«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

8º Domingo do Tempo Comum – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 6,39-45

 Alberto Maggi *

Frade da Ordem dos Servos de Maria (Servitas) e renomado biblista italiano 

Há um só mestre, todos somos irmãos e irmãs

Jesus continua o seu ensinamento aos seus discípulos e, depois de os ter convidado a serem filhos do Altíssimo, isto é, a serem bondosos para com os ingratos e os ímpios, não excluir ninguém do âmbito de ação deste amor e ter, mesmo, sentimentos maternos para com os outros. Agora, Jesus adverte seus discípulos para aqueles riscos sempre presentes em todas as comunidades, e eram os riscos da espiritualidade farisaica, o da pretensão dos discípulos de serem guias e mestres dos outros. Não, na comunidade de Jesus há apenas um guia e um mestre: Cristo. 

Lucas 6,39:** «Naquele tempo: Jesus contou uma parábola aos discípulos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?»

Aqui, a mera pretensão de ser o guia do outro torna a pessoa cega. O crente não é chamado para ser guia, o único guia é Cristo, porque a pessoa que crê é um(a) companheiro(a) de viagem que apoia o outro, o encoraja, mas não o guia. E Jesus diz: “Se um cego conduz outro cego, ambos caem em um buraco”; incorrendo na maldição bíblica do livro de Deuteronômio (27,18): “maldito aquele que fizer o cego perder o caminho”. 

Lucas 6,40: «Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre.»

E, então, Jesus adverte novamente seus discípulos sobre a pretensão de serem mestres e guias dos outros, depois, ele retomará o discurso da cegueira. Jesus convida o discípulo a crescer, a tornar-se independente, a realizar-se pessoalmente e a não precisar mais de mestre, porque é o Espírito que o guia. Deus, o Pai de Jesus, não governa os seres humanos emitindo leis que eles devem observar, mas comunicando interiormente seu Espírito que os tornam livres e independentes. 

Lucas 6,41-42: «Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho? Como podes dizer a teu irmão: irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tu não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão.»

Mas Jesus volta ao tema da cegueira e explica o que é esse mal. A pretensão de ser um guia, um mestre do outro, pode levar a corrigir o que Jesus diz ser minúcias e o fato de você fingir corrigir o outro é porque tem uma trave cravada na sua visão. Então, Jesus continua de forma irônica. Como não ver uma trave que está no olho? É a trave que está no olho que mostra o cisco nos olhos dos irmãos, mas não ver a trave no olho significa uma presunção, um sentimento de superioridade; é o que Jesus chama de HIPOCRISIA.

E Jesus convida a retirar a trave que está no olho do irmão, mas só aparentemente, porque depois desencoraja! É o que, na espiritualidade, se chama correção fraterna, mas quando se consegue tirar a trave que grudou no olho, desaparece o desejo de ir buscar os ciscos nos olhos dos irmãos. 

Lucas 6,43-44: «Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas.»

Então, Jesus fornece um critério para a autenticidade do discípulo, qual é? É a questão dos FRUTOS.

Quando esses frutos são de vida, enriquecem a vida, comunicam a vida, vêm de Deus.

Jesus dá um exemplo compreensível a todos. Assim, o critério de autenticidade não é a doutrina, a ortodoxia, mas o fruto que se produz. Se um estilo de vida, se uma mensagem produz vida, enriquece a vida dos outros, certamente vem de Deus, porque Deus é o autor da vida. 

Lucas 6,45: «O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio.»

Jesus conclui, dizendo: “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração”. O coração, naquela cultura, é a mente, é a consciência, ele traz o bem. O que isto significa?

Aqueles que se alimentam do bem, inevitavelmente produzem o bem para os outros.

É por isso que é importante nos nutrirmos apenas com o que Lucas fala que é o belo, o bem, porque o que se torna fonte de alimento em nós é o que produz alimento para os outros. A liturgia deste domingo não traz, mas há o versículo 46 que é importante: “Por que me chamais: ‘Senhor! Senhor!’, mas não fazeis o que vos digo?” Aqueles que chamam “Senhor, Senhor”, são os que defendem e são extremamente apegados à doutrina perfeita, à ortodoxia perfeita, mas eles não fazem o que Jesus diz. Para Jesus, eles são pessoas inúteis. Então, é isso que o homem mau tira de seu mau tesouro: o MAL. Portanto, é um convite de Jesus para se colocar sempre ao lado do belo, alimentar-se da beleza para ser pessoas bonitas que transmitem o bem aos outros. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 2. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2008.

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Três coisas não podem ser escondidas por muito tempo: o sol, a lua e a verdade.” (Buda)

O Evangelho deste domingo nos pede a “revolução do coração”! Isso mesmo! O ser humano autêntico se constrói a partir de dentro, do íntimo, do coração! Porém, tudo o que somos, tudo o que pensamos e sentimos acaba por se transformar em ações, atitudes, gestos concretos. Por isso, Jesus menciona a árvore e seus frutos. Afinal, conhece-se a árvore por aquilo que ela produz. Do mesmo modo, conhece-se o ser humano por meio de suas práticas, suas posturas. 

