«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Solenidade da Santa Mãe de Deus – Ano A – Homilia

 Evangelho: Lucas 2,16-21 

Frei Alberto Maggi*

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Quem experimenta o amor de Deus o reconhece nos pequenos e simples

O primeiro dia do ano novo se abre com uma BOA NOTÍCIA. E qual é essa Boa Notícia? Aqueles que a religião considera os mais afastados e distantes de Deus, para Jesus, são os mais próximos. Vejamos o que o evangelista Lucas nos diz no capítulo 2, versículos de 16 a 21. Para compreender melhor aquilo que o evangelista nos diz, é necessário dar um passo atrás. Os pastores eram considerados pessoas impuras, marginalizadas devido à sua atividade. Eram excluídos como pecadores, porque viviam em um modo fora a lei religiosa, por isso, não podiam participar das funções religiosas do templo e da sinagoga. Acreditava-se, então, que quando o Messias viesse, os castigaria, os puniria. No entanto, quando o anjo do Senhor, que é o próprio Deus, entra em contato com eles, não os incinera em sua ira, mas os envolve com a sua luz, isto é, com o seu amor! Com isso, o evangelista desmente a doutrina tradicional, a qual dizia que Deus recompensa os bons e castiga os maus!

Quando Deus se encontra com os pecadores, não os repreende, não os pune, mas os circunda com o seu amor.

Portanto, esse é o fato que precede a passagem do Evangelho deste domingo. 

Lucas 2,16:** «Naquele tempo, os pastores foram, então, depressa e encontraram Maria e José e o recém-nascido deitado na manjedoura.»

O Filho de Deus, que lhes foi anunciado, não nasceu em um palácio real ou em um templo, mas na condição que eles conhecem. 

Lucas 2,17: «Quando viram o menino, contaram o que lhes fora dito a respeito dele.»

O que lhes foi dito por parte do anjo do Senhor? O anjo do Senhor lhes tinha comunicado uma grande alegria pelo nascimento do Salvador. Portanto, não a chegada do justiceiro, aquele que premiaria os bons e castigaria os malvados, mas do Salvador. Essa Boa Notícia seria para todo o povo! 

Lucas 2,18: «Todos os que ouviram, ficaram admirados com as coisas que os pastores lhes contavam.»

É estranho que, da parte daqueles que escutam os pastores, não há alguma reação de alegria diante dessa notícia, mas, apenas, perplexidade! Há algo que não está certo! Porque na doutrina tradicional, Deus castiga os pecadores. Então, como essas pessoas que são pecadoras e impuras (os pastores) têm a coragem de dizer que Deus os circundou e envolveu-os com o seu amor?! Portanto, os que escutam estão chocados com as notícias trazidas pelos pastores. Desaba aquilo que a religião ensinava. A novidade é o escândalo da misericórdia de Deus para com os pecadores, que será o fio condutor de todo o Evangelho de Lucas! 

Lucas 2,19: «Maria, porém, guardava todos esses acontecimentos, meditando-os em seu coração.»

Mesmo Maria ficou abalada com toda essa novidade. Meditar, aqui, possui o significado de examinar, interpretar, buscar o verdadeiro sentido. Porém, ela não rejeita essa novidade! Ela inicia a sua reflexão, o seu exame de todos esses acontecimentos. Portanto, o evangelista faz notar o grande crescimento de Maria, que a levará até a cruz de seu filho. Ela é grande não tanto por ter dado à luz Jesus, tendo sido a sua mãe, mas ter tido a coragem de segui-lo, tornando-se uma sua discípula! 

Lucas 2,20: «E os pastores voltaram, louvando e glorificando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, de acordo com o que lhes fora dito.»

Agora, para bem compreender o que o evangelista nos diz, se faz necessário recorrer à cultura da época, a qual, em um livro intitulado primeiro livro de Enoque, apresenta Deus, no alto dos céus, separado dos homens. Ao redor dele, encontram-se sete anjos, chamados “anjos do serviço”. O que fazem esses sete anjos privilegiados por estarem mais próximos a Deus? Eles louvam e glorificam a Deus, continuamente. Pois bem, o evangelista nos diz que os “pastores voltaram, louvando e glorificando a Deus”. Portanto, aqueles que a religião da época e a sociedade consideravam os mais distantes e excluídos por Deus, uma vez que experimentaram o amor de Deus, são os mais próximos a Ele, exatamente como os sete “anjos do serviço” do livro de Enoque! 

Lucas 2,21: «Completados os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo, antes de ser concebido no ventre de sua mãe.»

Mas, esse plano divino encontra a resistência dos seres humanos. A novidade trazida por Jesus é difícil de ser acolhida. Os pais de Jesus pretendem, com a circuncisão, fazer filho de Abraão aquele que foi anunciado como o Filho do Altíssimo. Portanto, há, ainda, o apego à lei, à tradição, o Espírito encontrará barreiras para entrar e tornar compreensível essa novidade! Contudo, ele o conseguirá. Mais adiante, neste Evangelho, veremos como Jesus colocará em crise esse casal de genitores, porque eles suspeitam que ele siga os passos dos pais, enquanto Jesus seguirá o Pai

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2021. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Que os humildes o vejam e se alegrem; buscai a Deus, e o vosso coração reviverá, pois o Senhor escuta os pobres.”

