«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Prioridade número 1: combater a fome

 Renda dos 5% mais pobres não compra nem dois pratos feitos por mês

 Leonardo Vieceli

Jornalista 

Simone Maria Cordeiro, 47 anos, vive com 6 dos 11 filhos em uma ocupação no centro do Rio de Janeiro e precisa recorrer a doações para complementar os R$ 565 mensais de auxílios sociais. Foto: Eduardo Anizelli / Folhapress

Inflação, desemprego e fim de auxílio afetam vulneráveis, dizem economistas

Em uma metrópole como São Paulo, a renda dos brasileiros 5% mais pobres pode não ser suficiente nem para comprar duas unidades do famoso prato feito, o pê-efe, ou um quilo de carne por mês. 

Em 2021, os cerca de 10 milhões que integravam esse grupo no país viram o rendimento mensal domiciliar per capita (por pessoa) despencar para R$ 39 em média. 

O tombo foi de 33,9% ante 2020 (R$ 59), o mais intenso entre as camadas da população investigadas na Pnad Contínua: Rendimento de Todas as Fontes 2021. 

A pesquisa, divulgada neste mês pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), vai além do mercado de trabalho e também avalia a renda obtida com outras fontes de recursos, como benefícios sociais, aposentadorias e aluguéis. 

Na capital paulista, uma refeição ao estilo prato do dia ou prato feito saía por R$ 23,90, em média, em outubro de 2021, segundo levantamento feito pelo Procon-SP em parceria com o Dieese. 

Ou seja, em uma situação hipotética, os R$ 39 da renda dos brasileiros 5% mais pobres ficariam abaixo do valor de apenas dois pê-efes: R$ 47,80. 

O rendimento da camada mais vulnerável também era inferior, por exemplo, ao preço de um quilo de carne de primeira na capital paulista. 

Em dezembro de 2021, o produto custava R$ 42,89 em média, de acordo com outra pesquisa realizada pelo Procon-SP em parceria com o Dieese. 

Na visão de economistas, os dados ilustram o tamanho do desafio social que o país enfrenta após a chegada da pandemia. 

Além de serem afetados pelas restrições de inserção no mercado de trabalho e pela inflação em escalada, ...

... os mais pobres também sentiram a redução ou o fim de benefícios sociais como o auxílio emergencial, criado em 2020 e encerrado em 2021.

“No início do auxílio emergencial, a gente viu um efeito grande no combate à pobreza, e isso tinha de ser feito. Agora, a situação está muito difícil. A fila de espera por ajuda está crescendo”, diz o economista Alysson Portella, pesquisador do Insper. 

Em dezembro de 2021, o preço médio de um botijão de gás de cozinha de 13 quilos foi de R$ 102,32 no Brasil, conforme a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis). 

Isso significa que, em uma família de três pessoas e com renda de R$ 39 por integrante, a compra de um botijão consumiria 87,5% do rendimento total (R$ 117). 


Segundo os dados divulgados pelo IBGE neste mês, a renda individual também despencou mais de 30% na faixa dos brasileiros que estavam acima dos 5% e até os 10% mais pobres do país.

De 2020 para 2021, o rendimento médio mensal desse grupo recuou de R$ 217 para R$ 148 por pessoa, uma baixa de 31,8%, a segunda mais intensa da pesquisa. 

“O pior é que, além de a renda das camadas mais pobres ser muito baixa, ela é instável. Flutua muito”, ...

... afirma o economista Marcelo Neri, diretor do centro de políticas sociais FGV Social. 

“Nos últimos anos de pandemia, com a entrada e a saída do auxílio emergencial, essa volatilidade aumentou”, completa Neri, que chama atenção para o aumento da fome no Brasil como uma das consequências da atual crise. 

Segundo análise recente do FGV Social, a partir de dados do Gallup World Poll, a parcela de brasileiros sem dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento dos últimos 12 meses subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021. O percentual é recorde na série iniciada em 2006. 

Responsáveis por iniciativas sociais relatam que a procura por doações de mantimentos segue aquecida, mesmo após as fases mais críticas da pandemia. 

Atualmente, 33 milhões de pessoas passam fome no país, ...

... apontou o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado neste mês. 

O contingente é similar ao registrado 30 anos atrás. Em 1993, eram 32 milhões nessa situação. 

“A gente percebe quando a situação piora nos territórios em que a gente atua antes de os dados do IBGE mostrarem isso”, afirma Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor-executivo da ONG Ação da Cidadania. 

Qualquer melhora [no apoio aos vulneráveis] passa pelo combate à fome. Se a pessoa não comer, não vai conseguir procurar emprego ou estudar. Ela precisa comer”, acrescenta.

“ASSISTÊNCIA SOCIAL NA VEIA” 

O economista Ely José de Mattos, professor da Escola de Negócios da PUC/RS, avalia que uma melhora do cenário para as camadas mais pobres é ameaçada por uma série de dificuldades previstas para o segundo semestre de 2022. 

Entre os riscos estão:

* os sinais de desaceleração da atividade econômica,

* inflação persistente e

* um mercado de trabalho que não está totalmente recuperado das crises recentes. 

