«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Carta aberta ao presidente Lula da Silva

 Uma proposta de ação

 Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português, diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador do Observatório Permanente da Justiça 

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

"O estado de graça é curto. Não dura sequer cem dias (vide Gabriel Boric no Chile). O presidente Lula tem de fazer tudo para não perder o povo que o elegeu. A política simbólica é fundamental nos primeiros tempos"

Prezado amigo Presidente Lula da Silva,

Quando o visitei na prisão em 30 de agosto de 2018, vivi no pouco tempo que durou a visita um turbilhão de ideias e emoções que continuam hoje tão vivas quanto nesse dia. Pouco tempo antes tínhamos estado juntos no Fórum Social Mundial de Salvador da Bahia, conversando, na companhia de Jacques Wagner, na cobertura do hotel onde o Lula estava hospedado. Falávamos então da sua possível prisão.

O Lula ainda tinha alguma esperança de que o sistema judicial suspendesse aquela vertigem persecutória que desabara sobre si. Eu, talvez por ser sociólogo do direito, estava convencido de que tal não aconteceria, mas não insisti. A certa altura, tive a sensação de que estávamos a pensar e a temer o mesmo.

Pouco tempo depois, prendiam-no com a mesma indiferença arrogante e compulsiva com que o tinham tratado até então. Sérgio Moro, o lacaio dos Estados Unidos (é tarde demais para sermos ingênuos), tinha cumprido a primeira parte da missão. A segunda parte seria a de o manter preso e isolado até que fosse eleito o candidato que lhe daria a tribuna a ser utilizada por ele, Moro, para um dia chegar à presidência da República.

Quando entrei nas instalações da Polícia Federal senti um arrepio ao ler a placa onde se assinalava que o presidente Lula da Silva tinha inaugurado aquelas instalações onze anos antes como parte do seu vasto programa de valorização da Polícia Federal e da investigação criminal. Um primeiro turbilhão de interrogações me assaltou. A placa permanecia ali por esquecimento? Por crueldade? Para mostrar que o feitiço se virara contra o feiticeiro? Que um presidente de boa-fé entregara o ouro ao bandido?

Fui acompanhado por um jovem polícia federal bem parecido que no caminho se vira para mim e diz: lemos muito os seus livros. Fico frio por dentro. Estarrecido. Se os meus livros fossem lidos e a mensagem entendida, nem Lula nem eu estaríamos ali. Balbuciei algo neste sentido e a resposta não se fez esperar: “cumprimos ordens”. De repente, o teórico nazi do direito Carl Schmitt irrompeu dentro de mim.

Ser soberano é ter a prerrogativa de declarar que é legal o que não é, e de impor a sua vontade burocraticamente com a normalidade da obediência funcional e a consequente trivialização do terror do Estado.

Prezado Presidente Lula, foi assim que cheguei à sua cela e certamente nem suspeitou do turbilhão que ia dentro de mim. Ao vê-lo, acalmei-me. Estava finalmente na frente da dignidade em pessoa, e senti que a humanidade ainda não tinha desistido de ser aquilo a que o comum dos mortais aspira. Era tudo totalmente normal dentro da anormalidade totalitária que o encerrara ali. As janelas, os aparelhos de ginástica, os livros, a televisão. A nossa conversa foi tão normal quanto tudo o que nos rodeava, incluindo os seus advogados e a Gleisi Hoffmann, presidenta do Partido dos Trabalhadores.

Falamos da situação da América Latina, da nova (velha) agressividade do império, do sistema judicial convertido em substituto de golpes militares, das sondagens que o continuavam a destacar, do meu receio que a transferência de votos não fosse tão massiva quanto esperava. Era como se o imenso elefante branco naquela sala – a repugnante ilegalidade da sua prisão por motivos políticos nem sequer disfarçados – se transformasse em inefável leveza do ar para não perturbar a nossa conversa como se, em vez de estarmos ali, estivéssemos em qualquer lugar de sua escolha.

Quando a porta se fechou atrás de mim, o peso da vontade ilegal de um Estado refém de criminosos armados de manipulações jurídicas caiu de novo sobre mim. Amparei-me na revolta e na raiva e no desempenho bem-comportado que se espera de um intelectual público que à saída tem de fazer declarações à imprensa.