(Salmo 69[68],33-34a)

No Evangelho deste primeiro dia do ano, nos deparamos com três situações que nos interpelam, nos desafiam, mexem conosco por dentro. O evangelista faz de propósito. Vejamos: 

1ª) Após a cantoria dos anjos – “Glória a Deus no mais alto dos céus, e na terra, paz a todos por ele amados!” (Lc 2,14) – seria o caso de uma mudança de cena e de personagens também. No entanto, eis que permanecem... os pastores! O evangelista tem um apego a esses personagens, que na época de Jesus, eram pobres, excluídos e pecadores! A ralé da sociedade é que reconhece e acolhe o menino nascido em Belém, o Messias! Eles dirigem-se depressa para o encontro com o menino (vers. 16), essa é outra característica de Lucas: todos que fazem uma experiência forte com Jesus têm pressa! Por exemplo: [a] Maria vai apressadamente para a casa de Zacarias, auxiliar Isabel, sua parente (Lc 1,39); [b] os pastores, sabendo do nascimento do Salvador, vão depressa encontrar o Menino Deus, em Belém (Lc 2,16); [c] Zaqueu desceu depressa da árvore a fim de acolher Jesus em sua casa (Lc 19,6). Não há tempo a perder e nada que deva nos distrair quando se trata de estar junto a Jesus e realizar a sua vontade! Isso serve, muito, para os tempos atuais onde temos pouco foco naquilo que fazemos! 

2ª) Enquanto todos se sentem sacudidos, aturdidos pela experiência dos pastores, justamente por serem eles quem eram (!), Maria se destaca pela sua atitude! Quando o evangelista diz que ela “guardava todos esses acontecimentos”, não significa que ela estava preocupada em reter a maior quantidade de lembranças possíveis de Jesus. Significa que ela colocava juntos os fatos, conectava-os uns aos outros, sabendo colher o sentido deles e descobrir o seu fio condutor. Lucas quer nos dizer que Maria não se deixava condicionar pelas ideias, convicções e tradições de seu povo! Caso contrário, ela não teria sido receptiva e preparada para as surpresas de Deus na vida de seu Filho! E nós, hoje, estamos abertos ao NOVO, refletimos e analisamos as SURPRESAS divinas no mundo e em nossa vida? Conseguimos romper com esquemas e estruturas velhas e estéreis que não nos ajudam mais a compreender e viver a VONTADE de Deus neste mundo? Temos a coragem de ir em busca de novidades, temos iniciativas, somos criativos? 

3ª) Já no finalzinho do Evangelho de hoje, somos colocados diante da cena da circuncisão de Jesus e o conferimento de seu nome. O mais importante, aqui, é a confirmação do nome, pois ele era a identidade do ser humano, indicava a sua missão neste mundo. Geralmente, era a mãe que atribuía um nome ao filho, tendo ouvido o pai. No caso de Jesus foi diferente! O seu nome não procede de seus pais, mas do PAI (Lc 1,31)! Deus não podia receber um nome, pois não era controlável nem subordinado a nada e a ninguém neste mundo! Porém, ao desejar entrar em diálogo com os seres humanos, encarnando-se, tornando-se um deles, Ele teria necessidade de indicar o seu nome, revelar a sua identidade. Portanto, ao escolher o nome de seu Filho, Deus nos diz quem Ele é! Ele é “o Senhor salva”. Essa é a identidade de Deus: aquele que salva! Ele não faz outra coisa, não é destinado a nada diferente do que salvar a humanidade! Não é por acaso que esse nome – Jesus (= o Senhor salva) – apareça 566 nos quatro evangelhos, como que para gravar na mente e no coração das pessoas que não deve haver outra imagem de Deus a não ser a de SALVADOR!

Em Lucas, no entanto, não são os santos, os justos, os muito “religiosos” que chamam Jesus pelo nome. São os marginalizados e aqueles que estão à mercê das forças do mal que o chamarão pelo nome:

a) os endemoniados (Lc 4,34);

b) os leprosos (Lc 17,13);

c) o cego (Lc 18,38); e

d) o criminoso que morre crucificado ao lado dele (Lc 23,42).

É fundamental termos presente esse fato, pois ele revela quais são os destinatários preferenciais de Deus em seu projeto de salvação, de Reino! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Ao anúncio angélico do mistério divino, o que tu fazias, Mãe de um Deus que reina para sempre, preferias – e é um mistério maravilhoso – o tesouro inefável da tua virgindade. Agora compreendo como a tua alma, Virgem Imaculada, é mais querida ao Senhor do que o seu belo Paraíso: compreendo que nela, humilde e doce vale, contém o meu Jesus, oceano de Amor. Amo-te, chamando-te a pequena serva de Deus que encantas com a tua humildade. Esta grande virtude torna-te onipotente porque enamorou a Santíssima Trindade.»

(Fonte: Santa Teresa do Menino Jesus. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico A. Leumann [TO]: Elledici, 2010, p. 90.) 

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – S. MADRE DI DIO – 1° gennaio 2020 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/12/2022).

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Mega-ameaças

 Os 10 principais perigos à humanidade

 Alfredo Zaiat

Pagina|12: 18-12-2022 

NOURIEL ROUBINI: economista estadunidense, de origem judaico-iraniana da Stern School of Business da Universidade de Nova York, desde 2009. É também presidente do grupo de consultoria RGE Monitor, especializado em análise financeira

Previsões de Nouriel Roubini

O mundo à frente se parece menos com as quatro décadas após a Segunda Guerra Mundial, conhecida como a idade de ouro do capitalismo moderno, e mais com as três décadas entre 1914 e 1945. Localmente, essa nova era altera os parâmetros conhecidos e, portanto, outros tipos de intervenções da economia e da política são necessários. 

