«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 30 de maio de 2020

Solenidade de Pentecostes – Ano A – Homilia

Evangelho: João 20,19-23

Clique sobre a imagem, abaixo,
para assistir à narração do Evangelho deste Domingo:


José María Castillo
Teólogo espanhol

CREMOS, DE FATO, NO ESPÍRITO?

No conjunto do Novo Testamento, fica patente que a vida e a salvação, que Deus concede ao mundo, são antes de tudo, iniciativa do Pai. Porém, esse projeto não se realiza somente por meio de Jesus. Além da ação de Jesus, essa é uma obra, também, do Espírito. Por isso, o evangelho Segundo João, ao relatar a morte de Jesus, diz que este, quando tudo já estava “consumado”, “inclinando a cabeça, entregou o Espírito” (João 19,30). E no domingo, mesmo, da Páscoa, como nos recorda o evangelho hoje, o Ressuscitado entrega de novo o Espírito aos discípulos (João 19,22).

No Quarto Evangelho, o Espírito é fruto da vida, morte e ressurreição de Jesus.
O Espírito é prolongamento e plenitude da obra de Jesus.

No livro dos Atos dos Apóstolos, relatam-se três vindas do Espírito.

A primeira, no dia de Pentecostes (Atos 2,1-11), que produz como fruto o efeito contrário do que sucedeu no mito da torre de Babel (Gênesis 11,1-9): a divisão de linguagens expressa na incomunicação dos humanos, enquanto que a vinda do Espírito faz com que aqueles que falam línguas distintas, se entendam.

A segunda vinda, quando os apóstolos saem do cárcere e se reúnem com a comunidade (Atos 4,31): a presença do Espírito produz a “livre audácia” ou “valentia” (parresía) para anunciar o Evangelho.

A terceira vinda, produziu-se no dia em que Pedro admitiu os primeiros pagãos na Igreja (Atos 10,44-46): o Espírito não está associado a uma cultura, a uns ritos ou a uma religião, mas transcende todos os limites que os seres humanos intentam pôr a Deus.

A Igreja fala, com frequência, do Espírito, porém, na prática, dá a impressão que crê mais na eficácia do poder e do dinheiro que na força do Espírito. Não acontece isso a todos nós, que cremos? Isso se nota, sobretudo, nos tempos de crise de fé. E em situações de crise econômica e política. É exatamente a experiência que estamos vendo e apalpando, agora mesmo, na sociedade e na Igreja.

 
José Antonio Pagola
Biblista e Teólogo espanhol

VIVER DEUS A PARTIR DE DENTRO

Há alguns anos, o grande teólogo alemão Karl Rahner atrevia-se a afirmar que o principal e mais urgente problema da Igreja dos nossos tempos é a sua “mediocridade espiritual”. Estas eram as suas palavras: o verdadeiro problema da Igreja é “continuar com resignação e tédio cada vez maiores pelos caminhos habituais de uma mediocridade espiritual”.

O problema não parou de se agravar nessas últimas décadas. De pouco serviram as intenções de reforçar as instituições, salvaguardar a liturgia ou vigiar a ortodoxia. No coração de muitos cristãos está se apagando a experiência interior de Deus.

A sociedade moderna apostou pelo “exterior”. Tudo nos convida a viver a partir de fora. Tudo nos pressiona para nos movermos com rapidez, sem pararmos em nada nem em ninguém. A paz já não encontra fendas para penetrar até o nosso coração. Vivemos quase sempre na superfície da vida. Estamos esquecendo o que é saborear a vida a partir de dentro. Para ser humana, à nossa vida falta uma dimensão essencial: a interioridade.

É triste observar que tampouco nas comunidades cristãs sabemos cuidar e promover a vida interior. Muitos não sabem o que é o silêncio do coração, não se ensina a viver a fé a partir de dentro. Privados da experiência interior, sobrevivemos esquecendo a nossa alma: escutando palavras com os ouvidos e pronunciando orações com os lábios, enquanto o nosso coração está ausente.

Na Igreja fala-se muito de Deus, mas onde e quando escutam os crentes a presença silenciosa de Deus no mais fundo do coração? Onde e quando acolhemos o Espírito do Ressuscitado no nosso interior? Quando vivemos em comunhão com o Mistério de Deus a partir de dentro?

Acolher o Espírito de Deus quer dizer deixar de falar só com um Deus a quem quase sempre colocamos longe e fora de nós, e aprender a escutá-lo no silêncio do coração. Deixar de pensar em Deus apenas com a cabeça, e aprender a percebê-lo no mais íntimo do nosso ser.

Essa experiência interior de Deus, real e concreta, transforma a nossa fé. É surpreendente, como se pôde viver sem descobrir isso antes. Agora se sabe por que é possível acreditar, inclusive, numa cultura secularizada. Agora se conhece uma alegria interior nova e diferente. Parece-me muito difícil manter por muito tempo a fé em Deus no meio da agitação e frivolidade da vida moderna, sem conhecer, ainda que seja de forma humilde e simples, alguma experiência interior do Mistério de Deus.