Tudo fiz, mas o que verdadeiramente senti é que tinha deixado atrás de mim a liberdade e a dignidade do Brasil, aprisionadas para que...

... o império e as elites ao seu serviço cumprissem os seus objetivos de garantir:

* o acesso aos imensos recursos naturais do Brasil,

* a privatização da previdência e

* o alinhamento incondicional com a geopolítica da rivalidade com a China.

A serenidade e a dignidade com que o Lula enfrentou 582 dias de reclusão é a prova provada de que os impérios, sobretudo os decadentes, erram muitas vezes os cálculos, precisamente por só pensarem no curto prazo. A imensa solidariedade nacional e internacional, que fez de si o mais famoso preso político do mundo, mostraram que o povo brasileiro começava a acreditar que pelo menos parte do que fora destruído a curto prazo poderia ser reconstruído a médio e longo prazo. A sua prisão passou a ser o preço da credibilidade dessa convicção.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA - Presidente eleito do Brasil: 2023-2026

Prezado amigo Presidente Lula da Silva,

Escrevo-lhe hoje antes de tudo para o felicitar pela vitória nas eleições de 30 de outubro. É um feito extraordinário sem precedente na história da democracia. Costumo dizer que os sociólogos são bons a prever o passado, não o futuro, mas desta vez não me enganei. Nem por isso tenho maior certeza no que sinto necessidade de lhe dizer hoje. Como sei que não tem tempo para ler grandes elaborações analíticas, serei telegráfico. Tome estas considerações como expressão do que de melhor desejo para si pessoalmente e para o exercício do cargo que vai assumir.

1. Seria um erro grave pensar-se que com a sua eleição tudo voltou ao normal no Brasil. Primeiro, o normal anterior a Bolsonaro era para as populações mais vulneráveis algo muito precário ainda que o fosse menos do que é agora. Segundo, Bolsonaro infligiu um dano na sociedade brasileira difícil de reparar.

Produziu um retrocesso civilizatório ao ter reacendido as brasas da violência típica de uma sociedade que foi sujeita ao colonialismo europeu:

* a idolatria da propriedade individual e a consequente exclusão social,

* o racismo,

* o sexismo,

* a privatização do Estado para que o primado do direito conviva com o primado da ilegalidade, e

* uma religião excludente desta vez sob a forma de evangelismo neopentecostal.

A fratura colonial é reativada sob a forma da polarização amigo/inimigo, nós/eles, própria da extrema-direita.

Com isso, Bolsonaro criou uma ruptura radical que torna muito difícil a mediação educativa e democrática. A recuperação levará anos. 

2. Se a nota anterior aponta para o médio prazo, a verdade é que a sua presidência vai ser por agora dominada pelo curto prazo:

* Bolsonaro fez regressar a fome,

* quebrou financeiramente o Estado,

* desindustrializou o país,

* deixou morrer desnecessariamente centenas de milhares de vítimas da covid,

* propôs-se acabar com a Amazônia.

O campo emergencial é aquele em que o Presidente se move melhor e em que estou certo mais êxito terá. Apenas duas cautelas. Vai certamente voltar às políticas que protagonizou com êxito, mas, atenção, as condições são agora muito diferentes e mais adversas.

Por outro lado, tudo tem de ser feito sem esperar a gratidão política das classes sociais beneficiadas pelas medidas emergenciais. O modo impessoal de beneficiar, que é próprio do Estado, faz com que as pessoas vejam nos benefícios o seu mérito pessoal ou o seu direito e não o mérito ou a benevolência de quem os torna possível. Para mostrar que tais medidas não resultam nem de mérito pessoal nem da benevolência de doadores, mas são antes produto de alternativas políticas só há um caminho: a educação para a cidadania

3. Um dos aspectos mais nefastos do retrocesso provocado por Bolsonaro é a ideologia antidireitos capilarizada no tecido social, tendo como alvo os grupos sociais anteriormente marginalizados (pobres, negros, indígenas, Roma, LGBTQI+). Manter firme uma política de direitos sociais, econômicos e culturais como garantia de dignidade ampliada numa sociedade muito desigual deve ser hoje o princípio básico dos governos democráticos. 

