Incompetência brasileira

Uma calamidade pode se abater sobre o Brasil,
depende de nós

Fernando Reinach*

É como se o vírus se espalhasse em uma colônia de
200 milhões de ratos desorientados
Enterro de dona Esther Melo da Silva no cemitério Parque Tarumã,
às 10 horas da manhã do dia 10 de abril de 2020, em Manaus

Muitos perguntam quando a pandemia vai atingir o pico no Brasil. Costumava oferecer um palpite, agora digo que o pico ocorrerá quando aproximadamente metade da população tiver sido infectada. Retrucam que hoje, com 100 mil casos [hoje, já são 149.000], temos 8 mil mortes [hoje, sábado, 09/05/2020 já são 10.222], será possível que com 100 milhões de casos teremos 8 milhões de mortes? Sim, e se o número total de casos continuar a duplicar a cada semana chegaremos lá em 10 semanas, em julho. Saco a calculadora e multiplico 100 mil por dois, dez vezes. A calculadora mostra 102 milhões.

Nunca esse pequeno diálogo socrático deixou de fazer efeito. Então mostro a curva do total de casos que tenho à mão. Na verdade, digo, nas últimas semanas o multiplicador correto seria 1,6:
* Tínhamos 50 mil casos em 22 de abril,
* 80 mil em 29 de abril e
* chegamos a 125 mil em 6 de maio [149 mil em 8 de maio!].
* Proponho que as contas sejam refeitas. Refazemos e concordamos:
* levará por volta de 15 semanas.
* O pico será no fim de agosto, talvez setembro.

Então, com a atenção total de quem perguntou, desejando uma resposta capaz de criar algum grau de conforto, introduzo a segunda parte do argumento. Esse é o curso natural de uma pandemia causada por um vírus que se espalha com enorme facilidade, e essa seria a trajetória se fôssemos uma colônia de 200 milhões de ratos incapazes de mudar nosso comportamento. Qualquer outro desfecho depende de nós. Sabemos que o vírus se espalha pelo ar quando ficamos próximos de uma pessoa doente, ou através da mão quando tocamos um objeto ou superfície contaminada. Um desfecho com menos mortes depende de medidas de higiene e da diminuição da interação entre pessoas. Fácil falar, difícil fazer. E o Brasil não está conseguindo fazer. Após um mês e meio de medidas de distanciamento, a velocidade de espalhamento está aumentando.
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O distanciamento social não está funcionando a contento no Brasil,
muitos o relativizam ou não podem fazê-lo!

Porque estamos fracassando?

As razões de nosso fracasso são muitas. Somos um país pobre onde a maioria das pessoas precisa ganhar a vida a cada dia e não possui reservas financeiras para simplesmente se trancar em casa por semanas a fio. Grande parte da população vive em locais onde o isolamento é impraticável pelo simples fato de as pessoas estarem aglomeradas em pequenos cômodos. Além disso, as condições para implementar medidas básicas de higiene não existem, e o governo federal se mostrou primeiro incapaz, e agora contrário a liderar uma resposta da população à pandemia. Sem saber para onde ir, a população aos poucos volta à normalidade, já conformada com 600 mortes por dia.

O colapso do sistema hospitalar é um fato em boa parte do País. Nesse ritmo atingirá todas as capitais nos próximos dias. Pessoas já morrem em casa sem tratamento, cadáveres esperam junto aos leitos de doentes graves ou se empilham em contêineres refrigerados. Sequer a notificação das mortes funciona a contento [indicando que o número de mortes é bem maior que o divulgado!]. Mais leitos não resolvem sem médicos e enfermeiros. E a imprensa, que já não acredita no número oficial de mortes, prefere contar os enterros nas covas coletivas.

Não é possível imaginar que isso vá melhorar nas próximas semanas pois o que vai acontecer até o fim de maio está determinado pelo comportamento da população hoje. Nos últimos dias o que se vê na periferia de grandes cidades é o movimento normal do comércio frequentado por pessoas mascaradas que foram induzidas a se sentir protegidas por máscaras que sequer sabemos se são realmente úteis.
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Um presidente da república que não está nem aí para a pandemia e não
assume seu papel de coordenador dos esforços de enfrentamento real desse imenso perigo!

Estratégia mortal escolhida pelo Brasil

Essa realidade descreve perfeitamente a estratégia que o Brasil escolheu involuntariamente – por incompetência, descaso, ou ganância – para lidar com a pandemia. Ela consiste em deixar a população se contaminar rapidamente até atingirmos a imunidade de rebanho, que automaticamente diminuirá casos e mortes assim que começarmos a sentir seus efeitos nos próximos meses. Até lá o caos aumentará.

Mortes devem logo chegar a 2 mil por dia e a realidade de Manaus será observada em todas as capitais com alta densidade populacional.

Esse sempre foi o desejo de Bolsonaro e assim será.

Tudo indica que no Brasil a pandemia seguirá seu curso natural, talvez ligeiramente afetada pelo comportamento da sociedade. É triste, mas é como se o vírus estivesse se espalhando em uma colônia densa de 200 milhões de ratos desorientados. Espero estar errado, mas é assim que vejo nosso futuro. A estratégia do Brasil é a imunidade de rebanho por incompetência.

