«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Solenidade da Santa Mãe de Deus – Ano A – Homilia

Evangelho: Lucas 2,16-21

Naquele tempo:
16 Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido, deitado na manjedoura.
17 Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino.
18 E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam.
19 Quanto a Maria, guardava todos estes fatos e meditava sobre eles em seu coração.
20 Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito.
21 Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido.

José María Castillo
Teólogo espanhol

Nas relações humanas se dão as relações com Deus

A originalidade do cristianismo, em relação com as demais religiões, consiste em que os cristãos entendemos a relação com Deus a partir do que são e como são as nossas relações humanas. Pois bem, nossa primeira relação, como seres humanos, é a relação com nossa mãe. Desde o seio materno, antes de nascer, estamos nos relacionando intensamente com nossa mãe. E assim, aprendemos a amar e a ser amados. O qual é o meio e o caminho pelo qual começamos a entender Deus e como deve ser nossa relação com Ele.

Ao dizer tudo isso, não se trata de dissolver a diferença entre o «Ser divino» e o «ser humano». Porque isso equivaleria a cair em uma forma (mal dissimulada) de ateísmo ou (a partir de outro ponto de vista) de panteísmo. Com semelhantes distinções não iremos a parte alguma. Não falamos do ser do homem e do ser de Deus. Estamos falando de como tem que atuar (comportar-se) o ser humano para encontrar-se com o «Ser divino». Relacionar-se com Deus não é divinizar-se, mas ao contrário: humanizar-se. Na medida em que nos fazemos mais humanos, mais próximos estamos do divino. Porque, na «ENCARNAÇÃO», Deus «SE HUMANIZOU», em Jesus.

No pensamento da Antiguidade, o tema predominante era o problema do Ser (a metafísica). Na cultura da Modernidade e da «Pós-modernidade», na qual vivemos, é o comportamento (a ética). De modo que, o importante agora não é o «Ser», mas o «Atuar». Por isso, no comportamento é onde e como conhecemos quem é cada um. Quando tal comportamento (seus «fatos», seus «frutos») supera o que dá de si a condição humana, quem se comporta assim, é que é mais que um ser humano.

E, na medida em que se aproxima disso, pode-se afirmar que Deus está nessa pessoa. Por isso, os cristãos dizem que, em Jesus, conhecemos Deus, vemos Deus, apalpamos Deus. E isto chega até ao extremo de afirmar que Deus teve Mãe. Nisto – há que se repetir – encontra-se a originalidade e a atualidade do cristianismo.
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José Antonio Pagola
Biblista e Teólogo espanhol

A Mãe

A muitos pode parecer estranho que a Igreja faça coincidir o primeiro dia do novo ano civil com a festa de Santa Maria, Mãe de Deus. No entanto, é significativo que, desde o século quarto, a Igreja, depois de celebrar solenemente o nascimento do Salvador, deseje começar o ano novo sob a proteção maternal de Maria, Mãe do Salvador e Mãe nossa.

Os cristãos de hoje devemos nos perguntar o que temos feito de Maria nestes últimos anos, pois provavelmente empobrecemos nossa fé eliminando-a, demasiadamente, de nossa vida!

Movidos, sem dúvida, por uma vontade sincera de purificar nossa vivência religiosa e encontrar uma fé mais sólida, abandonamos excessos de piedade, devoções exageradas, costumes superficiais e extraviados.

Tratamos de superar uma falsa mariolatria na qual, talvez, substituíamos Cristo por Maria e víamos nela a salvação, o perdão e a redenção os quais, na realidade, devemos acolher a partir de seu Filho.

Se tudo foi corrigir desvios e colocar Maria em seu autêntico lugar que corresponde ao de Mãe de Jesus Cristo e Mãe da Igreja, teríamos de nos alegrar e reafirmar a nossa postura.

Porém, foi exatamente assim? Não a esquecemos excessivamente? Não a encurralamos em algum lugar obscuro da alma junto às coisas que nos parecem de pouca utilidade?

Abandonar Maria, sem aprofundarmos mais em sua missão e no lugar que deve ocupar em nossa vida, não enriquecerá jamais nossa vivência cristã, mas a empobrecerá. Provavelmente, cometemos excessos de mariolatria no passado, porém, agora, corremos o risco de nos empobrecermos com sua ausência, quase total, de nossas vidas.

Maria é a Mãe de Cristo. Porém, aquele Cristo que nasceu de seu seio estava destinado a crescer e incorporar a si numerosos seres humanos, homens e mulheres que viveriam, um dia, de sua Palavra e de sua graça. Hoje, Maria não é somente a Mãe de Jesus. É a Mãe do Cristo total. É a Mãe de todos os crentes.

É bom que, ao começar um ano novo, o façamos elevando nossos olhos para Maria. Ela nos acompanhará ao longo dos dias com cuidado e ternura de mãe. Ela cuidará de nossa fé e nossa esperança. Não a esqueçamos ao longo deste ano.

Traduzido do espanhol por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fontes: CASTILLO, José María. La religión de Jesús: comentario al evangelio diario – Ciclo C (2018-2019). Bilbao: Editorial Desclée De Brouwer, 2018, páginas. 41-42; PAGOLA, José Antonio. La Buena Noticia de Jesús – Ciclo A. Boadilla del Monte (Madrid): PPC, páginas 32-34.

Um livro que está dando o que falar!

“O que é o homem?”
Interroga-se a Pontifícia Comissão Bíblica

Franca Giansoldati
Jornal «Il Messaggero» - Roma (Itália)
18-12-2019

Divórcio, os teólogos abrem uma brecha:
“Possível, se falta a expressão do amor”
Tradução do título:
"O que é o homem? Um itinerário de antropologia bíblica"
Livro, ainda, a ser publicado no Brasil

Divorciar, mas com cautela. Um livro acaba de ser publicado pela Libreria Editrice Vaticana, que contém uma brecha sem precedentes, uma luz nada certa, mas preciosa para todos aqueles casais católicos que naufragaram, caindo em mil pedaços, na dor da derrota existencial. Os teólogos, embora deixem claro que existe “a indissolubilidade” do matrimônio, deram um passo adiante afirmando que o marido ou a esposa que conscientemente percebem a própria impossibilidade de continuar o caminho conjugal já não mais baseado no amor, “não estão fazendo um ato contra o casamento”.