4. O contexto internacional é dominado por três mega ameaças:

* pandemias recorrentes,

* colapso ecológico,

* possível terceira guerra mundial.

Qualquer dessas ameaças é global, mas as soluções políticas continuam dominantemente limitadas à escala nacional. A diplomacia brasileira foi tradicionalmente exemplar na busca de articulações, quer de âmbito regional (cooperação latino-americana), quer de âmbito mundial (BRICS).

Vivemos um tempo de interregno entre um mundo unipolar dominado pelos Estados Unidos que ainda não desapareceu totalmente e um mundo multipolar que ainda não nasceu plenamente. O interregno manifesta-se, por exemplo, na desaceleração da globalização e no regresso do protecionismo, na substituição parcial do livre comércio pelo comércio com parceiros amigos.

Os Estados continuam todos formalmente independentes, mas só alguns são soberanos. E entre os últimos não se contam sequer os países da União Europeia.

O Presidente Lula saiu do governo quando a China era o grande parceiro dos Estados Unidos e regressa quando a China é o grande rival dos Estados Unidos. O Presidente Lula foi sempre adepto do mundo multipolar e a China é hoje um parceiro incontornável do Brasil. Dada a crescente guerra fria entre os Estados Unidos e a China, prevejo que a lua de mel entre Biden e Lula não dure muito tempo

5. O Presidente Lula tem hoje uma credibilidade mundial que o habilita a ser um mediador eficaz num mundo minado por conflitos cada vez mais tensos. Pode ser um mediador no conflito Rússia/Ucrânia, dois países cujos povos necessitam urgentemente de paz, num momento em que os países da União Europeia abraçaram sem Plano B a versão norte-americana do conflito e condenaram-se ao mesmo destino a que está destinado o mundo unipolar dominado pelos Estados Unidos. E será também um mediador credível no caso do isolamento da Venezuela e no fim do vergonhoso embargo contra Cuba. Para isso, o Presidente Lula tem de ter a frente interna pacificada e aqui reside a maior dificuldade

6. Vai ter de conviver com a permanente ameaça de desestabilização. É a marca da extrema-direita. É um movimento global que corresponde à incapacidade de o capitalismo neoliberal poder conviver no próximo período com mínimos de convivência democrática. Apesar de global, assume características específicas em cada país.

O objetivo geral é converter diversidade cultural ou étnica em polarização política ou religiosa.

No Brasil, tal como na Índia, há o risco de atribuir a tal polarização um caráter de guerra religiosa, seja ela entre católicos e evangélicos ou entre cristãos fundamentalistas e religiões de matriz africana (Brasil) ou entre hindus e muçulmanos (Índia). Nas guerras religiosas, a conciliação é quase impossível. A extrema-direita cria uma realidade paralela imune a qualquer confrontação com a realidade real. Nessa base, pode justificar a mais cruel violência. O seu objetivo principal é impedir que o Presidente Lula termine pacificamente o seu mandato. 

7. O Presidente Lula tem neste momento a seu favor o apoio dos Estados Unidos. É sabido que toda a política externa dos Estados Unidos é determinada por razões de política interna. O Presidente Biden sabe que, ao defender o Presidente Lula, está a defender-se de Trump, seu rival em 2024. Acontece que os Estados Unidos são hoje a sociedade talvez mais fraturada do mundo, onde o jogo democrático convive com uma extrema-direita plutocrata suficientemente forte para fazer com que cerca de 25% da população norte-americana continue hoje convencida que a vitória de Joe Biden em 2020 foi o resultado de uma fraude eleitoral. Esta extrema-direita está disposta a tudo. A sua agressividade fica demonstrada pela tentativa recente de raptar e torturar Nancy Pelosi, líder dos democratas na Câmara dos Representantes. 

Pensemos nisto: o país que quer produzir uma mudança de regime na Rússia e travar a China não consegue proteger um dos seus mais importantes líderes políticos. E, tal como se irá observar no Brasil, logo após o atentado, uma bateria de notícias falsas foi posta a circular para justificar o ato. Portanto, hoje, os Estados Unidos são um país duplo:

* o país oficial que promete defender a democracia brasileira e

* o país não oficial que a promete subverter para ensaiar o que pretende conseguir nos Estados Unidos.