Traduzido do espanhol por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fontes: CASTILLO, José María. La religión de Jesús: comentario al evangelio diario – 2020. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2019, páginas 195-196; PAGOLA, José Antonio. La Buena Noticia de Jesús – Ciclo A. Boadilla del Monte (Madrid): PPC, 2016, páginas 123-125.

Catolicismo pós-pandemia

Quatro características do catolicismo
pós-pandemia

Christopher Lamb
The Tablet
28-05-2020

O catolicismo que emergirá da crise sob a liderança do Papa Francisco
será mais enxuto e mais claro em sua missão
Discurso do Papa Francisco no final da Concelebração Eucarística ...
PAPA FRANCISCO

A pandemia da Covid-19 terá repercussões duradouras para a Igreja.

Uma pandemia virulenta pode ter forçado os edifícios da Igreja ao redor do mundo a fecharem, mas a própria Igreja nunca fecha. Como Jesus nos diz em Mateus 24,35, “o céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”.

O Pentecostes, o aniversário da Igreja, é um momento apropriado para refletir sobre que tipo de missão e testemunho surgirá da crise e sobre como o Papa Francisco avançará a sua visão para a evangelização missionária quando a tempestade da Covid-19 começar a enfraquecer.

O que estamos vivendo agora é uma espécie de metanoia e temos a chance de começar. Então, não deixemos que ela escape de nós. Sigamos em frente”, disse Francisco em entrevista à The Tablet no mês passado.

Em dois documentos proféticos, seu manifesto para este papado, Evangelii gaudium, publicado em 2013, seguido dois anos depois pela sua encíclica Laudato si’, um poderoso chamado a proteger o mundo natural, o papa oferece um mapa para atravessar a crise e rumo ao futuro.

O coronavírus suspendeu a vida “normal’ da Igreja, com muitas pessoas ainda privadas de acesso aos sacramentos. Foi uma prova de fé que alguns países não viam há séculos. Após semanas de confinamento, os católicos agora estão gradualmente retornando às igrejas, participando da missa e recebendo os sacramentos, mas apenas de uma forma altamente restrita. É improvável que isso mude em breve, e a Igreja deve se adaptar à nova situação. As coisas não voltarão facilmente a como eram antes.

“Este é um momento para reiniciar”, diz Augusto Zampini-Davies, padre argentino que o papa pediu para desempenhar um papel de liderança na Comissão Covid-19 do Vaticano, acrescentando: “O que é essencial? Essa é a questão. O que é essencial que a Igreja retome, regenere e permita que o Espírito Santo acenda, como dimensão essencial do cristianismo? Se Cristo está caminhando conosco neste momento trágico, aonde Ele quer nos levar?”
Manchester: Launch of Centre for Theology and Justice – Connecting ...
PE. AUGUSTO ZAMPINI-DAVIES

As dioceses e as paróquias têm visto sua renda cair em queda livre, o que está levando à perda de empregos e a algumas instituições a enfrentar o fechamento. Como escreveu Stephen Bullivant no início deste mês na The Tablet, é provável que o declínio de longo prazo na participação nas missas na Europa e nos Estados Unidos seja acelerado pela pandemia.

Razões de esperança

Mas também há razões de esperança. O coronavírus revelou uma fome de fé e mostrou que a Igreja atende a uma necessidade essencial. Uma recente pesquisa da ComRes apontou para isso, quando constatou que um quarto dos adultos no Reino Unido havia assistido ou ouvido um rito religioso durante o confinamento. Mas a medida da saúde da Igreja nunca pode se basear apenas nos números do comparecimento à missa ou em uma grande presença institucional. “Não somos chamados a ter sucesso, mas a ser fiéis”, costumava dizer Madre Teresa de Calcutá.

Outro líder profético do século XX, o falecido cardeal Carlo Maria Martini, dizia desta maneira: “Jesus pergunta: será que o Filho do Homem, quando voltar, encontrará fé? Ele não pergunta: ‘Encontrarei uma Igreja grande e bem organizada?’”.

Para Francisco, a crise não é uma oportunidade para reestruturar as instituições.
É um momento para refletir e perguntar o que pode ser feito para garantir que
todos os aspectos da vida eclesial se concentrem na evangelização missionária,
para que ela se aproxime da Igreja dos primeiros séculos.

O derrotismo, declara Francisco na Evangelii gaudium, “nos transforma em pessimistas lamurientos e desencantados com cara de vinagre” [n. 85]. O papa quer:
* uma Igreja voltada para fora,
* em permanente estado de missão e
* focada nos pobres,
* em vez de ter um olhar voltado para dentro e autorreferencial.

“Não gastem tempo e recursos demais olhando-se no espelho, elaborando planos autocentrados nos mecanismos internos, em funcionalidades e competências do próprio aparato. Olhem para fora”, disse o papa em uma mensagem enviada às Pontifícias Obras Missionárias na semana passada. “Quebrem todos os espelhos de casa!”
Un prix « Carlo Maria Martini » pour encourager l'étude des ...
CARLO MARIA MARTINI (1927-2012)
Cardeal, biblista, teólogo e escritor italiano

1. Simplicidade missionária

Então, como a Igreja emergirá da pandemia e como será? Eu sugiro que haverá quatro “marcas” da Igreja no mundo pós-Covid-19.