Conforme Mattos, o combate à pobreza passa por projetos do poder público que considerem as diferenças existentes dentro dos grupos mais vulneráveis. 

“Para os 5% mais pobres, é assistência social na veia. Não tem como ser muito diferente”, afirma. 

“Se pegar uma foto dos 25% mais pobres, entre eles há muitas diferenças [...]. Para alguns perfis, a gente pode trabalhar com inclusão produtiva direta, treinamentos específicos. Tudo isso é política governamental bastante direcionada”, emenda. 

Com a crise econômica às vésperas das eleições, o governo Jair Bolsonaro (PL) trocou o Bolsa Família, associado a gestões petistas, pelo Auxílio Brasil, cujas famílias beneficiárias recebem um mínimo de R$ 400. 

Contudo, como mostrou reportagem da Folha de S. Paulo, o novo programa ainda registrava uma fila de 764,5 mil famílias em maio. 

A gente tem de olhar com carinho para os grupos mais pobres. Inflação e desemprego são dois males vividos mais fortemente por eles”, afirma o economista Marcelo Neri, do FGV Social. 

No caso dos programas sociais, houve um desajuste.

A gente precisa fazer uma volta a um aprendizado: quem é mais pobre tem de receber mais recursos do que os demais, famílias maiores também”, acrescenta.

Fonte: Folha de S. Paulo – Mercado – Domingo, 26 de junho de 2022 – Págs. A20-A21 – Internet: clique aqui (Acesso em: 27/06/2022).

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Muitos preferem se fazer de cegos

 A gente escolhe não ver

 Mônica Sodré

Cientista Política e diretora-executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps) 

JAIR BOLSONARO em motociatas pelo país, torrou mais de 6 milhões de você e eu, do povo brasileiro que pagou a festança e propaganda política. Sem falar das infrações de trânsito cometidas por pilotar sem capacete!

E você? Já decidiu do que vai se esquecer hoje?

Há sobre todas as coisas uma ética, uma moral e um costume. Há os que se acostumam com tudo.

Pero Vaz de Caminha, quando chegou do lado de cá dos trópicos, definiu esta como a terra em que, se plantando, tudo dá. 522 anos depois, a definição da máxima pode perfeitamente ser alterada para “esta é a terra em que a tudo se acostuma”. 

Aqui, a vida segue todos os dias. 

Quando se decide que os planos de saúde são obrigados a cumprir estritamente o mínimo, não pelo menos o mínimo. 

Quando em ano de eleição o incumbente faz rolês de moto em todos os cantos do país com dinheiro dos cidadãos, ao custo de mais de R$ 6 milhões, e a gente ignora a propaganda eleitoral antecipada. 

Quando 172 pessoas desaparecem a cada dia no Brasil —mais de 60 mil por ano. Para se ter uma dimensão, é como se quase uma cidade de Brumadinho (MG) sumisse duas vezes. A cada ano. “Ah, Brumadinho, você se lembra?” 

Quando a gente acha normal e segue vivendo depois de o Ministério da Saúde — que deveria cuidar da saúde — dizer que vai investigar pessoas que recorrem ao aborto, mesmo nos casos em que a lei permite. Isso num país em que menos de 3% dos casos de estupro são reportados, que agora acompanha o drama de uma criança de 11 anos impedida de fazê-lo e em que parte da nação opera na lei dos “20 quilos”: se tem mais de 20 quilos, já se está pronto para a vida sexual. 

Quando gente eleita, que deveria ter em conta os interesses do país, questiona os procedimentos que fazem uma eleição possível e antecipa que não vai aceitar nenhum resultado que não lhe seja favorável e voltamos aos tempos do exercício do poder absoluto. 

Quando assistimos à transformação das Forças Armadas, de responsáveis pela logística das eleições, em garantidoras do processo eleitoral. Num país em que a democracia, interrompida anteriormente pelas Forças Armadas, é mais nova até do que esta que vos escreve. 

Quando um em cada dois brasileiros não comeu hoje, não sabe se vai comer ou comeu menos que ontem. 

TIAGO BASTOS DE SANTANA, 24 anos de idade, pede comida em um cruzamento no bairro da Mooca, em São Paulo, capital. Cena cada vez mais comum! Foto: Karime Xavier / Folhapress

Quando uma vereadora negra, uma das poucas mulheres na política nacional, é assassinada com tiros no rosto e, quatro anos depois, não se tem a menor ideia de quem encomendou o crime e nenhum responsável foi punido. 

Quando o número de licenças para armas cresce 325% em três anos e 31 mudanças, todas de caráter flexibilizador, foram feitas nas leis de armas no mesmo período. 

Quando um indigenista e um jornalista, ambos a serviço do interesse público, desaparecem no exercício de seus trabalhos, após receberem ameaças de morte, e leva mais de 24 horas para que as autoridades comecem a se mexer. 

Quando 11 dias depois aceita-se a justificativa de que foi um crime comum, cometido por dois pescadores, deixando intacta toda a rede de criminalidade que acomete o território há anos e que saqueia, a olhos vistos e de maneira ilegal, o patrimônio público em nome de interesses privados. 

A gente escolhe não ver. 

Há sobre todas as coisas uma ética, uma moral e um costume.