Vivemos em tempos do retorno da hipocrisia! Hipocrisia que se traduz, segundo Jesus, em ser exigente com os outros:

* ser extremamente ortodoxo em questões de doutrina,

* moralista em questão de costumes,

* tradicionalista em questões litúrgicas e rituais,

enquanto desculpamos ou fingimos não ver ou nos omitimos diante de nossas próprias imperfeições e incoerências diante do:

* Evangelho, fonte de toda doutrina,

* da caridade, principal virtude e essência da vida cristã,

* da fraternidade e simplicidade dos gestos sacramentais oriundos de Jesus de Nazaré, o qual jamais se fez distinguir de seus concidadãos mediante vestes e hábitos diferentes e especiais. 

Tudo isso, não deixa de ser uma sorte de “neurose espiritual”, ou seja, o modo equivocado, exagerado de como o indivíduo se relaciona com os seus desejos e com as suas contradições. Muitos transformam a sua vivência cristã em uma neurose, uma preocupação excessiva com o pecado, a culpa, a rigidez doutrinal e o formalismo litúrgico. Jesus já havia percebido isso nos especialistas em lei e grandes intelectuais de seu tempo, afirmando-lhes: “Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo!” (Mateus 23,24). 

Quantos “guias cegos”, pessoas que se consideram justas, santas, irrepreensíveis, mestras não temos no catolicismo e cristianismo de nossos tempos! Justamente para evitar esse risco, Jesus afirma categoricamente:

“Quanto a vós, não vos façais chamar de ‘rabi’ [= mestre], pois um só é vosso Mestre e todos vós sóis irmãos” (Mateus 23,8).

No entanto, há muitas pessoas que creem, confiam, seguem e obedecem cegamente a esses “guias cegos” e não ao único e verdadeiro Mestre, Jesus Cristo e seu Evangelho! Aliás, recomendo, vivamente, a leitura e meditação atentas do Evangelho Segundo Mateus, capítulo 23 versículos de 1 a 32. Vale a pena! 

Jesus nos convida e não tornar a vida das pessoas mais pesada, mais difícil e desafiadora do que ela já é! Eis alguns propósitos que o evangelho deste domingo nos deixa, segundo as corretas palavras de J. A. Pagola:

“Esforçar-nos por viver de tal maneira que, ao menos perto de nós,

a vida seja mais humana e suportável.

Não envenenar o ambiente com nosso pessimismo,

nossa amargura e agressividade.

Criar ao nosso redor, relações diferentes, feitas de

confiança, bondade e cordialidade.”

 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Fazei-vos de estúpidos para ficardes estúpidos, fazei-vos de cegos para ficardes cegos, ficai embriagados sem tomar vinho, tontos, sem bebida fermentada. O SENHOR é quem vos prepara um vento embriagador, é ele quem vos tapa os olhos, quem vos cobre a cabeça. Essa revelação toda será para vós como o texto de um documento lacrado. Se alguém apresentar esse documento a quem sabe ler, dizendo: “Leia por favor!”, ele dirá: “Não posso ler, está lacrado!” Se o derem a quem não sabe ler, há de responder: “Não sei ler!” Disse o SENHOR: “Esse povo me procura só de palavra, honra-me apenas com a boca, enquanto o coração está longe de mim. Seu temor para comigo é feito de obrigações tradicionais e rotineiras. Por isso continuarei a surpreender esse povo, com um grande e espantoso milagre. Aí a esperteza dos seus sábios se perde, e a clareza dos inteligentes se apaga”. Ai daqueles que tentam esconder-se do SENHOR, fazendo segredo daquilo que planejam! Eles tramam no escuro dizendo; “Ninguém verá, ninguém saberá!” Que absurdo! O barro vai se comparar ao oleiro? Pode uma obra qualquer dizer ao seu autor: “Tu não me fizeste!”, ou a cerâmica dizer ao oleiro: “Tu não entendes de nada!”?»

(Isaías 29,9-16)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – VIII Domenica del Tempo Ordinario – 03 marzo 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 24/02/2022).

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

O que ainda nos falta

 Não há terceira via, mas somente duas: a via autoritária e a via democrática

 Luiz Werneck Vianna* 

LUIZ WERNECK VIANNA

No mundo da política as coisas não caem pela ação da gravidade como as maçãs de Newton, é preciso uma ação que provoque sua queda

Em respeito aos fatos seria ocioso dizer que o governo que aí está já acabou, deixando atrás de si um monte de escombros, o culto narcísico do poder pelo poder em personagens liliputianos**, embevecidos com o destino imerecido com que foram contemplados, agarrados como ostras às posições a que foram alçados sem merecimento. Personagens como os ministros Queiroga e Paulo Guedes mereceriam ser objeto da ironia de um Machado de Assis que certamente não escapariam de uma de suas páginas com suas empáfias solenes e vazias. Mas, no mundo da política as coisas não caem pela ação da gravidade como as maçãs de Newton, é preciso uma ação que provoque sua queda, e como tarda entre nós esse movimento o governo que não governa encontra meios para persistir em posições de mando. 

Por falta disso, mesmo que sem um propósito claro, salvo o de se perpetuar no poder, o regime Bolsonaro subsiste diante de uma oposição que passivamente se mantém na expectativa de que a maçã caia no seu colo como anunciam as previsões eleitorais. Tais previsões são conhecidas por todos, escrutinadas pelos estrategistas bolsonaristas, que conspiram em tempo contínuo para que elas não se realizem, inclusive em movimentos de alto risco como nessa viagem a Moscou em plena crise de alcance mundial pela questão da Ucrânia, em claro movimento dissonante da política dos Estados Unidos, potência hegemônica com a qual sempre nos alinhamos. 