A primeira é a simplicidade missionária. O coronavírus está forçando a Igreja a se concentrar em sua mensagem principal. Ao longo do seu pontificado, a mensagem do papa à Igreja tem sido simples: concentrar-se em levar as Boas Novas de Jesus Cristo às “periferias”, aos lugares onde se encontram os mais vulneráveis, os mais pobres e os esquecidos.

Uma Igreja de discípulos missionários será marcada pela sua simplicidade. Não “erigirá obstáculos” para as pessoas que buscam a fé. “Por que complicar algo tão simples?”, pergunta o papa na Evangelii gaudium ao falar sobre o clamor dos pobres e a necessidade da misericórdia de Deus. “Jesus nos ensinou este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com os seus gestos. Para que ofuscar o que é tão claro?” [n. 194]. Essa Igreja da simplicidade missionária também será caracterizada pela alegria em meio às dificuldades e por uma abertura ao Espírito Santo, o agente da verdadeira reforma. “A alegria se adapta e se transforma, mas sempre permanece”, enfatiza o papa.

2. Foco nos pobres

A segunda “marca” da Igreja emergente será que, embora possa ser menor, será mais focada nos pobres. É inevitável que a crise econômica global causada pelo confinamento levará a uma “peneiração” de certos órgãos e instituições da Igreja e o fechamento de algumas paróquias e atividades, por causa da queda na renda e nos números.

Mas, ao longo da história da Igreja, houve uma “poda” seguida por um novo crescimento. Agora é a hora de discernir quais estruturas “podem chegar a condicionar um dinamismo evangelizador”, como Francisco afirma, e quais o servem [n. 26].

Se a Igreja for menor, será caracterizada pelo serviço:
* da ajuda aos destituídos até
* a educação dos mais necessitados,
* passando pelo fato de estar ao lado daqueles que lidam com a sua saúde mental.
O desemprego e as dificuldades financeiras que ocorrerão por causa da Covid-19 e que afetarão mais os mais pobres tornarão a missão social da Igreja mais vital do que nunca.

Uma instituição mais ágil, mais clara em suas prioridades, mais capaz de responder às necessidades maiores pode agir como fermento na sociedade. Jesus, disse o papa à comunidade católica de Marrocos no ano passado, “colocou-nos no meio da sociedade como um punhado de fermento: o fermento das Bem-aventuranças e do amor fraterno, pelo qual, como cristãos, todos podemos nos unir para tornar presentes o seu Reino”.

3. Relação renovada com o mundo natural e a ciência

A terceira marca que caracterizará a Igreja no mundo pós-Covid-19 será uma relação renovada com o mundo natural e com a ciência. Ao fechar os edifícios da igreja e suspender suas liturgias, as lideranças da Igreja estavam respondendo a conselhos científicos.

A fé não se opõe à razão ou à ciência. A relação entre fé e ciência é de enriquecimento mútuo. Francisco já demonstrou isso com a Laudato si’, que reúne a espiritualidade de Francisco de Assis e a melhor ciência sobre a proteção do ambiente.

E funciona nos dois sentidos. Brune Poirson, ministro da Ecologia da França e não crente, elogiou a Laudato si’ – que neste mês completou seu quinto aniversário – dizendo à publicação francesa La Vie na semana passada que não pode haver “transição ecológica” sem uma compreensão do transcendente.
Municipalities: Brune Poirson does not want to be a candidate in ...
BRUNE POIRSON
Ministra da Ecologia da França

“Desde o início, a resposta pastoral de papa Francisco à pandemia levou em consideração as recomendações de cientistas e especialistas médicos”, apontou Richard Galliardetz, presidente do Departamento de Teologia do Boston College. “Uma das características mais notáveis da encíclica Laudato si’ do Papa Francisco foi a atenção que ela dedicou às ideias da ciência moderna.”

Galliardetz levanta uma pergunta surpreendente: “O catolicismo poderia sair da pandemia, sob a liderança de Francisco, situado de forma singular para demonstrar ao mundo moderno que a crença na ciência moderna não precisa ser sacrificada sobre o altar da crença religiosa?

4. Criatividade litúrgica e pastoral

A quarta característica, e talvez a mais delicada, será a criatividade litúrgica e pastoral. A Igreja já está encontrando novas formas de levar os sacramentos e a mensagem do Evangelho aos fiéis no contexto das restrições à saúde pública.

“O desafio mais difícil é a liturgia:
tudo parece estar focado na missa e
não em outras experiências litúrgicas possíveis”,
explicou Massimo Faggioli, historiador da Igreja e professor de teologia 
na Villanova University.

“Isso mostra os limites da recepção dos ensinamentos do Vaticano II sobre as Escrituras.”

É provável que os ritos virtuais continuem sendo populares, e, à medida que as restrições forem levantadas, as pessoas poderão ir à missa com menos frequência. O mundo pós-Covid-19 exigirá que os católicos assumam mais responsabilidade pela própria fé, exigindo uma mudança para um discipulado ativo em vez de serem meramente “consumidores religiosos” passivos.