Recordemos que a extrema-direita começou por ser a política do país oficial. O evangelismo hiperconservador começou por ser um projeto norte-americano (vide o relatório Rockfeller de 1969) para combater “o potencial insurrecional” da Teologia da Libertação. E diga-se, em abono da verdade, que durante muito tempo o seu principal aliado foi o Papa João Paulo II. 

8. Desde 2014, o Brasil vive um processo de golpe de Estado continuado, a resposta das elites aos progressos que as classes populares obtiveram com os governos do Presidente Lula. Esse processo não terminou com a sua vitória. Apenas mudou de ritmo e de tática.

Ao longo destes anos e sobretudo no último período eleitoral assistimos a múltiplas ilegalidades e até crimes políticos cometidos com uma impunidade quase naturalizada.

Para além dos muitos que foram cometidos pelo chefe do governo, vimos, por exemplo, quadros superiores das Forças Armadas e das forças de segurança apelarem a golpes de Estado e a tomarem publicamente partido por um candidato presidencial durante o exercício das suas funções. Estes comportamentos golpistas devem ser punidos exemplarmente, quer por iniciativa do sistema judiciário, quer por meio de passagens compulsórias à reserva. Qualquer ideia de anistia, por mais nobres que sejam os seus motivos, será uma armadilha no caminho da sua presidência. As consequências podem ser fatais. 

9. É sabido que o Presidente Lula não põe grande prioridade em caracterizar a sua política como sendo de esquerda ou de direita. Curiosamente, pouco antes de ser eleito Presidente da Colômbia, Gustavo Petro afirmava que a distinção para ele importante não era entre esquerda e direita, mas antes entre política de vida e política de morte.

Política de vida é hoje no Brasil a política ecológica sincera, a continuidade e aprofundamento das políticas de justiça racial e sexual, dos direitos trabalhistas, do investimento na saúde e na educação públicas, do respeito pelas terras demarcadas dos povos indígenas e da promulgação das demarcações pendentes.

Acima de tudo, é necessária uma transição gradual, mas firme da monocultura agrária e do extrativismo de recursos naturais para uma economia diversificada que permita o respeito por diferentes lógicas socioeconômicas e articulações virtuosas entre a economia capitalista e as economias camponesa, familiar, cooperativa, social-solidária, indígena, ribeirinha, quilombola que tanta vitalidade têm no Brasil. 

10. O estado de graça é curto. Não dura sequer cem dias (vide Gabriel Boric no Chile). O presidente Lula tem de fazer tudo para não perder o povo que o elegeu. A política simbólica é fundamental nos primeiros tempos. Uma sugestão: reponha de imediato as Conferências Nacionais para dar um sinal inequívoco de que há outra maneira mais democrática e mais participativa de fazer política. 

Fontes: Instituto Humanitas Unisinos – Notícas – Sexta-feira, 11 de novembro de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/11/2022 – às 12h00).

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

1º Domingo do Advento – Ano A – Homilia

 Evangelho: Mateus 24,37-44 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Para ser acolhido(a) no Reino de Deus, deve-se mudar de vida, vivendo os seus valores

A passagem que a liturgia apresenta no primeiro domingo do Advento, o Evangelho de Mateus, capítulo 24, versículos 37-44, deve ser contextualizada, sob pena de correr o risco de incompreensão e deturpação do sentido daquilo que o evangelista escreve. E qual é o contexto? No templo, Jesus expulsou a todos e denunciou as mais altas autoridades religiosas por terem transformado a casa do Pai em um covil de ladrões e bandidos.

E depois Jesus queixou-se, chorou por Jerusalém, uma instituição que, em vez de reconhecer, acolher e apoiar os enviados de Deus, sempre os matou. Por quê? Para seu próprio lucro, para sua própria conveniência. E Jesus tinha anunciado: “Esta casa ficará deserta” e tinha dito aos seus discípulos que o templo que eles admiravam seria destruído. Por quê?

Uma instituição religiosa que, em vez de ser a favor do povo, o explora para seu próprio interesse, para sua própria comodidade, não tem direito de existir.