E justamente aqui reside a nossa definição como povo: extinguiram-se a ética e a moral.

Deixamos prevalecer o costume de nos acostumarmos com tudo. E de fingir normalidade. Todos os dias. 

E você? Já escolheu do que vai se esquecer hoje? 

Fonte: Folha de S. Paulo – TENDÊNCIAS / DEBATES – Domingo, 26 de junho de 2022 – Pág. A3 – Internet: clique aqui (Acesso em: 27/06/2022).

Como se dá o saque ao Estado

 A delinquência se desnuda

 Janio de Freitas

Jornalista 

O Brasil real escancara-se com Milton Ribeiro e pastores

JAIR BOLSONARO E O MINISTRO INVESTIGADO POR CORRUPÇÃO MILTON RIBEIRO, PASTOR PRESBITERIANO

O jantar era um velório antecipado e os convivas não sabiam. Foram convidados a homenagear Gilmar Mendes pelos 20 anos completados no Supremo. Nunca houve isso, nem o patrocinador do gasto público, presidente da Câmara, é dado a finezas. Quem não percebeu na ocasião ainda pode saber que Arthur Lira aproveitou a data para proporcionar na casa oficial, entre dezenas de figurantes ilustres ou longe disso, o encontro desejado por Bolsonaro com o ministro Alexandre de Moraes.
 

Há dúvida sobre o tempo em que conversaram o acusado e o condutor das ações penais contra Bolsonaro. Menos de 48 horas depois, o que tenha sobrado da conversa destroçava-se, ao som de diálogos a um só tempo suaves e fulminantes do casal Milton Ribeiro. 

O aviso de Bolsonaro ao ex-ministro e pastor, sobre busca da Polícia Federal em sua casa, não foi só interferência contrária a uma investigação da Polícia Federal. Não foi só a violação de sigilo oficial por interesse particular e criminal. Não foi só o conhecimento de motivos para prevenir o ex-ministro. 

É também um chamado ao Tribunal Superior Eleitoral para considerar a nova condição do candidato Jair Bolsonaro. No mínimo, suspendendo-lhe o registro até que o Supremo defina os rumos processuais do caso e, neles, a condição do candidato implicado. Isso independe da responsabilização de Bolsonaro como presidente. 

É um sistema quadrilheiro que começa a desvendar-se. Ficam bem à vista duas estruturas que têm a Presidência da República como elo entre elas.

a) Uma age dentro da administração pública, em torno dos cofres, e reúne pastores da corrupção religiosa, ocupantes de altos cargos e políticos federais e estaduais.

b) A outra age do governo para fora, na exploração ilegal da Amazônia, em concessões injustificáveis, e em tanto mais.

Duas estruturas independentes que se conectam na mesma fonte de incentivos, facilitações e proteção para as práticas criminais. 

Pastor Milton Ribeiro, quando era Ministro da Educação e o pastor Arilton Moura, que mesmo não tendo algum cargo no ministério exercia uma imensa influência

A investigação de todo esse dispositivo de saque é complexa. O desespero do pastor Arilton Moura emitiu uma informação de dupla utilidade, para os investigadores e para os seus camaradas de bandidagem: “eu vou destruir todo mundo”, se a sua mulher for atingida de algum modo. 

Logo, são muitos os implicados, incluindo esposas como possíveis encobridoras de bens ilegais. E, contrariando sua simpática discrição, mesmo Michelle Bolsonaro e suas ligações com pastores da corrupção, a começar com Milton Ribeiro por ela feito ministro. 

O que se sabe do “todo mundo” está longe da dimensão sugerida pelo pastor. Uma das várias dificuldades iniciais para avançar com a investigação está na própria Polícia Federal (PF), em que se confrontam a polícia de policiais e a polícia de delinquentes (por comprometimento político ou não). 

O embate público dos dois lados apenas começou, com a certeza de que o aviso dado por Bolsonaro partiu da PF contra a PF e, preso o ex-ministro, com ações a protegê-lo. 

É imprevisível o que se seguirá no confronto de extrema gravidade: sem uma limpeza no quadro de chefes de inquéritos, a confiança na PF dependerá de saber, como preliminar, se a ação policial é de policiais ou de delinquentes. E não é fácil sabê-lo. 

Note-se, a propósito, que eram dois os informados da então próxima prisão de Milton Ribeiro:

* o diretor-geral da PF, delegado Márcio Nunes de Oliveira, e

* o delegado Anderson Torres, ministro da Justiça que acompanhava Bolsonaro nos Estados Unidos, sem razão oficial para isso, quando o ex-ministro recebeu de lá o telefonema sobre a busca policial.

Sem o esclarecimento dos seus papéis nessa transgressão, os dois bastam para comprometer a PF até como instituição. 

Quando Bolsonaro procurava o ministro Alexandre de Moraes, com pedidos ou propostas, já o lado policial da PF cuidava de expor, na voz do ex-ministro, o crime de responsabilidade do presidente ilegítimo.

Bolsonaro ruía com seu governo e seus pastores.