* FERNANDO REINACH é especialista em biologia molecular e ex-professor titular no Departamento de Bioquímica da Universidade de São Paulo (USP). Foi um dos coordenadores do primeiro projeto genoma brasileiro, que decifrou o material genético da bactéria Xylella fastidiosa, causa importante de doenças em laranjais e outros cítricos de importância econômica. Mais do que achar a cura para a doença, esse trabalho, que ganhou projeção internacional, contribuiu para mudar a maneira de fazer ciência no Brasil. É escritor e colunista do jornal O Estado de S. Paulo.

Impasse do congelamento

Adriana Fernandes
Jornalista

Quanta insensibilidade e vontade de tirar proveito
em meio à desgraça!
Coronavírus: Câmara aprova decreto que reconhece estado de ...
Plenário da Câmera dos Deputados Federais em Brasília (DF)

O embaraço político e econômico que marcou a votação do congelamento de salários dos servidores públicos pelo Congresso mostra que a pressão pelo gasto não tem limites no País.

Muitos senadores e deputados defenderam a exclusão de várias categorias do congelamento de salários com a justificativa de que a medida é inócua porque não haverá dinheiro para os aumentos por conta do impacto da covid-19 na economia e nos cofres públicos.

É má-fé dos parlamentares ou mesmo ignorância sobre o que tem acontecido nas últimas décadas no Brasil. Faltou também sensibilidade dos parlamentares para a opinião pública. Sim, o outro lado: trabalhadores da iniciativa privada, que tiveram cortes de salários ou perderam o emprego para a pandemia da covid-19. Esse lado também pode fazer a diferença.

Mesmo com o Estado quebrado em todas as esferas de governo (União, Estados e municípios), podemos ver que a opção que tem prevalecido é pelo mau uso do dinheiro público.

O Rio de Janeiro, integrante do chamado “grupo dos três” Estados mais quebrados do País, ao lado de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, aprovou lei que autoriza o Executivo a promover alterações no orçamento de 2020 para permitir a revisão das remunerações dos servidores estaduais. O governador disse que não vai aumentar, mas sancionou a lei. Tudo isso em plena pandemia.
MidiaNews
JOSÉ ANTÔNIO BORGES PEREIRA
Procurador-Geral de Justiça de Mato Grosso

Foi também com espanto e assombro que vimos esta semana a decisão do procurador-geral de Justiça do Estado de Mato Grosso, José Antônio Borges Pereira, de criar uma “ajuda de custo” para procuradores, promotores e servidores desembolsarem gastos com a própria saúde. Apelidado de “bônus covid”, o benefício terá um valor de R$ 500 para servidores efetivos e comissionados. Os procuradores e promotores ganharão o dobro: R$ 1 mil. O Ministério Público de Mato Grosso diz que os recursos já estavam previstos no orçamento deste ano. “Não se trata de um dispêndio financeiro sem lastro orçamentário.”

Se havia sobra no caixa, por que não direcionar os recursos para o combate
da pandemia voltado aos mais vulneráveis?

Mas garantir esse repasse para ajudar no enfrentamento da doença, o Congresso não quis aprovar. A proposta de destinar a sobra no caixa dos demais Poderes para o enfrentamento da covid-19 não vingou [O povo que se dane, não é mesmo?! E daí?].

Se o projeto tivesse sido aprovado antes, o “bônus covid” de Mato Grosso não teria sido adotado. O projeto aprovado pelo Congresso proíbe a criação ou aumento de auxílios, vantagens, bônus, abonos, benefício de cunho indenizatório, para servidores de todos os Poderes e seus dependentes, inclusive militares. Medida muito importante.

Alguém duvida que, se tiverem oportunidade, governadores, prefeitos e representantes de outros Poderes não reajustam os salários ou arrumam algum tipo de bônus?

Quem mais se apropria desses ganhos é a elite da burocracia do funcionalismo como se viu no “bônus covid” dos procuradores [de Mato Grosso].

Se esse risco não existisse, por que tanta pressão para deixar várias categorias de fora do congelamento? A mobilização se intensificou para que Bolsonaro vetasse a proibição até dezembro de 2021 da contagem do tempo para o período aquisitivo necessário para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios e licenças-prêmio. Esse tipo de bônus não existe mais no governo federal, mas tem peso grande no crescimento da folha de Estados, principalmente na área de segurança. De acordo com fontes da área econômica, o alívio total é de cerca de R$ 40 bilhões. Nos Estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, esses benefícios correspondem a um terço do crescimento da folha. Nos do Nordeste, chegam até 50%. É, portanto, gasto na veia cortado e não apenas “promessa” de reajuste salarial, como querem tachar aqueles que não acreditam na importância do congelamento. Não é verdade que a medida não gera economia.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, colocou sua cabeça a prêmio ao insistir na medida do congelamento. Com transmissão ao vivo, Guedes, ao lado do presidente, defendeu o veto das categorias que ficaram de fora do congelamento e ganhou a promessa de Bolsonaro. Fica desmoralizado sem o veto [é esperar para ver o que acontecerá!]. Por isso, a tensão do momento. O Congresso terá a palavra final, mas que nenhuma liderança venha depois com o papo furado de sempre de que todos têm responsabilidade fiscal se o cenário piorar pós-covid-19.

Deputados e senadores, tenham coragem: não derrubem o veto.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Saúde – Pandemia do Coronavírus – Colunista – Sábado, 9 de maio de 2020 – Pág. A12 – Internet: clique aqui & Economia & Negócios – Pandemia do Coronavírus – Colunista – Sábado, 9 de maio de 2020 – Pág. B5 – Internet: clique aqui.

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