Em suma, é uma abertura para o divórcio, embora com mil distinções e muitas cautelas. O livro chamado Che cosa è l'uomo (O que é o homem, em tradução livre) aborda o tema em um parágrafo inteiro. “O Mestre peremptoriamente afirma a indissolubilidade do matrimônio, proibindo o divórcio e novos casamentos”, mas, no entanto, os teólogos lembram que “não faz um ato contrário ao casamento o cônjuge que - constatando que o relacionamento conjugal não é mais expressão de amor - decide separar-se daquele que ameaça a paz ou a vida dos familiares; aliás, ele paradoxalmente atesta a beleza e a santidade do vínculo precisamente ao declarar que ele não realiza seu significado em condições de injustiça e infâmia”.

Magistério

O papa desde o início do pontificado havia se concentrado no desconforto de tantos casais divorciados e depois recasados. Durante uma audiência, ele até mencionou a possibilidade de um divórcio “cristão”, refletindo sobre muitas situações de violência escondida e oculta entre os muros domésticos: “Não devemos insistir no fato de ser possível ou não dividir um casamento. Às vezes acontece que o relacionamento não funciona e é melhor se separar para evitar uma guerra mundial, esta sim é uma desgraça”. O estudo recém-publicado é uma leitura antropológica sistemática da Bíblia atualizada até os dias atuais e analisada de acordo com diferentes ângulos.

O jesuíta, padre Pietro Bovati, secretário da Pontifícia Comissão Bíblica, redator do texto, explicou que o pedido veio pessoalmente do Papa e o resultado são os quatro capítulos de investigação cognitiva da criatura humana e sua relação com o Criador, assim como são narrados pelas Escrituras. “Em sua história milenar, a humanidade progrediu no conhecimento científico, aprimorou gradualmente sua consciência dos direitos do homem, testemunhando um crescente respeito pelas minorias, pelos indefesos, pelos pobres e marginalizados”.

O texto da Comissão do antigo Santo Ofício também colocou outras temáticas espinhosas sob a lupa, como a questão do gênero. “Parece-nos - acrescentou o padre Bovati - ter respondido precisamente ao que a Igreja nos pede, isto é, não dizer coisas que não são as que a Bíblia apresenta. Por isso, aceitamos abordar as questões, respeitando o nível de informação que temos das Escrituras. Existem perguntas que os homens apresentam hoje, que não encontram uma resposta imediata e precisa nas Escrituras, porque as situações culturais dos tempos antigos não são nossas”.
PIETRO BOVATI
Padre jesuíta italiano, exegeta, professor do Pontifício Instituto Bíblico - Roma
Atual Secretário da Pontifícia Comissão Bíblica

“O que é o homem” – e a questão de gênero?

Massimo Battaglio
Gionata.org
19-12-2019

Muitas vozes internas à Igreja reivindicam uma nova acolhida
da homossexualidade e das uniões homossexuais como
expressão legítima e digna do ser humano

O poderoso livro publicado nos últimos dias pela Comissão Bíblica da Congregação para a Doutrina da Fé e intitulado Che cosa è l’uomo? [O que é o homem?, em tradução livre] está dando o que falar.

De fato, é um documento estrondoso, no qual os biblistas oficiais da Igreja parecem querer mudar toda a doutrina sobre a homossexualidade. E, como quem encomendou a obra foi o papa em pessoa, muitos o estão comentando como a abertura definitiva de Francisco à modernidade. Outros se limitam a falar dele como “mais uma façanha de Bergoglio”.

Extraímos alguns trechos que nos interessam.

É verdade, reitera-se em “O que é o homem?”, que “a instituição matrimonial, constituída pela relação estável entre marido e mulher, é constantemente apresentada como evidente e normativa em toda a tradição bíblica”. Também é verdade que, na Bíblia, não existem “exemplos de união legalmente reconhecida entre pessoas do mesmo sexo”.

Contudo, muitas vozes internas à Igreja reivindicam uma nova acolhida “da homossexualidade e das uniões homossexuais como expressão legítima e digna do ser humano”.
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"A criação de Adão"
Pintor: Michelangelo - Capela Sistina - Vaticano

Atenção: não se fala vagamente de acolhida

Até ontem, “acolher” uma pessoa homossexual muitas vezes significava “fechemos um olho, Deus também te ama”. Agora, o ex-Santo Ofício registra (e é algo impressionante) que uma grande parte do pensamento católico considera legítimas e dignas as uniões LGBT. Repito: muitos cristãos não consideram os atos homossexuais cometidos em uma relação de casal como pecado.

O que é estrondoso é que, até ontem, uma afirmação dessas seria seguida por: “Bem, quem sustenta essas distorções se equivoca e deve ser condenado assim como os gays”. Agora, ao contrário, diz-se algo bem diferente:

Uma compreensão nova e mais adequada da pessoa humana impõe uma radical reserva sobre a exclusiva valorização da união heterossexual em favor de uma análoga acolhida da homossexualidade e das uniões homossexuais.”

“Além disso, argumenta-se às vezes que a Bíblia diz pouco ou nada sobre esse tipo de relação erótica, que, por isso, não deve ser condenada.”

O exame exegético realizado sobre os textos do Antigo e do Novo Testamentos trouxe à tona elementos que devem ser considerados para uma avaliação da homossexualidade em seus aspectos éticos. Certas formulações dos autores bíblicos [...] requerem uma interpretação inteligente, que salvaguarde os valores que o texto sagrado pretende promover, evitando repetir literalmente aquilo que traz consigo também traços culturais daquele tempo.”

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PE. GIANLUCA CARREGA
Turim - Itália

O Pe. Gianluca Carrega é professor de Novo Testamento na Faculdade Teológica de Turim e responsável pela mesa diocesana sobre fé e homossexualidade. Ele se diz confiante: “O adjetivo que melhor descreve o meu sentimento neste momento é precisamente este: confiante. Eu ainda não li o texto, mas conheço Bovati como uma pessoa reta e livre” (Bovati, membro da Comissão Bíblica e consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, é o principal autor do texto).

“‘O que é o homem?’ pode dar indicações menos fundamentalistas do que aquelas a que estamos acostumados. Estou na expectativa, embora não tenha ilusões.”

Alguns objetam que, se não existem muitas fontes bíblicas sobre a homossexualidade, a Escritura, porém, não é a única fonte da revelação. A exegese bíblica, dizem, deve ser reconciliada com a moral, com a tradição. O que o senhor acha?

Gianluca Carrega É claro, também existem as outras disciplinas: moral, teologia... Mas elas não podem contradizer a Escritura. Onde a Escritura não parece ter as respostas específicas sobre casos particulares, mesmo assim ela fornece as orientações. E essas orientações são, acima de tudo, o princípio da misericórdia, o mandamento do amor. A doutrina ou uma exegese parcial demais não podem pôr em discussão esses pressupostos.

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Franco Barbero é ex-padre, suspenso na época de Bento XVI justamente por causa da sua proximidade com as temáticas LGBT. Pergunto-lhe, acima de tudo, o que ele acha do documento:

Finalmente, uma primeira abertura. É preciso ver se são coisas reais e não apenas palavras um pouco novas. Mas não me surpreende que se tenha chegado a uma reavaliação de velhas categorias, porque estávamos em um estado de barbárie. Se esses pontos não forem mudados, a Igreja vai ao fracasso.”

Até ao fracasso da Igreja?

Franco Barbero Certamente. Os bispos alemães estão dando a entender isso muito bem. Lá, onde os fiéis têm a alternativa protestante à sua disposição, o risco é justamente este: que abandonem a Igreja Católica porque a consideram desatualizada, distante. E já estão fazendo isso.

Mas então é apenas uma questão, digamos assim, política?

Franco Barbero É uma questão séria. Esse texto finalmente reflete sobre como se deve ler a Bíblia. Há anos dizemos isto: ao nos aproximarmos das Escrituras, devemos depor os óculos do dogma. Não podemos nos aproximar da Palavra de Deus, esperando que ela confirme as nossas ideias, para que elas se tornem dogmáticas. Não podemos jogar sobre elas os nossos preconceitos. Devemos analisá-la e nos deixar inspirar por ela, e não vice-versa. Os judeus também aprenderam a ver a Bíblia como um texto dinâmico, que fala a cada um no seu tempo. Nós devemos fazer o mesmo.

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SELENE ZORZI
Teóloga italiana

Selene Zorzi é teóloga, desde sempre estudiosa das temáticas femininas e LGBT. Ela escreveu textos como “Il Genere di Dio” [O gênero de Deus, em tradução livre]. E parece menos entusiasmada.

Nada disso. Estamos longe de formular reflexões concluídas. Digamos que é um passo. E me surpreendeu, depois do documento sobre o gênero publicado em maio pela Congregação para a Educação Católica.”

Na sua opinião, quais argumentos contribuíram para a formulação e para a publicação de “O que é o homem”?

Selene Zorzi Acima de tudo, o Papa Francisco, que sempre desejou uma Igreja com várias vozes e aberta ao debate. De várias partes vinham críticas de incoerência sobre a doutrina. Mais cedo ou mais tarde, deviam ser ouvidas. Além disso, já existe uma vasta literatura sobre a homossexualidade. Informações, testemunhos, pesquisas científicas e também teológicas chegam ao Vaticano. A cúpula da Igreja não pode ignorá-los se não quiserem correr o risco de testemunhar o velho ou o falso.

Contradições da doutrina?

Selene Zorzi Sim. Quando se afirma, na constituição conciliar Gaudium et spes, que a sexualidade é um dom, que garante o progresso pessoal e o destino eterno de cada um dos membros da família etc., e depois se impede que uma grande quantidade de pessoas viva esse dom. É uma contradição.

E por que só agora é que se decidiu enfrentar essas contradições?

Selene Zorzi Na realidade, muitos estudos estavam prontos há algum tempo. Só que, até agora, o clima no Vaticano não era favorável. Agora, tendo mudado a cúpula e os colaboradores mais próximos, começa a haver realmente espaço para todos.

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FRANCESCO LEPORE
Ex-padre que trabalhou no Vaticano

Francesco Lepore aprofunda esse último aspecto. Ele é um ex-padre e trabalhou durante anos no Vaticano, em estreito contato com os cardeais.

‘O que é o homem?’ é um estudo encomendado pelo papa e foi desenvolvido junto à autoridade mais alta e competente. Portanto, deve ser levado a sério. Pode ser lido como uma reação às conclusões do Sínodo sobre a Família.”

No sentido de que é uma espécie de resposta às famosas “dubia” que alguns purpurados [cardeais] faziam ao papa para pôr em discussão as suas aberturas?

Francesco Lepore É uma resposta à Igreja. Uma resposta escritural, portanto, profunda e, de certa forma, definitiva. De certa forma, também pode ser entendida como um apoio ao futuro sínodo dos bispos alemães, que pré-anunciaram que levantarão questões de modo muito claro. Com “O que é o homem?”, fornecem-se indicações que vão ao seu encontro, colocando algumas indicações. Portanto, quer-se aproveitar o pedido de atualização, evitando avanços excessivos.

Acha que serão possíveis novos desdobramentos?

Francesco Lepore Veja, durante muitos séculos, interpretou-se a questão do véu para as mulheres em um sentido normativo. Até recentemente, para uma mulher, assistir sem véu a uma ação de culto era considerado um pecado grave. Por outro lado, São Paulo havia dito isso, os Padres da Igreja haviam reiterado isso. Depois, entendeu-se que era um preceito filho dos tempos em que havia sido elaborado, que devia ser relido, talvez em chave simbólica. E simplesmente caiu em desuso.

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Gianni Geraci é há anos animador e responsável do grupo de cristãos LGBT Il Guado, de Milão. Ele nos revela alguns pequenos segredos.

Na realidade, ‘O que é o homem?’ não faz nada mais do que retomar um documento de 1993 sobre a ‘Interpretação da Bíblia na Igreja’, no qual já se dizia que uma abordagem literal aos textos bíblicos era perigosa. Naquele caso, porém, os membros da Comissão Bíblica (incluindo o cardeal Martini) não tiveram coragem de dar exemplos. Muito menos de falar de homossexualidade. Por outro lado, o ar era muito menos salubre para quem dizia certas coisas na Igreja Católica. Finalmente agora, o clima de medo que existia até alguns anos atrás na Igreja acabou. Isso permitiu que a Pontifícia Comissão Bíblica detalhasse livremente os casos em que aquela leitura fundamentalista produziu os maiores danos.”

E nós, pessoas LGBT, estávamos entre os mais prejudicados.

Gianni Geraci Sim.

Traduzido do italiano por Luisa Rabolini (1º artigo) e Moisés Sbardelotto (2º artigo).

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 19 de dezembro de 2019 – Internet: clique aqui; Sexta-feira, 20 de dezembro de 2019 – Internet: clique aqui.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Solenidade da Sagrada Família – Ano A – Homilia

Evangelho: Mateus 2,13-15.19-23

13 Depois que os magos partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse: «Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo.»
14 José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito.
15 Ali ficou até à morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: «Do Egito chamei o meu Filho.»
19 Quando Herodes morreu, o anjo do Senhor apareceu em sonho a José, no Egito,
20 e lhe disse: «Levanta-te, pega o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o menino já estão mortos.»
21 José levantou-se, pegou o menino e sua mãe, entrou na terra de Israel.
22 Mas, quando soube que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Por isso, depois de receber um aviso em sonho, José retirou-se para a região da Galileia,
23 e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: «Ele será chamado Nazareno.»
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José Antonio Pagola
Biblista e Teólogo espanhol

As características de uma família aberta ao projeto de Deus

Os relatos evangélicos não oferecem dúvida alguma. Segundo Jesus, Deus tem um grande projeto: construir no mundo uma grande família humana. Atraído por este projeto, Jesus dedica-se inteiramente a que todos sintam Deus como Pai e todos aprendam a conviver como irmãos. Este é o caminho que conduz à salvação do gênero humano.

Para alguns, a família atual está se arruinando porque perdeu-se o ideal tradicional de «família cristã». Para outros, qualquer novidade é um progresso para uma sociedade nova. Porém, como é uma família aberta ao projeto humanizador de Deus? Que características poderíamos destacar?

1. Amor entre os esposos. É a primeira coisa. O lar está vivo quando os pais sabem amar-se, apoiar-se mutuamente, compartilhar dores e alegrias, perdoar-se, dialogar e confiar um no outro. A família começa a desumanizar-se quando cresce o egoísmo, as discussões e os mal-entendidos.

2. Relação entre pais e filhos. Não basta o amor entre os esposos. Quando pais e filhos vivem enfrentando-se e sem quase comunicação alguma, a vida familiar torna-se impossível, a alegria desaparece, todos sofrem. A família necessita de um clima de confiança mútua para pensar no bem de todos.

3. Atenção aos mais frágeis. Todos devem encontrar em seu lar acolhida, apoio e compreensão. Porém, a família torna-se mais humana, sobretudo, quando nela se cuida com amor e carinho dos mais pequenos, quando se ama com respeito e paciência aos mais idosos, quando se atende com solicitude os enfermos ou deficientes, quando não se abandona a quem está passando mal.

4. Abertura aos necessitados. Uma família trabalha para um mundo mais humano quando não se encerra em seus problemas e interesses, mas vive aberta às necessidades de outras famílias: lares desfeitos que vivem situações conflitivas e dolorosas, e que necessitam de apoio e compreensão; famílias sem trabalho nem renda alguma, que necessitam ajuda material; famílias de imigrantes que pedem acolhida e amizade.

5. Crescimento da fé. Na família se aprende a viver as coisas mais importantes. Por isso, é o melhor lugar para aprender a crer nesse Deus bom. Pai de todos; para ir conhecendo o estilo de vida de Jesus; para descobrir sua Boa Notícia; para rezar juntos ao redor da mesa; para tomar parte na vida da comunidade de seguidores de Jesus.

Estas famílias cristãs contribuem para construir esse mundo mais justo, digno e feliz desejado por Deus. São uma bênção para a sociedade!
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José María Castillo
Teólogo espanhol

Família é fundamental, mas que família?

A Igreja celebra a festa da família no domingo seguinte ao Natal. A instituição familiar é de importância capital para a estabilidade da sociedade. Quando, em um país, a família se desintegra, o tecido social se decompõe. A consequência é a violência em todas as suas formas. Sobretudo, a violência contra os mais fracos: as crianças, as mulheres, os idosos, os deficientes etc.

Não existe um «modelo cristão» de família. Porque a família, antes de ser um «fato religioso», é um «fato cultural». Por isso, o modelo de família depende, sobretudo, da cultura em sua totalidade, não da dimensão religiosa da cultura. O Magistério da Igreja se empenha em defender que existe um único modelo de família, deduzido de uma pressuposta «lei natural», a família patriarcal, uma vez que, segundo os teólogos católicos, o matrimônio heterossexual e monogâmico teria sido instituído por Cristo, fiel a essa pressuposta lei natural.

Porém, não existe argumento teológico algum que possa demonstrar que isto seja assim e tenha de ser assim. No mundo, sempre tem havido tantos modelos de família quanto os modelos de cultura. Não nos esqueçamos que a família tradicional não era uma unidade religiosa, mas uma unidade econômica, que se regia e se regulava por interesses econômicos, segundo as leis usos e costumes do direito romano e, mais tarde, do direito civil. Há de se esperar até o Concílio de Latrão II (ano 1139), para se ouvir falar do «caráter religioso» do matrimônio.

Jesus foi muito crítico com a família. Com a sua (Mc 3,21; 6,1-6 paralelos; Mt 12,46-50 paralelos; Jo 7,1-5) e, sobretudo, com a família em geral (Mt 10,34-42; Lc 12,51-53; 14,26-27; Mt 8,21-22; Lc 9,57-62). Para Jesus, as relações comunitárias, baseadas na fé, se antepõem às relações de parentesco, baseadas nos laços de sangue. As relações de parentesco são obrigatórias. As relações de fé são livres e fonte de liberdade. O ideal é a «relação pura» baseada na comunicação emocional, no respeito, na delicadeza extrema e na transparência, que centra seus esforços em entender o ponto de vista do outro.

Traduzido do espanhol por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fontes: PAGOLA, José Antonio. La Buena Noticia de Jesús – Ciclo A. Boadilla del Monte (Madrid): PPC, páginas 28-31; CASTILLO, José María. La religión de Jesús: comentario al evangelio diario – Ciclo A (2013-2014). Bilbao: Editorial Desclée De Brouwer, 2013, páginas. 60-61.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Uma fala imperdível!

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
 À CÚRIA ROMANA
NA APRESENTAÇÃO DE VOTOS NATALÍCIOS

Sala Clementina – Vaticano
Sábado, 21 de dezembro de 2019

“Não estamos mais na Cristandade!
Hoje, não somos os únicos que produzem cultura,
nem os primeiros, nem os mais ouvidos”
PAPA FRANCISCO
Dirige a palavra aos membros da Cúria Romana, no Vaticano
Sala Clementina, 21 de dezembro de 2019

«E o Verbo fez-Se homem e veio habitar conosco» (Jo 1, 14).

Queridos irmãos e irmãs!

Para todos vós, as minhas cordiais boas-vindas. Agradeço ao Cardeal Ângelo Sodano as palavras que me dirigiu e, sobretudo, quero, em nome pessoal e também dos membros do Colégio Cardinalício, manifestar-lhe viva gratidão pelo serviço precioso e diligente que desempenhou durante muitos anos como Decano com disponibilidade, dedicação, eficiência e grande capacidade organizativa e coordenadora; com aquele modo de agir da nossa gente, da rassa nostrana, como diria [o escritor piemontês] Nino Costa. De coração obrigado, Eminência! Agora, cabe aos Cardeais Bispos eleger um novo Decano; espero que escolham alguém que se ocupe a tempo inteiro deste cargo tão importante. Obrigado.

A vós que aqui estais, aos vossos colaboradores, a todas as pessoas que prestam serviço na Cúria, bem como aos Representantes Pontifícios e a quantos os apoiam, desejo um santo e feliz Natal. E aos votos natalícios junto o reconhecimento pela dedicação diária colocada ao serviço da Igreja. Muito obrigado!

O Senhor oferece-nos a oportunidade de nos encontrarmos, também este ano, para este momento de comunhão que reforça a nossa fraternidade e está enraizado na contemplação do amor de Deus que Se nos revela no Natal. De fato, «o nascimento de Cristo – escreveu um místico do nosso tempo – é o testemunho mais forte e eloquente de quanto Deus amou o homem. Amou-o com um amor pessoal. É por isso que tomou um corpo humano, ao qual Se uniu e assumiu para sempre. O nascimento de Cristo é, em si mesmo, uma “aliança de amor” estipulada para sempre entre Deus e o homem».[1] E São Clemente de Alexandria escreve: «Para isto Ele [Cristo] desceu; para isto Se revestiu de humanidade; para isto sofreu voluntariamente o que padecem os homens, para que, depois de Se ter confrontado com a nossa fraqueza que amou, pudesse em troca confrontar-nos com a sua força».[2]

À vista de tanta benevolência e tanto amor, a troca das «Boas-Festas» natalícias é igualmente ocasião para acolhermos de modo novo o seu mandamento: «Que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13,34-35). Aqui, Jesus não nos pede para O amarmos a Ele em resposta ao seu amor por nós; mas, sim, para nos amarmos uns aos outros com o seu próprio amor. Por outras palavras, pede-nos para sermos semelhantes a Ele, porque Ele Se fez semelhante a nós. Oxalá o Natal «nos encontre – exorta o Santo cardeal Newman – cada vez mais semelhantes Àquele que, neste tempo, Se tornou menino por nosso amor; que em cada novo Natal nos encontre mais simples, mais humildes, mais santos, mais caridosos, mais resignados, mais alegres, mais repletos de Deus».[3] E acrescenta: «Este é o tempo da inocência, da pureza, da mansidão, da alegria, da paz».[4]

Pensando em Newman, vem-nos à mente outra afirmação dele bem conhecida – quase um aforismo –, presente na sua obra O desenvolvimento da doutrina cristã, que histórica e espiritualmente se situa na encruzilhada da sua entrada na Igreja Católica. Ei-la: «Aqui, na terra, viver é mudar; e a perfeição é o resultado de muitas transformações».[5] Obviamente, não se trata de procurar a mudança por si mesma nem de seguir as modas, mas de ter a convicção de que o desenvolvimento e o crescimento são a caraterística da vida terrena e humana, enquanto no centro de tudo, segundo a perspectiva do crente, está a estabilidade de Deus.[6]

Para Newman, a mudança era conversão, isto é, uma transformação interior.[7] Na realidade, a vida cristã é um caminho, uma peregrinação. A história bíblica é, toda ela, um caminho, marcado por começos e recomeços; como sucedeu com Abraão; como sucedeu com quantos na Galileia, dois mil anos atrás, se puseram a caminho para seguir Jesus: «E, depois de terem reconduzido os barcos para terra, deixaram tudo e seguiram Jesus» (Lc 5,11). Desde então, a história do povo de Deus – a história da Igreja – está sempre marcada por partidas, deslocações, mudanças. Obviamente trata-se, não tanto de um caminho puramente geográfico, como sobretudo simbólico: é um convite a descobrir o movimento do coração que, paradoxalmente, tem necessidade de partir para poder permanecer, de mudar para poder ser fiel.[8]

Tudo isto se reveste duma valência particular no nosso tempo, porque estamos a viver, não simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Encontramo-nos, portanto, num daqueles momentos em que as mudanças já não são lineares, mas epocais; constituem opções que transformam rapidamente o modo de viver, de se relacionar, de comunicar e elaborar o pensamento, de comunicar entre as gerações humanas e de compreender e viver a fé e a ciência. Muitas vezes acontece viver a mudança limitando-se a envergar um vestido novo e, depois, permanecer como se era antes. Lembro-me da expressão enigmática que se lê num famoso romance italiano: «Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude» (Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampedusa).

A atitude sadia é, antes, deixar-se questionar pelos desafios do tempo presente, individuando-os com as virtudes do discernimento, da parresia e da hypomoné. Então a mudança assumiria um aspeto completamente diferente: de elemento complementar, de contexto ou de pretexto, de paisagem exterior, tornar-se-ia cada vez mais humana e também mais cristã. Continuaria a ser uma mudança externa, mas realizada a partir do próprio centro do homem, isto é, uma conversão antropológica.[9]

Devemos iniciar processos e não ocupar espaços: «Deus manifesta-Se numa revelação histórica, no tempo. O tempo começa os processos, o espaço cristaliza-os. Deus encontra-Se no tempo, nos processos em curso. Não se deve privilegiar os espaços de poder relativamente aos tempos, mesmo longos, dos processos. Devemos preocupar-nos mais com iniciar processos do que com ocupar espaços. Deus manifesta-Se no tempo e está presente nos processos da história. Isto leva a privilegiar as ações que geram novas dinâmicas. E requer paciência, saber esperar».[10] A partir disto, somos solicitados a ler os sinais dos tempos com os olhos da fé, para que a orientação desta mudança «desperte novas e velhas questões com que é justo e necessário confrontar-se».[11]

Hoje, abordando o tema da mudança que se baseia principalmente na fidelidade ao depositum fidei e à Tradição, desejo voltar à implementação da reforma da Cúria Romana, reiterando que esta reforma nunca teve a presunção de proceder como se nada tivesse existido antes; pelo contrário, procurou-se valorizar quanto de bom se fez na complexa história da Cúria. É forçoso valorizar a sua história para construir um futuro que tenha bases sólidas, que tenha raízes e assim possa ser fecundo. Fazer apelo à memória não significa ancorar-se na autoconservação, mas recordar a vida e a vitalidade dum percurso em desenvolvimento contínuo. A memória não é estática, mas dinâmica. Por sua natureza, implica movimento. E a tradição não é estática, mas dinâmica, como dizia aquele grande homem [G. Mahler, retomando uma metáfora de Jean Jaurès]: a tradição é a garantia do futuro e não a custódia das cinzas.
Membros da Cúria Romana, no Vaticano, ouvem as palavras de PAPA FRANCISCO

Queridos irmãos e irmãs!

Nos anteriores encontros de Natal, falei-vos dos critérios que inspiraram este trabalho de reforma. Dei também a razão de ser de algumas implementações já realizadas, quer definitivamente quer ad experimentum.[12] Em 2017, destaquei algumas novidades da organização da Cúria, como, por exemplo, a Terceira Secção da Secretaria de Estado, que está a comportar-se muito bem; ou as relações entre a Cúria Romana e as Igrejas particulares, lembrando também a prática antiga das Visitas ad limina Apostolorum; ou a estrutura de alguns Dicastérios, nomeadamente o das Igrejas Orientais e os Dicastérios para o diálogo ecumênico e inter-religioso e, de modo especial, com o Judaísmo.

No encontro de hoje, quero deter-me sobre outros Dicastérios vistos a partir do coração da reforma, ou seja, da primeira e mais importante tarefa da Igreja: a evangelização. São Paulo VI afirmou: «Evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar».[13] Di-lo na Evangelii nuntiandi, que continua a ser, ainda hoje, o documento pastoral mais importante do pós-Concílio, e atual. Na realidade, o objetivo da reforma atual é que «os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autoconservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias» (Francisco, Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 27). E assim, inspirando-se precisamente neste magistério dos Sucessores de Pedro desde o Concílio Vaticano II até hoje, pensou-se em realçar a postura missionária, dando o título de Praedicate evangelium à nova Constituição Apostólica, em fase de elaboração, sobre a reforma da Cúria Romana.

Nesta linha, pensei deter-me hoje nalguns Dicastérios da Cúria Romana cuja própria denominação já sugere uma explícita referência a tudo isso, ou seja, a Congregação para a Doutrina da Fé, a Congregação para a Evangelização dos Povos; mas penso também no Dicastério para a Comunicação e no Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.

Na época em que foram instituídas as primeiras duas Congregações citadas, era mais simples distinguir entre duas vertentes bastante claras: duma parte, um mundo cristão e, da outra, um mundo carecido ainda de ser evangelizado. Agora, esta situação já não existe. Efetivamente as populações que ainda não receberam o anúncio do Evangelho não vivem apenas nos Continentes não ocidentais, mas habitam em toda parte, especialmente nas enormes concentrações urbanas, requerendo também elas uma pastoral específica. Nas grandes cidades, precisamos de outros «mapas», outros paradigmas, que nos ajudem a situar novamente os nossos modos de pensar e as nossas atitudes: já não estamos, irmãos e irmãs, na cristandade! Hoje, já não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais ouvidos.[14] Por isso precisamos duma mudança de mentalidade pastoral, o que não significa passar para uma pastoral relativista. Já não estamos num regime de cristandade, porque a fé – especialmente na Europa, mas também em grande parte do Ocidente – já não constitui um pressuposto óbvio da vida habitual; na verdade, muitas vezes é negada, depreciada, marginalizada e ridicularizada. Destacou-o Bento XVI quando, ao proclamar o Ano da Fé (2012), escreveu: «Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas».[15] E, em 2010, instituíra o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, a fim de «promover uma renovada evangelização nos países onde já ressoou o primeiro anúncio da fé e estão presentes Igrejas de antiga fundação, mas que estão a passar por uma progressiva secularização da sociedade e a viver uma espécie de “eclipse do sentido de Deus”, que constituem um desafio a encontrar meios adequados para voltar a propor a verdade perene do Evangelho de Cristo».[16] Uma vez ou outra, falei disto com alguns de vós. Penso em cinco países que encheram o mundo de missionários – disse-vos quais são – e hoje não têm os recursos vocacionais necessários para prosseguir. Este é o mundo atual.

A bem da verdade, não foi de forma improvisa que se chegou a esta percepção de que a mudança de época coloca sérios interrogativos quanto à identidade da nossa fé.[17] Neste contexto, há que inserir também a expressão «nova evangelização» adotada por São João Paulo II na Encíclica Redemptoris missio: «A Igreja deve, hoje, enfrentar outros desafios, lançando-se para novas fronteiras, quer na primeira missão ad gentes, quer na nova evangelização dos povos que já receberam o anúncio de Cristo» (n. 30). Há necessidade duma nova evangelização, ou reevangelização (cf. n. 33).

Tudo isso supõe, necessariamente, mudanças e novas focalizações de atenção também nos Dicastérios acima mencionados, bem como em toda a Cúria.[18]

Gostaria de tecer algumas considerações também sobre o recém-criado Dicastério para a Comunicação. A perspectiva que se nos depara é a da mudança de época, pois «largas faixas da humanidade vivem mergulhadas [no ambiente digital] de maneira ordinária e contínua. Já não se trata apenas de “usar” instrumentos de comunicação, mas de viver numa cultura amplamente digitalizada que tem impactos muito profundos na noção de tempo e espaço, na percepção de si mesmo, dos outros e do mundo, na maneira de comunicar, aprender, obter informações, entrar em relação com os outros. Uma abordagem da realidade, que tende a privilegiar a imagem relativamente à escuta e à leitura, influencia o modo de aprender e o desenvolvimento do sentido crítico» (Francisco, Exortação Apostólica Pós-sinodal Christus vivit, 86).

Assim, foi confiada ao Dicastério para a Comunicação a tarefa de incorporar numa nova instituição os nove entes que, segundo várias modalidades e com diferentes tarefas, se ocupavam anteriormente de comunicação: o Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais, a Sala de Imprensa da Santa Sé, a Tipografia Vaticana, a Livraria Editora Vaticana, o jornal L’Osservatore Romano, a Rádio Vaticana, o Centro Televisivo Vaticano, o Serviço da Internet Vaticana, o Serviço Fotográfico. Entretanto, na linha do que ficou dito, esta unificação não se propunha simplesmente ser um agrupamento de «coordenação», mas harmonizar os diferentes componentes para produzir uma melhor oferta de serviços e ter também uma linha editorial coerente.

A nova cultura, marcada por fatores de convergência e presença multimídia, precisa duma resposta adequada da Sé Apostólica no campo da comunicação. Hoje, em vez de serviços diversificados, prevalece a forma multimídia, e isto marca também o modo de os conceber, configurar e implementar. Tudo isto implica, juntamente com a mudança cultural, uma conversão institucional e pessoal para passar dum trabalho em compartimentos estanques – no melhor dos casos, tinham alguma coordenação – a um trabalho intrinsecamente conexo, em sinergia.
Na bela Sala Clementina, no Vaticano, PAPA FRANCISCO dirige a palavra
aos membros da Cúria Romana

Queridos irmãos e irmãs!

Muitas das coisas ditas até agora valem também, em linha de princípio, para o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Também este foi criado recentemente para dar resposta às mudanças verificadas a nível global, implementando a confluência de quatro Conselhos Pontifícios anteriores: Justiça e Paz, Cor Unum, Pastoral dos Migrantes e Agentes Sanitários. A coerência das tarefas confiadas a este Dicastério aparece sinteticamente lembrada pelo exórdio do Motu proprio Humanam progressionem, que o instituiu: «Em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a promover o desenvolvimento integral do homem à luz do Evangelho. Este desenvolvimento tem lugar mediante o cuidado dos bens incomensuráveis da justiça, da paz e da proteção da criação». Concretiza-se no serviço aos mais frágeis e marginalizados, em particular aos migrantes forçados, que representam neste momento um grito no deserto da nossa humanidade. Por isso, a Igreja está chamada a lembrar a todos que não se trata apenas de questões sociais ou migratórias, mas de pessoas humanas, de irmãos e irmãs que hoje são o símbolo de todos os descartados da sociedade globalizada. Está chamada a testemunhar que, para Deus, ninguém é «estrangeiro» nem «excluído». Está chamada a despertar consciências adormecidas na indiferença perante a realidade do Mar Mediterrâneo que se tornou para muitos, demasiados, um cemitério.

Gostaria de chamar a atenção para a importância do caráter integral do desenvolvimento. São Paulo VI afirmou que «o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo» (Encíclica Populorum progressio, 14). Por outras palavras, a Igreja, enraizada na sua tradição de fé e apelando-se nas últimas décadas ao magistério do Concílio Vaticano II, sempre afirmou a grandeza da vocação de todos os seres humanos, que Deus criou à sua imagem e semelhança a fim de formarem uma única família; e, ao mesmo tempo, procurou abraçar o humano em todas as suas dimensões.

É precisamente esta exigência de integralidade que hoje nos repropõe a humanidade que nos une como filhos de um único Pai. «Em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a promover o desenvolvimento integral do homem à luz do Evangelho» (Motu proprio Humanam progressionem (17/VIII/2016), exórdio). O Evangelho não cessa de trazer a Igreja à lógica da encarnação, a Cristo que assumiu a nossa história, a história de cada um de nós. Isto lembra-nos o Natal. Em suma, a humanidade é a chave com que ler a reforma. A humanidade chama, interpela e provoca, isto é, chama a sair para fora e não temer a mudança.

Não esqueçamos que o Menino deitado no presépio tem o rosto dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados, dos pobres que «são os privilegiados deste mistério e, muitas vezes, aqueles que melhor conseguem reconhecer a presença de Deus no meio de nós» (Francisco, Carta Apostólica Admirabile signum, 01/XII/2019, 6).
PAPA FRANCISCO
agradece o trabalho, por tantos anos, do Decano do Colégio Cardinalício, Card. Angelo Sodano
(primeiro sentado, à direita)

Queridos irmãos e irmãs!

Trata-se de grandes desafios e de equilíbrios necessários, muitas vezes não fáceis de alcançar pelo simples facto de que, na tensão entre um passado glorioso e um futuro criativo e em movimento, se encontra o presente no qual há pessoas que necessariamente precisam de tempo para amadurecer; há circunstâncias históricas a gerir na vida quotidiana, porque, durante a reforma, o mundo e os acontecimentos não param; há questões jurídicas e institucionais que se hão de resolver gradualmente, sem recurso a fórmulas mágicas nem a atalhos.

Há, finalmente, a dimensão do tempo e existe o erro humano, que não é possível nem correto ignorar, porque fazem parte da história de cada um. Ignorá-los significa fazer as coisas, abstraindo da história dos homens. E ligada a este difícil processo histórico, há sempre a tentação de se retirar para o passado (mesmo usando novas formulações), porque mais tranquilizador, conhecido e seguramente menos conflituoso. Mas também isto faz parte do processo e do risco de iniciar mudanças significativas.[19]

Aqui é necessário advertir contra a tentação de assumir a atitude da rigidez. Esta nasce do medo da mudança e acaba por disseminar estacas e obstáculos pelo terreno do bem comum, tornando-o um campo minado de incomunicabilidade e ódio. Lembremo-nos sempre de que, por trás de qualquer rigidez, jaz um desequilíbrio. A rigidez e o desequilíbrio nutrem-se, mutuamente, num círculo vicioso. E, hoje, esta tentação da rigidez é tão atual!
PAPA FRANCISCO
discursa aos membros da Cúria Romana, por ocasião dos votos natalícios
Sala Clementina (Vaticano), 21 de dezembro de 2019

Queridos irmãos e irmãs!

A Cúria Romana não é um corpo separado da realidade – embora o risco esteja sempre presente –, mas deve ser concebida e vivida no hoje do caminho percorrido pelos homens e as mulheres, na lógica da mudança de época. A Cúria Romana não é um palácio ou um armário cheio de roupas que se hão de vestir para justificar uma mudança. A Cúria Romana é um corpo vivo, e sê-lo-á tanto mais quanto mais viver a integralidade do Evangelho.

O cardeal Martini, na última entrevista dada poucos dias antes da sua morte, disse palavras que nos devem interpelar: «A Igreja ficou atrasada duzentos anos. Como é possível que não se alvorace? Temos medo? Medo, em vez de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. (...) Só o amor vence o cansaço».[20]

O Natal é a festa do amor de Deus por nós. O amor divino que inspira, dirige e corrige a mudança e vence o medo humano de deixar o «seguro» para se lançar no «mistério».

Feliz Natal para todos!
PAPA FRANCISCO
recebe os cumprimentos, ao final, de seu discurso

R E F E R Ê N C I A S

[1] Matta El Meskin, L’umanità di Dio (Qiqajon-Bose, Magnano 2015), 170-171.

[2] Quis dives salvetur 37, 1-6.

[3] Sermão «A Encarnação, Mistério de Graça», in Parochial and Plain Sermons, V, 7.

[4] Ibidem: o. c., V, 97-98.

[5] Meditazioni e preghiere, ed. G. Velocci, Milão 2002,p. 75.

[6] Numa das suas orações, Newman afirmava: «Não há nada de estável fora de Vós, ó meu Deus. Vós sois o centro e a vida de todos aqueles que mudam, que confiam em Vós como seu Pai, que levantam os olhos para Vós e que são felizes por se colocarem nas vossas mãos. Eu sei, meu Deus, que devo mudar, se quiser ver o vosso rosto» (Ibid., p. 112).

[7] Assim a descreve Newman: «No momento da conversão, não tive consciência de qualquer mudança, intelectual ou moral, que pudesse ter ocorrido no meu espírito (…), parecia-me reentrar no porto, depois duma navegação tempestuosa; e a este respeito a minha felicidade continuou ininterruptamente até hoje» (Apologia pro vita sua, ed. A. Bosi, Turim 1988, 360; cf. J. Honoré, Gli aforismi di Newman, Livraria Editora Vaticana, Cidade do Vaticano 2010, 167).

[8] J. M. Bergoglio, Mensagem quaresmal aos sacerdotes e consagrados, 21/II/2007, in Nei tuoi occhi è la mia parola (Milão 2016), p. 501.

[9] Veja-se Constituição Apotólica Veritatis gaudium (27/XII/2017), 3: «Em última análise, trata-se de mudar o modelo de desenvolvimento global e de redefinir o progresso: o problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há necessidade de construir lideranças que tracem caminhos».

[10] Entrevista concedida ao P. Antônio Spadaro: La Civiltà Cattolica (19/IX/2013), p. 468.

[11] Carta ao Povo de Deus que está em caminho na Alemanha, 29/VI/2019.

[12] Cf. Discurso à Cúria, 22/XII/2016.

[13] Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi (8/XII/1975), 14. São João Paulo II, por sua vez, escreveu que a evangelização missionária «constitui o primeiro serviço que a Igreja pode prestar ao homem e à humanidade inteira, no mundo de hoje, que, apesar de conhecer realizações maravilhosas, parece ter perdido o sentido último das coisas e da sua própria existência» (Carta Encíclica Redemptoris missio [7/XII/1990], 2).

[14] Cf. Discurso aos participantes no Congresso Internacional da Pastoral das Grandes Cidades, 27/XI/2014.

[15] Carta Apostólica sob forma de Motu proprio Porta fidei (11/X/2011), 2.

[16] Bento XVI, Homilia (28/VI/2010); cf. Carta Apostólica sob forma de Motu proprio Ubicumque et semper (17/X/2010).

[17] A mudança de época foi sentida na França pelo cardeal Suhard (veja-se a sua carta pastoral Essor ou déclin de l'Église, 1947) e de igual modo por J. B. Montini, quando era Arcebispo de Milão: questionava-se, ele também, se a Itália fosse ainda um país católico (cf. Intervenção na VIII Semana Nacional de Atualização Pastoral, 22/IX/1958, in Discorsi e Scritti milanesi 1954-1963, vol. II, Brescia-Roma 1997, 2328).

[18] Há cerca de cinquenta anos, São Paulo VI, ao apresentar o novo Missal Romano aos fiéis, lembrou a equação entre a lei da oração (lex orandi) e a lei da fé (lex credendi) e descreveu o Missal como «demonstração de fidelidade e vitalidade». Ao concluir a sua reflexão, afirmou: «Por isso não falamos de “nova Missa”, mas de “nova época” da vida da Igreja» (Audiência Geral, 19/XI/1969). E, de forma análoga, se poderia dizer no nosso caso: não uma nova Cúria Romana, mas uma nova época.

[19] A Exortação Apostólica Evangelii gaudium enuncia a regra de «privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificarem em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes» (n. 223).

[20] Entrevista dada a Jorge Sporschill SJ e Frederica Radice Fossati Confalonieri, in Corriere della Sera (01/IX/2012).

Fonte: Santa Sé – Francisco / Discursos – Sábado, 21 de dezembro de 2019 – Internet: clique aqui.