O Brasil real escancarava-se outra vez, faltando-lhe mostrar, no entanto, onde o bolsonarismo militar vai encaixar, no novo cenário, o seu inimigo —a urna eletrônica, preventiva da corrupção também eleitoral. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Política / colunas e blogs – Domingo, 26 de junho de 2022 – Pág. A8 – Internet: clique aqui (Acesso em: 27/06/2022).

sexta-feira, 24 de junho de 2022

13º Domingo do Tempo Comum – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 9, 51-62 

Alberto Maggi *

Frade da Ordem dos Servos de Maria (Servitas) e renomado biblista italiano 

É urgente anunciar o Reino de Deus, a grande novidade, sem nostalgia e apego ao passado

Breve introdução:

A partir de Lucas 9,51, inicia-se uma parte importantíssima do Evangelho Segundo Lucas, é a denominada “Subida a Jerusalém”, que se conclui em Lc 19,27. Nessa seção de seu evangelho, o autor insiste sobre a ideia de “Jerusalém”, pois é nessa cidade que deverá se realizar o cumprimento da promessa de Salvação, que vinha desde a Antiga Aliança, o Antigo Testamento. 

Os discípulos de Jesus o acompanham, mas não o seguem. Ou seja, mesmo estando fisicamente próximos, estão distantes porque dão continuidade à ideia de um messias vitorioso e triunfante. No capítulo 9 do Evangelho de Lucas, a partir do versículo 51, há uma passagem importante que infelizmente as traduções, no mínimo imprecisas ou inadequadas, não traduzem. 

Lucas 9,51-52a:** «Quando estavam para se completar os dias de sua elevação, Jesus tomou a firme decisão de partir para Jerusalém. Enviou então mensageiros à sua frente.»

De fato, acima temos a tradução que se costuma fazer do início desse relato sobre a subida a Jerusalém. E então veremos mais adiante, que, em uma aldeia samaritana, a população não o recebe bem. Mas por quê? Então vamos tentar traduzir o texto literalmente e veremos que essa inconsistência na verdade não existe.

O texto diz: “Quando estavam para se completar os dias de sua elevação”. Portanto, Jesus é apresentado pelo evangelista já na jornada final em direção à cidade assassina dos profetas, aquela que o matará. E aqui o evangelista não diz “tomou a firme decisão”, mas escreve literalmente que endureceu o rosto para Jerusalém. Esta é uma expressão que também aparece no Antigo Testamento, que significa ir contra alguém.

Por exemplo, no livro do profeta Jeremias, no capítulo 21, versículo 10, lê-se: “Sim, eu volto minha face contra esta cidade para o mal, não para o bem”. Ou, no livro de Ezequiel, no capítulo 21, versículo 7, o Senhor diz ao profeta: “Filho do homem, volta o rosto para Jerusalém e vaticina contra o santuário deles”.

Então, esta expressão que o evangelista usa: “endureceu o rosto para Jerusalém” significa que Jesus vai contra Jerusalém, vai contestar esta cidade que dizia representar Deus, mas era, na realidade, a assassina de todos os profetas enviados por Deus. 

Lucas 9,52b-53: «Tendo partido, entraram num povoado de samaritanos para lhe preparar hospedagem. Os samaritanos, porém, não o receberam, porque demonstrava estar a caminho de Jerusalém.»

Mas os discípulos não entendem. Sabemos da rivalidade e inimizade que existia entre samaritanos e judeus, eles se odiavam, era uma inimizade secular. Mas não dizem como estava Jesus em relação a Jerusalém, dizem que Jesus ia a Jerusalém, mas os samaritanos pensam que, sendo considerado este Jesus o Messias, vai a Jerusalém para tomar o poder e depois subjugar os povos pagãos e também subjugar os Samaritanos. É por isso que eles não querem recebê-lo. 

Lucas 9,54-55: «Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu, para que os destrua?” Ele, porém, voltou-se e os repreendeu.»

Foram os discípulos que não entenderam a intenção de Jesus. Que eles não entendem isso pode ser visto pela reação de dois discípulos, os mais fanáticos, Tiago e João, a quem Marcos em seu Evangelho chama de “filhos do trovão” por seu caráter autoritário [cf.: Mc 3,17]. A referência, claramente, é ao profeta Elias que em um episódio localizado bem na Samaria, queima cinquenta de cada vez dos emissários, dos soldados, que foram até ele [cf.: 2Rs 1,9-12].

Então eles acreditam que Jesus seja uma espécie de Elias, um homem que, pela violência, impõe a lei de Deus, a vontade de Deus. Mas “Jesus voltou-se e os repreendeu”, exatamente como faz com os demônios! 

Lucas 9,56-58: «E partiram para outro povoado. Enquanto estavam a caminho, alguém disse a Jesus: “Eu te seguirei aonde quer que fores”. Jesus respondeu: “As raposas têm tocas e os pássaros do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.»

Portanto, o mal-entendido, a hostilidade dos samaritanos se deve ao mal-entendido por parte dos discípulos. E, sempre em Samaria, há três indivíduos – um deles é convidado diretamente por Jesus – que pedem para seguir Jesus. O número três não quer ser numérico e indica inteireza, completude. Portanto, são regras para seguir Jesus, válidas para todos.