Mas isso não será uma coisa ruim. Será o início de uma série de desmoronamentos de todas aquelas formas de poder que dominam o ser humano, até que surja o REINO DO HUMANO, o reino do Filho de Deus. Isso acontece com a proclamação da Boa Nova que, garante Jesus, fará obscurecer a luz do sol, da lua, das falsas divindades, torná-las tais, e das estrelas, isto é, daqueles principados, daquelas potestades que se apoiaram nessas divindades, uma após a outra cairão.

Naturalmente tudo isto não será indolor, mas Jesus garante estar sempre ao lado dos seus discípulos. E Jesus havia assegurado que o céu e a terra poderão passar, mas suas palavras não passarão.

Assim, Jesus nos assegura a vitória do humano sobre tudo o que é desumano.

E no versículo 36, antes da passagem litúrgica, Jesus tinha dito: “Ora, quanto àquele dia e hora”, aqui fala do fim individual dos discípulos, “ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem mesmo o Filho, mas somente o Pai”. Essa é uma mensagem de grande serenidade e de grande segurança: o fim pessoal do discípulo, de cada indivíduo, o Pai conhece, não diz “Deus sabe”, mas “o Pai sabe”, isto é, destaca essa relação afetuosa, terna, por parte do Pai diante de seus filhos. Por isso convida à máxima serenidade e máxima tranquilidade. 

Mateus 24,37: «A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé.»

Os dias de Noé são os dias da arca, ou seja, o lugar da salvação, onde poucos perceberam a iminência do desastre e foram salvos. Assim, a vinda do Filho do homem, que inaugura o Reino de Deus, será a nova salvação, mas Jesus anuncia que poucos se darão conta. O dilúvio não foi o fim do mundo, mas o início de uma nova humanidade que foi renovada, uma mudança de época que salvará a humanidade. 

Mateus 24,38-39: «Nos dias antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos. Assim acontecerá também na vinda do Filho do Homem.»

Jesus se refere à rotina normal que, no entanto, nos impede de perceber algo extraordinário está prestes a acontecer. Portanto, é um convite à vigilância porque, assim como o dilúvio foi algo imediato e poucos o perceberam, assim a vinda do Reino de Deus é uma oportunidade para ser pega no ar, mas é uma ocasião que é condicional, e em todo o evangelho o evangelista tratou disso, desde a mudança de vida, desde a rejeição dos falsos valores da sociedade para acolher os novos, que são: a partilha, o serviço e a descida ao nível dos últimos da sociedade. 

Mateus 24,40-41: «Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado, e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada, e a outra será deixada.»

Aqui a tradução põe “um será levado, e outro será deixado”, mas não é “levado [embora]”. O verbo usado pelo evangelista é o mesmo que usou no primeiro capítulo, no momento da Anunciação, quando o anjo diz a José: “Não temas receber Maria, tua mulher” (Mt 1,20). É “tomar” no sentido de acolher/receber. Então esta frase se traduz assim: “Dois homens estarão trabalhando no campo, um será acolhido [recebido], e o outro será deixado”. O mesmo para o exemplo feminino: “Duas mulheres estarão moendo no moinho, uma será acolhida [recebida], e a outra será deixada”. O que isso quer dizer?

O Reino de Deus é uma proposta para todos, mas não é de todos, porque somente aqueles que acolhem os seus valores, somente os que aceitam mudar de vida, nele entrarão e dele farão parte.

O Reino de Deus não é o reino do além, mas uma sociedade alternativa, onde, em vez de acumular egoisticamente para si, se compartilha generosamente com os outros, onde, em vez de dominar, se serve aos outros. 

Mateus 24,42: «Vigiai, portanto, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor.»

E aqui está o convite premente de Jesus para “Vigiai”; é o mesmo convite que Jesus fará depois no Getsêmani, no momento da dificuldade, quando todos os discípulos fugirão. “Vigiai”, isto é, “Aderi a mim/Juntai-vos a mim”. O dia do Senhor pode ser repentino, porque Jesus diz que o momento será violento, inesperado, pois os próprios familiares podem se voltar contra os discípulos, pois se trata de ir contra a correnteza.

É uma questão de acolher essa novidade, desafiando a tradição, desafiando a moral, e claro que isso não será indolor!

Mateus 24,43-44: «Sabei, pois, isto: se o dono de casa soubesse a que hora da noite viria o ladrão, vigiaria e não deixaria que sua casa fosse arrombada. Por isso, também vós, ficai preparados, pois na hora em que menos pensais, virá o Filho do Homem.»