A derrota eleitoral em 2022 no segundo turno, se não no primeiro, já faz parte da planilha dos dirigentes bolsonaristas, onde medra a desconfiança com as forças aliadas do Centrão que podem face ao horizonte sombrio que lhes parecem reservar as urnas buscar alternativas de sobrevivência nas hostes da oposição, várias delas treinadas nas artes da convivência com elas.

Para o regime Bolsonaro o processo eleitoral é percebido como a crônica de uma morte anunciada, e, nesse sentido, se prepara para tumultuá-lo e impedir sua tramitação efetiva, reiterando as práticas de Donald Trump nas últimas eleições americanas com a invasão do Capitólio.

Aqui, seu cavalo de batalha é o da denúncia das urnas eletrônicas, garantia de lisura da competição eleitoral, procurando aliciar para esses fins setores das forças armadas. 

Visto dessa perspectiva, a ida a Moscou, nas circunstâncias em que se realizou, perde sua aparência de uma mera visita protocolar, significando uma manobra, certamente arriscada, de mudança da inscrição do país na cena internacional, uma vez que a adesão do Presidente Biden ao tema dos direitos humanos não lhe servir como âncora em iniciativas liberticidas, mais palatável a governos de confissão iliberais e autocráticos como os que agora são objeto de inclinações da sua política externa. Uma vez que a forma rústica de que se reveste o governo Bolsonaro lhe serve para ocultar suas intenções, no caso seu encontro com o presidente Putin dá pistas do seu plano de estado-maior para investir contra o processo eleitoral guarnecido de um anteparo internacional a fim de se defender de reações ao seu intento golpista. 

Nesse cenário, em que de um lado se usam de todos os recursos disponíveis a fim de impedir o caminho institucional a partir do qual as forças democráticas venham a impor pelas urnas a derrota do atual governo, de outro, confia-se cegamente que o curso natural das coisas e o simples fluxo do tempo facultará a interrupção do pesadelo que aflige o país.

Desatenta ao terreno em que pisam, a oposição se entregou ao fetichismo institucional, e, pior, entregou-se a uma disputa fratricida pelo poder, sob a motivação de preservar suas identidades partidárias numa eventual vitória na sucessão presidencial.

Por toda parte, engalfinham-se os postulantes por nacos de poder, como se vivêssemos na plenitude de um regime democrático. 

LULA & ALCKMIN: não é uma simples candidatura, mas a única chance para libertar o Brasil do caos que se instalou desde a posse de Jair Bolsonaro! É defender a democracia!

Com base em ressentimentos do passado, particularmente os que se originaram de equívocos de administrações petistas, desconsidera-se a oportunidade aberta pela feliz iniciativa de próceres que imaginaram a imprevista união entre Lula e Alckmin, duas lideranças saídas do campo democrático, e muitos saem à cata de terceiras vias para voltarem de mãos abanando de suas buscas, que, em alguns casos só servem para justificar seus interesses particularistas.

Não há nada além de duas vias, a do regime Bolsonaro e a democrática, que cabe alargar com a incorporação sem distinção entre todos os democratas.

Somos herdeiros de uma história que começou tisnada pela mácula do latifúndio e da escravidão, que ainda pesam como chumbo às nossas costas, e com a república experimentamos o fascismo com o Estado Novo de 1937, no regime do AI-5 em 1989, e que, de forma latente, nos ameaça agora e não podemos ignorar os sinais sombrios que eles emitem para nós.

Como sempre, o melhor remédio para enfrenta-lo é a união de todos os democratas.

 NOTAS

* Luiz Werneck Vianna graduou-se em Direito (1962), pela Universidade do Estado da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ) e em Ciências Sociais, em 1967, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Obteve seu doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Ao longo de sua vida, tem lecionado em várias universidades brasileiras, dentre as quais a Universidade Federal de Juiz de Fora (onde foi criada uma cátedra com seu nome), a PUC-Rio e a Unicamp. Desde 1980 é professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Presidiu a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e foi um dos fundadores do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes), no Iuperj, instituição que também já presidiu. Suas principais linhas de pesquisa são: intelectuais e modernização no Brasil; relação entre os poderes republicanos; institucionalização das Ciências Sociais; a magistratura como estrato intelectual; organização e funcionamento do Poder Judiciário; relações entre direito, política e sociedade. Publicou inúmeros artigos e vários livros, dentre os quais, os mais recentes são: Diálogos gramscianos sobre o Brasil. Entrevistas com Luiz Werneck Vianna (de autoria de Paula Martins Salles – 2018 – Verbena Editora); Ensaios sobre política, direito e sociedade (2015 – Hucitec Editora); Uma sociologia indignada - Diálogos com Luiz Werneck Vianna (organizado por Ruben Barbosa e Fernando Perlato – 2012 – publicado pela editora da UFJF); Modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era Lula (2011 – Contraponto Editora); A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (2ª edição – 2004 – Editora Revan); A democracia e os três poderes no Brasil (2002 – Editora da UFMG).

** Liliputiano: relativo a Lilipute ou o habitante desta ilha imaginária do romance Viagens de Gulliver, do escritor inglês Jonathan Swift (1667-1745), onde os habitantes medem apenas seis polegadas; daí significar: mesquinho, medíocre, falto de grandeza (Dic. Eletr. Houaiss da língua portuguesa 3.0). 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 23/02/2022).

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

7º Domingo do Tempo Comum – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 6,27-38

 Alberto Maggi *

Frade da Ordem dos Servos de Maria (Servitas) e renomado biblista italiano 

Deus é bondade e misericórdia sempre!

Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso”. Todo o Evangelho de Lucas nada mais é do que uma variação desse tema [a misericórdia], uma reproposição dessa expressão em múltiplas formas. É o que vemos na passagem que comentamos, o capítulo sexto de Lucas, dos versículos 27 a 38, onde Jesus convida seus discípulos a colocarem suas vidas em harmonia com a onda de amor de Deus para torná-la indissolúvel. Mas vamos ouvir Jesus. 

Lucas 6,27-28:** «A vós, porém, que me ouvis, eu digo: amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam. Abençoai os que vos amaldiçoam e orai pelos que vos caluniam.»

O evangelista escreve que Jesus se dirige “A vós que me ouvis”. Portanto, aos discípulos que Jesus proclamou bem-aventurados, e tudo é um convite a um amor dinâmico, a um fazer, não passivo. Ao ordenar “amai os vossos inimigos”, ele revela o que significa harmonizar a vida com o amor de Deus. E Jesus complementa, dizendo: “fazei o bem aos que vos odeiam”. Em grego, literalmente, aqui o evangelista escreve “torna belo, faz bonito”. O termo que é traduzido como “bem” em grego tem o significado de “belo” e este termo é muito importante, inclusive, porque, com ele, esta passagem termina.

O amor é usado para tornar belos aqueles que são feios, porque quem odeia é gente feia.

Então, com o nosso amor devemos torná-los belos, significa colaborar na ação criadora de Deus que, lemos no livro de Gênesis, quando ele cria tudo, ele “viu que era muito bom”, ou seja, muito belo [Gn 1,31]. E, por isso, Jesus nos convida a abençoar aqueles que nos amaldiçoam, a rezar por aqueles que nos tratam mal, para harmonizar a nossa própria extensão de amor com a de Deus. 

Lucas 6,29-30: «Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra. E ao que tira o teu manto, não o impeças de levar também a túnica. Dá a todo que te pedir e, se alguém tirar do que é teu, não peças de volta.»

Também convida a uma atitude positiva em relação à violência, no sentido de que a violência não deve ser sofrida passivamente, mas a violência deve ser neutralizada. É por isso que Jesus diz: “Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra”. A dignidade é perdida por aqueles que esbofeteiam, não por aqueles que são esbofeteados. Depois, com a plenitude da própria atividade, mostrar ao outro a inconsistência de sua ação violenta. 

Lucas 6,31: «Assim como quereis que os outros vos façam, fazei-o vós a eles.»

Então, Jesus se refere ao que era uma regra bem conhecida, chamada de “regra de ouro”. Também a encontramos na história de Tobias, no livro de Tobias no capítulo 4 versículo 15, que era o de não fazer aos outros o que você não quer que seja feito a si mesmo. Bem, para Jesus nunca há o negativo, mas sempre o positivo, por isso, ele muda essa expressão para: “Assim como quereis que os outros vos façam, fazei-o vós a eles”. Portanto, Jesus afirma: “faça aos outros o que você faz a si mesmo”. Então, é uma atitude positiva, é uma atitude criativa. 

Lucas 6,32-35a: «Se amais os que vos amam, que gratidão esperais? Também os pecadores amam os que os amam. E se fazeis o bem aos que vos fazem o bem, que gratidão esperais? Também os pecadores agem assim. E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que gratidão esperais? Até os pecadores emprestam a pecadores para receberem o equivalente. Amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem querer nada em troca. Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo...»

Então, Jesus refere, depois de ter feito o contraste entre o crente e os pecadores, onde constata que não há necessidade de crer em Deus, ser filho/filha de Deus para amar aqueles que nos amam, Jesus afirma que filho de Deus não se nasce, mas um se torna através da aceitação e imitação de seu amor. Na verdade, Jesus diz: “Amai os vossos inimigos”. Portanto, nesta página não há tanto indicações sobre as atitudes que os homens devem ter e o que os homens devem fazer, mas esta página é o retrato de quem é Deus, porque Deus é assim.

Filhos de Deus não nascemos, mas nos tornamos pela imitação de seu amor. 

Lucas 6,35b: «... porque ele é generoso também para com os ingratos e os maus.»

E, aqui, Jesus derruba um dos pilares da religião. Pois, em toda religião e em cada religião, Deus recompensa os bons, mas pune os maus. Bem, Jesus supera tudo isso, Jesus apresenta um Deus não bom, mas exclusivamente bom, cujo amor se dirige a todos. Aqui, Lucas também supera a teologia de Mateus, que havia dito que “Deus era bom para com os maus e para os bons”, aqui não, os bons desaparecem, ele é benevolente para com os ingratos e os maus.

Deus é amor e a sua é uma oferta contínua e crescente de amor a cada pessoa. 

Lucas 6,36: «Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso.»

Aqui, está a palavra que dissemos, é aquela sobre a qual todo o Evangelho de Lucas está centrado: “Sede misericordiosos”. É a única vez que este termo “misericordioso” aparece no Novo Testamento, há, apenas, uma outra vez como uma citação na carta de Tiago. Esta palavra “misericordioso” vem de um termo hebraico que indica o ventre, o útero. E, aqui, Jesus contrasta, ele diz “sede misericordiosos”, ele poderia dizer “como é misericordiosa uma mãe”, porque é disso que se fala, o que está no ventre da mãe. Porém, ele afirma: “como vosso Pai é misericordioso”. Ele contrasta a atitude da mãe com a do pai, mas não a contrasta, na realidade a une: Jesus apresenta um pai que é materno e o amor materno é o do amor incondicional. 

Para isso convida Jesus, a sermos misericordiosos como o nosso Pai é misericordioso. Enquanto no Antigo Testamento o Senhor concluía suas prescrições com o convite “sede santos como eu sou santo”, – mas a santidade pode separar dos outros, santidade entendida como observância de regras, – aqui, Jesus nos convida a ser misericordiosos como nosso Pai é misericordioso e este amor, este amor maternal, este amor visceral não só não afasta, mas aproxima, não separa, mas une. 

Lucas 6,37: «Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados.»

E Jesus prossegue em um crescente. E, aqui, está outra surpresa: “perdoai, e sereis perdoados. O perdão não é obtido indo ao templo, por meio de uma ação litúrgica, mas por uma atitude dinâmica que significa encher de amor quem errou. Perdoar não significa esquecer, mas significa fazer o outro entender:

a sua capacidade de me ferir nunca será tão grande quanto a minha de lhe amar e lhe fazer bem. 

Lucas 6,38: «Dai e vos será dado: uma medida boa, calcada, sacudida e transbordante será colocada no vosso colo, pois com a medida com que medirdes, será medido para vós.»

Em seguida, vem a conclusão, Jesus se refere ao uso dos mercados quando as mercadorias eram colocadas na roupa, que era recolhida e feita tipo de um saco, uma bolsa. O Senhor não se deixa vencer pela generosidade. Nessa dinâmica de amor recebido e amor comunicado, quanto maior o amor comunicado aos outros, maior será a possibilidade de Deus nos transmitir seu amor. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 3. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2019. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“A medida do amor é amar sem medida.” (Santo Agostinho: 354-430 – filósofo, teólogo e bispo da Igreja no norte da África)

Lendo e refletindo esse texto de Lucas, é impossível não nos admirarmos de quanto Jesus é desconcertante! Quanto ele nos surpreende, sempre! Afinal, nós, seres humanos, temos a mania de medir, calcular, delimitar todas as coisas. Porém, Jesus Cristo nos faz perceber e enxergar que não há limites para Deus! Ele ama, ele perdoa, ele é misericordioso sem limites, sem cálculos! 

Ouso dizer que, nessas palavras de Jesus encontra-se, na verdade, o grande segredo da felicidade e capacidade de vivermos neste mundo sem nos deixarmos vencer pelo estresse que significa conviver com outras pessoas. Sim, a convivência é desafiadora! Estar com o outro, viver junto a outros, partilhar a vida com outros pode, aparentemente, significar algo óbvio, normal, da natureza humana. Porém, o outro sempre nos desafia, nos invade, nos inquieta, nos desinstala! Não é por acaso que São Paulo nos diz:

“...suportai-vos uns aos outros e, se um tiver motivo de queixa contra o outro, perdoai-vos mutuamente. Como o Senhor vos perdoou, fazei assim também vós. Sobretudo, revesti-vos do amor, que é o vínculo da perfeição” (Cl 3,13-14; cf. Ef 4,1-3).

Sem sermos bondosos não conseguiríamos viver juntos sobre a face da Terra! Como nos recorda J. M. Castillo: “O centro e o eixo de nossa vida de crentes em Jesus, tem que ser sempre a bondade, a generosidade, a caridade, o amor fraterno. Tudo que não seja isso, é deixar o cristianismo”. Isso não é uma utopia, mas também não é algo fácil, algo óbvio! Não significa despir-me dos meus direitos, renunciar a minha dignidade! 

As palavras de Jesus, neste domingo, nos apresentam dois fortes e urgentes desafios:

1º) Termos a coragem de rompermos com o ciclo da violência, da agressão mútua, da vingança, da mania de superioridade que impera neste mundo! Aprendermos a tratar quem diverge de mim, quem discorda de mim, quem pensa diferente de mim, quem vive diferente de mim, quem encara a vida de modo diverso do meu, não como um inimigo, mas como, um irmão ou irmã a quem devo respeitar e amar sempre, incondicionalmente! Para o cristão, não deve haver “inimigos”!

2º) Amarmos gratuitamente. Sim, a gratuidade é algo em extinção nesse mundo! Corremos o grave perigo de transformarmos tudo em nossa vida em uma mera troca de serviços, favores, valores e assim por diante! A grande infelicidade do ser humano, nos tempos atuais, está em não amar e não ser amado! Muitos não possuem a capacidade de amar! Tudo transformou-se em interesses, satisfações momentâneas, desfrutar o aqui e o agora. 

Viver sem se importar com os outros, desinteressado(a), insensível ao que se passa com os demais seres humanos pode ser uma tentação, pois nos “livraria” de tantas contrariedades. No entanto, uma pessoa que assim agisse e agir não será feliz! Aqui, cabem, perfeitamente, as sábias e proféticas palavras de Dom Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo-emérito de Olinda e Recife (PE):

“Para libertar-te de ti mesmo, lança uma ponte para além do abismo que teu egoísmo criou. Procura ver além de ti mesmo. Procura escutar a um outro e, sobretudo, tenta fazer um esforço para amar em vez de amar a ti mesmo”.