A fama mundial de Nouriel Roubini, apelidado de Dr. Doom (Doutor catástrofe), começou em 2008, quando a economia entrou em colapso em uma das piores crises financeiras contemporâneas. Ele havia alertado em 2006, em conferência do Fundo Monetário Internacional, sobre o perigo das hipotecas subprime, instrumentos financeiros que mais tarde precipitaram o crash. 

Ele indicou recentemente que o bitcoin, quando negociado acima de US$ 60,000 a unidade, foi supervalorizado e o comparou a uma “fossa”, na qual as criptomoedas cairiam sem a possibilidade de uma rede de contenção. Desde então, os preços desses ativos despencaram. 

Tradução do título e subtítulo do livro: "Mega-ameaças: dez tendências perigosas que põem em risco nosso futuro e como sobreviver a elas", publicado, nos Estados Unidos, pela Little Brown and Company. Edições em espanhol e italiano serão publicadas em janeiro de 2023, em português, ainda não há previsão de publicação

Em seu último livro Megathreats [= Mega-ameaças], ele apresentou os dez principais perigos, desenvolvidos em cada capítulo, que ameaçam a humanidade: 

I - A mãe de todas as crises - a dívida

II - Dívidas públicas e privadas

III - A bomba-relógio demográfica

IV - A armadilha do dinheiro fácil e o fim do boom

V - A grande estagflação que está por vir

VI - O colapso das moedas e a instabilidade financeira

VII - O fim da globalização

VIII - A ameaça da inteligência artificial

IX - A nova Guerra Fria

X - Um planeta inabitável 

Inadimplência ou choque inflacionário

Roubini se autodenomina um “Doutor Realista” para contrariar a imagem de um previsor de desastres econômicos e humanitários. Diante de cada ameaça, apresenta propostas apontando que, se os governos não fizerem nada, ocorrerá a catástrofe. Por outro lado, se avançarem em medidas ousadas e comprometidas, os custos de uma nova era que se avizinha sombria podem ser minimizados

A primeira ameaça da lista é a dívida dos países. Ele afirma que, se não for sustentável, como agora, restam poucas opções. Uma é a suspensão de pagamentos ou governos disparando choques inflacionários para reduzir o valor real da dívida nominal.

Este último tem um custo alto para quem o promove, o que leva Roubini a avaliar que isso não acontecerá e, portanto, aumenta a possibilidade da primeira saída: a destruição do valor da dívida à revelia e posterior reestruturação com remoção de capitais

A liquidação da dívida pública significa uma imensa destruição do capital financeiro do setor privado com o consequente impacto negativo no crescimento da economia e no nível de emprego. 

Tradução do título e subtítulo: "Altas históricas: Em 2020, dívida global experimentou o maior aumento em 50 anos".

A bomba da dívida pública

A situação crítica do estoque da dívida global também vem chamando a atenção de organismos internacionais. O Fundo Monetário Internacional publicou esta semana um artigo destacando esse perigo, em linha com o que Roubini expressou, mas evitando frases dramáticas. 

Na montanha-russa da dívida global, os economistas Vítor Gaspar, Paulo Medas e Roberto Perreli apontam que a dívida global manteve-se acima dos níveis pré-pandemia em 2021. Eles explicam que a dívida pública e privada total diminuiu em 2021 para o equivalente a 247% da Produto Interno Bruto, caindo 10 pontos percentuais em relação ao seu pico em 2020, de acordo com a última atualização do banco de dados da dívida global do FMI. No entanto, expressa em dólares, a dívida global continuou a crescer, embora a um ritmo muito mais lento, atingindo um recorde de US$ 235 trilhões no ano passado

Eles mencionam que as oscilações extraordinariamente grandes nos índices da dívida são causadas pela recuperação econômica pós-pandêmica e pelo rápido aumento da inflação que se seguiu. Ainda assim, a dívida global permaneceu quase 19% do PIB acima dos níveis pré-pandêmicos, “o que representa desafios para os formuladores de políticas em todo o mundo”, dizem eles. 

Esta troika de economistas do FMI adverte que a gestão de elevados níveis de dívida se tornará cada vez mais difícil se as perspectivas econômicas continuarem a deteriorar-se e os custos dos empréstimos aumentarem ainda mais. 

TRADUÇÃO: "Perfil de risco: Parcela de tarefas que poderiam ser automatizadas com as tecnologias atuais". Subdivididas por: gênero (gender), idade (age) e raça/etnia (race/ethnicity)

O perigo do uso da Inteligência Artificial

Roubini também escreveu The Age of Mega Threats [= A Era das Mega Ameaças] no portal Project Syndicate. Ele cita que um desses perigos são os avanços da Inteligência Artificial (IA), da robótica e da automação, pois vão destruir cada vez mais empregos, mesmo que os governos construam muros protecionistas mais poderosos para defender o mercado de trabalho do povo. 

Referindo-se aos países desenvolvidos, ele aponta que, ao restringir a imigração e exigir mais produção doméstica, essas economias envelhecidas criarão um incentivo mais forte para as empresas adotarem tecnologias que economizam mão de obra.

Ele aponta que, embora os trabalhos rotineiros estejam obviamente em risco, também estão os trabalhos cognitivos que podem ser divididos em tarefas discretas e até mesmo muitos trabalhos criativos.

