«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 25 de março de 2022

4º Domingo da Quaresma – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 15,1-3.11- 32

 Alberto Maggi *

Frade da Ordem dos Servos de Maria (Servitas) e renomado biblista italiano 

Tela em óleo: "O Retorno do Filho Pródigo", concluída em 1669, por Rembrandt Harmenszoon van Rijn. Atualmente, no  Museu Hermitage, em São Petersburgo, Rússia

Na misericórdia, somos divinos!

Enquanto os escribas e fariseus tinham a ambição de levar o povo a Deus e, portanto, conduzi-lo pela observância de regras e preceitos religiosos, Jesus escolhe um caminho diferente. Ele não quer levar os homens a Deus, porque sabe que se você quer levar os homens a Deus, inevitavelmente alguém é deixado para trás e alguém é excluído, mas Jesus traz Deus aos homens e Deus é trazido aos homens, apenas, de uma maneira: a comunicação de sua misericórdia e compaixão.

Mas são precisamente os escribas e fariseus, essas pessoas tão piedosas e tão devotas que, em vez de se alegrarem e colaborarem com Jesus em sua ação, estão contra ele. Leiamos o capítulo 15 do Evangelho de Lucas, desde o primeiro versículo. 

Lucas 15,1:** «Todos os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para ouvi-lo.»

Eis aí a escória da sociedade, os excluídos da religião e os marginalizados, que sentem na mensagem de Jesus a resposta ao desejo de plenitude de vida que cada pessoa tem dentro de si. Por mais que a pessoa viva na direção errada de sua existência, por mais imersa no pecado, sempre há nela um desejo de plenitude de vida, um desejo de felicidade que, infelizmente, muitas vezes, escolheu mal, afundando-se em desespero e dor, mas essa voz esteve sempre acordada. E, portanto, há a resposta ao seu desejo em Jesus. 

Lucas 15,2: «Os fariseus e os escribas, porém, murmuravam, dizendo: “Esse homem acolhe os pecadores e come com eles”.»

Enquanto Jesus está sendo ouvido pelos publicanos e pecadores, os fariseus, que são os piedosos, e os escribas, que são os teólogos oficiais, murmuravam! É interessante como, nos Evangelhos, as autoridades religiosas, os mestres espirituais, os escribas e os fariseus evitam pronunciar o nome de Jesus. Jesus significa “o Senhor salva”, e eles não precisam dessa salvação do Senhor e se voltam para ele sempre com um termo bastante grosseiro e pejorativo: “este (esse), aquele”.

E aqui está o escândalo: “Esse homem acolhe os pecadores e come com eles”. Jesus não apenas os recebe, mas também come com eles. Comer significa compartilhar a vida. Se você come com alguém que está infectado, inevitavelmente sua impureza é passada para todos os outros. Eles não entenderam que, com Jesus, os pecadores, os incrédulos, os impuros, não precisam se purificar para serem dignos de comer com ele, mas o que os purifica é comer com ele. Mas as pessoas religiosas não entendem isso. 

Lucas 15,3: «Então, ele contou-lhes esta parábola:»

Esta parábola, logo veremos, não é dirigida aos discípulos de Jesus, mas aos escribas e fariseus, isto é, aos seus inimigos. 

Lucas 15,11-12: «“Um homem tinha dois filhos. O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles.»

Essa é a conhecidíssima parábola do “filho pródigo”, e a analisaremos, apenas, em suas características essenciais porque é bastante longa. E é importante para a compreensão desta passagem, que o pai dividiu seus bens entre os dois filhos. Então, ele deu o que era devido ao filho mais novo, mas o dobro – de acordo com a lei judaica – ao filho mais velho. Este filho mais novo está indo embora. 

Lucas 15,13: «Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu, partiu para um lugar distante e ali esbanjou numa vida desenfreada tudo o que possuía.»

Esse lugar distante era uma região pagã. Ali, ele demonstra a sua incapacidade de gerir sua própria vida e de viver segundo os seus recursos. 

Lucas 15,14: «Depois que gastara tudo, chegou uma grande fome àquela região, e ele começou a passar necessidade.»

Então, ele cai em desgraça porque chega uma grande fome. Aquele que apostou tudo no dinheiro, quando não tem mais dinheiro, encontra-se um nada. Aquele que era um patrão em sua casa, encontra-se sob o comando de um chefe. De patrão ele se torna servo. 

Lucas 15,15-16: «Então, foi pedir trabalho a um dos cidadãos do lugar, que o mandou a seu campo guardar os porcos. Ele queria matar a fome com a comida dos porcos, mas nem isso lhe davam.»

O evangelista especifica, claramente, o lugar para onde vai: ao campo, cuidar de porcos. Sabemos que, na cultura judaica, o porco é um animal impuro! Portanto, esse filho mais novo cai na maior degradação possível, tomado pelas dores da fome! Afinal, nem a comida dos porcos lhe era dada! 

Lucas 15,17-19: «Então caiu em si e disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. Vou partir e voltar para meu pai, e dizer-lhe: ‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados’.»