A criatividade será mais importante, como o surgimento de:
* missas ao ar livre,
* liturgias domésticas,
* orientação espiritual via Zoom e outras inovações.
Como ressalta o Pe. Zampini-Davies, “nós não somos os donos da graça de Deus”.
Theologian: Postponement of sex abuse norms shows Francis-US ...
MASSIMO FAGGIOLI
Historiador da Igreja

Há um perigo, segundo Faggioli, de que a pandemia não apenas acelere as tendências secularizantes, mas também force uma desaceleração de uma das principais maneiras pelas quais o Papa Francisco espera dar vida à Igreja prevista pelo Concílio Vaticano II: a sinodalidade.

Grandes reuniões da Igreja, como os sínodos, não serão possíveis em curto prazo. A Igreja australiana já suspendeu por 12 meses o Concílio Plenário que estava preparando para realizar em outubro deste ano. “Roma e as Igrejas locais devem encontrar uma forma de manter a sinodalidade”, diz Faggioli.

O mundo está olhando para o cristianismo em busca de liderança, para nos ajudar a entender a espiritualidade da tragédia da Covid-19. Galliardetz sugere que o Papa Francisco pode sair da pandemia com uma reputação de líder pastoral aumentada, em contraste com “alguns prelados que agiram como se o batismo cristão oferecesse a sua própria inoculação contra as doenças”.

A Covid-19 atingiu duramente os cristãos e os seguidores de todas as religiões. O confinamento coincidiu com a Páscoa, afastando as pessoas da preciosa força vital dos sacramentos no ponto alto do ano litúrgico. No entanto, também há sinais de uma vida nova – e da possibilidade de uma Igreja emergir da crise mais focada em sua missão principal e em confiar na promessa deixada por Jesus de “fazer obras ainda maiores do que estas” (João 14,12).

Traduzido do inglês por Moisés Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 29 de maio de 2020 – Acesso às 16h50 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

A direita...

“As direitas atuais não guardam relação alguma com a verdade e a ética”

Silvina Friera
Página/12 – Buenos Aires (Argentina)
28-05-2020

Entrevista com Jorge Alemán
Psicanalista argentino, radicado na Espanha

“Não acredito que haverá um colapso quando a pandemia sanitária
for controlada, de fato, a maioria dos governos dos países ocidentais
quer sair da crise sanitária, não como dizem para salvar vidas,
mas para salvar o próprio capitalismo”
Un juego entre la voz y el sentido” | Jorge Alemán... | Página12
JORGE ALEMÁN

O psicanalista Jorge Alemán analisa a “radical catástrofe” gerada pela covid-19 em Pandemónium: notas sobre el desastre, publicado em ebook por Ned. “O capitalismo já mostrou, e pode voltar a repetir, que é capaz de se rearmar e seguir seu movimento sem fim, a não ser que os países emergentes reinventem um possível caminho de emancipação, levando a uma radicalização da democracia frente às derivas neofascistas tão ativas, neste momento, em todo o mundo”, explica Alemán em um dos capítulos de seu novo livro, cuja capa é a reprodução do quadro do pintor inglês John Martin (1789-1854), inspirado em Paraíso Perdido, poema narrativo de John Milton (1608-1674).

“Não acredito que haverá um colapso quando a pandemia sanitária for controlada, de fato, a maioria dos governos dos países ocidentais quer sair da crise sanitária, não como dizem para salvar vidas, mas para salvar o próprio capitalismo (FMI, Fundo Europeu, grandes financeiras, bancos etc.) e que a máquina continue funcionando, mais uma vez, mesmo que esteja gerando maior pobreza e injustiça social”, acrescenta o psicanalista argentino.

Na entrevista ao jornal Página/12, o autor de livros fundamentais como Lacán en la razón posmoderna, Derivas del discurso capitalista e Capitalismo: crimen perfecto o emancipación, entre outros, explica, de Madri, a cidade que escolheu para se exilar em 1976, que “essa pandemia está derrubando todas as ficções que, nos últimos anos, sustentaram o neoliberalismo”.

Eis a entrevista.

Se é difícil pensar que após a pandemia ocorrerá um colapso do capitalismo, para onde está indo o capitalismo? Como se adaptará em um mundo pós-covid-19?

Jorge Alemán: O capitalismo tem como uma qualidade essencial sua tendência à reprodução ilimitada, pode se valer de suas próprias contradições internas, as tensões que o atravessam, seu colapso geral, e sempre estará em condições de se refazer. Não estou muito certo de que possa atravessar a pandemia, mas digamos que estruturalmente tem todas as possibilidades para isso.

O capitalismo poderia viver na paisagem de Mad Max porque pode se reproduzir ilimitadamente. Conta com muitos dispositivos para isso e também possui algo constitutivo do ser humano, que é certa impossibilidade de enfrentar o igualitário.

Como irá se adaptar no mundo da pós-pandemia...? É mais provável que seja a pandemia que irá se adaptar ao capitalismo. E daí talvez vejamos surgir certas manifestações da sociedade de controle e do biopoder, que embora a princípio tenham sido muito necessárias, do ponto de vista terapêutico e político, cedo ou tarde, justamente por causa dessa característica de reprodução do capital, vão acabar se impondo.
Disponível somente em e-book

A pandemia chegou para demostrar algo que já se sabia: as profundas desigualdades nos países europeus e na América Latina. Esta é uma oportunidade para debater acerca da igualdade? O século XXI será o século da igualdade?

