos Culturais na Universität der Künste de Berlim 

Em 2020, ele dedicou um livro ao tema do sofrimento que fala à geração da pandemia. O livro denuncia uma sociedade que se autodestrói ao tentar se transformar em "um oásis permanente de bem-estar que pode ser obtido por via médica"

BYUNG-CHUL HAN

Autor celebrado pela grande imprensa ocidental, Han ficou conhecido por sua crítica à contemporaneidade, em particular ao neoliberalismo e à transformação digital. Em 2020, ele dedicou um livro ao tema do sofrimento que fala à geração da pandemia. Com o título Palliativgesellschaft. Schmerz heute ("A sociedade paliativa. A dor hoje"), o livro denuncia uma sociedade que se autodestrói ao tentar se transformar em "um oásis permanente de bem-estar que pode ser obtido por via médica". 

Em um texto que parecerá altamente questionável para muitos, Han propõe uma crítica fundamental da prioridade sanitária na emergência de pandemia e uma reavaliação igualmente fundamental da dor. O livro chega às livrarias italianas (ainda sem previsão de publicação no Brasil) pela Einaudi Stile libero com o título La società senza dolore (A sociedade sem dor) e o subtítulo Porque banimos o sofrimento de nossas vidas, enquanto a Nottetempo publica o anterior La scomparsa dei riti (O desaparecimento dos ritos). “La Lettura” faz uma entrevista virtual com o autor. 

Eis a entrevista. 

Capa da edição original, em alemão, do livro: "A Sociedade Paliativa. A Dor Hoje"

A sociedade seria dominada pela algofobia, "medo generalizado da dor". Somos "hipersensíveis" como a princesa na ervilha, você escreve que tendemos a viver em "estado de anestesia permanente". Em que sentido, então, a nossa é uma sociedade sem dor?

Byung-Chul Han: Não estou dizendo que vivemos em uma sociedade sem dor. Hoje temos até uma epidemia de dores crônicas. Eu digo que a dor tem uma dimensão social e que, portanto, qualquer crítica à sociedade tem que se confrontar com a dor. Em vez disso, hoje a dor é reduzida aos aspectos médicos e farmacológicos. E quando é colocada exclusivamente nas mãos da medicina, a gente não a entende mais. 

Nesse sentido, você acusa o neoliberalismo.

Han: Na sociedade neoliberal pós-moderna, as tensões psíquicas aumentam por meio da pressão por eficiência ou outras motivações, e isso pode levar à dor crônica. Comparei a autoexploração neoliberal a um servo que pega o chicote das mãos de seu senhor e se chicoteia para ser o senhor, aliás, para ser livre. Esse impulso neoliberal pela performance e a autoexploração deixa-nos doentes. 

Nosso problema com a dor está ligado à solidão?

Han: No livro, menciono o cuidado primário da cura em Viktor von Weizsäcker. Quando a irmãzinha vê seu irmãozinho sofrendo, ela conhece uma saída. Ela toca onde dói. O contato aplaca a dor. Hoje vivemos em uma sociedade atormentada por uma crescente solidão, sem contato ou dedicação humana. Distanciamento social! Eu me pergunto se a dor não é o grito do corpo que pede proximidade e dedicação, até mesmo amor. O cuidado primário de cura não pode ser substituído por um analgésico. 

Capa da edição italiana do livro de Byung-Chul Han. Tradução: "A Sociedade sem Dor. Porque Expulsamos a Dor de nossas Vidas"

Você denuncia uma "sociedade paliativa" cúmplice de uma "ideologia do bem-estar permanente". Mas querer se livrar da dor, querer pelo menos limitar a dor, não é um objetivo legítimo?

Han: Toda experiência intensa é dolorosa, mesmo o amor intenso. Hoje, evitamos as intensidades por medo da dor. Até mesmo o amor hoje deve ser despotencializado em uma fórmula voltada para o consumo e o prazer. Qualquer percepção intensa é dolorosa. Dolorosamente belo não é uma contradição. Percebemos o mundo hoje através do smartphone, que torna tudo consumível e disponível e reduz tudo à dimensão da tela. Acredito que o smartphone seja um analgésico digital. 

No livro, você não fala da medicina paliativa.

Han: Utilizo a expressão “sociedade paliativa” em sentido metafórico, para designar uma sociedade que não consegue lidar com a dor. A sociedade paliativa nada tem a ver com medicina paliativa. De resto, insisto que proximidade, dedicação e contato são mais importantes do que os analgésicos. O setor paliativo de uma clínica não pode substituir a dedicação e o amor. A história que o paciente conta ao médico no início do tratamento norteia o processo de cura. Qual o médico que pode dizer de si mesmo que sabe ouvir?

Hoje, ouvimos cada vez menos.

No meu livro L’espulsione dell’Altro (A expulsão do Outro, Nottetempo, 2017), dediquei um capítulo inteiro à arte da escuta. O capítulo começa com as palavras:

“No futuro, talvez haja uma profissão chamada o ouvinte. Alguém que presta atenção no outro mediante pagamento. Você vai ao ouvinte, caso contrário não há ninguém disposto a escutar o outro”.

A pandemia desempenha um papel importante em seu livro.