Assim como a arca de Noé não acolheu todos, mas apenas aqueles que perceberam o desastre iminente, o Reino de Deus é uma salvação para todos, mas não é de todos; então devemos estar atentos à vinda do Filho do Homem. O homem que tem a condição divina, que não é um privilégio exclusivo de Jesus, mas uma possibilidade para todos os crentes. Mas ter a condição divina torna as pessoas livres e o sistema e o poder não toleram os livres, mas Deus sempre estará do lado dos pobres e perseguidos. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2021. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Com efeito, muitos são chamados, mas poucos são escolhidos.”

(Mateus 22,14)

Primeiramente, é preciso ficar claro que o Evangelho deste domingo não pretende transmitir-nos medo, apreensão e angústia, absolutamente! As palavras de Jesus vêm até nós para nos encorajar a fazer já, agora, aquilo que se deve, não postergar, não perder tempo na vida, pois tudo pode mudar de uma hora para outra! Devemos aproveitar o tempo presente, pois não temos mais acesso ao passado e, ainda, não alcançamos o futuro! O que Jesus deseja é a mesma atitude que solicitou a alguns de seus discípulos no horto do Getsêmani, na noite trágica de sua paixão: “Mantende-vos despertos comigo!” (= Vigiai comigo! – Mt 26,38.40.41). Isso não significa viver assustado, temeroso diante de uma possível desgraça ou tragédia! 

A vigilância e a oração são necessárias para que não “cairmos em tentação”, uma vez que: “O espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26,41b). E a pior tentação na qual podemos cair é abandonar e desprezar os valores do Reino de Deus (partilha de bens e de dons, serviço aos outros, dedicação aos últimos e marginalizados da sociedade, promoção da justiça acima de tudo), a fim de abraçarmos os falsos valores do mundo: riqueza, poder, fama, beleza exterior. 

Como bem nos recorda o teólogo espanhol José María Castillo:

«É viver com tanta honestidade, no lugar e no trabalho em que cada um está, que se vive na constante disposição de fazer o que tenho que fazer, e dizer o que tenho a dizer, mesmo que isso represente uma séria ameaça para mim, um perigo que pode ser fatal».

Infelizmente, a maioria dos cristãos pensa que sua principal preocupação, como pessoa que se diz seguidora de Cristo, deve ser com as “obrigações religiosas”, entendendo-se com isso: a frequência aos sacramentos, a observância das normas doutrinais da Igreja e assim por diante. Esquece-se, desgraçadamente, que o principal para um(a) cristão(ã) é: vivenciar os valores do Reino de Deus no mundo e nos ambientes em que vive (família, profissão, estudo etc.). Por isso, em nossa sociedade, ainda hoje, após quase dois milênios de cristianismo, não se respira um ar cristão e não se encontra uma sociedade, verdadeiramente, cristã! 

Nossa fé não muda, não incide, não altera a triste realidade deste mundo! Isso é gravíssimo, pois demonstra que temos uma fé morta, segundo o que nos diz a Carta de Tiago (2,14-17.26):

«Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, se não tem obras? A fé seria capaz de salvá-lo? Imaginai que um irmão ou uma irmã não têm o que vestir e que lhes falta a comida de cada dia; se então algum de vós disser a eles: “Ide em paz, aquecei-vos” e “Comei à vontade”, sem lhes dar o necessário para o corpo, que adianta isso? Assim também a fé: se não se traduz em ações, por si só está morta. [...] Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé, sem as obras, é morta.» 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«São muitas as perguntas sobre o nosso futuro que continuamente surgem na mente: o que será de nós e deste mundo? Aonde estamos indo? Não nos faltam, nem mesmo, perguntas sobre o nosso presente: por que tantos desastres, por que tantas doenças que parecem se multiplicar, por que os crimes brutais cometidos pelos poderosos permanecem impunes, por que os inocentes sofrem e são mortos? Quando tudo isso vai acabar? A única resposta que nos dás, Senhor, é que ninguém sabe o dia e a hora em que tudo isso vai acabar. Nossa única certeza é a tua palavra, palavra de verdade, palavra de vida, palavra de eternidade. É confiar-nos a ti, trabalhando incansavelmente, continuando a dar testemunho do teu evangelho, confiantes de que virás surpreender-nos. Amém.»