Jorge Alemán: Sim, o grande debate será entre igualdade e desigualdade. É verdade que a morte é para todos porque somos todos mortais, mas também é absolutamente verdade que a igualdade deve ser concebida a partir da vida, não da morte. Se concebemos igualdade a partir da vida, obviamente essa pandemia está derrubando todas as ficções que nos últimos anos sustentaram o neoliberalismo.

Por exemplo, o mantra de que o empresariado é o que cria a riqueza está caindo por terra. Se os trabalhadores, que vendem sua força de trabalho, não retornam aos locais de produção, este mundo não pode se sustentar. Se não retornam aqueles que acendem a luz, se não retornam os que limpam, tudo isso cai. O interessante aqui é que seria um momento marxista da humanidade, mas por hora não há notícias de que emerja um sujeito histórico igualitário.

Como imagina um novo projeto de soberania popular de esquerda? Qual papel teria o Estado e os movimentos sociais nesse projeto?

Jorge Alemán: A possibilidade de movimentos soberanos deve conduzir a uma Federação Internacional de Países Soberanos. É claro, o Estado deve ter um papel central, mas levando em consideração que o neoliberalismo se apropriou previamente do Estado. O Estado nunca é nosso, sempre que estamos no Estado, estamos em uma partida em que o inimigo também está presente. Portanto, a aliança com movimentos sociais é decisiva e imprescindível. E diria mais: não apenas com movimentos sociais.

Um projeto emancipatório, hoje em dia, tem que pensar, imaginar e inventar uma nova maneira de conceber a relação entre Estado, sociedade, comunidade e Forças Armadas. Quando falo das Forças Armadas, trata-se das Forças Armadas que passaram no rigoroso exame dos direitos humanos na Argentina, e o grande filtro histórico que o país supõe fazer com a memória, a verdade e a justiça.

Em 25 de maio, foi realizada uma manifestação na Praça de Maio [Buenos Aires] por manifestantes contra a quarentena. Alguns gritavam “liberdade!”, outros, “queremos trabalhar”. Uma marcha semelhante ocorreu, há alguns dias, em Madri, com o líder do Vox à frente, para pedir “liberdade” e a renúncia de todo o Executivo. Por que os setores de direita estão tentando tirar proveito do cansaço gerado pela situação de quarentena?

Jorge Alemán: Há uma tendência da direita mundial em perceber que a única maneira que os setores progressistas, na Europa, e os movimentos populares e nacionais da América Latina (os poucos que existem), possuem é a de introduzir uma planificação na saúde, como é a quarentena, e certas determinações em relação ao modo de distribuição de renda. Portanto, extraíram o termo liberdade - que já ocupava um lugar central no liberalismo e que o neoliberalismo empregou de modo perverso - para buscar mostrar que todos esses projetos em que o Estado assume a comunidade são projetos “totalitários”.

Não é nada novo. De certa forma, todo o desmantelamento do Estado de bem-estar, após a Segunda Guerra Mundial, também foi realizado em nome da liberdade. O que acontece é que agora começou a aumentar, porque a DIREITA introduziu uma novidade, que é a sua ruptura com a verdade e a ética. Se as direitas conservadoras e liberais ainda mantinham certo fio (fino, mas mantinham) em relação à verdade e a ética, as direitas atuais praticam a violência que quase pertence ao estado de exceção. Não guardam relação alguma, respeito algum, com a verdade e a ética.

Traduzido do espanhol pelo Cepat.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 29 de maio de 2020 – Acesso às 16h30 – Internet: clique aqui.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

É Pentecostes...

Pentecostes: em tempo de Páscoa morre
o velho para surgir o novo!

Dom Mauro Morelli
Bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias – RJ

“Vigiai e orai, tempo difícil pela frente, nada fácil morrer o velho, nem fácil será o parto do novo. Vigiai e orai! Eis que uma cidade nova vai surgir livre de reis, soldados e sacerdotes, de templos e altares”
Pentecostes, a festa da diversidade! 
No dia dos pães sem fermento Jesus pôs-se à mesa com os apóstolos e disse: “Ardentemente desejei comer convosco esta ceia pascal, antes de padecer” (Lc 22, 15-16).

Aos nove de Abril de 2020, reinando o coronavírus no Império da Pandemia, em São Roque de Minas, na Serra da Canastra, a cidade deserta, em quarentena, estando este ancião com o pastor mais jovem e titular da extensa paróquia, sentados na varanda de nossa casa para a oração do louvor vespertino, eis que alguém com três toques nos chama ao portão.