Diante desse pedido de seguimento, Jesus coloca as condições. Raposas e pássaros são os animais mais insignificantes que existem. Então Jesus diz:

“Cuidado! Você quer me seguir? Mas não pense em HONRA, CARREIRA ou SUCESSO. Mas, pior do que os animais mais inúteis e insignificantes, não tenho nem casa, não tenho onde reclinar a cabeça”.

Porém, em seguida, o evangelista apresenta o indivíduo que Jesus convida a segui-lo. 

Lucas 9,59-60: «A outro disse: “Segue-me”. Esse pediu: “Permite-me que primeiro eu vá enterrar meu pai”. Jesus respondeu: “Deixa que os mortos enterrem seus mortos; mas tu, vai e anuncia o Reino de Deus”.»

A resposta de Jesus a este homem pode parecer desumana! No entanto, a resposta de Jesus não é desumana, o PAI representa o passado. Então, enterrar o pai significa manter, ainda, o passado em grande honra, em grande respeito.

Jesus não, Jesus pede uma ruptura radical com o passado.

Vinho novo não pode ser colocado em odres velhos [cf.: Lc 5,37], então: “Deixe as pessoas que vivem no passado – os mortos – enterrarem seus mortos. Você vai e anuncia a novidade”. 

Lucas 9,61: «Outro ainda lhe disse: “Eu te seguirei, Senhor, mas deixa-me primeiro despedir-me dos de minha casa.”»

Na Bíblia houve o conhecido episódio de Elias que permitiu que Eliseu se despedisse de sua família [cf.: 1Rs 19,19-20]. Jesus, por outro lado, não.

A urgência do Reino de Deus não permite nostalgia do passado, mas devemos nos desapegar radicalmente dele. 

Lucas 9,62: «Jesus, porém, respondeu-lhe: “Ninguém que ponha a mão no arado e olhe para trás é apto para o Reino de Deus”.»

Esta frase de Jesus não significa ter uma relação distante ou desumana com a própria família, nada disso, mas que a urgência de anunciar a boa nova, o REINO DE DEUS, é tão importante que não se pode sentir nenhuma saudade por aquilo que parece apenas com o passado. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2021. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Não fiqueis a lembrar coisas passadas, não vos preocupeis com acontecimentos antigos. Eis que farei uma coisa nova, ela já vem despontando: não a percebeis?” (Isaías 43,18-19)

Caminhando em direção a Jerusalém, Jesus dedica-se, sobretudo, a formar e bem preparar seus discípulos para prosseguirem a sua missão, nesta terra. Nas três cenas de chamado e autochamado que o Evangelho, deste domingo, nos traz, fica evidente algo que o grande teólogo luterano e mártir alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), já nos havia dito em sua famosa obra “Discipulado” (editora Mundo Cristão, 2016). 

Bonhoeffer destacou que o chamado ao seguimento é Jesus mesmo! O chamado a seguir Jesus não é uma “proposta”, não é um “programa de vida”, não é um “ideal”, nem um “objetivo”, nem sequer um “objeto”, nos explica o teólogo luterano.

O que é, então, o seguimento de Jesus? 

Responde Bonhoeffer: “É a atração, é a sedução, do próprio Jesus e somente de Jesus”.

Jesus me deve seduzir e me tirar de mim mesmo! A confiança que ele desperta em mim, deve fazer-me perder todo outro tipo de segurança! A partir daí, o seguimento de Jesus passa a constituir o centro da minha vida. Portanto, como destaca o teólogo espanhol J. M. Castillo:

“O projeto do seguimento de Jesus é o projeto da liberdade a serviço da misericórdia”.

É a nossa liberdade autêntica que superará todos os nossos medos, nesses tempos sombrios em que vivemos! Por isso, somente em Cristo podemos encontrar a verdadeira SEGURANÇA! Ele não ilude nem engana os seus seguidores! Como profeta itinerante que era, diz claramente: Aquele que quiser me seguir deverá ser como eu! Sem seguranças, prestígio, honras e vantagens mundanas! 

E você, quer, mesmo, seguir Jesus??? Ele aguarda a sua resposta. 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Somente a CARIDADE pode dilatar o meu coração. Jesus, desde quando esta chama doce me consome, eu corro com alegria no caminho do mandamento novo. Desejo correr nele até o dia feliz, no qual poderei seguir-te nos espaços infinitos cantando o teu cântico novo, aquele do AMOR. Amém.»

(Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C) 

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – XIII Domenica del Tempo Ordinario – 30 giugno 2016 – Internet: clique aqui (Acesso em: 22/06/2022).

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Nem todo evangélico é bolsonarista, ainda bem!

 Não há uma relação fechada entre evangélicos e Bolsonaro

 Nilza Valeria Zacarias

Jornalista, uma das coordenadoras da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e produtora de programa de rádio, entre tantas outras coisas. Ela é da Igreja Batista 

Manifestação contra Bolsonaro em Belo Horizonte (MG) da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, em outubro de 2020. (Créditos: Thiago dos Anjos)

Irmã Cida, eleitora de Bolsonaro em 2018, crente fiel da Assembleia de Deus, percebeu que votou errado. Ela percebeu que não havia cristianismo nele.