Han: Eu escrevi que a pandemia transforma a sociedade em uma quarentena na qual a vida enrijece-se como uma sobrevivência. A vida não é sobreviver. A pandemia aguça tendências sociais que já estão presentes. Entre elas está a histeria da saúde. Todas as forças vitais estão sendo usadas hoje para prolongar a vida. Mesmo na pandemia, não deveríamos reduzir a vida à sobrevivência. Apesar de tudo, devemos encontrar possibilidades para celebrar a vida: é importante, justamente na pandemia. Acho problemático que a virologia esteja em primeiro lugar hoje.

Em vez disso, psicólogos, pedagogos, sociólogos, teólogos, filósofos e até artistas deveriam estar envolvidos nas decisões para combater a pandemia.

Deveria se proceder a uma avaliação ampla dos bens que estão em jogo nos vários aspectos da vida, em vez de absolutizar a saúde e a sobrevivência, sacrificando a elas todo o resto. 

Na pandemia, você escreve, "a fé foi sacrificada no altar da sobrevivência" e "a virologia desautoriza a teologia", e novamente "a saúde é elevada como uma nova divindade". Sem dor não há mais Deus?

Han: Eu acredito que os seres humanos alcançam o auge da beleza quando oram. É por isso que gosto de ir às igrejas. Sem dor, não conseguirão orar. Pode ser que um dia vivamos em um mundo sem dor. O "novo mundo" do escritor Aldous Huxley não conhece a dor. Por se tratar de uma sociedade paliativa, o Estado distribui a droga denominada soma para aumentar a sensação de bem-estar.

Mas uma vida sem dor não é humana.

Por isso concluo meu livro com as palavras: “O homem se acaba para sobreviver. Talvez consiga alcançar a imortalidade, mas ao preço da vida”. 

Em sua opinião, dor é "verdade", "vínculo", "diferença", "realidade".

Han: Na introdução do livro coloco uma citação de Walter Benjamin: “A dor representa para o homem uma espécie de riacho inesgotável que leva ao mar. O prazer se apresenta onde quer que o homem se esforça em continuá-lo, é como um beco sem saída”. Cada dor nos surpreende como uma corrente navegável que leva ao mar. A dor nos parece justamente como um beco sem saída, que em nenhum caso pode ser evitado. Meu livro chama a atenção para o fato de que a dor faz parte da vida humana. Onde as separações causam sofrimento, os laços anteriores se revelam como verdadeiros.

Apenas a verdade dói.

Se as separações não provocam dor, os laços não haviam sido verdadeiros. 

Ao contrário da dor, "a digitalização é anestesia". Justamente sobre esse ponto, você diz, é que está a diferença entre pensamento e inteligência artificial. Nesse sentido, sua afirmação "nunca haverá algoritmos da dor" é muito interessante.

Han: A primeira imagem do pensamento é o arrepio. Por isso, a inteligência artificial é estranha ao pensamento, porque nunca tem arrepios. Os arrepios são uma expressão de comoção e calafrio. A consciência que não provoca arrepios equivale a reduzir a objeto. É incapaz de experiência em sentido empático, o que em si é dor. 

Uma vez destruída a "dimensão social da dor", em sua opinião sobra apenas uma "sociedade da sobrevivência" que, como a pandemia demonstraria, "será forçada a renunciar aos princípios liberais". Não há mais vida, apenas "não-morte". Não é pessimista demais?

Han: Não sou pessimista. Pelo contrário: espero da vida mais do que sobrevivência.

A sociedade dominada pela histeria de sobrevivência é uma sociedade de “não-mortos”.

Costumo dizer: estamos muito vivos para morrer, muito mortos para viver. Quando nos preocupamos apenas com a saúde e a sobrevivência, nos assemelhamos ao vírus, um ser não-morto que se multiplica, ou seja, sobrevive, sem viver. 

Mas, dessa forma, você corre o risco de cair na atitude oposta à algofobia, na glorificação da dor como caminho para uma espiritualidade superior.

Han: Eu não glorifico a dor. Eu diria: a vida humana sem dor é incompleta. Dor e felicidade são, como diz Nietzsche, irmãos gêmeos, que crescem juntos ou permanecem pequenos juntos. Se a dor for inibida, a felicidade se acomoda em uma abafada sensação agradável. 

Eu insisto. Parece ouvir-se o eco de um "dolorismo" muito problemático do ponto de vista ético.

Han: A dor também faz parte da nossa relação com os outros. Um capítulo do meu livro é dedicado à ética da dor. Hoje costumamos falar sobre o desaparecimento da empatia. Eu me perguntava: de onde vem essa crescente perda de empatia? Por que somos cada vez menos receptivos aos outros?

Acredito que hoje em nosso Ego tornamos o outro um objeto disponível, pronto para o consumo. O outro, como objeto, não sente dor.

Ao contrário, a pandemia nos coloca com força diante da dor.

Han: A pandemia reforça o desaparecimento da empatia. O outro é agora um possível portador do vírus, do qual convém distanciar-se. A escuta, de que falava antes, pressupõe que eu me exponha ao outro. O aumento da sensibilidade para o outro, o poder de sofrimento com o outro, tem algo de doloroso.

O amor como relação empática com o outro nos assalta e nos fere.

O amor como consumo, por outro lado, não comporta dor. Sem dor, não temos acesso ao outro. É por isso que falo de dor para com o outro. Hoje perdemos a capacidade de perceber o outro em sua alteridade. E o outro, privado da sua alteridade, apenas se deixa consumir. 

Traduzido do italiano por Luisa Rabolini. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021 – Internet: clique aqui (acessado em: 22/02/2022).