Para nossa surpresa, Jesus de Nazaré, com sandálias nos pés e cajado de peregrino, mochila nas costas, foi logo dizendo: «A paz esteja com vocês! Mais do que nunca desejo, antes de padecer, celebrar a Páscoa com meu povo. Ouço seu clamor e sinto sua angústia no meio dos alaridos e contorções da própria Terra ferida pela ganância desmedida que transforma alimento em vil moeda, gerando peste, fome e guerra

Sentando-se à mesa conosco, depois de um bom café com pão de queijo, com olhar penetrante e voz firme, mas suave para nos encorajar, quase confidenciando, retomou a palavra: «Não tenham medo de celebrar a Páscoa... sem povo, vigiai comigo e orai. Virão tempos difíceis pela frente com muito sofrimento e morte, mas uma nova manhã vai raiar em que mães não mais vão chorar a morte de seus filhos, mas dançar de alegria pois criança não mais morrerá criança e chegará aos cem anos com o vigor da juventude (Is 65,17-21).

Vigiai e orai, tempo difícil pela frente, nada fácil morrer o velho, nem fácil será o parto do novo. O povo está disperso e desunido; o pão anda escasso e o cálice vazio; cadeias amarram a liberdade; a vida de tantas formas ameaçada; a paz, no mundo profundamente abalada. Nos vales e planícies, não se ouvem mais os cânticos da vida, mas gemidos da fome e gritos dos cárceres do terror.

Vigiai e orai! Eis que uma cidade nova vai surgir livre de reis, soldados e sacerdotes, de templos e altares (Apocalipse 21). No Quilombo do Brasil, como em outras repúblicas e impérios, não mais fome, miséria, violência e morte que jorram da Ordem e Progresso que sustentam e alimentam tirania, concentração de poder e riqueza, desperdício e miséria!

Neste século XXI, da minha era, em novo Pentecostes a Vida em Comunhão vai renascer. Sempre a caminho, o Povo peregrino abençoará o pão e fará a partilha nas casas ou em tendas à margem da estrada. Vai levantar e caminhar em cada manhã em busca da Terra Prometida onde tudo e todos estarão conectados em rede fraterna e solidária, o lobo e o cordeiro bebendo na mesma fonte.

Pelas portas dos templos que novamente se abrem, ecoarão gemidos e cantilenas delirantes da agonizante Velha Matrona, outrora revestida de pompa e poder, prestígio e glória, com a Tríplice Coroa, com escudos e títulos de nobreza. Pobres pescadores transformados em nobres e príncipes, dominando sobre reis e até sobre a consciência dos povos como se pudessem possuir a Verdade que é maior do que o Universo!

Eis que surge uma menina subindo a escadaria do templo, sentando-se pelos degraus sem pressa, olhando formigas e insetos, encantada com os pássaros e contente com suas perguntas sobre tudo que encontra no caminho ou voando pelos ares.

Assim será meu povo, simples como criança, incapaz de viver sem colo e sem mão amiga, sempre querendo saber a razão das coisas que lhe apresentam. Sem senhores e soberanos, errando ou trocando passos, não fazem distinção de classe ou raça. Todos se revestem da mesma dignidade, como ministros e servidores da vida.

Superando barreiras e preconceitos, com hinos de louvor, proclamam que no seio da Terra as sementes da Verdade, lançadas na vastidão do mundo, desabrocham em flores e frutos, na vida de peregrinos de outros caminhos. No dom do Espírito não adoram ídolos, nem se curvam diante do poder do ouro e da vaidade. Na força do Espírito expulsam os demônios da magia, do poder e da riqueza.

O povo peregrino não é dono de nada, não ajunta tesouros, repartindo o pão com a criança, o jovem e o idoso. Acredita que a saúde e a vida das crianças, de todo mundo, é o lucro do trabalho. O primeiro lugar pertence ao pequeno e ao fraco, ao doente e ao idoso. Meu povo acredita que tem a posse da terra, dádiva divina, quem nela trabalha para o sustento da vida
DOM MAURO MORELLI | VIVA SÃO JOSÉ | 19 DE MARÇO [CC] - YouTube 
Em silêncio, ficamos contemplando o sol se pondo sobre a Canastra, com uma prece: Fica conosco, Peregrino do Amor Misericordioso! Na noite daquele mesmo dia, éramos não mais do que doze tomando assento à mesa, no esplendor das luzes e no vazio do templo, para dar início à celebração do Solene Tríduo Pascal. Pela porta aberta do templo, na montanha elevado, água pura foi jorrando em cascata, ladeira abaixo, a terra fecundando. Em festa da Vida transformou o jardim da agonia.

No vale florido, aves revoaram, paralíticos saltaram, famintos foram saciados e prisioneiros com alegria a liberdade aclamaram, no coro do povo em fraternidade reunido. Entre pequenos e simples, prostitutas e publicanos, pescadores e feirantes, o cântico de Belém foi de novo entoado: Glória a Deus nas alturas e paz na terra ao povo muito amado!

A semente da mostarda, em muitas sementes transformada, pelo mundo foi se alastrando. De várias raças e línguas, o povo miúdo, ignorantes e escravos, alguns poucos nobres e sábios, na fraternidade repartem o pão, no vinho do tempo novo embebido!

O Povo Peregrino, cultivando sonhos, estará sempre a caminho até mergulhar na Comunhão da Vida em que o Pai, com seu coração de Mãe, será tudo em todos (1Cor 15,28).