Minha escola de jornalismo é antiga. Daquelas em que vou maturando o texto, pensando, ruminando, até o momento final de escrever. Quando está em cima do prazo, coloco tudo no papel. É, de certo modo, como fui ensinada. A hora de fechar, a hora de colocar o ponto-final no texto. Isso, óbvio, encontra abrigo no meu jeito de ser. De gostar da pressão. De funcionar no limite. 

Toda essa volta é para dizer que este texto estava quase pronto. Quase. Uns poucos ajustes e seguiria para a redação do Le Monde Diplomatique Brasil com poucas horas de atraso, para manter esse charme de que estou muito ocupada, fazendo mil coisas ao mesmo tempo. O tema demandado, dentro da minha área de conforto, é para falar de eleições e evangélicos. E por que tantos de nós ainda seguem Bolsonaro, e com disposição para votar nele outra vez. 

Na versão original eu ia dizer que a categoria evangélica não existe de forma isolada. Ninguém é somente evangélico. Ser evangélico deveria ser, tão somente, quem tem fé no Cristo como sua esperança – seja nesta vida, seja num possível mundo vindouro, onde a vida triunfará sobre a morte. 

É nesse ponto que as coisas mudam, e mudo o texto. Acordo com a notícia de mais uma operação policial em uma favela do Rio de Janeiro, na Vila Cruzeiro, e a conta inicial era de onze mortos. Passo o dia naquela tristeza habitual, de quem sabe que isso não é normal, tantas mortes por diversos policiais que se juntaram para tocar o terror. 

Saio para trabalhar. Sim, eu faço mil coisas ao mesmo tempo. Nessa, me distraio das notícias. Quando paro para um café, dou uma olhada nas mídias sociais e o número de mortos subiu para 22. Percebo, de forma muito nítida, que o algoritmo tenta me ocultar o que aconteceu lá. 

A proposta das redes sociais é a da diversão. Aparecem vídeos de receitas, dancinhas, lojas de vestido que acertam meu gosto para os modelos amplos. Só que a mente já não aguenta mais. Eu penso na Vila Cruzeiro. Não adianta fazer textão. Nem explicar mais que estamos vivendo a barbárie. Que operações policiais como essa não cabem dentro do estado democrático de direito.

Tudo com a bênção de um governo que desafia o bom senso, ostentando relações promíscuas com a milícia, com a fé, com os aliados, com os adeptos do bolsonarismo.

Servindo a morte como prato principal no tradicional almoço de domingo da família brasileira. 

Foram 22 mortos na Vila Cruzeiro. O presidente Bolsonaro parabeniza a operação. Diz que os policiais do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Bope) são guerreiros. Ele tem alguma razão. Essa guerra ao tráfico mata mais do que algumas guerras entre povos e nações ao redor do mundo. E aqui há algo que quero destacar: o policial crente que mata o filho da irmã de oração que vive no alto da comunidade, igualmente crente como ele. Guarde isso. 

Policiais da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na Vila Cruzeiro, Rio de Janeiro: uma das maiores mortandades dos últimos tempos na cidade!

São mais de 666 mil mortes pela Covid no Brasil. Checo o número e ele, curiosamente, é o associado à besta apocalíptica. Isso me remete ao dia em que a besta humana imitou como morriam pessoas sufocadas com falta de ar. Trago à memória pessoas que conheci desde criança, na igreja batista em que fui criada – lugar em que meus pais eram membros e meus avós foram fundadores da comunidade de fé –, e que morreram sufocadas pela ação do coronavírus em seu organismo. Um deles tinha a minha idade. Outros, a idade dos meus pais, que perderam amigos e irmãos.

Muitas das mortes, dizem os estudos, seriam evitadas se a vacina chegasse antes, bem antes, do que chegou.

Nós, evangélicos, de acordo com o Censo 2010 e as pesquisas realizadas pelo Datafolha, devemos ser – pelo menos – 30% da população brasileira. Dizem que os evangélicos vão superar o número de católicos no país em 2030. Então, reservo-me o direito de acreditar que há algo errado com os números. Se vamos ser maioria em menos de dez anos, somos mais do que 30%. Muito mais. Ou as projeções estão erradas. Mas não podem estar. 

Outro dia, enquanto tomava café da manhã em casa, antes de entrar na rotina alucinante de trabalhar para tentar fazer o mundo ser um lugar melhor, na maior emissora de TV do país, um cantor gospel falava do seu sucesso – uma música bem bobinha, que narra uma história bíblica: a necessidade de Joquebede, a mãe de Moisés (o libertador do povo hebreu da escravidão egípcia), colocar seu filho num cesto de vime, para escapar do genocídio que o faraó estava promovendo contra os meninos. Claro, a música não fala de genocídio nem de escravidão. A canção apenas alenta a mãe deque seu bebê sobreviverá. Virou dancinha no TikTok. 

Quero dizer que a cultura evangélica assola o país. Virou cultura popular. Se antes a cultura da rua reinava absoluta, agora não mais. “Abençoado” virou um termo comum, um jeito simpático de o vendedor ambulante chamar o cliente. Ou de tratar colegas de trabalho. E “o sangue de Jesus tem poder”? Diante do mistério assombroso, a expressão é tão usada quanto o sinal da cruz ou o beijo no amuleto

Pedi que guardassem o fato do policial crente. Tem um grupo da polícia chamado PM de Cristo. E, em um país como o nosso, só Cristo mesmo. Ele é invocado pelo policial que não quer virar estatística, como seus colegas mortos em serviço; ele é invocado pelo traficante (que me recuso a chamar de evangélico) que foi criado na igreja e sabe que a vida dele não vale nada. Mas o Cristo que me interessa é o que é invocado pela mãe do policial e pelas mães dos que morreram na Vila Cruzeiro

Faço questão de distinguir esses Cristos.