 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Ó alta e eterna Trindade, voltai o olhar da vossa misericórdia para as vossas criaturas. Eu sei que a misericórdia é vossa; e onde quer que eu olhe, não encontro nada além de vossa misericórdia; por isso corro e clamo diante da vossa misericórdia para que façais misericórdia ao mundo. Vossa misericórdia nos criou; a própria misericórdia nos resgatou da morte eterna. Vossa misericórdia nos preserva e prolonga a vida dando-nos tempo para voltar e reconciliar convosco. Ó Pai misericordioso e compassivo, por misericórdia nos concedeis grandes consolações, para que sejamos movidos a amar, pois o coração da criatura é atraído pelo amor. Vossa misericórdia também nos dá e nos permite dores e aflições para que aprendamos a nos conhecer e adquirir a pequena virtude da verdadeira humildade. Por misericórdia reservastes as cicatrizes no corpo de vosso Filho, para que com elas peça misericórdia para nós diante de vossa majestade. Nós vos damos graças. Amém.»

(Santa Catarina de Sena, Oratio IX)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – VII Domenica del Tempo Ordinario – 24 febbraio 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 17/02/2022).

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O mito da meritocracia

 Um elevador sempre em manutenção

 Paul Pasquali

Sociólogo francês, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (sigla em francês: CNRS) e autor de Héritocratie. Les élites, les grandes écoles et les mésaventures du mérite (1870-2020) [Heritocracia. As elites, as grandes escolas e as desventuras do mérito (1870-2020)], Paris, La Découverte, 2021 

PAUL PASQUALI

Em geral concentrado no círculo social que envolve as elites, o debate sobre meritocracia tem um ponto cego: a sorte do um terço da população menos escolarizada

Raras são as fórmulas que resistem ao tempo. Forjadas durante a campanha presidencial de 1995 pelo dirigente liberal Alain Madelin, a “pane do elevador social” atravessou sem problema as últimas décadas. “O elevador social funciona pior hoje do que há cinquenta anos”, declarou o presidente da República francês, Emmanuel Macron, em viagem a Nantes para anunciar a revisão da Escola Nacional de Administração (ENA).[1]

Em sua formulação inicial, o “elevador social em pane” não designava nem o mundinho das elites nem o hermetismo social das grandes escolas. Com essas palavras, Madelin denunciava os obstáculos à liberdade de empreender, ligados, segundo ele, às dificuldades burocráticas e ao “igualitarismo” da esquerda. Vindo de uma família modesta (pai operário, mãe datilógrafa), o presidente do partido Democracia Liberal e ex-membro, nos anos 1960, do grupo de extrema direita Ocidente sonhava com uma França do self-made man e de capitães industriais seguindo o modelo de crescimento adotado pelos Estados Unidos. Madelin reativava assim o tema da “sociedade bloqueada”, sustentado 25 anos antes pelo sociólogo Michel Crozier – ele também bastante liberal. 

A metáfora do elevador conheceu uma espécie de abordagem menos favorável do que a da “fratura social”, expressão soprada no ouvido do candidato Jacques Chirac pelo demógrafo Emmanuel Todd, em 1994. Foi sob a “esquerda plural” (1997-2002) que ela se tornou um lugar-comum designando diretamente a incapacidade do sistema escolar em lutar contra as desigualdades sociais e, cada vez mais, o funil do recrutamento das grandes escolas. Para os socialistas, tratava-se de reconhecer o tamanho de problemas como a reprodução social e a endogamia das elites resumidas pela metáfora, sem utilizar palavrões como “classes sociais” e “dominação”. Foi inclusive Claude Allègre, então ministro da Educação Nacional e do Ensino Superior, que lançou em 1998 a primeira medida de abertura, criando bolsas de mérito para estudantes titulares da menção “bom” ou “muito bom” que desejassem ingressar na ENA, na Escola Nacional de Magistratura (ENM), nas faculdades de Medicina ou em outras escolas muito seletivas. A partir dos anos 2000, a “pane no elevador social” se estendeu progressivamente a todo o campo político. Assunto recorrente na mídia e tema de campanha, era possível encontrá-la no centro do discurso de Nicolas Sarkozy em 2007 e de Macron dez anos depois. 

Essa ideia, porém, se instalou como um mal-entendido. Se os debates recorrentes sobre a “meritocracia à francesa” pareciam frequentemente falsos, era porque confundiam dois fenômenos distintos na realidade. Quando se focaliza o topo da pirâmide, deixa-se a base na sombra. Fala-se de “elevador social” para designar o pequeno número de crianças dos meios populares que conseguem ascender às grandes escolas e às posições de poder mais do que para evocar as chances de mobilidade profissional do terço menos diplomado da população. 

Essa confusão, combinada a uma representação idealizada dos Trinta Gloriosos (1945-1975), alimentou o mito de uma “era de ouro meritocrática”. “Antigamente”, as grandes escolas teriam recompensado todos os talentos e os esforços sem distinção de origem ou fortuna. Antigos bolsistas, de Édouard Herriot a Georges Pompidou, seriam a prova viva. A memória coletiva evacua assim a forte segregação que, até os anos 1950-1960, mantinha a escola do povo (o ensino primário e o primário superior) bem longe da escola dos ricos (o ensino secundário e o superior, ao qual apenas raros alunos dos meios populares tinham acesso). 

É uma farsa a tal da ascensão social, apenas, pela via educacional, em uma sociedade que não permite o acesso à educação de qualidade a não ser a uma elite! Enquanto uns vão de elevador, outros vão pelas longas e intermináveis escadarias!