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 28 de maio de 2020 – Acesso às 17h00 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui.

Leia esta “Carta Aberta”

Carta aberta à Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil

Celso Pinto Carias

Sobre o papel da Igreja Católica
no Brasil que, hoje, vivemos
O sociólogo, o padre e o ex-seminarista, múltiplos olhares para os ...
CELSO PINTO CARIAS
Teólogo católico

«A fé cristã, com todos os problemas históricos que não se pode negar, sempre teve o carisma da unidade, do diálogo, da paz e da solidariedade. Então, uma humilde sugestão para a nossa realidade brasileira, que pode ser exemplo para o mundo: a CNBB, através de sua presidência, poderia ser a mediadora de um grande debate virtual para garantir a democracia», escreve Celso Pinto Carias, doutor em Teologia pela PUC-Rio, assessor das CEBs do Brasil e do Setor CEBs da Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB e, nas palavras do autor, "um mendigo de Deus".

Eis a carta.

Como sou pouco e sei pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando por inteiro
(Ariano Suassuna)

No dia seguinte a exibição da reunião ministerial [do dia 22 de abril] liberada pelo ministro do Supremo Celso de Melo, um padre muito meu amigo fez um pedido inusitado: fazer uma nota pedindo que a CNBB se pronunciasse a respeito. Respondi dizendo que não estava muito inspirado, pois me sentia navegando em um barco à vela, sem vento, sem bússola e em uma noite sem estrelas. E certamente, a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] não faria tal nota. Mas este padre é um santo homem, e aí resolvi escrever esta carta aberta. Não sei se vai ao encontro do amigo. Mas vou tentar.

Mais algumas coisas, além da santidade do padre, motivaram-me. Lembrei-me de um filme que eu e família assistimos na semana passada: “A menina que roubava livros”. Em uma cena na qual um judeu está sendo levado pelos nazistas, conhecido dos moradores da localidade de longa data, e um personagem vai ao encontro da polícia dizer que o judeu era um bom homem. É empurrado e bate com a cabeça no chão. Em casa a menina pergunta: “Por que eles fizeram isto com o senhor?” Resposta: “Minha ação tentou mostrar a humanidade deles, e neste momento eles odeiam isso”. A outra foi o término da homilia de domingo passado (24/05) do padre que acompanha a Comunidade que participo (Batismo do Senhor) em Duque de Caxias, RJ (Estamos fazendo orações simultâneas duas vezes por dia pelo Whatsapp e domingo comungamos da Palavra, claro em nossas casas. O padre faz uma breve homilia). No final ele disse: “Jesus é a nossa humanidade junto de Deus”. E ainda encontrei a frase do Suassuna no Facebook de um amigo.

Ora, em que uma cartinha “mixuruca” poderia alterar neste quadro um tanto quanto desolador? Não sei. Mas sei que não quero sentir minha humanidade se esvaindo, e como seguidor de Jesus Cristo gostaria, pela mediação Dele, sentir minha humanidade junto de Deus. E aí, resolvi dizer algumas palavras.

Na Conferência de Aparecida, em 2007, os bispos da América Latina e do Caribe já observaram que estamos diante de uma grave crise. Crise que vem se aprofundando, e em vários níveis: social, político, econômico e cultural. E agora, diante de tal crise, aparece a pandemia pelo coronavírus. E se a covid-19, doença provocada pelo vírus, parasse de matar agora, já teria causado uma das mais violentas tragédias dos últimos tempos. Muitos podem perguntar: “E daí? Vamos rezar pelo fim da crise e da pandemia e pronto”. Porém, não posso me conformar com isso. A oração é antes mais nada um ato de comunhão com Deus, e não um balcão de negócios.

Não posso me conformar que uma primeira iniciativa, logo no início do isolamento, de algumas dioceses, tenha sido organizar como o dízimo seria pago. Evidentemente sei da necessidade da manutenção. Sei também, principalmente, que graças a Deus, muitas iniciativas de solidariedade surgiram e continuam a acontecer. Mas a situação é muito grave. Grave porque há uma crise que ultrapassa uma doença virótica altamente perigosa. E por favor, quem diz não é um modesto teólogo da Baixada Fluminense, mas a grande maioria dos infectologistas e centros de pesquisa do mundo, das mais diversas concepções ideológicas.
15 Lições de vida importantes que Santo Agostinho nos deixou
AGOSTINHO DE HIPONA - Santo Agostinho (354-430)
Bispo e um dos maiores filósofos e teólogos de todos os tempos

Muita dificuldade para entender como setores que se afirmam cristãos, com um legado cultural que fez surgir de Agostinho a Teilhard de Chardin, homens e mulheres inspirados pelo Caminho de Jesus, com enorme capacidade de diálogo com a realidade da vida, possa reduzir a análise do que está acontecendo pelo víeis moral e com concepções ideológicas de baixíssimo valor intelectual.

Não é possível, repito, não é possível, que depois de tantas figuras emblemáticas na realidade cultural, ainda haja cristãos e cristãs que se colocam do lado da mais absurda ignorância.