E isso tem a ver com Bolsonaro, que tem invocado um Cristo qualquer para legitimar seu governo promotor de ódio, miséria e fome.

O Cristo que Bolsonaro invoca me lembra o Cristo invocado pelos traficantes que dizem ser de Jesus e empunham a bandeira de Israel como se fossem o povo escolhido de Deus, em clara confusão entre pertencimento religioso e geopolítica. 

Claro, me lembra também (sem generalizar) os policiais que oram e fazem seu trabalho com as mãos sujas de sangue. E, mesmo que não matem o corpo, andam a matar a dignidade no esculacho, matam a liberdade com a opressão. Faz algum tempo que a imprensa noticiou sobre a Igreja do Bope. Como pode ser normal isso? Lembro que o pastor que estava lá celebrando o culto parecia orgulhoso. Considerando o Cristo em que acredito, só consigo conceber a ideia de um pastor falando para policiais do Bope se for para proferir palavras como faziam os profetas do Antigo Testamento: denunciar a opressão, a iniquidade, a injustiça, a morte fora de tempo. Lançar os matadores no fogo ardente. 

Há uma Congregação Evangélica dentro do BOPE - Batalhão de Operações Especiais, da Polícia Militar do Rio de Janeiro - RJ

Pastores e policiais do Bope juntos dizem muito sobre um país que caiu nas mãos de Bolsonaro. Engraçado é que pastores assim, volta e meia, puxam lamentos e contam os mortos, explicitando as incongruências de um Evangelho, que são as boas novas de Deus aos homens. Ignoram as BOAS NOVAS [= Evangelho], são oportunistas, com um tipo de canalhice conveniente. Ou seja, as boas novas viraram algo que nada têm a ver com Deus, mas com a ganância dos homens por dinheiro, visibilidade ou poder

Nem cheguei a mencionar os pastores que, descaradamente, abusam das fragilidades humanas e vão para as rádios e TVs vender boas novas, vender consolo, vender cura, vender segurança, vender paz, vender Cristo.

Vendem e ganham, como os comerciantes que o próprio Cristo, em fúria, expulsou da porta do templo em Jerusalém. Engraçado que a Reforma Protestante, no século XVI, foi contra isso. Talvez seja tempo de uma nova reforma, que reforme a fé reformada. Que traga o Cristo para o centro da Igreja. 

O fato, inconteste, é que a Igreja evangélica existente no Brasil era terra fértil para fazer Bolsonaro brotar. Evangélicos que aprendem mais sobre o medo e sobre o castigo do que sobre a graça que sustenta a vida. O resultado, óbvio, é a moralidade estabelecida como dogma: não pode beber, não pode fumar, não pode transar, não pode dançar, não pode ser LGBTQIA+, não pode interagir na cultura, não pode chorar – se for homem. Se for mulher, pode trabalhar, pode ser arrimo de família, pode enterrar os filhos e o marido mortos pela violência cotidiana, pode ser mãe solteira, não pode abortar, pode cuidar dos pais idosos, pode fazer os serviços de limpeza na igreja, pode fazer comida para vender na cantina para construir um novo templo suntuoso, pode cuidar das crianças e dos doentes, pode se reunir com outras irmãs em oração – mas há de ser submissa. Não ouse nunca ser senhora de sua própria história nem fazer escolhas que não contemplem a comunidade. 

Quando a mulher de Bolsonaro vai orar em línguas (uma prática pentecostal de usar línguas estranhas para orar ou receber revelações, baseada em texto bíblico com diferentes interpretações: por isso os evangélicos históricos não usam falar em línguas, e os pentecostais, sim), ela sabe o que isso causa em parte do segmento evangélico. E, curiosamente, ela é membro de uma igreja batista – como a de que faço parte – que não pratica esse costume. Ah, o oportunismo disfarçado de espiritualidade… 

MICHELLE BOLSONARO, esposa de Jair Bolsonaro, em culto evangélico

Como sabem jogar para a plateia! Assim foi a oração da Michelle, assim foi a Damares Alves no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, assim foi o Milton Cunha, o pastor presbiteriano que anda armado e quase causou uma tragédia no Aeroporto de Brasília, no Ministério da Educação.

As distorções evangélicas da Igreja brasileira deram régua e compasso para a corja que se estabeleceu no Palácio do Planalto desde janeiro de 2019.

Desculpa, Gilberto Gil, pela licença nada poética ao citar trecho de “Aquele abraço”. 

Mas eu, em algum lugar deste texto, disse que ninguém é somente evangélico. E não é mesmo. Eu sou evangélica, jornalista, mãe, trabalhadora, negra, e tudo isso me constitui. Minha mãe, que é diaconisa batista, é professora de língua portuguesa e literatura e funcionária pública aposentada. Uma grande amiga é crente e funcionária de um sindicato. Um amigo é crente e assistente social. Outro é mecânico de avião, como meu irmão (de sangue), que também é crente, mas anda cansado da igreja – como muitos crentes. 