Roubini explica que os modelos de linguagem de IA como o GPT-3 já podem escrever melhor do que a maioria dos humanos e quase certamente substituirão muitos empregos e fontes de renda.

Para concluir que “com o tempo, o mal-estar econômico se aprofundará, a desigualdade aumentará ainda mais e mais trabalhadores de colarinho branco e azul serão deixados para trás”. 

Inflação e estagnação

Os aumentos persistentes de preços, ao mesmo tempo que se desenrola uma recessão econômica, é a combinação que Roubini vislumbra por um período prolongado.

Ele diz que a situação macroeconômica atual não é das melhores. Detalha que, pela primeira vez desde a década de 1970, a economia mundial enfrenta alta inflação e as perspectivas de uma recessão global. Essas duas variáveis ​​juntas têm como equilíbrio a estagflação.

O aumento da inflação nas economias desenvolvidas não é transitório, como avaliaram vários analistas, mas sim persistente porque é impulsionado por políticas monetárias, fiscais e creditícias excessivamente frouxas e mantidas por muito tempo.

A isso se somou o “azar”, que Roubini define por não ser possível prever como a pandemia impactaria a cadeia de abastecimento de bens e o mercado de trabalho. O mesmo aconteceu com a guerra na Ucrânia, que provocou uma forte alta nos preços de energia, alimentos, fertilizantes, metais industriais e outros produtos básicos.

As mudanças climáticas estão exercendo um imenso impacto na economia mundial, especialmente na agricultura, na pesca, no deslocamento de pessoas etc.

Quanto tempo vai durar a estagflação?

Um aspecto relevante desse diagnóstico pessimista é quanto tempo vai durar esse quadro econômico crítico. Para Roubini, quando a recessão chegar, ela não será curta e rasa, mas longa e profunda. Ele explica essa projeção de que “não apenas estamos enfrentando choques de oferta negativos persistentes no curto e médio prazo, mas também estamos caminhando para a mãe de todas as crises de dívida”.

Ele lembra que os baixos índices de endividamento “nos salvaram daquele resultado na década de 1970”, quando também houve anos de inflação e recessão.

Na crise de 2008, houve também uma crise da dívida devido ao estouro do endividamento das famílias, bancos e governos. Mas naqueles anos houve deflação, não aumento de preços. 

“Hoje, estamos experimentando os piores elementos das crises de 1970 e 2008: múltiplos e contínuos choques negativos de oferta coincidindo com índices de endividamento ainda mais altos do que durante a última crise financeira global”, avalia.

A crise global é agora agravada pelas consequências das mudanças climáticas que estão alterando o funcionamento da economia global

Mais desigualdade em um mundo desigual

O saldo dessas mega-ameaças é previsível:

a) o aumento da desigualdade de renda e riqueza,

b) que acentua a rejeição social ao atual sistema democrático,

c) alimentando correntes políticas de extrema-direita

O mundo que temos pela frente parece menos com as quatro décadas após a Segunda Guerra Mundial, conhecida como a idade de ouro do capitalismo moderno, e mais com as três décadas entre 1914 e 1945.

Este último período levou a duas guerras mundiais, à pandemia chamada gripe espanhola, o crash [= quebra] da bolsa e financeiro de 1929 e a subsequente depressão dos anos 30, guerras comerciais, hiperinflação e expansão de regimes de extrema-direita (fascismo e nazismo).

A tudo isto juntam-se agora as consequências das alterações climáticas que alteram o funcionamento da economia global.

Em chave local, então, é preciso observar que esta nova era altera os parâmetros conhecidos e, portanto, outros tipos de intervenções da economia e da política são necessários

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 23 de dezembro de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/12/2022 – às 19h50).

Sínodo: uma palavra de teólogo

 Peter Hünermann escreve ao papa Francisco

 Maria Elisabetta Gandolfi

Il Regno: 21-12-2022 

PETER HÜNERMANN

Os nós (Igrejas locais - conferências episcopais - Igreja universal - cúria romana) ficaram evidentes

O duro confronto que viu como protagonistas os 62 bispos alemães em Roma em sua visita ad limina no final de novembro pôs em evidência algumas questões teológicas. No site da Conferência Episcopal Alemã, além de uma página em italiano (e inglês e espanhol) sobre o Caminho Sinodal em geral, encontram-se também os textos das intervenções do lado alemão em Roma. Deve-se assinalar que em 24 de novembro apareceu no Vatican News um resumo em alemão das apresentações dos cardeais Ouellet (Dicastério para os Bispos) e Ladaria (Dicastério para a Doutrina da Fé) proferidas no encontro a portas fechadas entre os bispos (não tiveram acesso os leigos que colaboram de forma permanente com a Conferência Episcopal) e alguns chefes de dicastérios da cúria. 

Não há cisma, mas pecado estrutural 

Por isso é útil propor algumas passagens da Carta Aberta que o teólogo alemão de 93 anos Peter Hünermann publicou na edição de novembro da revista Herder Korrespondenz

«Permita-me hoje exercer meu papel de teólogo em “diálogo constante com o mundo”», segundo o texto da Comissão Teológica Internacional: perspectivas, princípios e critérios de 2012 (Regno - doc. 9.2012, 280): é a abertura da carta, pontuada pela tríade «ver-julgar-agir». 

Hünermann parte da Declaração da Santa Sé, divulgada pela Sala de Imprensa em 22 de julho passado, sobre o Caminho Sinodal na Alemanha, que fala de um «esclarecimento necessário» quanto à salvaguarda da «liberdade do povo de Deus» e ao «exercício do ministério episcopal». Ambos – afirma o teólogo – «são fatos centrais da eclesiologia e pertencem à fé da Igreja». E, no entanto, precisamente sobre esses temas centrais, teme-se um «cisma» se o Caminho Sinodal Alemão continuar o seu percurso. «Como se chegou a esse juízo?» - ele se pergunta. 

Na Constituição Apostólica Episcopalis communio (15.09.2018), o Papa Francisco planeja aprofundar e desenvolver o Sínodo dos Bispos anunciado durante o Concílio Vaticano II.

Ele «expressa a dimensão supradiocesana do munus episcopal, [que] é exercida de forma solene na venerável instituição do Concílio Ecumênico e manifesta-se também na ação conjunta dos bispos espalhados por toda a terra, uma ação que seja proclamada ou livremente acolhida pelo romano pontífice».

Cabe então ao Papa, «conforme as necessidades do povo de Deus, identificar e promover as formas pelas quais o colégio episcopal possa exercer sua autoridade sobre a Igreja universal» (n. 2; Regno-doc. 17, 2018,529).

Nos números 5 e 6 o Papa fala «longamente – afirma Hünermann – do processo de consulta ao povo de Deus, de escuta do sensus fidelium, porque o pontífice e os bispos são mestres e discípulos».

Então – pergunta-se o teólogo - onde está o problema com o Caminho Sinodal Alemão? 

«Segundo a minha avaliação teológica da situação, a Conferência Episcopal Alemã teria cometido uma falta grave se, após a publicação do estudo sobre MHG» de 2018, «não tivesse imediatamente admitido os abusos, convidado ao arrependimento e anunciado uma séria renovação (…) Assim, em tempos bastante breves, com grande maioria em março de 2019, o Caminho Sinodal foi concebido e implementado em solo alemão», apenas um mês após a cúpula do Vaticano sobre as violências (cf. Reino-att. 6.2019.131), que, segundo o teólogo, «infelizmente não produziu nenhum resultado concreto». 

O Caminho Sinodal Alemão propõe-se a ser um «lugar de discussão para um debate estruturado dentro da Igreja Católica na Alemanha». E não é apenas um «lugar de debate», mas muito mais: um «processo eclesial». Um processo público «de arrependimento e reconciliação entre a Conferência Episcopal e o povo de Deus na Alemanha» que se sentiu traído e abandonado. 

Portanto, há «uma conferência episcopal, condenada por um inquérito público por abuso de poder, que admite a sua culpa e afirma a sua disponibilidade ao arrependimento. Ela é culpada diante de Deus, é culpada diante do povo de Deus, quem pode absolvê-la?». 

«Trata-se de um pecado estrutural dentro do qual se cometeu uma numerosa série de pecados pessoais (…) Os pecados estruturais dizem respeito às instituições. Eles ocorrem quando as instituições desviam da sua função».

Admissão pública de culpa 

«Algo semelhante aconteceu na Igreja Católica, na Alemanha e no mundo. Na década de 1990, os contornos desse pecado estrutural ficaram evidentes em casos como o do arcebispo Hermann Groër, de Viena, na prática implementada pelo arcebispo de Boston, card. Bernard Law», distinguindo naturalmente entre «bispos que são eles próprios perpetradores de abusos e bispos que encobriram os abusos de várias formas». 

Não se pode pensar que isso se aplique apenas à Alemanha.

“Este é um problema de toda a Igreja, em todos os continentes. Por toda parte houve e há autores de abusos entre o clero, entre 5 e 10% (…) em toda parte acompanhados por encobrimentos pelos bispos. Uma prática que chegou até os vértices da cúria romana”.

E aqui o idoso teólogo tira algumas pedrinhas dos sapatos, citando o caso do cardeal Schönborn que, tendo criticado publicamente a expressão «tagarelice» utilizada em 2010 por Angelo Sodano, então decano do colégio cardinalício, para se referir aos delitos do cardeal Groër, foi obrigado por Bento XVI a fazer um pedido público de desculpas, porque só o papa pode repreender publicamente um cardeal. 

Uma ação dupla é, portanto, necessária, escreve Hünermann. Por um lado, os culpados «devem ser tratados como tais». Mas, por outro lado, décadas de encobrimento com o objetivo de «preservar a “reputação” da Igreja em vez de ajudar as vítimas» exigem uma ação diferente

«Requer-se uma admissão pública de culpa pela Igreja Católica Romana, representada por suas autoridades: em relação a Deus, de Jesus Cristo, do Senhor da Igreja, do povo de Deus; em relação às vítimas de abusos, das autoridades civis, pelo descumprimento da lei civil. E uma confissão pública de culpa por um pecado estrutural e institucional contra Deus, Jesus Cristo e o povo de Deus» deve ser acompanhada por uma renovação «enraizada no arrependimento, que tem sua expressão concreta no planejamento e nas medidas de uma práxis diferente».

Portanto, é por esta razão que «a Igreja na Alemanha iniciou o caminho sinodal». E não há dúvida de que reflete a situação alemã, algo «inevitável no caso de pecados estruturais. Se um processo semelhante fosse iniciado na Itália, isso se veria bem rapidamente». 