Uma pesquisa hoje esquecida 

Uma vasta pesquisa hoje esquecida sobre o “sucesso social”, lançada pelo Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined) no fim dos anos 1950, dissipa essa ilusão.[2] Publicado em 1961 sob a direção de Alain Girard, sociólogo conhecido por seus trabalhos pioneiros sobre a homogamia social, o estudo descreve com precisão as elites francesas pertencendo às gerações nascidas sob a Terceira República (1870-1940) e que chegaram ao apogeu de suas carreiras no início da Quarta (1946-1958). Um dos tópicos da pesquisa dizia respeito às personalidades que ocupavam as posições mais elevadas em suas áreas. Majoritariamente parisienses, 3% delas tinham pai operário; 4%, assalariado; e 6%, agricultor; contra 23% que tinham pai funcionário público superior (professor do ensino superior ou médio, principalmente); 22%, advogado, médico ou artista; e 17%, empresário. No total, 68% dessas elites provinham dos 5% das categorias sociais mais altas. Nesse período anterior à massificação escolar, 85% dessas elites tinham estudo superior: um quarto na faculdade de Direito e no Instituto de Estudos Políticos de Paris, um quarto nas grandes escolas mais reconhecidas, a Escola Normal Superior da Rua de Ulm (8%), Central (6%), as Minas (4%), HEC (4%), X (3%) ou Saint-Cyr (2%). 

Outra parte da pesquisa se concentrava nos ex-alunos das grandes escolas: normalistas da Rua de Ulm, politécnicos, centrais, alunos da Agro ou da ENA. Aqui as tendências eram ainda mais claras. Maciçamente parisienses no conjunto, dois terços desses diplomados provinham das classes favorecidas, ou seja, treze vezes mais que na população. Apenas 2% deles eram filhos de operários; 6%, de agricultores; e 4,5%, de assalariados – as três categorias que formavam a imensa maioria do país. A título de comparação, segundo um estudo recente, 83% dos estudantes das quatro escolas mais cotadas (ENS Ulm, X, HEC e Sciences Po Paris) provêm dos meios favorecidos, e 4,5%, dos meios desfavorecidos.[3] Quanto aos antigos vindos das classes médias, eles provinham principalmente de famílias de comerciantes (7%) e de professores primários (4%), mais do que de famílias de artesãos (2%).

Nessa época, metade dos alunos que entravam no ENSINO FUNDAMENTAL 2 deixava a escola antes de chegar ao MÉDIO, e apenas 10% dos alunos dos meios populares entravam no FUNDAMENTAL 2, contra 80% a 90% dos de meios superiores.

Os autores da pesquisa faziam esta constatação:

“As elites são recrutadas não no conjunto da população, mas em grande parte em grupos muito restritos, já no alto da hierarquia social”.

Até mesmo na Rua de Ulm, um templo do elitismo republicano e, de fato, levemente mais aberta socialmente que as outras escolas de mesmo nível, os filhos de operários representavam apenas 2% dos alunos. Quanto aos politécnicos, a pesquisa mostra que a parcela de filhos de operários na instituição era estável desde a criação do estabelecimento… em 1794! Cerca de 1%, proporção observada hoje. Mesmo a jovem ENA, criada em 1945 com o objetivo de democratizar a cúpula do Estado, recrutava “como as outras grandes escolas […] na parte mais favorecida da população”. Apenas os pequenos funcionários aprovados no concurso interno pegavam um “elevador” – já – em mau estado. Três décadas antes da “pane no elevador social”, essa metáfora já apontava um problema cujos dados e respostas mudaram com o tempo, mas não a amplitude nem a recorrência. 

Esse trabalho rico em ensinamentos caiu no esquecimento, eclipsado pelas pesquisas de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (Les Héritiers [Os herdeiros], 1964, e La Reproduction, 1970). Desde seu lançamento, no entanto, a pesquisa do Ined encontrou um amplo eco, tanto na imprensa como nos meios sobre os quais tratava. Misturando curiosidade, desconfiança e divertimento, as reações dão testemunho da ausência de consenso sobre um período frequentemente apresentado como o apogeu de uma França que reconhecia o mérito, com suas bolsas e seus prêmios de excelência, onde quer que ela se manifestasse. Mas a ilusão retrospectiva não resiste aos fatos: nos anos 1950, a própria ideia de uma elite selecionada segundo seus méritos não tinha nada de evidente. Em 1957, o [jornal] Figaro ironizava uma pesquisa que obrigava os entrevistados a fabular, ameaçados de descrédito se revelassem que seu sucesso se devia ao acaso ou a seus privilégios. No mesmo ano, o Le Progrès de Lyon ria de uma pergunta dos pesquisadores (“A que você atribui seu sucesso?”): “Parece que algumas pessoas responderam: ‘À minha total falta de escrúpulos’. Ao que um ex-ministro acrescentou: ‘Eu não tive sucesso: sou um fracassado’. É preciso reconhecer que na França pelo menos existem institutos que conseguem nos fazer rir”.[4] 

No France Nouvelle, jornal semanal do Partido Comunista Francês, o escritor André Wurmser dirigia uma carta ao diretor do Ined, Alfred Sauvy.[5] Ela desenhava o retrato de um humilde militante encarnando uma contrassociedade em que só existia o sucesso coletivo. Originário de uma família de “extrema modéstia”, Wurmser apresentava sua existência como o produto de seu engajamento político: “Foi [o partido] que me fez o que eu sou. Pouca coisa, sem dúvida, mas ainda assim um comunista! Quer dizer, do ponto de vista da honestidade, do desinteresse, da fraternidade e da consciência, algum sucesso”. Fortalecido pela audiência do PCF nas classes populares, Wurmser afirmava sem meias-palavras que as elites não eram escolhidas “pela sociedade”, mas por elas mesmas; não em uma “massa imensa”, mas numa “sociedade hierarquizada em classes”. 