Pela reflexão que o filho faz, vemos que esse pai era generoso não apenas com seus filhos, mas também com seus trabalhadores. Atenção para entender bem essa passagem! Às vezes, esse filho é apresentado como modelo de conversão, de arrependimento. Nada disso! Este é um cara que sempre pensa em si mesmo e com base no dinheiro. O que lhe falta não é seu pai, mas lhe falta pão.

Não é o remorso que agora o impele a voltar para o pai, mas a dor da fome.

Portanto, não há menção à dor que ele causou à sua família. Por isso, os seus direitos caducaram; ele pensa que não pode mais ser tratado como um filho porque recebeu sua parte! Então, ele não sabe o que significa a relação de um filho com seu pai, e pede para ser tratado como um dos servos. Repito que esse filho não volta ao pai porque se arrepende, mas vai por interesse. Ele não sente falta do pai, mas sente falta do pão. 

Lucas 15,20: «Então ele se pôs a caminho e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e foi tomado de compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e o beijou.»

A figura sobre a qual o evangelista, agora, concentra nossa atenção é a do PAI, imagem de Deus. Assim, o pai respeitou a vontade do filho, mas não o esqueceu, esperou por ele. “Ter compaixão” é uma ação divina com a qual a vida é restaurada para aqueles que não têm vida. É a terceira vez que aparece no Evangelho de Lucas. A primeira foi no episódio da viúva de Naim, quando Jesus se compadece e ressuscita o filho dela (Lc 7,11-17), a segunda foi com o samaritano, o homem que se compadece do ferido e restaura sua vida (Lc 10,25-37. Assim, a ação do pai não é ressentimento, raiva, ofensa, mas desejo de devolver a vida. E, aqui, estão três expressões impressionantes do pai:

1ª) “Correu-lhe ao encontro”. Isso é inconcebível na cultura do Oriente Médio. Correr é sempre um sinal de desonra, e nunca um idoso ou pai corre ao encontro do filho, mas para o pai o desejo de honrar o filho é mais importante que sua própria honra. O pai se desonra para honrar seu filho.

2ª) “Ele lançou-se a seu pescoço - abraçou-o”. Quando lemos o Evangelho, coloquemo-nos no lugar dos primeiros ouvintes que não sabiam como a história ia terminar. Teríamos imaginado que, depois de se atirar ao pescoço, o teria estrangulado: “Este idiota que desperdiçou tudo e foi reduzido a ser um porqueiro”.

3ª) Em vez disso, aqui está a surpresa: “Beijou-o”. O evangelista, aqui, se refere ao primeiro grande perdão na Bíblia, quando Esaú perdoou seu irmão Jacó que havia roubado sua herança. Quando Esaú encontra Jacó, ele o beija (cf. Gn 33,1-4). O beijo é um sinal de perdão.

Então o pai, imagem de Deus, perdoa o filho antes que ele peça perdão. 

Lucas 15,21: «O filho, então, disse-lhe: ‘Pai, pequei contra o Céus e contra ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho’.»

O filho não confia na compaixão do pai e ataca com seu “ato de contrição”. O pai não o deixa terminar. 

Lucas 15,22-24: «No entanto, o pai disse aos seus servos: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. Colocai-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o, para comermos e festejarmos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa.»

A túnica era uma honra que dava dignidade a uma pessoa. Este jovem, este filho que perdeu sua dignidade, agora, está voltando ao esplendor de sua dignidade. Mas o mais surpreendente é a sequência.

  O anel não é uma coisa para decorar, uma pequena bugiganga. Mas o anel era o selo do administrador da casa. Assim, o pai desse filho irresponsável, que esbanjou todo o seu patrimônio, devolve-lhe a dignidade e uma confiança maior do que ele desfrutava. Ele coloca a administração da casa em suas mãos, sem saber o que esse filho fará com ela.

Lembremos que o jovem pediu para ser tratado como um dos trabalhadores contratados e o pai disse: “Não, coloque sandálias nos pés dele”. Nas casas, os donos usavam sandálias, os criados andavam descalços. 

Lucas 15,25-28: «O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e danças. Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. Ele respondeu: ‘Teu irmão voltou, e teu pai matou o novilho gordo, porque recuperou seu filho são e salvo’. Ele, porém, ficou com raiva e não queria entrar. O pai, então, saiu e insistia com ele...»

Finalmente, entra em cena aquele a quem a parábola é dirigida. O “filho mais velho” - imagem de escribas e fariseus, que não quer entrar na casa e protesta. O pai também sai para ele, e ele choraminga. Vemos um Jesus que critica o infantilismo em que a religião mantém seus seguidores. Recordamos que, no início, o pai dividiu seus bens entre os dois filhos e deu ao filho mais velho o dobro do que concedeu ao mais novo.

Então, era tudo do filho mais velho, por que ele não pegou? É a religião. A religião mantém as pessoas em um estado infantil, elas não têm uma relação de amor com Deus, mas uma relação de obediência, de serviço, e sempre esperam uma recompensa. Mas, sobretudo, aguardam autorização para se alegrar ou não. 

Lucas 15,29-32: «... mas ele respondeu ao pai: ‘Eu te sirvo a tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua, e nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando, porém, chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com as prostitutas, matas para ele o novilho gordo’. Então o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu; mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi encontrado’.»