O atravessamento de tudo que somos mostra – a mim – que o problema no Brasil não são apenas os evangélicos. Não somos a única terra fértil. Somos mais cultivados, admito. Mas constituímos, com tantas outras pessoas, de diversos credos, isso que chamamos de Brasil. Um povo que sente saudades da escravidão, mas que é capaz de jurar por todos os santos que a empregada negra faz parte da família. E essa declaração hipócrita é a senha para sonegar os direitos devidos. Os donos da casa, se bobear, não sabem o nome completo da empregada, mas ela é da família. O nome dela é

Bolsonaro entendeu muito bem o que significa ter fé em um país em que ter fé é um atravessamento que garante PESSOALIDADE.

O sujeito não é nada, tem um emprego ferrado, ganha mal, é maltratado pelo chefe, sofre o racismo estrutural em que nem sequer consegue reconhecer que é vítima. Mas chega o domingo e ele está na igreja. Vestido com terno, que é sua melhor roupa. Mesmo que a maior parte desse grupo categorizado como evangélico, o grupo dos pobres, esteja vestido como típicos palhaços litúrgicos, pela combinação cafona da gravata com o paletó de tecido barato. Não importa. Naquele espaço, ele é irmão. É igual. A força disso é imensurável. E nem vou entrar aqui na dimensão do sagrado, da mística, do transcendente. Essa dimensão é a que verdadeiramente importa, ou os evangélicos não cresceriam. Ninguém fica onde não há ganho.

O pretenso "católico" Jair Bolsonaro participando de culto evangélico ao lado da sua atual esposa, Michelle Bolsonaro

Bolsonaro e sua turma souberam usar desses elementos para mobilizar esses votos em 2018. Superaram os atravessamentos. Colocaram a pauta moral na mesa. E, cá entre nós, a questão moral não é um problema único dos evangélicos. Não venha me dizer que a sociedade brasileira é igual à holandesa, defensora ferrenha de todas as liberdades.

Somos tão tacanhos a ponto de celebrar o sangue no lençol para atestar a virgindade da filha da vizinha. A gente ainda esconde o gay no armário. Eles é que não se deixam esconder mais.

O fato é que dona Cida, irmã Cida, eleitora de Bolsonaro em 2018, crente fiel da Assembleia de Deus, percebeu que votou errado. A ficha caiu quando ela viu Bolsonaro imitando as pessoas que morriam de Covid. Ela percebeu que não havia cristianismo nele. Tenho conversado com muitas pessoas que mudaram de ideia. Agora há pouco, no mercado, a atendente de caixa me falava como ela e as amigas conseguem, no máximo, ganhar R$ 1.800 com horas extras. E que isso não dá para segurar a família, que está difícil. Ela quer que outubro chegue para virar o jogo. Crente ela. 

Não há uma relação fechada entre evangélicos e Bolsonaro. E aqui entra nosso trunfo. É possível fazer a disputa. É possível acenar com a realidade e com uma leitura bíblica contextualizada

Para isso, nós, que estamos puxando essa luta (evangélicos ou não), temos que compreender a importância de reconhecer que o identitarismo pode ser uma armadilha. Acusamos os evangélicos de uma união, já que possuem características comuns, de pleitear políticas para seus grupos. Com a benesse de Bolsonaro. Para a civilidade vencer a barbárie, talvez tenhamos que abandonar a forma de nos posicionarmos, a partir da ênfase em nossos grupos, nossas posições, nosso jeito de olhar para o mundo. A fixação no nosso lugar de fala quebra pontes com outros grupos – sobretudo essa massa chamada de evangélicos

Livro publicado pela Editora Veneta, em 2019

O identitarismo vai dando espaço para essa direita, cada vez mais tipo Bolsonaro. Aprendi muito sobre isso lendo Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje, de Asad Haider (Veneta, 2019). Ele defende, com toda razão, que identidade (nossos atravessamentos pessoais, como mencionei) não deve ser confundida com políticas identitárias

Quando penso em eleições, em Bolsonaro e no destaque dos evangélicos nestes últimos anos, tenho certeza de que as lutas políticas não podem ser espaços fechados, sem garantir a aproximação com o outro, inclusive considerando a fé como importante para esse outro. Não podemos encarcerar os evangélicos e dar a chave da prisão para o Bolsonaro. Não podemos julgar nossas identidades, ou subjetividades, como superiores. 

Para quebrar a relação de Bolsonaro com os evangélicos (não digo com os líderes e pastores empresários, mas com os fiéis – gente como a gente), deve-se destacar que a fé, como qualquer outro atravessamento da vida, é perpassada pelas questões atuais, pelo lugar de cada um na sociedade.

Então, por isso, a estratégia para minar a relação eleitoral de Bolsonaro com os crentes é uma só: a linguagem. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil / Capa – Edição nº 179 – Ano 14 – Junho de 2022 – Págs. 4-5 – Internet: clique aqui (Acesso em: 19/06/2022).