O termo “meritocracia” ainda não existia. Inventado em 1958 pelo sociólogo inglês Michael Young e importado uma década depois pela França, depois da tradução de seu romance distópico The Rise of The Meritocracy, ele logo perdeu seu sentido e sua corrosividade originais à medida que a consciência de classe e as solidariedades forjadas nas lutas diminuíam. Mesmo que a sociedade dos Trinta Gloriosos não tivesse muita coisa a ver com o “elevador social”, ela tinha, no entanto, melhorado a vida de diversas pessoas pouco ou nada diplomadas. Sem entrar na competição escolar nem apresentar um curriculum vitae, era razoavelmente possível almejar o aprendizado de uma profissão, receber um salário decente, ter boas condições de trabalho, obter uma promoção. Por exemplo, um operário qualificado podia esperar um dia se tornar contramestre, ou um técnico com ensino médio completo poderia ser promovido a chefe, com a condição de ter provado sua competência e ser bem-visto pela hierarquia. O estado do mercado de trabalho, os modos de enquadramento e as relações de força nas empresas importavam bem mais do que a esperança das famílias pobres de mandarem seus filhos para a Sorbonne ou para a Rua de Ulm. 

A verdadeira mudança, em relação a isso, reside na irresistível diminuição, nos últimos cinquenta anos, das chances de ascensão profissional para os pouco ou nada diplomados.

Consequência direta de um alongamento geral das escolaridades e da massificação dos primeiros ciclos universitários, os que simplesmente concluíram o ensino médio ou fizeram dois anos de estudos após sua conclusão não têm mais chances de “crescer” ao longo da carreira.

Enquanto em 1970:

* 61% dos filhos de operários que haviam concluído o ensino médio ou o fundamental 2 tinham acesso a um cargo de chefia médio ou superior,

* esse era o caso de apenas 27% deles no fim dos anos 1990.[6]

* Para as filhas de operários de 30 anos, as proporções eram respectivamente de 20% e 12%.

Ainda que o aumento da taxa de diplomados no ensino médio (65% de uma geração em 2010 e 80% em 2019, contra 5% em 1945) dê testemunho de um progresso incontestável, ela também tem por efeito condenar os menos diplomados a abandonar as esperanças de “se virarem”. 

Longe das exortações dos primeiros da fila, os pouco ou nada diplomados continuam sendo os mais expostos ao desemprego e à precariedade. Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e de Estudos Econômicos (Insee), seu salário mensal médio é de 1.500 euros, chegando a 1.288 euros nos empregos pouco ou nada qualificados.[7] Ao contrário, o dos titulares de pelo menos um diploma de três anos de estudo depois da conclusão do ensino médio é de 2.500 euros (em média, todas as profissões misturadas) a 2.900 euros (nas profissões mais qualificadas). Nessas condições, as tensões que minam a sociedade francesa [brasileira, também] não podem se acalmar aumentando-se o número de bolsistas nas grandes escolas.

Apenas um sistema econômico que garanta a todos boas condições de vida (salários, direitos, jornada de trabalho, promoções etc.) é a solução.

Para fazer um mundo comum, as pontes são mais úteis que os elevadores – ou as escadas de serviço. 

Acaba de ser publicado, no Brasil, um livro que vale a pena ler sobre o assunto da “meritocracia”. Ei-lo:

Publicado no Brasil pela Intrínseca Editora, em setembro de 2021. Preço de capa: R$ 79,90


NOTAS:

[1] “Macron enterre l’ENA, un ‘totem’ français” [Macron enterra a ENA, um “totem” francês], Courrier International, 9 abr. 2021. A história esboçada aqui se funda sobre uma análise de quatro jornais (Le Monde, Libération, L’Humanité, Le Figaro) com a ajuda da base Factiva e dos arquivos disponíveis on-line dos três primeiros.

[2] Alain Girard (org.), La Réussite sociale en France [O sucesso social na França], Presses Universitaires de France, Paris, 1961.

[3] Cécile Bonneau, Pauline Charousset, Julien Grenet e Georgia Thebault, Quelle démocratisation des grandes écoles depuis le milieu des années 2000? [Qual democratização das grandes escolas desde meados dos anos 2000?], relatório de pesquisa, Instituto das Políticas Públicas, Escola de Economia de Paris, 2021.

[4] Georges Ravon, Le Figaro, Paris, 24 out. 1957; e Pierre Durosne, Le Progrès de Lyon, 9 out. 1957.

[5] André Wurmser, France Nouvelle, Paris, 31 out.-6 nov. 1957.

[6] Christian Baudelot e Roger Establet, Avoir 30 ans, en 1968 et en 1998 [Ter 30 anos, em 1968 e em 1998], Seuil, Paris, 1998.

[7] Claude Picart, “Le non-emploi des peu ou pas diplômés en France: un effet classement du diplôme” [O não emprego dos poucos ou nada diplomados na França: um efeito classificatório do diploma], Insee Références, Montrouge, 2020. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Mundo – Edição 172 – Novembro de 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 14/02/2022).