Bispos alemães reunidos com o Papa Francisco durante a visita ad limina apostolorum, novembro de 2022

Crise, Sínodo, soluções

Mas, eis o ponto: à luz da Episcopalis communio e da Carta ao povo de Deus na Alemanha surge uma «pergunta teológica»: é possível realizar «um passo em direção ao reconhecimento e a concretização da sinodalidade sem reconhecer a crise dos abusos e enfrentar a sua solução? A Secretaria de Estado parece querer que a Igreja alemã faça exatamente isso». 

Para o teólogo, porém, isso «não é possível». Porque «levaria a uma contradição interna: se o processo sinodal (...) diz respeito à análise e ao aprofundamento da natureza da Igreja, não é possível ignorar o estado atual como ponto de partida: a distância do próprio ser através do caso do abuso, que devemos confessar diante de Deus e do povo de Deus, e a conversão constituem o ponto de partida do caminho rumo à sinodalidade».

Talvez outras conferências episcopais não estejam prontas, mesmo que «o reconhecimento das vítimas» das violências e abusos e algumas formas de ressarcimento tenham ocorrido em vários países, mas não em todos, também devido ao diferente status jurídico das conferências episcopais nacionais. 

«A teologia tem a tarefa de apresentar a ratio fidei. Tem uma função de serviço em relação à liderança da Igreja e do povo de Deus, só pode ser eficaz por meio de sua palavra. Nesse sentido, é pobre e impotente. Mas a sua responsabilidade e a sua força residem ao mesmo tempo neste serviço.» 

A longa carta conclui com uma «sugestão concreta» sobre o Documento para a etapa continental, que não era conhecida no momento da redação do texto. Hünermann afirma que constitui mais uma oportunidade para «frisar o problema dos abusos como ponto de partida concreto» para a almejada realização da sinodalidade.

«O que à primeira vista pode parecer a alguns bispos uma complicação para alcançar uma real sinodalidade, na verdade se revelará um ganho para uma solução sólida e duradoura (...) O futuro da Igreja depende disso».

Traduzido do italiano por Luisa Rabolini. Acesse a versão integral dessa carta-aberta, em língua alemã, clicando aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 22 de dezembro de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/12/2022 – às 17h55).

‘‘Radiografia do desmonte’’

 Alckmin elenca 11 pontos principais no relatório final da transição

 IHU

Redação 

Evento de divulgação do Relatório Final do Gabinete de Transição do Governo Bolsonaro para Lula. Da esquerda para a direita, temos: Lula, Alckmin e Mercadante

Foram afetados, de forma irreversível, a vida, o futuro e as esperanças de milhões de brasileiros

Na manhã desta quinta-feira (22 de dezembro), o futuro vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), líder da equipe de transição para o Governo Lula (PT), apresentou um relatório com uma “radiografia do desmonte do Estado e das políticas públicas” durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL). Em suas redes sociais, Alckmin listou algumas das maiores questões levantadas no documento: 

Na área da educação, a constatação é que, nos últimos três anos, o número de crianças que não conseguem ler e/ou interpretar textos saltou de 50% para 70%, o pior resultado em dez anos. O governo federal reduziu em 85% o orçamento e em 66% o número de servidores na cultura. 

Para a saúde, o ponto principal foi a pandemia de covid-19. Com 2,7% da população mundial, o Brasil registrou 11% do total de óbitos pela doença no mundo, sendo o 2º país com maior número de vítimas. Ainda, o documento aponta que 34 milhões de cidadãos brasileiros não receberam nenhuma dose da vacina contra a covid-19, enquanto 3 milhões de doses foram inutilizadas por perda de validade. A vacinação contra a poliomielite em crianças de até quatro anos caiu de quase 100%, em 2015, para 70%, em 2022, diz o documento. 

No desenvolvimento social, chamou a atenção o aumento de 11% na hospitalização de crianças por carência alimentar, o pior índice em 14 anos.

Mais da metade da população brasileira, 125,2 milhões de pessoas, vive com algum tipo de insegurança alimentar.

O país também bateu o recorde no número de feminicídios, com 700 casos em seis meses de 2022. 

Ainda de acordo com o relatório, o índice de desmatamento na Amazônia aumentou 59% entre 2019 e 2022. No último mês, foi registrado um aumento de 1.216% em focos de incêndio nos estados de Amazonas, Acre e Rondônia. Na infraestrutura, 93,66% da malha rodoviária federal com contrato de manutenção não possui serviço de prevenção e restauração das rodovias

Na habitação, o governo zerou as contratações de famílias com renda de até R$ 1.800 do programa Casa Verde Amarela. Na transparência, 26,5% dos pedidos de acesso à informação requisitados foram negados por decretos de sigilo, número quatro vezes superior à gestão anterior. 

Além disso, o Brasil deve R$ 5,5 bilhões em aportes obrigatórios junto a órgãos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU). 

O relatório completo pode ser acessado clicando aqui. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 22 de dezembro de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/12/2022 – às 17h30).

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Missa da Noite de Natal – Ano A – Homilia

 Evangelho: Lucas 2,1-14

 Frei Alberto Maggi*

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

A ternura e a bondade dominaram a escuridão e conquistaram o coração humano

Em uma homilia durante a Missa da Vigília de Natal, 24 de dezembro de 2018, na catedral de Codroipo, município italiano da região do Friuli-Venezia Giulia, província de Udine, o estudioso bíblico Alberto Maggi descreve a festa de Natal da seguinte forma:

«Tão magro e seco é o que os Evangelhos escrevem sobre o Natal, como se tornou melosa a forma de apresentá-lo e vivê-lo. O nascimento de Jesus é, de fato, como se untado em um melaço adocicado, que corre o risco de atolar a verdade evangélica em um belo conto de fadas que toca as cordas dos sentimentos, mas que pouco ou nenhum efeito tem sobre a vida de quem crê».

Palavras fortes, claro, mas eu as sinto tão verdadeiras. Pensando nas muitas conversas das últimas semanas, estou convencido de que é por causa desse doce melaço que para muitos o Natal se tornou um feriado maldito. Vazio de qualquer referência evangélica, resta apenas a lembrança amarga das alegrias passadas, separações dolorosas, doenças e lutos. E os médicos nessas horas têm trabalho adicional porque muitas vezes essas feridas da alma são transferidas para o corpo.

Em vez disso, o que é apresentado nos evangelhos é o oposto da história de um feitiço infantil. É necessário, portanto, proceder a uma eficaz operação de limpeza, para atingir o sentido profundo da narração evangélica, fazendo-a ressurgir daquele acúmulo de lendas, tradições, devoções, folclore, que a sepultaram. O biblista continua: «A luz que surge depois da obra de restauração é o anúncio da realização do desígnio de Deus para a humanidade:E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós”» (Jo 1,14). 

Lucas 2,1-2:** «Naqueles dias foi publicado um decreto do imperador Augusto ordenando o recenseamento do mundo inteiro. Esse primeiro recenseamento aconteceu quando Quirino era governador da Síria.»

Esta é a nova canção de Natal que traz os traços de uma revolta, uma revolta não violenta, contra os poderosos e valentões deste mundo, como César Augusto que conta os homens (= recenseamento) para conseguir dinheiro e poder. 

Lucas 2,3-5: «Todos iam registrar-se, cada um em sua própria cidade. Também José – que era da casa e da linhagem de Davi – subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de Davi, chamada Belém, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.»

PRIMEIRA SURPRESA: Lucas escreve que neste contexto de controle social «José subiu da Galileia à cidade de Davi, chamada Belém». Quem conhece a Bíblia sabe que a cidade de Davi é Jerusalém, a capital onde o grande rei iniciou sua monarquia. Mas Lucas discorda. Afirma que a cidade de Davi é Belém. Sim, porque em Belém Davi era pastor, em Jerusalém era rei. Quer deixar claro que aquele que está para nascer será descendente de Davi, mas não terá as características de um rei, mas sim de um pastor. E isso é subversivo, se você pensar que os rabinos pregavam que no dia do juízo o Messias varreria da terra todos os ímpios e, antes de tudo, os pastores, porque eram considerados homens muito livres, bandidos.

E nesta versão da cidade de Davi, Deus manifesta seu poder por meio do evento “invisível” do nascimento de uma criança.

Um acontecimento insignificante que brota logo no censo, mostrando a força mansa, mas implacável do tenro broto de Jessé que consegue erguer o solo mais resistente.

E, aqui, está o julgamento histórico. Se o homem divinizado, César Augusto, mortifica os homens verificando-os e contando-os, o Deus feito homem garantirá que todos os homens sejam colocados em posição de se tornarem plenamente humanos. Dele aprenderão a viver neste mundo radicalizando o bem. 

Lucas 2,6-7: «Quando estavam ali, completaram-se os dias de ela dar à luz. Ela deu à luz o seu filho, primogênito, envolveu-o em faixas e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.»

O nascimento de Jesus em Belém é narrado por Lucas como uma história de resiliência. José e Maria são obrigados a submeter-se aos caprichos do imperador, fazem uma viagem cansativa e perigosa, adaptam-se a um abrigo improvisado, passam a noite com pastores e animais foragidos. No entanto, esses eventos adversos não os irritam, pelo contrário, os impulsionam a fazer todo o possível a partir de sua pobreza, invisibilidade social, falta de poder para mudar as coisas.

E, assim, brota a força branda, mas poderosa, aquela que nasce da fraqueza, de ter sofrido abusos, mas sem se deixar dobrar. É assim que o bem começa a crescer no ritmo da vida de uma criança, até se tornar implacável, um contrapoder que se mostrará o único capaz de mudar as coisas

Lucas 2,8-14: «Na região, havia pastores que passavam a noite no campo, tomando conta do rebanho. Um anjo do Senhor apresentou-se a eles e a glória do Senhor os envolveu de luz. Eles ficaram tomados de grande temor. O anjo então lhes disse: “Não temais! Eu vos anuncio uma grande alegria, que será também a de todo o povo: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós o Salvador, que é o Cristo Senhor! E isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deitado numa manjedoura”. De repente juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste louvando a Deus e dizendo: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e na terra, paz a todos por ele amados!”»

Caríssimos, o Natal ensina-nos a procurar o futuro na história dos pequeninos deste mundo, entre os invisíveis, os rejeitados, os descartados. Ali está o verdadeiro laboratório do qual depende o destino da humanidade. E é nesses mundos paralelos que devemos buscar nossas alianças.

Então o Natal nos ensina que o verdadeiro poder está sempre desarmado. A difusão de episódios de protesto cada vez mais belicosos e violentos volta a encher as páginas dos noticiários:

* grupos de militantes neonazistas;

* grupos de ataque aos membros da comunidade LGBTQIAP+;***

* feminicídios;

* estudantes que disparam e matam nas escolas;

* grupos racistas que atacam, ferem e matam moradores em condição de rua, indígenas, etc.

Na web (= internet), nas redes sociais e nos jornais, as linguagens estão cada vez mais ferozes. Assim, acabamos nos dilacerando, talvez em nome de uma reivindicação extrema de liberdade. Se olharmos de perto. O exército dos indignados muitas vezes descarrega apenas uma raiva surda, mais filha do vazio do que da injustiça.

Também de Belém começa uma revolução, mas construtiva, que acredita na força da mansidão, na dignidade da pessoa e na onipotência dos sentimentos que, se cultivados, podem habitar o seu coração.

E aqui está o SEGUNDO MILAGRE: no meio da noite, figura de todas as noites da história da humanidade, a ternura se manifesta. Ternura precisamente onde poderiam ter surgido a arrogância, a violência, a indiferença e a maldade. Lucas nos conta não só o cumprimento do mistério de Deus, mas também o cumprimento do mistério do homem nas atitudes de Maria e José.

Assim, o nascimento do Salvador molda um modo de vida, dá forma à humanidade.

Em Maria, o acolhimento do Filho torna-se uma série de gestos simples, mas inequívocos: deita-o na manjedoura, envolve-o em panos, oferece-o ao mundo no encontro de quem quer aproximar-se dela.

Somos levados a pensar que esta ternura instintiva se torna o fundamento da humanidade de Jesus e, se pensarmos bem, o fundamento de todo o seu Evangelho.

Assim é o milagre humano que ilumina a noite de Belém, a força silenciosa que permite que o milagre divino permaneça na história e não se perca na noite.

Se isso for verdade, então entendemos que celebrar o Natal do Evangelho nos educa a sermos mais humanos, a evitar a indiferença e a praticar a mansidão. E se aqueles que vão se cumprimentar nestas horas realmente o celebrassem sob esta luz, talvez houvesse menos desespero ao nosso redor.

Sim, porque a mansidão e a ternura evangélica se opõem a qualquer sentimentalismo vazio, pois pedem para se tornar um gesto no cuidado da vida, na sensibilidade por tudo o que é frágil e vulnerável.

Tenha cuidado para não ceder à poesia novamente, no entanto. A ternura não é apenas a atitude de uma mãe para com seu filho. A ternura é constitutiva do amor adulto e maduro. É o aspecto visível daquele amor que – como diz São Paulo – não inveja, não busca os próprios interesses, não mente, não falta respeito, não se vangloria, não se orgulha, não humilha, não despreza, pelo contrário, tudo lamenta, tudo acredita, tudo espera, tudo suporta (cf. 1Cor 13,4-7).

A ternura é o destilado desse amor que nunca vai acabar. Mas é um destilado poderoso. Em Belém cumpriu-se a palavra da Escritura:

«18,14 De fato, quando um tranquilo silêncio envolvia todas as coisas e a noite chegava ao meio do seu curso, 18,15 a tua Palavra todo-poderosa, vinda do céu, do seu trono real, precipitou-se... ao meio de uma terra condenada ao extermínio. 19,6 Então, a criação inteira, obediente às tuas ordens, foi remodelada em cada espécie de seres, como no princípio, para que teus filhos fossem preservados ilesos.» (Sb 18,14-15; 19,6)

E assim continuará a acontecer em cada geração, até ao fim dos tempos, onde a Palavra mansa, mas poderosa será acolhida e vivida com inexorável ternura. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2021.

*** A sigla LGBTQIAP+ significa: L = lésbica; G = gay; B = bissexual; T = transgênero, travesti e transexuais; Q = queer; I = intersexual; A = assexual; P = pansexual; + = o sinal de mais está aqui para indicar que a comunidade inclui mais expressões de gênero e de sexualidade, como o arromantismo (não ter desejo de viver um romance) e o poliamor (cultivar vários relacionamentos amorosos ao mesmo tempo).

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor Jesus, nesta noite santa contemplamos o rosto de Deus no teu rosto, o teu esplendor recorda-nos o nosso antigo esplendor e antecipa e assegura-nos que, pela tua paixão, morte e ressurreição, também nós, um dia, teremos parte nesse brilho e graça. Pelo teu dom. E hoje nós, inconscientes como os pastores, chegamos à gruta para observar, para querer compreender, para tocar com as mãos o anúncio do anjo... Diante de tanta bondade e luz, fica muito claro para nós o que devemos fazer: tirar os sapatos, vestir a veste branca da graça, converter-nos e depois... comportar-nos como Maria: contemplar-te com os olhos em adoração, alimentar-nos com os olhos e o coração do teu Corpo santo que alimenta e dá vida, e... parar para apreciar todas essas coisas, ponderando-as em nossos corações. Depois e só depois de nos teres fortalecido por te teres feito nosso dom, dom da graça e instrumento de vida nova, também nós somos chamados, com os pastores, a regressar à nossa pálida vida quotidiana "glorificando e louvando a Deus por tudo o que eles tinham ouvido e visto”. Amém.»

(Fonte: Marino Gobbin. Natale del Signore: orazione finale. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico A. Leumann [TO]: Elledici, 2010, p. 73-74.)

Fonte: Collaborazione Pastorale di Codroipo – Omelia nella Notte di Natale – Duomo di Codroipo, 24 dicembre 2018 – Internet: clique aqui (Acesso em: 15/12/2022).