Bem antes da pandemia, quando algumas revelações começaram a aparecer quanto ao governo atual, um bispo me disse: “Tudo bem, o importante é que tiramos a esquerda”. Depois da queda do Muro de Berlim, o que é esquerda e direita? Diria o meu mestre na arte de refletir teologia: “O dualismo antropológico platônico continua forte, gordo e corado”. O bem e o mal, anjos e demônios, fé e vida, e por aí vai. Um maniqueísmo que parece não cessar nunca. É difícil compreender que Deus criou a vida por inteiro? Que não há competição entre corpo e alma? Que é uma unidade?

Não se trata de defender governo “A” ou atacar governo “B”. Não se trata de “torcer” para dar certo ou errado, como se estivéssemos em um torneio de política. A realidade política, social e econômica é bem mais complexa que uma partida de futebol. “Ah, tá bom, a reunião foi ridícula, mas é melhor defender a família, Deus, etc. do que aqueles ladrões e aborteiros esquerdistas”. Custo a acreditar que pessoas com formação filosófica e teológica façam análises tão rasteiras.

Pergunto-me, apenas pergunto, se por trás de desculpas tão grosseiras não estaria uma perspectiva de manutenção de privilégios. Rotula-se determinados conceitos como demoníacos e aí nenhum debate prospera.

Cultiva-se ódio, prega-se violência, apoiam-se em fundamentalismos bíblicos
que estão superados faz décadas, para iludir um povo muito religioso
e que sempre sofreu sob o impacto da injustiça.

Recordam que havia teologia para justificar a escravidão? Alguém é capaz de negar?

Irmãos e irmãs. A situação é dramática. Sabe-se que já havia uma crise econômica que espreitava o planeta. A pandemia certamente será uma grande justificativa para aprofundar ainda mais dores e sofrimentos ao povo. E todos nós que trabalhamos com o simbólico não podemos ser instrumentalizados pelo poder da acumulação, mas devemos estar a serviço do outro e da outra. Devemos lavar os pés uns dos outros. Ou achamos que o serviço foi só um teatro de Jesus de Nazaré? “Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus” (Filipenses 2,5).

Assim sendo, somos interpelados, em profunda comunhão com o Pai, por meio de Jesus Cristo, em unidade com o Espírito Santo, a agir como homens e mulheres que acreditam no Amor de Deus. Nestes dias o Evangelho de João tem nos alertado que poderemos sofrer tribulações. Mas vamos nos omitir?

Durante a pandemia devemos escutar a voz de quem estuda com profundidade tal situação. Podem errar? Naturalmente. Mas na dúvida não ultrapasse. Por que pressa em abrir as igrejas? Parecemos àqueles setores que acreditam ser a economia mais importante que a vida. E o Papa Francisco já alertou: “Esta economia mata” (Evangelii Gaudium, 53). A pandemia nos alerta para reconstruir o caminho espiritual de nossa fé que pode estar centrada em prédios e não na Comunidade propriamente. Que pode estar centrada em vaidades pessoais na lógica do sucesso midiático. Voltemos a sinodalidade da origem de nossa fé. Mais do que nunca é preciso caminhar juntos.

A fé cristã, com todos os problemas históricos que não se pode negar, sempre teve o carisma da unidade, do diálogo, da paz e da solidariedade. Então, uma humilde sugestão para a nossa realidade brasileira, que pode ser exemplo para o mundo: a CNBB, através de sua presidência, poderia ser a mediadora de um grande debate virtual para garantir a democracia. A Igreja sozinha não consegue. Sozinho ninguém consegue. Mas podemos tentar unir todos os setores sociais que acreditam que os direitos humanos são valores fundamentais desenvolvidos pelo mundo moderno, e não uma ONG para defender bandidos.

Pelo amor de Deus. Não existe intervenção militar democrática. Sabemos que a democracia não é perfeita. Aliás, a democracia representativa já deu sinais claros de esgotamento. Precisamos caminhar para uma democracia participativa. Mas como diria Winston Churchil: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”. Não deixemos que a institucionalidade cristã, mas uma vez, precise no futuro explicar por que se deixou envolver com o que tem de pior na sociedade. Que um futuro papa não tenha que repetir o grandioso gesto de São João Paulo II em pedir perdão por erros que foram cometidos no passado.

Sejamos capazes de nutrir aquela esperança apocalíptica dos primeiros tempos:
“Eis a tenda de Deus com os homens.
Ele habitará com eles; eles serão o seu povo, e ele, 
Deus-com-eles, será o seu Deus.
Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, 
nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. 
Sim! As coisas antigas se foram!”
(Ap 21,3-4)

Nota do autor

Pela Graça de Deus sou doutor em Teologia pela PUC-Rio. Consegui até publicar livros. Hoje, além de professor na PUC, sou assessor das CEBs do Brasil e do Setor CEBs da Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB. Mas gosto de me apresentar como “mendigo de Deus”, expressão que encontrei em livro de teologia para designar o trabalho teológico: um pedinte diante de Deus.

Que Ele tenha misericórdia do nosso Brasil, sobretudo dos excluídos morrendo de covid-19 e familiares recebendo o atestado de óbito como Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) sem ter o luto respeitado.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 28 de maio de 2020 – Acesso às 11h25 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui.