«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

27º Domingo do Tempo Comum – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 17,5-10 

Alberto Maggi *

Frade da Ordem dos Servos de Maria (Servitas) e renomado biblista italiano

 

Fé é a resposta dos seres humanos ao dom de amor que Deus faz a toda a humanidade

Jesus quer conduzir os seus discípulos da religião à fé, de uma relação com Deus baseada na submissão, na obediência às suas leis, uma relação que faz do crente um servo para com o seu Senhor, a uma relação com o Pai baseada na semelhança e na prática de seu amor. Este é um relacionamento que faz do crente um filho de Deus.

Para que isso seja possível, o amor do discípulo deve atingir uma qualidade semelhante à de Deus, e Jesus repetidamente, neste Evangelho de Lucas, convidou seus discípulos a serem como o Pai, ou seja, a serem bons até a alma. E qual é a qualidade do amor de Deus? Aquela que se expressa em um perdão incondicional. 

Lucas 17,5:** «Os apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!”»

Estamos no capítulo 17 de Lucas, do versículo 3 lemos: “Se teu irmão pecar, repreende-o. Se ele se arrepender, perdoa-lhe”. E Jesus, já antecipando a objeção, diz: “Se pecar contra ti sete vezes num só dia...”, – e os números não indicam uma quantidade, mas uma qualidade – "... e sete vezes vier a ti dizendo: ‘Estou arrependido’, perdoa-lhe” (17,4).

O evangelista usa esta última expressão com um verbo imperativo: perdoa-lhe. Portanto, é imperativo ter que perdoar a quem comete alguma falta. O número, como disse, não indica uma quantidade, mas sim a qualidade. A qualidade do seu perdão, diz Jesus, deve ser como a de Deus.

E é neste ponto que os apóstolos intervêm com uma pergunta, com uma afirmação completamente fora de lugar. Os apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!” Mas a fé não pode ser aumentada, não pode ser dada porque a fé não é dada por Deus, a fé não é um dom que Deus dá a alguns em grande medida, a outros menos, e a outros por nada.

A FÉ é a resposta dos seres humanos ao dom de amor que Deus faz a toda a humanidade.

Lucas 17,6: «O Senhor respondeu: “Se tivésseis fé do tamanho de um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria.»

Quem responder a Deus tem fé! Então aumentar ou não a fé, não depende de Deus, mas depende da resposta do homem. É por isso que Jesus responde o que está escrito neste versículo. Aqui, a tradução pode ser amoreira ou sicômoro, uma planta que tinha raízes tão profundas que se achava difícil arrancar, era uma planta que, uma vez plantada, durava seiscentos anos.

Então Jesus está dizendo que esses discípulos não têm fé alguma, porque uma pitada dessa fé seria suficiente. Eles ainda não responderam ao dom de amor que Deus lhes deu. É por isso que Jesus propõe uma alternativa. Se não aceitam sua oferta de se tornarem filhos de Deus, de ter uma relação com o Pai baseada na semelhança de seu amor, permanecem na condição de servos de Deus, servos de seu Senhor, baseados na submissão.

Neste Evangelho, na Última Ceia, Jesus afirmará: “Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve” [Lc 22,27b]. A novidade trazida por Jesus é que Deus não pede para ser servido pelos homens, mas é Deus que se coloca a serviço dos homens. E pouco antes, no capítulo 12, quase como uma imagem da Eucaristia, Jesus havia falado daquele senhor que voltou à noite para sua casa e, encontrando os servos ainda de pé, o que fará? Ele não será servido, mas ele os servirá [cf.: Lc 12,35-38]. 

Lucas 17,7-8: «Qual de vós, tendo um servo ocupado a lavrar ou a guardar o gado, lhe dirá quando chega do campo: ‘Vem depressa para a mesa? Não dirá antes: ‘Prepara-me o jantar, cinge-te para me servir, enquanto eu como e bebo, e depois tu poderás comer e beber?»

Aqui, no entanto, muito pelo contrário. Exatamente o inverso do que Jesus havia dito no capítulo 12. Ali, foi o senhor quem fez seus servos sentarem-se à mesa e passou para servi-los. Aqui, diz exatamente o contrário. Qual é essa contradição? Bem, Jesus propõe uma alternativa. Ou vocês aceitam esta oferta do amor de Deus e o amor de Deus lhes liberta e este amor é expresso através do perdão incondicional, ou então permanecem na condição de servos do seu Senhor. 

Lucas 17,9-10: «Será que o senhor vai agradecer ao servo porque fez o que lhe havia ordenado? Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o que vos ordenaram, dizei: ‘Somos simples servos, só fizemos o que devíamos fazer”.»

Aqui, então, está a conclusão desta passagem que muitas vezes tem sido mal interpretada como se significasse a inutilidade da ação cristã. “Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o que vos ordenaram...”, este verbo ordenar referia-se à observância da lei.

Aqui, Jesus propõe uma alternativa, não impõe, mas oferece. Ou nos tornamos filhos de Deus, portanto totalmente livres para amar e servir, ou permanecemos na condição de servos. Mas quem permanece na condição de servo nunca poderá experimentar a liberdade, a plenitude e a alegria que a comunhão de Deus, que se revela como Pai aos seus, pode manifestar. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2021. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Pois todo o que foi gerado de Deus vence o mundo. E esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé.”

(1João 5,4)

O tema proposto pelo Evangelho deste domingo é um dos mais fundamentais e centrais do cristianismo: a FÉ. Afinal, crer não é aceitar um conjunto de doutrinas, leis, normas, teorias e coisas assim. Nem mesmo, uma espécie de dom concedido por Deus para que acreditemos nele, em sua existência e presença entre nós!

E, aqui, encontra-se a surpresa: ter fé é saber responder ao dom de amor que Deus oferece, gratuitamente, a todos os seres humanos e que se expressa, de modo mais concreto, no perdão sem condições!

 Portanto, crer em Deus é, antes de tudo, confiar no AMOR que ele tem por nós! 

Agora, os evangelhos não escondem quão pequena e deficiente era a fé dos discípulos e dos apóstolos de Cristo! O próprio Jesus é quem observa que:

a) os discípulos não têm fé, mas medo: Mc 4,40;

b) os discípulos eram “descrentes” (grego: apistoi): Mt 17,17;

c) são “pequenos na fé” ou “fracos na fé” (grego: oligopistoi): Mt 8,26; 14,31; 16,8; 17,20; Lc 12,28).

É admirável que Jesus, no entanto, teça elogios à fé:

a) do centurião romano: Mt 8,10 e paralelos);

b) da mulher cananeia: Mt 15,28;

c) do leproso samaritano: Lc 17,19.

Ou seja, os mais próximos dele não correspondem ao seu amor, antes, parecem estar repletos de ambição pela fama, pelo poder, que costuma preencher o coração de tantas pessoas neste mundo! Só para citar alguns textos, vale a pena conferir: Mc 9,33-37; Mt 20,20-28; Lc 9,46-48 etc. Essa é uma séria advertência a todos os seus seguidores, a todos os seus discípulos! Afinal, eles estão mais à procura da glória e do sucesso pessoais ou do Cristo?! 

Será que, nós também, não andamos distraídos por mil coisas, a ponto de não mais conseguirmos nos comunicar com Deus?! Estamos conectados a tantas redes sociais, a tantos grupos de conversa, a tantas listas de transmissão que não nos damos conta da nossa falta de fé! Afinal:

* somos, realmente, pessoas de fé?

* Quem é Deus para nós?

* Nós amamos, de verdade, a Deus?

* É Deus quem dirige, quem governa a nossa vida?

Sem realizarmos uma experiência íntima e direta de comunicação com Deus, mesmo que pequenina, imperfeita, não podemos dizer que temos FÉ! Talvez, por isso, mesmo, tanto se fala de Deus, usa-se o seu nome, dedica-se-lhe slogans e frases de efeito, porém, na sociedade não se observa, não se sente a presença, cada vez maior, do AMOR, da MISERICÓRDIA, do PERDÃO e da JUSTIÇA, valores maiores de seu Reino!


 Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Guia meu olhar, Senhor! Mesmo que tu experimentes minha fé e me faças andar no escuro, apagando a estrada à minha frente, mesmo que meu passo vacile, faz que meu olhar calmo e iluminado seja uma testemunha viva de que tenho tu em mim e fique em paz. Mesmo que tu experimentes minha confiança deixando o ar rarear e que eu tenha a impressão de que falta a terra sob meus pés, meu olhar lembre a todos que ninguém tem força para me afastar de ti, no seio do qual caminhamos, respiramos, somos... Ainda que tu permitas que o ódio me assedie, preparando-me armadilhas e falsificações e desfigure minhas intenções, o olhar de teu Filho espalhe serenidade e amor através dos meus olhos.»

(Fonte: Dom Hélder Câmara. Orazione finale. 27ª Domenica del Tempo Ordinario. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico C. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 590)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – XXVII Domenica del Tempo Ordinario – Anno C – 06 ottobre 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 28/09/2022).

Um líder como Deus quer

 Telmo José Amaral de Figueiredo

Padre, biblista, teólogo e assessor da Comissão Bíblica Diocesana – Jales (SP) 

          No mês de setembro, que acabamos de deixar para trás, a Igreja Católica propôs aos seus fiéis e às pessoas de boa vontade, a reflexão do livro de Josué, presente no Antigo Testamento. Esse livro apresenta-nos uma figura muito especial, justamente, aquele personagem que dá nome à obra: Josué. Esse nome significa, em hebraico, “O Senhor salva”. Aliás é o mesmo significado do nome “Jesus”.

          O que mais nos chama a atenção na pessoa de Josué é a sua capacidade de liderança! Sem entrarmos no mérito e na questão se a ocupação da terra de Israel pelos hebreus se deu ou não da maneira narrada no livro de Josué, nos concentremos nas características e qualidades do personagem Josué. A liderança pode ser inata, isto é, ser própria do caráter e da personalidade de um ser humano como, também, pode ser algo que se adquire com prática, estudo e esforço pessoal. A liderança exercida por Josué é fruto de um longo aprendizado no deserto, ao lado do líder por excelência: Moisés. Em sua caminhada de libertação do Egito, Moisés contou com o apoio de Josué:

a) no combate às tribos dos amalecitas, que eram muito perigosas (cf.: Ex 17,8-16);

b) na recepção dos mandamentos divinos, no monte Sinai, ponto alto da aliança de Deus com os hebreus (cf.: Ex 24,12-13);

c) para lidar com a rebelião do povo contra Deus e contra ele mesmo (cf.: Ex 32,17);

d) para guardar a “Tenda do Encontro”, espécie de santuário móvel do povo no deserto (cf.: Ex 33,11);

e) na realização de uma perigosa tarefa, ou seja, espionar a terra de Canaã e seus habitantes (cf.: Nm 13,1-2.16).

Tudo isso lhe serviu para conquistar a confiança de Moisés e, principalmente, do próprio Deus: “Toma Josué, filho de Nun, homem no qual há espírito, e impõe a mão sobre ele” (Nm 27,18). Em consequência, Josué recebe a missão de tornar realidade a herança da terra para o povo (cf.: Dt 1,38; 3,28), bem como, juntamente com o sacerdote Eleazar, repartir a terra que Deus concederia à sua gente (cf.: Nm 34,16-17).

          Para ser líder, segundo a Bíblia, Josué demonstrou estar cheio do “espírito de sabedoria”, que é próprio de Deus, fruto da imposição das mãos de Moisés (cf.: Dt 34,9). A origem e a causa da sabedoria é Deus (cf.: Sr 1,1.8-10). Sabedoria, nesse caso, pode significar tanto a competência/habilidade para exercer a sua tarefa de conduzir o povo para dentro da terra prometida, bem como, repartir essa terra entre todas as tribos. Mas, também, sabedoria possui uma dimensão ética imprescindível. Na esfera da moralidade, a sabedoria é equiparada à prudência, sensibilidade, honestidade e justiça. Desse modo, a pessoa sábia é aquela capaz de tomar decisões éticas diante de Deus e dos seres humanos. Por isso, o sábio é identificado com o justo (cf.: Pr 9,9; 11,30), em oposição a quem é tolo e perverso (cf.: Pr 6,12; 11,20; 17,20).

          Mas qual era o segredo da liderança de Josué? Podemos identificar, no livro, os seguintes traços dessa liderança:

1º) Força e Coragem: por bem quatro vezes, em um só capítulo, Deus recomenda a Josué que seja forte e corajoso (cf.: Js 1,6.7.9.18), isso supõe que a pessoa não pense em si mesma, em primeiro lugar! Cabe, aqui, as palavras de Jesus: “Quem ama a sua vida perde-a; mas quem se desapega de sua vida neste mundo, há de guardá-la para a vida eterna” (Jo 12,25). Quem tem medo não consegue realizar a obra de Deus neste mundo! Quantos deixam seus dons e suas qualidades inutilizados por medo, por insegurança, por timidez (cf.: Mt 25,24-30).

2º) Fidelidade à Lei, à Vontade de Deus: diariamente, Josué meditava na Lei do Senhor (Js 1,8); ele a seguia, levava a Palavra de Deus em consideração em suas decisões (Js 11,15); era um homem de oração (Js 7,6-9). Como Jesus declarou de modo inequívoco: “E, estendendo a mão para os discípulos, acrescentou: ‘Eis minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe’” (Mt 12,49-50 // Mc 3,34-35 // Lc 8,21).

3º) Organização e Planejamento: nada é feito de improviso, sem pensar e refletir bem, vejamos: Js 1,10-11 (preparação de mantimentos para a viagem); Js 1,14-15 (os guerreiros atravessam primeiro o Jordão, deixando abrigados as mulheres, crianças e animais); Js 2,1 (antes de qualquer ação, reconhecer bem o terreno e as pessoas); Js 3,1-6 (a arca da Aliança vai à frente do povo, como guia, motivação religiosa e esperança).

4º) Respeito de seus Liderados: algo fundamental para uma liderança bem-sucedida é conquistar o respeito e admiração de seus liderados. As suas ordens, as suas orientações eram, na maioria das vezes, observadas e realizadas: “Faremos tudo quanto nos ordenaste e iremos para onde quer que nos envies. Assim como em tudo obedecemos a Moisés, também obedeceremos a ti. Basta que o Senhor, teu Deus, esteja contigo, assim como esteve com Moisés” (Js 1,16-17; cf.: Js 22,1-2; 24,15-18.31).

          Aprendemos de Josué algo já bem conhecido, mas pouco levado em consideração: “A palavra convence, o exemplo arrasta”. No livro de Josué, em seu último capítulo, há uma questão fundamental para todos nós: “Escolhei hoje a quem quereis servir... Quanto a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor” (Js 24,15). E você a quem quer servir? Ao Deus da vida, do amor, da paz, do perdão, da misericórdia, da justiça, dos pequenos e pobres, dos famintos e esquecidos, ou aos ídolos, aos falsos deuses que criamos com tanta facilidade: poder, riqueza, fama, aparência... 

Fonte: Diocese de Jales – Artigo da Semana – Sexta-feira, 30 de setembro de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 30/09/2022 – às 15h10).

O Brasil que vai às urnas

 Conheça, em profundidade, o país em que vivemos e os motivos da atual situação

 Patricia Fachin

Instituto Humanitas Unisinos – IHU 

Entrevista com José de Souza Martins* 

JOSÉ DE SOUZA MARTINS


O principal desafio após as eleições deste final de semana será o estabelecimento de “um pacto político que viabilize um novo desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, com emprego e renda”

O Brasil que vai às urnas neste domingo, 2 de outubro de 2022:

* “é o nascido das contradições que permaneceram escondidas”,

* “o da incerteza, do medo, da insegurança, da fome, do genocídio”,

* “doente do autoritarismo, da voracidade de poder e de riqueza fácil de um capitalismo subdesenvolvido e rentista, cuja dinâmica é a do lucro imenso e fácil e da pobreza extensa e difícil”,

* “o Brasil de opostos, que se move sem sair do lugar”, afirma José de Souza Martins. 

É também um “Brasil alienado e frágil”, dividido em dois, “o da extrema-direita de tendências homicidas e o da esquerda mutilada e fragmentária por sua incapacidade de atuar no sentido de construir um pacto democrático e pluralista e um projeto de nação abrangente”. 

“Aparentemente”, observa, “os brasileiros estão divididos entre a esquerda com Lula e a extrema-direita com Bolsonaro”, mas “essa é a polarização visível e superficial já definida nas eleições de 2018. Não é uma polarização de agora nem é a verdadeira polarização subjacente ao processo político brasileiro”. 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos, o sociólogo comenta os desafios desta eleição presidencial e destaca que a pandemia, que deixou mais de 600 mil mortos no país, “não está sendo relida no cenário da disputa política desta eleição. Seus efeitos sociais e o modo irresponsável como foi tratada pelo governo, no entanto, estão presentes no conjunto das anomalias políticas que, justamente como conjunto, definem o que tem sido um programa antissocial de governo”. 

Confira a entrevista. 

IHU – Que Brasil que vai às urnas neste final de semana?

José de Souza Martins – O Brasil que vai às urnas neste final de semana, dia 2 de outubro de 2022, é um Brasil completamente diferente do Brasil que julgávamos conhecer. É o Brasil nascido das contradições que permaneceram escondidas nos interstícios da democracia inacabada da Constituição de 1988, o restolho do golpe de Estado de 1964. É o Brasil da incerteza, do medo, da insegurança, da fome, do genocídio. É o Brasil doente do autoritarismo, da voracidade de poder e de riqueza fácil de um capitalismo subdesenvolvido e rentista, cuja dinâmica é a do lucro imenso e fácil e da pobreza extensa e difícil. É o Brasil de opostos, que se move sem sair do lugar, que paga grandes avanços econômicos com grandes retrocessos sociais.

É, também, o Brasil dividido em dois Brasis, o da extrema-direita de tendências homicidas e o da esquerda mutilada e fragmentária por sua incapacidade de atuar no sentido de construir um pacto democrático e pluralista e um projeto de nação abrangente. O Brasil destas eleições é um Brasil alienado e frágil. Não obstante, uma eventual vitória das oposições aos desmandos do atual governo representará que, nas brechas de nossa tragédia política, sobrevivem e renascem as luzes do discernimento, da responsabilidade política e da esperança. A revolução social inesperada da lentidão e do silêncio

IHU – O que une e o que divide os brasileiros nesta eleição presidencial?

José de Souza Martins – Hoje, tudo divide os brasileiros. É uma divisão construída, forjada, proposital, estruturante, de origem:

* militar,

* religiosa e

* política.

Sem entendê-la, nunca compreenderemos nossos bloqueios políticos e nossa tendência antidemocrática de retorno cíclico ao autoritarismo e à ditadura.

Pode-se reconstituir-lhe a gênese já em tempos inimagináveis, desde quando, com a duvidosa proclamação da República, na manhã de 15 de novembro de 1889, uma facção insurgente do Exército, depôs o gabinete, o governo, e um grupo de oportunistas aproveitou para depor o Imperador e impor ao país um regime republicano meia boca.

Quem examinar atentamente os detalhes do republicanismo brasileiro notará que a república militarizada baseia-se no pressuposto de que o povo brasileiro é politicamente incapaz, precisa ser tutelado. Como se lê num documento da Revolução de 1924, uma revolução tenentista, de onde procederiam os oficiais superiores do Exército, a partir da Revolução de Outubro de 1930, até o golpe disfarçado das eleições de 2018...

... a tese é a de que, para amadurecer politicamente, o Brasil precisaria de uma longa ditadura.

País originário da escravidão, não tinha condições de ser republicano com base em princípios liberais e democráticos. República sem povo, foi tratada como se fosse um país de ex-escravos a serem tratados como se escravos ainda fossem. Precisava de uma longa ditadura para supostamente amadurecer.

Até hoje, essa gente trata os brasileiros como menores de idade e inimigos do Estado, que consideram ser o Brasil verdadeiro. No fundo, um país de funcionários públicos.

Ciclicamente, declaram guerra ao povo, como agora, para enquadrá-lo num regime político de quartel e de marcha unida. Inventam e atualizam estigmas como, desde a preparação do golpe de 1964, o de subversão e corrupção, reciprocamente condicionadas, e vão carimbando quem a eles se opõe para perseguir, banir, prender, torturar e até matar. Não é por acaso que o Estado faça alusões à morte com tanta frequência. 

Dividir a sociedade 

Uma técnica decorrente tem sido a de estimular a divisão da sociedade, na política, na economia, na religião, até no futebol. A origem estratégica e geopolítica dessa divisão planejada pode ser identificada e localizada. Vem da tradição republicana, mas foi urdida durante a guerra da Coreia, na institucionalização da Guerra Fria, nos fundamentos geopolíticos da atualização do autoritarismo brasileiro. Se examinarmos atentamente os discursos, na maçonaria e pronunciamentos e entrevistas, do general Hamilton Mourão, em 2017 e 2018, em sua campanha eleitoral, veremos isso claramente. O projeto de governo era e é o do desmonte do Estado brasileiro e, portanto, o das normas, instituições, leis gestadas nos intervalos democráticos, sobretudo as relativas aos direitos sociais.

A revolução social inesperada da lentidão e do silêncio. O eleitor pode ser enganado no dia a dia da política, mas não pode ser enganado na relativa lentidão do processo político, que é processo causado e motivado por carências várias traduzidas em soluções políticas. 

Polarização endêmica

Mas essa polarização endêmica tem sido contrariada por seus próprios fatores, como agora. A motivação de um eleitorado como o brasileiro, lenta e sutilmente insubmisso à sujeição política e à manipulação ideológica, está fundada na consciência das suas necessidades sociais. Esse é o limite do nosso autoritarismo.

É um equívoco supor que, aqui, a política se faz na competência para mentir e enganar o eleitor, como deu impressão a muitos o golpe eleitoral de 2018.

O eleitor pode ser enganado no dia a dia da política, mas não pode ser enganado na RELATIVA LENTIDÃO DO PROCESSO POLÍTICO, que é processo causado e motivado por carências várias traduzidas em soluções políticas.

Nesse sentido, o político que se filia à concepção teatral da política, como Bolsonaro e os bolsonaristas, precisa renovar diariamente seu estoque de mentiras, de fantasias e de truques manipulativos. É aí que ocorrem as descontinuidades reveladoras do que é o governo e o governante.

Muitos se perguntam por que o atual presidente nunca é visto governando ou, trabalhando, na concepção popular de trabalho. Sua visibilidade pública é a de um funcionário do lazer, das motociatas, das cavalgadas, da teatralidade da governança, do governo como ficção.

Aquela lamentável reunião do governo, presidente e ministros, de 22 de abril de 2020, recheada de palavrões, marcada pela formulação da trapaça de “deixar a boiada passar e mudar os regramentos” ambientais, é justamente um documento da concepção de poder e governo que preside a República desde 1º de janeiro de 2019. O ato de governar como se fosse um convescote. A máscara do engano acaba desvendada pela própria linguagem imprópria do seu ator

Eleitorado 

Os eleitores não são uma coleção de indivíduos, cujas fragilidades possam ser identificadas e ludibriadas com “fake news”, com fantasias e bravatas. O eleitorado é um sujeito social e coletivo, relacional. A identidade do eleitor é construída na tensão do processo interativo. Nesse sentido, mesmo quem é adversário do vencedor é relacionalmente artífice da vitória dele e de sua própria derrota. Essa é uma questão sociológica.

Tudo nesta eleição caminha nessa direção. A temporalidade da história social e política é mais lenta do que a temporalidade cotidiana das decisões políticas individuais. Por isso a mentira venceu em 2018 e já dá sinais de que não poderá vencer em 2022. 

IHU – Os efeitos da pandemia, como aumento da fome e da pobreza, podem influenciar as eleições presidenciais deste ano? De que modo? Como a pandemia é relida à luz das eleições presidenciais?

José de Souza Martins – A pandemia expôs, inesperadamente, que o governo Bolsonaro não estava preparado para governar porque não previra meios nem profissionais para enfrentamento de emergências e crises sociais.

Todo governo tem entre suas funções a previsão de recursos e previsões técnicas e administrativas para enfrentar, corrigir, atenuar e superar desastres, epidemias e outros fatos que vitimam ou afligem grandes grupos humanos. O governo Bolsonaro não só mostrou que não estava preparado como demonstrou que não tivera interesse político nesse preparo. Em face da tragédia tinha um arsenal barato de racionalizações e de rótulos para justificar-se. A morte foi banalizada pelo presidente da República e essa banalização mais de uma vez esteve em sua boca. Esteve presente na conduta irresponsável da demora em providenciar vacinas que poderiam ter evitado, provavelmente, centenas de milhares de mortes. E, também, os muitos casos de privações e de desorganização social da família das vítimas em decorrência do falecimento de membros de referência na sobrevivência do grupo familiar.

A teimosia presidencial no apregoamento de medicação sem eficácia comprovada no tratamento da doença contribuiu para sua disseminação e, provavelmente, acobertou erros relativos a condutas impróprias no trato da coisa pública.

A banalização da morte, como desvio ético em relação ao primado da vida, morte reduzida a uma interpretação de política econômica, ficou evidente em muitas falas e manifestações do governo. A mais grave é de março de 2020:

“No dia 17 de março, quando o País sentia os primeiros impactos do novo coronavírus, a superintendente da Superintendência de Seguros Privados (Susep) [...] teria dito e a integrantes do Ministério da Saúde, segundo relatos, que a concentração da doença principalmente em idosos poderia ser positiva para melhorar o desempenho econômico do Brasil ao reduzir o rombo nas contas da Previdência.” [1]

O modo antissocial como foi tratada a questão da Covid-19 foi uma opção política. Um modo que definiu o conjunto da orientação do governo em relação aos temas sociais. O presidente se cercou de indivíduos, escolhidos a dedo, que representavam e representam a negação do conjunto das conquistas sociais da sociedade brasileira desde o fim da ditadura. A mentalidade antissocial do governo se confirma nessa espécie de profissionalização do desmonte do Estado para consumar limites e possibilidades da economia neoliberal.

Se prestarmos atenção, veremos que para cada orientação dos governos Lula e dos governos Fernando Henrique Cardoso, Bolsonaro escolheu exatamente o sujeito que a desmontaria.

Como disse o general Hamilton Mourão, na campanha eleitoral, o objetivo da eleição de Bolsonaro seria desmontar as normas e instituições do Estado que haviam viabilizado o reconhecimento de direitos antagônicos aos propósitos do NEOLIBERALISMO ECONÔMICO.

PANDEMIA DA COVID-19: mortes evitáveis, descontrole deliberado, insensibilidade, tragédia anunciada e desejada!!!

O programa desse governo foi deliberadamente o desgoverno e nesse sentido a minimização das pessoas para diminuir os custos da reprodução ampliada do capital.

É também por isso que não tem sentido falar em exclusão social, em casos assim, que este governo praticou extensamente. O que estamos vendo é inclusão social perversa, regulada pelo crescimento econômico e não pelo desenvolvimento econômico com desenvolvimento social. A inclusão regulada pela taxa de lucro e não pelo primado das necessidades sociais na definição das políticas públicas.

A pandemia não está sendo relida no cenário da disputa política desta eleição. Seus efeitos sociais e o modo irresponsável como foi tratada pelo governo, no entanto, estão presentes no conjunto das anomalias políticas que, justamente como conjunto, definem o que tem sido um programa antissocial de governo.

Esse conjunto é constitutivo da consciência socialmente crítica que se expressa, ainda que de modo parcial, mas suficientemente poderoso para levar à rejeição eleitoral do governo. O brasileiro se expressa politicamente através de mediações e não de meras relações de causa e efeito

IHU – Como, na sua avaliação, os pobres, a classe média e a elite brasileira estão se posicionando e vão se posicionar nas eleições deste ano?

José de Souza Martins – Essas três categorias sociais são meramente classificatórias e não correspondem a grupos sociais de interesse e expressão que definam orientações uniformes de conduta eleitoral. Isso não exclui a manifestação da intenção de voto como indicação mais uniforme e convergente entre os pobres, quanto a Lula, e na classe média e entre os ricos, quanto a Bolsonaro. Mas isso é aqui no Brasil um tanto difuso. Há pobres que votarão em Bolsonaro, assim como há ricos que votarão em Lula.

Independentemente da polarização atual, a classe média tem sido, no Brasil, uma categoria social vacilante. Historicamente, em diferentes países, tende para as propostas autoritárias. É o que está acontecendo no Brasil agora. Algumas vezes para centro esquerda, como aconteceu nos anos 1970, na ditadura militar, quando a classe média empurrou o pêndulo eleitoral da Arena para o MDB, da ditadura para a oposição, o que acabou abrindo uma enorme brecha política nos apoios do regime.

IHU – A que o senhor atribui a “popularidade” do presidente Bolsonaro em alguns setores da sociedade? O que revela sobre o cidadão brasileiro?

José de Souza Martins – A “popularidade” de Bolsonaro não é popularidade. O bolsonarismo desenvolveu técnicas de identificação, agrupamento e manipulação dos social e politicamente mais alienados da sociedade brasileira, nas diferentes classes sociais. Pessoas que não pensam politicamente, que pensam a política com os mesmos critérios usados na escolha de uma marca de cigarros, de sabonete, de chiclete ou de uma lata de sardinhas: basicamente pela cor e pelo desenho do rótulo e por uma resistência a mudar, mais vício do que propriamente opção livre e racional.

Por outro lado, durante a campanha, quando se ouve dos eleitores as justificativas da escolha eleitoral, há diferenças substanciais entre os que estão de um lado e os que estão de outro. Os que optam politicamente têm explicações sociais e políticas para sua decisão, são visíveis as relações de causa e efeito. Os outros tem rotulações: “porque ele é corajoso”, “porque ele é religioso”, “porque ele é bonito”, “porque ele não é comunista”, “porque defende os bons costumes”. E não conseguem ir além disso. Por isso podem ser manipulados, quase sempre por alguém cujo perfil é o das profissões supostamente de manipulação de vontades: militares, pastores de igrejas evangélicas, policiais.

É o eleitor não cidadão, mal integrado na sociedade política, embora integrado na sociedade de consumo.

De vários modos, Bolsonaro é personagem residual do processo político brasileiro, em grande parte em decorrência das omissões e distrações dos democratas e dos partidos de esquerda, em especial o PT.

Os diferentes partidos progressistas e de esquerda desdenham, desde a ditadura militar, o conhecimento sociológico dos mecanismos de controle social e político, cada vez mais aperfeiçoados com apoio na ciência e em técnicas científicas. No caso brasileiro atual, é impossível não identificar a influência da etnometodologia de Harold Garfinkel nas técnicas sociais e políticas empregadas pelo bolsonarismo. Um ramo das ciências sociais que nasceu com apoio do Pentágono. 

PT e a classe trabalhadora 

Nesse desdém, o PT em particular tratou a grande massa de trabalhadores das diferentes categorias como personagens de intuição popular, como se fosse natural o trabalhador ser petista e de esquerda.

Se tivesse prestado atenção nas mudanças políticas do cenário emblemático e histórico do petismo, a região fabril do ABC paulista, teria visto a desindustrialização e teria visto que os filhos dos operários das grandes manifestações lulistas no Estádio de Vila Euclides eram muito diferentes dos pais: tornaram-se ativistas fascistas e racistas. No curso de uma geração, o protagonismo operário cedera lugar a uma cultura consumista e autoritária.

É importante notar que o discurso de Lula, na campanha eleitoral de agora, já não fala como voz da classe trabalhadora, mas como voz das vítimas da crise do trabalho, da sociedade de classes, dos diferentes, dos excluídos. Na voz de Lula, com razão, o capitalismo declina no Brasil e esse é o problema a enfrentar.

As linhas gerais subjacentes ao renascimento do lulismo são as da SALVAÇÃO DO CAPITALISMO que os próprios capitalistas não têm conseguido salvar da decadência.

Ele tem claro, também, que o apoio da classe trabalhadora em crise à reforma do sistema econômico para salvá-lo, é também a proposta das novas tendências do capitalismo internacional, especialmente o europeu, na direção do que pode se configurar como um modelo de desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, com emprego e renda. Isto é, com integração socialmente criativa dos que nas últimas décadas têm sido aqui vítimas da libertinagem de mercado. Há empresários e empresas que vão nessa direção, num reconhecimento de que o capitalismo brasileiro se tornou um capitalismo arcaico, antissocial, anticapitalista e derrotado.

Bolsonaro é personagem dessa derrota, seu protagonista e consumador. 

LULA discursando para trabalhadores no tempo em que era sindicalista. Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo - SP

IHU – O que esse cenário representa para a esquerda?

José de Souza Martins – O cenário abre para as esquerdas a interessante alternativa de redefinir seu protagonismo histórico, sua função social e política reformadora, sua missão de reconstruir o Brasil como um país para todos e não um país para alguns. Isso vai depender de que os interesses de classe reacionários, aferrados ao rentismo do lucro fácil, cedam lugar a um empresariado lúcido e progressista, consciente de que sozinho não irá a lugar nenhum

IHU – O que a campanha eleitoral tem demonstrado sobre o sentimento de parte da população em relação ao petismo e ao psdebismo, mas também sobre a social-democracia e a esquerda no país?

José de Souza Martins – O PT, desde o começo de sua história, cometeu o engano de atacar o PSDB como partido de direita, que o PSDB nunca foi. Como o PT tampouco tem sido um partido propriamente de esquerda, coisa de que Lula tem consciência, mas a maioria dos petistas não têm.

O PT é de esquerda funcionalmente, num cenário em que o nosso capitalismo retrógrado e reacionário está tão à direita que qualquer lucidez em relação a isso é necessariamente de esquerda.

O PT contribuiu para dividir o país em dois Brasis, negou-se a admitir como fundamento da política a natural alternância de poder. Com isso não percebeu que, nos interstícios ocultos desse delírio, crescia uma direita apoiada no chamado partido militar e baseada nos interesses rentistas do empresariado. De tocaia, essa direita demoliu facilmente as bases do Estado democrático da Constituição de 1988 e ainda está apenas na metade de seu projeto político. Em decorrência, o PSDB foi fragilizado a partir de dentro, assim como os setores intolerantes do PT descartaram alguns dos seus melhores nomes.

Se as tendências eleitorais se confirmarem, o PT que voltará ao poder em 2023 estará longe do PT de 2003. Terá que se reconstruir como partido de centro-esquerda, fragilizado por um Congresso Nacional anomalamente constituído por representantes das igrejas evangélicas e da bancada da bala e, no geral, por uma classe média de tendência reacionária. Os perigos estão espraiados pela eleição dos governadores, dos deputados e dos senadores

IHU – O que a reeleição de Bolsonaro significaria para o Brasil?

José de Souza Martins – A eventual reeleição de Bolsonaro representará um retrocesso de correção difícil e demorada no futuro. Ele já inviabilizou o progresso da economia, não tem política para superação da fome, da miséria e do desemprego, não tem competência política para negociar um grande pacto político nacional para sairmos do buraco para o qual nos empurrou com seus primarismos e demandas descabidas. 

IHU – O que um novo mandato do ex-presidente Lula significaria para o país? Quais serão seus desafios?

José de Souza Martins – Depende da compreensão que Lula tiver do grave momento brasileiro. Depende de sua capacidade para negociar esse pacto com os setores sociais e políticos do que restou de democrático na diversidade política brasileira. Dependerá de sua capacidade para convencer o PT de que o partido já não tem condições de governar se não fizer ampla revisão de suas omissões e de seus erros. Sobretudo se não compreender que a situação social e política do mundo mudou muito desde que o PT chegou ao governo em 2003.

Há possibilidade e até necessidade de uma nova e diferente inserção do Brasil no capitalismo metamorfoseado de agora, um tanto próximo da democracia social clássica, que também precisa de ajustamentos e adaptações. Se o governo governar com base em uma guerra ideológica contra as sociedades hegemônicas, o Brasil talvez perca sua oportunidade de ser de novo um país emergente.

Os partidos sociais vão ter que rever a concepção de esquerda porque a nossa está muito longe da concepção marxiana e da dialética que a explica. Ao longo da história do capitalismo moderno, desde o século XIX, as esquerdas têm passado por sucessivas reformulações, as utopias nas quais se expressam tem se reconfigurado. Elas se libertaram das limitações do conflito de classes para assumir as possibilidades políticas subjacentes à estrutura social de classes. Tem hoje, melhor compreensão do que Henri Lefebvre e Agnes Heller, em diferentes momentos definiram como necessidades radicais, as necessidades sociais, motores da história, que não podem ser saciadas nem superadas sem transformações sociais, econômicas e políticas, com protagonismo democrático de todos que compreendem a convergência política de demandas sociais e possibilidades históricas de sua solução por meio das mudanças criativas. 

IHU – Quais são os principais desafios do futuro em matéria de justiça social?

José de Souza Martins – No meu modo de ver, o principal desafio é o de estabelecimento de um pacto político que viabilize um novo desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, como eu disse, com emprego e renda. Uma certa volta, adaptada, à economia de John Maynard Keynes. E, também, o reconhecimento e a revalorização da economia moral popular, como meio de integração social. A viabilização intersticial e complementar de uma economia social que integre na economia dominante o capital social do saber econômico popular. Algo que aconteceu na Itália na crise do petróleo dos anos 1970. 

Nota:

[1] Cf. Julia Lindner e Mateus Vargas, “Morte de idosos por covid-19 melhora contas da Previdência, teria dito chefe da Susep”. O Estado de S. Paulo, 28 de maio de 2020. (Nota do entrevistado) 

* José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. 

Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulus Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015), Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016) e Sociologia do desconhecimento: ensaios sobre a incerteza do instante (Editora Unesp, 2021). 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 29 de setembro de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/09/2022 – às 12h20).

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Eleições, reta final

 A democracia não vive só de Presidente

 Frei Betto

Frade Dominicano brasileiro, escritor, teólogo, assessor de movimentos populares e CEB’s

FREI BETTO - autor de dezenas de livros e ativo militante dos movimentos sociais
 

Votemos no resgate da democracia, da dignidade e dos direitos do povo brasileiro

No próximo domingo, 2 de outubro, mais de 156 milhões de eleitores irão às urnas decidir quem deve ocupar na administração pública brasileira funções servidoras de deputado estadual, governador, deputado federal, senador e presidente da República. A maioria dos votantes, segundo pesquisas comprovam, já sabe em quem votar, sobretudo quanto aos cargos majoritários, governador e presidente da República. Será uma eleição de caráter plebiscitário, na qual o povo brasileiro decidirá se o governo deve continuar em mãos de quem:

* defende milicianos;

* protege a si próprio e familiares de investigações de corrupção;

* acoberta garimpo ilegal, incendiários e devastadores de florestas, invasores de territórios indígenas e comércio ilegal de armas;

* ignora crimes cometidos por forças policiais;

* despreza as mulheres, a ciência, o sofrimento das vítimas de Covid e seus familiares; e

* trata os adversários com ódio e escárnio.

Ou os eleitores darão preferência, sem medo de ser felizes, a quem:

* promoveu o Brasil à condição de nação soberana, livre das interferências do FMI, e foi capaz de reduzir significativamente a inflação e o desemprego;

* retirou o Brasil do Mapa da Fome (ao qual retornou em 2018);

* criou o Prouni e o sistema de cotas nas universidades;

* ampliou o número de escolas técnicas de nível superior;

* disseminou as Farmácias Populares;

* trouxe médicos cubanos para atender as populações mais carentes e distantes dos centros urbanos;

* valorizou a agricultura familiar;

* fortaleceu os programas sociais e reduziu a desigualdade social.

Por isso, Lula deixou seus 8 anos de governo com 87% de aprovação por parte da opinião pública brasileira. Ao votar para governador e presidente da República os eleitores devem estar atentos ao apoio parlamentar necessário para que seus candidatos, uma vez empossados, possam transformar em realidade suas promessas de campanha. Por isso é importante adequar a escolha dos nomes a cargos majoritários aos votos a quem deve ser eleito deputado estadual, deputado federal e senador.

MACHADO DE ASSIS - famoso escritor e crítico de literatura: viveu de 1839 a 1908

Machado de Assis, em sua primeira crônica na “Gazeta de Notícias”, em 1892, escreve sobre o pleito de 20 de abril daquele ano para preencher vaga no Senado após renúncia do general João Severiano da Fonseca. Eleito o republicano Aristides Lobo, que era deputado pelo Distrito Federal, Machado confessa: “Não entendendo eu de política, ignoro se a ausência de tão grande parte do eleitorado na eleição do dia 20 quer dizer descrença, como afirmam uns, ou abstenção como outros juram. A descrença é fenômeno alheio à vontade do eleitor; a abstenção é propósito.”

Machado, um sátiro inveterado, reafirma não entender de política em crônicas posteriores: “Não entendo de política, limito-me a ouvir as considerações alheias” (25 de fevereiro de 1894); “política, matéria estranha às minhas cogitações” (6 de janeiro de 1895); “Não há quem não conheça a minha desafeição à política e, por dedução, a profunda ignorância que tenho desta arte ou ciência” (7 de abril de 1895); “Nada entendendo de política nem de finanças” (8 de dezembro de 1895); “Não estranheis ver-me assim metido em política, matéria alheia à minha esfera de ação.” (7 de junho de 1896). No entanto, toda a obra de Machado de Assis está impregnada de política. Mesmo porque não há nada que não seja político, seja por omissão, seja por participação. O que o fundador da Academia Brasileira de Letras quis evitar é a acusação de partidarismo. E o bom voto não é necessariamente o que nasce de convicções partidárias. Há quem, filiado a partidos, se empenha na eleição de seus correligionários porque deseja que o programa partidário seja efetivamente aplicado. Mas há também os que, movidos por interesses nem sempre confessáveis, estão de olho em bons empregos e ter amigos agora transformados em políticos influentes.

Na crônica de 7 de agosto de 1892, em “Gazeta de Notícias”, Machado condena a abstenção ao comentar que, para eleger a vaga deixada por Aristides Lobo, o “eleitorado ficou em casa”. “Uns querem ver nisto indiferença pública, outros descrença, outros abstenção. No que todos estão de acordo, é que é um mal, e grande mal.”

A AMAZÔNIA BRASILEIRA ESTÁ SENDO INCENDIADA

Sim, abster-se ou anular o voto nesta eleição de 2022 é um grande mal, porque significa cruzar os braços diante da tragédia brasileira:

* com mais de 30 milhões de pessoas padecendo fome crônica;

* 10 milhões de desempregados;

* desmatamento na Amazônia ampliado em 21% neste ano, comparado a 2021, e deve chegar a 15 mil km² de floresta derrubada até o fim do ano;

* inflação de mais de 8% ao ano;

* aumento abusivo do preço dos alimentos; e

* milhares de famílias forçadas a ocupar as ruas por falta de moradia e renda. 

Votemos no resgate da democracia, da dignidade e dos direitos do povo brasileiro.

Votemos Lula, 13! 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Terça-feira, 27 de setembro de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/09/2022 – às 10h00).