Então o pai, assim como foi ao encontro do filho que estava perdido, também vai ao encontro desse filho que não quer entrar em casa. Esse filho que, em seu ressentimento, disse: “chegou esse teu filho”. O pai recorda-lhe que essa pessoa é o irmão dele: “este teu irmão”. Só que ele, o filho mais velho, vivia na condição de servo e não de filho e não sabia saborear isso.

Desse modo, Jesus convida esses escribas e fariseus a se alegrar com esses pecadores, os incrédulos, que os cercam, mas infelizmente sabemos, pelo restante do Evangelho, que escribas e fariseus, cegos pelo cisco de sua justiça, de sua fidelidade à lei, nunca entenderam a misericórdia de Deus. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 4. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2020. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“A misericórdia e a graça divina se enlaçam de modo misterioso. Façam os homens o que fizerem, Deus está ao seu lado para oferecer vida, beleza, bondade.” (Roberto Romano: 1946-2021 – filósofo, pensador e escritor brasileiro)

Podemos sintetizar o Evangelho deste 4º Domingo da Quaresma com a seguinte frase: “Perdoar é humano, ser misericordioso é divino!”

Isso porque, o perdão é a marca dos seres humanos que são finitos e sujeitos ao erro. Somos dominados por paixões, desejos, vontade de poder, ganância, orgulho, vaidades exacerbadas, usamos a nossa capacidade de pensar, raciocinar para sobreviver às custas dos outros! Como muito bem observou Roberto Romano: “Se todos erram e ferem, sem perdão a existência coletiva seria impossível”. 

No entanto, por detrás do perdão, na maioria das vezes, esconde-se a humilhação daquele que é perdoado! Aqui, sou obrigado novamente, a citar Romano:

“A doença chamada sinceridade aproveita aquele gesto e, num instante, revela indivíduos que supostamente perdoam, mas julgam impiedosamente os fracos caídos. Alguém que perdoou, com muita probabilidade produz o ressentido. Quando tudo foi dito e o semelhante está prostrado, não há perdão, mas um fardo existencial sem vida e seiva.”

A misericórdia é divina, pois somente pode provir de um ser sem desejos e paixões! Daquele que ama sem limites e de modo totalmente gratuito! Isso fica demonstrado de maneira inequívoca no Evangelho deste domingo, no qual o pai perdoa o filho extraviado, mesmo sem este demonstrar um autêntico e profundo arrependimento! 

Esse Evangelho nos traz uma grave advertência: Atenção ao tipo de deus no qual você crê! Sim, pois há duas maneiras de entender Deus e de relacionar-se com ele, segundo o teólogo espanhol José María Castillo:

a) O “Deus dos fariseus”, que é o “deus-patrão”: aquele ao qual se deve obedecer e servir em uma relação do tipo contratual (latim: do ut des = eu te dou para que tu me dês). Eu me submeto a Deus para obter dele alguma recompensa nesta vida e a vida eterna, no futuro. É a mentalidade presente no filho mais velho da parábola deste domingo. Uma mentalidade tipicamente farisaica, onde existe uma rígida observância dos preceitos religiosos, mas quase nenhuma caridade!

b) O “Deus dos perdidos”, que é o “Deus-acolhedor”: é o deus sentido pelo filho mais novo, aquele que estava “perdido”, o fracassado, o arruinado. Esse é um Deus no qual se confia, no qual se encontra somente a BONDADE! Nessa relação não existe o “toma lá, dá cá”! Eu me relaciono com Deus porque eu o amo, não porque eu o temo (= tenho medo) ou desejo algo dele!

É o Deus, segundo Romano, que...

“se alegra no instante em que os humanos se perdoam reciprocamente. Naquele momento eles são divinos.” 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor Jesus, é difícil entrar na lógica do amor, a lógica da Páscoa, do sacrifício amoroso. Tu não vieste na terra para corrigir-nos, mas nos reconheceste tão radicalmente, a ponto de entregar-te em nossas mãos. Não nos resta que superar a última tentação e abraçarmos o Pai, isto é, reconhecê-lo em ti, o seu enviado. E reconhecer significa deixar-nos salvar sem merecermos a salvação. Deixar-nos levar e salvar sem dizer que esta salvação da morte nos é devida, que a merecemos. Permitir-se ser amado sem ter um único ponto de apoio em nós mesmos. Ajude-nos a entender que ser salvo significa poder dizer com amor: não o que eu quero, mas o que tu queres. Tu sabes tudo, Senhor, toma-nos como somos, abraça-nos, converte-nos, traz-nos de volta à casa do amor e da ternura. Sua casa. Então a Palavra ouvida será cura e salvação, remédio de eternidade. Amém. »

(Marino Gobbin. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi per l’anno litúrgico C. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 159)

 Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – IV Domenica di Quaresima – 31 marzo 2019 – Internet: clique aqui e aqui (Acesso em: 23/03/2022).

quarta-feira, 23 de março de 2022

A Cúria Romana reformada

 A renovação do Papa Francisco

 Loup Besmond de Senneville

«La Croix International» - Paris, França: 21-03-2022 

PAPA FRANCISCO

O Papa Francisco finalmente assinou o tão aguardado documento que reforma as estruturas de administração central da Igreja Católica no Vaticano

Quando os cardeais da Igreja se encontraram em março de 2013 nos dias imediatamente precedentes ao último conclave, eles diziam que a reforma da cúria deveria ser uma prioridade máxima para o próximo papa, algo que Francisco imediatamente abraçou. 

Ele então, agora, toma o passo decisivo em fazer isso realidade com a publicação deste importante documento, a constituição apostólica que reforma a Cúria Romana, o escritório central da Igreja Católica no Vaticano. 

O Papa assinou e publicou o texto de 54 páginas no sábado [dia 19 de março], na Festa de São José e nono aniversário de quando ele formalmente começou seu ministério papal. 

A nova constituição apostólicasobre a Cúria e seu serviço à Igreja e ao mundocontém 230 artigos e é intitulado Praedicate evangelium (Proclamar o Evangelho). 

Isso virá com força em 05 de junho e substituirá a atual constituição, Pastor Bonus (o Bom Pastor), a qual João Paulo II promulgou em junho de 1988. 

Praedicate evangelium atualmente existe apenas na língua italiana (disponível aqui), porém traduções para outras línguas estão por serem publicadas nos próximos dias.

A nova constituição muda profundamente o conceito e o propósito do papel da Cúria.

PAPA FRANCISCO discursa aos principais membros da Cúria Romana - Vaticano
Uma Cúria a serviço da Igreja universal 

Atualmente concebida como um recurso a serviço do papa, a Cúria Romana está passando por uma evolução muito importante em sua definição.

O subtítulo de Praedicate evangelium apresenta a Cúria como um aparato de governo “a serviço da Igreja e do mundo”. 

A Cúria Romana não está situada entre o papa e os bispos. Está a serviço de ambos, de acordo com a natureza de cada um”, diz o preâmbulo. 

Esta é uma consequência direta da “sinodalidade”, um método de trabalho caro ao Papa Francisco que permeia toda a constituição. 

As conferências episcopais nacionais e regionais aparecem em Praedicate evangelium como parceiras plenas da Sé Romana, e não apenas como estruturas sobre as quais Roma tem autoridade hierárquica. O texto também especifica que “documentos de grande importância” devem ser “preparados futuramente com o conselho das conferências episcopais”. 

ATUAL DIRETORIA DA CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB): da esquerda para a direita, temos: dom Joel Portella Amado (Secretário-Geral); dom Jaime Spengler (Primeiro Vice-Presidente); dom Walmor Oliveira de Azevedo (Presidente) e dom Mário Antônio da Silva (Segundo Vice-Presidente)

Evangelização como estrela-guia 

“A reforma não é um fim em si mesma, mas um meio para dar um forte testemunho cristão e promover uma evangelização mais efetiva”, lê-se nas primeiras linhas da nova constituição.

Os 250 artigos mostram claramente que o objetivo da Cúria não é ser um aparato administrativo, mas contribuir para a evangelização ativa.

É em nome desse objetivo que Francisco decidiu criar um Dicastério para a Evangelização, que será presidido pelo próprio Papa. 

Será assistido por dois pró-prefeitos, cada um dos quais chefiará uma seção deste novo dicastério: um encarregado da evangelização – herdeiro do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização – e outro encarregado da administração de católicos dos países do Sul Global, que atualmente faz parte da Congregação para a Evangelização dos Povos (Propaganda Fide). 

Outro sinal de que a evangelização é considerada um eixo fundamental do trabalho da Cúria Romana é que este novo dicastério aparece no topo do organograma, ocupando o lugar que antes era ocupado pela Congregação para a Doutrina da Fé. 

A mudança é uma forma de significar que todo o trabalho da Igreja, inclusive o desenvolvimento e a defesa da doutrina, está a serviço da EVANGELIZAÇÃO.

Esta é a atual organização da Cúria Romana, a qual sofrerá várias modificações a partir do dia 5 de junho de 2022

Uma revisão completa do organograma 

Praedicate evangelium marca o desejo do papa de revisar e esclarecer o organograma da Cúria. 

Enquanto em Pastor Bonus, João Paulo II tinha 12 conselhos pontifícios e nove congregações, Francisco acaba com a própria noção de “congregações” e mudou o nome de todos os 16 desses principais ofícios para “dicastérios”. 

Há também várias comissões pontifícias que fazem parte de alguns dos novos dicastérios. 

Vários dicastérios – como o Dicastério para a Cultura e a Educação ou o Dicastério para a Evangelização são o resultado da fusão de escritórios pré-existentes. 

A nova constituição também reorganiza a Congregação para a Doutrina da Fé (que se torna o “Dicastério para a Doutrina da Fé”) em duas seções, doutrinal e disciplinar. 

PAPA FRANCISCO participou diretamente das reflexões e decisões acerca da renovação da CÚRIA ROMANA, finalizada agora, em 2022

Um novo Dicastério para a Caridade 

O papa também criou um novo Dicastério para o Serviço de Caridade, que reforça e atualiza a atual Esmolaria Apostólica (Elemosineria Apostolica). 

“O dicastério é competente para receber, buscar e solicitar gratuitamente doações para obras”, diz o texto. 

Este novo serviço é “uma expressão única de misericórdia e, a partir da opção pelos pobres, vulneráveis e marginalizados, realiza o trabalho de assistência e de ajuda a eles”. 

Reforçar o combate à pedocriminalidade 

A Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, que Francisco instituiu em 2014, teve seu papel consideravelmente reforçado. 

A comissão foi anexada ao Dicastério para a Doutrina da Fé, encarregado de investigar casos de padres e religiosos acusados de abuso sexual de menores ou pessoas vulneráveis. 

Conforme a nova constituição, a comissão pontifícia auxilia “os bispos”, “as conferências episcopais” e institutos religiosos em sua luta contra os abusos. 

Em particular, deve “dar uma resposta adequada a tal conduta por parte do clero e dos membros dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, segundo as normas canônicas e tendo em conta as exigências do direito civil”. 

Até agora, o papel da comissão era principalmente de conscientização, mas seu papel consultivo não estava claramente estabelecido. 

CARDEAL PIETRO PAROLIN atual Secretário de Estado do Vaticano

Redefinindo o papel da Secretaria de Estado 

A Secretaria de Estado é definida como o “secretariado pontifício”, sublinhando o papel deste escritório em ajudar o Pontífice Romano a cumprir a sua missão. 

Francisco também quer que o Secretariado se concentre particularmente na preparação dos grandes textos do magistério. 

Mas a partir de agora cabe também à Secretaria de Estado desempenhar um papel maior no apoio ao trabalho entre os vários dicastérios. 

Por exemplo, é a Secretaria que deve convocar “reuniões periódicas dos chefes dos órgãos da Cúria”. 

Apertando o controle sobre as finanças 

O papa confirma o papel da Secretaria de Economia no controle das finanças da Cúria. 

Este serviço, que não se apresenta como dicastério, mas como órgão separado, tem a missão de exercer “controle e supervisão em matéria administrativa, econômica e financeira sobre as instituições curiais, escritórios e instituições ligadas à Santa Sé ou a ela referentes”, incluindo o Óbolo de São Pedro. 

Uma novidade importante é que a Secretaria de Economia, e não a Secretaria de Estado, será responsável pelos funcionários do Vaticano. 

Um novo “Departamento de Recursos Humanos da Santa Sé” foi criado dentro do escritório econômico. 

Traduzido por Wagner Fernandes de Azevedo. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Terça-feira, 22 de março de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 22/03/2022).

terça-feira, 22 de março de 2022

O mal-estar está fermentando

 “As pessoas estão enraivecidas e a crise aguça todos os sentimentos”

 Patricia Fachin

Instituto Humanitas Unisinos - IHU 

Entrevista com Waldir Quadros

Graduado em Economia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde atualmente é professor associado do Instituto de Economia 

WALDIR QUADROS


Apesar de a massa trabalhadora e os miseráveis serem os estratos sociais que mais sofrem em qualquer tipo de crise, a novidade da CRISE PANDÊMICA é que a alta classe média e a média classe média foram, diferentemente de outros momentos, diretamente afetadas

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD de 2020 "revelam aquilo que já percebíamos e observávamos: uma grande mobilidade descendente, ou seja, uma piora significativa na estrutura social", destaca Waldir Quadros, que anualmente analisa os indicadores sobre a renda e a estrutura ocupacional das famílias brasileiras. 

Segundo ele, apesar de a massa trabalhadora e os miseráveis serem os estratos sociais que mais sofrem em qualquer tipo de crise, a novidade da crise pandêmica é que a alta classe média e a média classe média foram, diferentemente de outros momentos, diretamente afetadas. "A alta classe média que, até então, estava sendo preservada, caiu significativamente. Isso significa que desceu para uma classe inferior. Na média classe média aconteceu a mesma coisa: houve um grande rebaixamento social. De outro lado, a baixa classe média cresce, porque quem caiu da média foi para a baixa. Da mesma forma ocorre com a massa trabalhadora, que são os pobres". 

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, o economista apresenta alguns dados que indicam a queda na renda desses estratos sociais. "Quem estava na alta classe média em 2019, tinha uma renda média de 17,7 mil reais por família", exemplifica. Quem caiu "em 2020 para a média classe média passou a ter uma renda familiar de 6,2 mil reais". Aqueles que eram da média classe média tinham uma renda familiar média de 6,2 mil reais em 2019. Os que foram para a baixa classe média passaram a ter uma renda média de 3,1 mil reais. Em contrapartida, "a renda média familiar dos miseráveis em 2019 era 360 reais e passou para 400 reais em 2020". 

Em termos políticos, pontua, o desafio consiste em saber quais serão as consequências dos dados. "Vemos um tremendo mal-estar na sociedade, gerado pela crise e pelas questões sanitárias. Agora, o sentido, qual será o resultado disso, não é possível observar a partir dos dados. Por exemplo, a alta classe média é conservadora e uma grande parcela é de direita. Portanto, é difícil dizer qual será o impacto da crise nesse segmento: ele vai mudar de posição ou a crise vai reforçar suas opiniões? Não sai do dado a visão política, mas o fato é que há um mal-estar muito grande que será canalizado nas eleições". 

Quadros também comenta rapidamente os efeitos da guerra entre a Ucrânia e a Rússia na vida política e social brasileira. "A guerra vai impactar agravando a nossa crise: o custo de vida, o preço dos combustíveis, da energia, a dificuldade de importação. A crise revela tudo que nós não fizemos. Por exemplo, a crise em torno dos fertilizantes: o Brasil teria condições de produzir fertilizantes, mas abandonou isso", assegura. 

Confira a entrevista. 

IHU – O que os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD de 2020 indicam sobre a situação social do Brasil durante o primeiro ano da pandemia?

Waldir Quadros – Os dados revelam aquilo que já percebíamos e observávamos: uma grande mobilidade descendente, ou seja, uma piora significativa na estrutura social. A alta classe média que, até então, estava sendo preservada, caiu significativamente. Isso significa que desceu para uma classe inferior. Na média classe média aconteceu a mesma coisa: houve um grande rebaixamento social. De outro lado, a baixa classe média cresce, porque quem caiu da média foi para a baixa. Da mesma forma ocorre com a massa trabalhadora, que são os pobres. Uma visão panorâmica nos mostra que 2020 teve um grande impacto na estrutura social. A situação social já não estava boa, a economia estava em crise desde 2015, mas estava se recuperando lentamente em 2018 e 2019. 

IHU – Nas tabelas de exposição dos dados, o senhor compara o atual quadro aos anos anteriores até 2012. A partir dessas comparações anuais, diria que a regressão social é equivalente a qual período da história do país?

Waldir Quadros – As tabelas se iniciam com a data de 2012 porque o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE mudou a metodologia de análise. Então, a nova série é de 2012 para frente. Mas 2014, por exemplo, foi o auge daquele período de expansão que iniciou em 2004. A crise de 2020 certamente nos jogou para um patamar social abaixo do que já tínhamos atingido até então, abaixo, inclusive, de períodos como 2012 e 2013. Houve uma regressão significativa, que ainda não tínhamos visto nesta década. 

IHU – Quais foram as principais mudanças ocorridas entre 2019 e 2020 em relação à renda e à perda da renda entre os brasileiros, nas categorias que o senhor analisa, a alta classe média, a média classe média, a massa trabalhadora e os miseráveis?

Waldir Quadros – Uma forma boa para analisarmos essa perda é comparar (ver a tabela 4) quem estava na alta classe média em 2019 e tinha uma renda média de 17,7 mil reais por família. Em 2020, quem caiu da alta para a média classe média passou a ter uma renda familiar de 6,2 mil reais. Veja a queda na renda. Então, a melhor forma de analisar é verificar qual era a renda em 2019 e como estava a renda em 2020. Quem estava na média classe média em 2019 tinha uma renda média familiar de 6,2 mil reais, e em 2020 esta renda caiu para 3,1 mil reais.

Para quem cai, a perda é muito significativa. Para aqueles que continuaram na mesma classe, a perda foi suportável.

Em 2019, quem estava na alta classe média tinha uma renda de 17, 7 mil reais, e quem continuou na alta classe média, em 2020, manteve uma renda de 17,4 mil reais. Não foi uma perda desastrosa nesse sentido.

A renda média geral das famílias era 4,6 mil reais em 2019, e caiu para 4,2 mil reais. É uma perda? É. Mas vemos o verdadeiro impacto entre aqueles que mudaram de patamar, porque sofreram uma queda muito maior.

Os miseráveis, por outro lado, tiveram um aumento de renda, mas isso não significa muita coisa porque a renda deles aumentou de 360 para 400 reais. Além disso, o crescimento dos miseráveis também ocorreu por causa da queda dos demais estratos sociais, que descenderam. 

IHU – A condição de vida deles continua incomparavelmente pior do que a dos demais.

Waldir Quadros – Muito pior, e a situação deles ainda piorou porque, além da questão da renda familiar, também é preciso considerar os efeitos da inflação e do custo de vida. Esses efeitos, seja na vida dos miseráveis ou das classes trabalhadoras, são uma catástrofe. O custo de vida e o desemprego aumentaram significativamente, sem falar nas dificuldades em relação às condições sanitárias.

Então, as camadas populares sofreram e sofrem mais do que as demais classes porque todos os impactos sociais são piores entre os mais pobres. 

IHU – O aumento da renda dos miseráveis neste período considera o recebimento do Auxílio Emergencial que receberam naquele período?

Waldir Quadros – Sim. E veja que a renda média familiar deles em 2019 era 360 reais e passou para 400 reais em 2020. O que aliviou um pouco a situação deles foi justamente o recebimento do Auxílio Emergencial, que serviu como uma grande tábua de salvação. Pena que o valor inicial de 600 reais foi rebaixado e, hoje, já não existe uma situação de proteção social. 

IHU – A perda de renda nos diferentes estratos sociais pode ter implicações políticas e sociais no sentido de reforçar os conflitos e as disputas já existentes no país?

Waldir Quadros – Excelente pergunta, porque o impacto que temos que analisar vai além do número, do dado expresso na pesquisa. Em termos políticos, vemos um tremendo mal-estar na sociedade, gerado pela crise e pelas questões sanitárias. Agora, o sentido, qual será o resultado disso, não é possível observar a partir dos dados. Por exemplo, a alta classe média é conservadora e uma grande parcela é de direita. Portanto, é difícil dizer qual será o impacto da crise nesse segmento: ele vai mudar de posição ou a crise vai reforçar suas opiniões? Não sai do dado a visão política, mas o fato é que há um mal-estar muito grande que será canalizado nas eleições.

Os candidatos à presidência deveriam se debruçar em cima dessa questão para tentar encontrar caminhos e captar esse descontentamento, esse mal-estar e até mesmo a raiva, porque as pessoas estão muito enraivecidas. A crise aguça todos esses sentimentos.

Além disso, as pessoas estão se sentindo desamparadas, porque quem não tem uma posição muito boa está totalmente desamparado.

Desamparo, exemplos:

* Quantos pequenos negócios fecharam e não receberam apoio?

* Não houve apoio para evitar o fechamento de pequenos negócios,

* para aliviar o preço dos aluguéis,

* dos impostos,

* dos juros,

* para garantir mais acesso a crédito.

Outros países fizeram isto: os Estados Unidos deram um apoio significativo aos pequenos negócios para evitar que fechassem. Setores de serviços, como lojas e restaurantes, quando fecham, demitem os trabalhadores. Os donos desses comércios, como são pequenos, muitas vezes não têm alternativa. Além disso, ao fechar esse tipo de negócio, boa parte dos aluguéis deixa de ser pago. As pessoas deixam de pagar porque não conseguem manter o pagamento. Quem vive de aluguel também sofre. Ou seja, há um encadeamento que deveria ser evitado ou minimizado com o apoio do governo; não tem outro jeito. 

IHU – De outro lado, não se vê manifestação social como reação desse mal-estar, como também ocorreu no governo Dilma, quando havia um mal-estar que foi manifesto posteriormente em junho de 2013. O senhor aposta que o mal-estar possa eclodir de fato nas eleições?

Waldir Quadros – Hoje, o mal-estar também está fermentando, mas, ao mesmo tempo, não há nenhum indício de explosão social. As manifestações foram devagar porque não há quem as puxe. Até agora, tivemos a questão da pandemia e uma parte das pessoas não queria se expor ao risco da Covid-19, com exceção dos militantes e dirigentes. Tenho a impressão de que, nesta altura do campeonato, o mal-estar será canalizado para as eleições. Não vejo nenhum cenário de revolta social. Mas tudo é imprevisível. 

IHU – O que os dados indicam sobre a estrutura ocupacional das famílias? O que mudou em 2020 em relação ao ano anterior?

Waldir Quadros – Essa questão é interessante porque na tabela 3 as famílias são classificadas a partir do membro mais bem remunerado, e a modificação na estrutura ocupacional das famílias se refere ao membro mais bem remunerado.

A primeira categoria analisada são aqueles “sem ocupação, mas com renda”. Esse dado me surpreendeu porque diz respeito justamente àqueles que não têm ocupação, mas têm renda, como, por exemplo, quem recebe renda ou de aluguel ou de participação em lucros e dividendos. Nesses casos, que dizem respeito à alta classe média, as pessoas foram atingidas pelo fechamento dos pequenos negócios e das empresas. Aqui houve um impacto muito grande: de mais de 3 milhões destas, 1 milhão caiu de posição social, ou seja, mais de 1/3; 34% de pessoas que tinham renda de aluguéis ou de dividendos perderam renda. Esse é um impacto direto da recessão e da pandemia e do fechamento dos negócios.

Outro grupo que perdeu bastante foi o chamado “colarinho branco” porque muitas empresas fecharam e esses empregados, seja no comércio, no serviço ou na indústria, perderam renda e emprego e houve uma queda de aproximadamente 10% entre eles.

No grupo dos trabalhadores autônomos, os trabalhadores mais importantes são os caminhoneiros. Eles são enquadrados na alta classe média porque boa parte deles é dono do caminhão, portanto, não são empregados. Mas há uma queda significativa entre eles. Depois, há uma queda entre os pequenos e médios empresários, o pequeno negócio, o comércio, principalmente a área de serviços, como bares e restaurantes. Mais de 10% deles perderam posição social.

Os colarinhos brancos autônomos fazem parte de uma categoria similar a dos outros, com a diferença que eles não são assalariados. São executivos e técnicos especializados. Eles são os principais grupos que perderam espaço na alta classe média. Analiso a alta classe média porque isso reflete em toda a estrutura social e também porque ela, até 2020, tinha conseguido se preservar. A grande novidade é que em 2020 a alta classe média sofreu um impacto violento, o que não tinha acontecido em outras crises. 

IHU – Como superar esses efeitos e retornar aos patamares sociais anteriores?

Waldir Quadros – No momento, diria que as medidas dependem do governo federal e não há muito o que fazer porque o governo não quer e está impedido de agir por causa do teto de gastos. O que melhoraria a situação é o investimento em desenvolvimento econômico, mas o governo não tem recursos para investir em novas obras, que garantiriam empregos e ativariam a economia. Não vejo muita possibilidade de resolução enquanto não mudarmos o rumo.

Para mudar de rumo, é preciso de eleição.

Minha única esperança são as eleições no final deste ano.

Isso não significa que a situação será transformada e tudo ficará uma maravilha, mas há a possibilidade de ter um governo que possa se livrar dessa camisa de força imposta pelo setor financeiro e os rentistas, que é o TETO DE GASTOS. Hoje, não se pode gastar com questões urgentes; somente para poder pagar os juros.

O pagamento dos juros está sendo feito com a desculpa de combater a inflação, mas isso não combate a inflação.

Havendo a inflação, aumenta-se o juro para manter a remuneração real, ou seja, aquilo que os investidores ganham, descontando a inflação. O juro serve para preservar o ganho dos rentistas. Se a economia já está mal e ainda aumentam o juro desse jeito, não tem saída, a não ser que mude o rumo, o que não é algo simples. 

IHU – Do que o senhor tem visto em preparação para a eleição deste ano, apostaria em alguma via que poderia mudar o rumo?

Waldir Quadros – Entre os que se destacam nas pesquisas hoje, estão Lula e Bolsonaro. Bolsonaro não vai querer e não vai poder mudar nada disso. Lula está falando “coisa com coisa” e é uma boa perspectiva para alterar o rumo.

As declarações dele estão sendo no sentido de acabar com o teto de gastos, investir nos pobres, cobrar impostos dos ricos. Esse é o caminho.

Não significa que será fácil. 

IHU – Já não ouvimos esse discurso no passado?

Waldir Quadros – Sim. Porque a situação regrediu, voltamos para aquele cenário anterior. É preciso fazer aquelas coisas que foram feitas e, mais ainda, aquelas que não foram feitas. Se Lula ganhar, terá que fazer um governo mais avançado do que fez no passado. Ele fez um governo confortável porque tinha crescimento econômico, a China comprava nossas commodities. Agora, com a nova crise internacional, a situação ficou ainda mais difícil. 

IHU – A guerra entre Rússia e Ucrânia pode gerar quais efeitos para o Brasil e de que modo pode influenciar na política interna, favorecendo ou não determinado espectro político nas próximas eleições?

Waldir Quadros – A guerra vai impactar agravando a nossa crise: o custo de vida, o preço dos combustíveis, da energia, a dificuldade de importação. A crise revela tudo que nós não fizemos. Por exemplo, a crise em torno dos fertilizantes: o Brasil teria condições de produzir fertilizantes, mas abandonou isso. A Vale abandonou, a Petrobras abandonou; fecharam as plantas. É um absurdo depender da importação de fertilizantes, assim como dependemos da importação de medicamentos.

Este é o grande prejuízo da DESINDUSTRIALIZAÇÃO: é uma coisa concreta e não ideológica. O Brasil tinha destaque na indústria de medicamentos. Sempre tivemos uma indústria poderosa nesse sentido, com autossuficiência em muitas linhas. Hoje, temos que importar tudo e comprar remédios da China porque paramos de produzir.

Essa bandeira da reindustrialização é central.

Desejo que, se Lula vencer a eleição, cuide disso.

Reindustrializar o país é a nossa única possibilidade de ter uma economia de uma sociedade civilizada. Claro que tem o impacto da crise e todas as emergências e auxílios são necessários neste momento para que o povo não morra de fome. Mas para termos um cenário mais promissor, uma das medidas inadiáveis é a reindustrialização nas condições atuais do mundo, verificando quais são os setores importantes, retomando a parceria com o Brics. Veja o quanto a Índia avançou. Tudo que regredimos na indústria, a Índia avançou. 

IHU – Além da reindustrialização, quais as questões urgentes de serem debatidas na eleição deste ano, a partir desta realidade que o senhor apresenta analisando os dados da PNAD?

Waldir Quadros – Uma delas é a retomada das políticas sociais:

a) retomar o investimento do Sistema Único de Saúde – SUS e

b) da educação, que tem resultado imediato.

Quando observamos os ganhos dos enfermeiros, que estão na linha de frente na área de saúde, vemos que a situação é catastrófica. Veja o que eles estão enfrentando e ganhando salários baixos. É preciso financiar o SUS, a educação e a segurança pública. Esses são os três setores que mais empregam nos estados. Tem que investir e gastar.

Por isso não pode ter teto de gastos, porque ele impede o gasto social. Para ter dinheiro, é preciso recuperar as finanças públicas, cobrar impostos, fazer os ricos pagarem impostos e taxar dividendos e lucros.

É uma vergonha eles não pagarem impostos. Os acionistas da Petrobras, com a crise do custo da energia, estão ganhando fortunas com dividendos e não pagam impostos. Isso é um crime. E aí não tem dinheiro para fazer política social. 

IHU – Quais os desafios políticos na elaboração de programas para a esquerda, a direita e o centro, diante do mal-estar social que está fermentando?

Waldir Quadros – Este é o grande desafio para os candidatos: quem vai conseguir se aproximar e cativar o eleitorado que vive uma situação social real. Quem vai conseguir ter propostas e programas que convençam, com pontos de programa que toquem na situação gravíssima que as pessoas estão vivendo? Esta é a grande preocupação: quem vai conseguir cativar e transmitir a confiança que vai tratar das questões mais urgentes. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Domingo, 20 de março de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 22/03/2022).