(Fonte: VENTURI, Gianfranco. 1ª Domenica di Avvento. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico A. Leumann [TO]: Elledici, 2010, p. 32) 

Assista ao vídeo com a íntegra da homilia acima, clicando sobre esta imagem: 


Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – I Domenica di Avvento – Anno A – 1º dicembre 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 23/11/2022).

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Solenidade de N. S. Jesus Cristo, Rei do Universo – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 23,35-43 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas)

 

Jesus, um rei que olha para as necessidades das pessoas

O episódio das tentações no deserto terminou com estas palavras: “o diabo afastou-se dele até o tempo oportuno” (Lc 4,13) E aqui está o momento oportuno, isto é, o momento de máxima debilidade de Jesus: Jesus é crucificado, já está em agonia, na cruz, e no momento de máxima fragilidade, surgem novamente as tentações de força, as tentações de poder. 

Lucas 23,35a: «O povo permanecia lá, observando.»

Vamos ler o que Lucas escreve para nós, no capítulo 23 versículos 35 a 43. Jesus, que tinha como única missão trazer a vida, salvar as pessoas, já pronunciou as palavras dirigidas ao Pai, uma oração de perdão: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (Lc 23,34a). O evangelista escreve que “as pessoas estavam assistindo”.

Esse povo que o seguiu, essa multidão que se encantou com sua mensagem, agora, está sujeita às decisões dos líderes, não toma iniciativa, apenas observa. 

Lucas 23,35b: «E até os chefes zombavam, dizendo: “A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Eleito!”»

O evangelista diz que, inclusive, os líderes zombavam de Jesus; aqui sem um mínimo de humanidade, sem um pouco de compaixão. Afinal, Jesus, mesmo que aos olhos deles seja culpado, é um homem agonizando na cruz, esta terrível tortura, mas eles são implacáveis, eles zombam dele dizendo: “A outros ele salvou”, e aqui há um eco do que Jesus disse no episódio da Sinagoga de Nazaré quando citou um provérbio: “Médico, cura-te a ti mesmo” (Lc 4,23). Aqui, as tentações retornam.

Esta expressão: “se, de fato, é o Cristo de Deus”, retornará três vezes e sabemos que o número três na simbologia numérica hebraica significa aquilo que está completo, portanto, o diabo volta com força, com suas tentações no momento de maior fraqueza de Jesus. O eleito de Deus é abandonado. Uma das provas de que Jesus não era o Messias, o Cristo de Israel, é que o Messias não poderia morrer. 

Lucas 23,36-37: «Os soldados também zombavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre e diziam: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!”»

Até os soldados, os soldados romanos, ridicularizam ele, literalmente “escarneciam dele”, zombavam dele, faziam piada, eles se aproximavam dele para lhe entregar um pouco de vinagre. Enquanto o vinho é a imagem do amor, o seu oposto, o vinagre, é a imagem do ódio. Há um salmo, o salmo 69, versículo 22 que diz: “na minha sede me deram vinagre”, e disseram “se és o rei dos judeus”, esta tentação volta novamente, “salva-te a ti mesmo”. 

Lucas 23,38-39: «Acima dele havia um letreiro: “Este é o Rei dos Judeus”. Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!»

Mas Jesus veio salvar quem está perdido, Jesus não veio se salvar, mas salvar os outros, e o evangelista comenta: “Acima dele havia um letreiro: ‘Este é o Rei dos Judeus’”, literalmente “o Rei do Judeus é este”. É uma escrita muito irônica, e é a única escrita conhecida de Jesus em sua vida e é um escárnio. Portanto, é uma expressão que indica o máximo desprezo para esse povo que os romanos submetiam; mas eis onde o evangelista nos quer conduzir: “Um dos malfeitores crucificados o insultava...”.  É a terceira vez que há tentação:salva-te a ti mesmo”: é a tentação do diabo, de usar o poder para si mesmo. Mas Jesus não usa a força do seu amor para si mesmo, mas para os outros. 

Lucas 23,40-41: «O outro, porém, o repreendeu: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo sofrermos, pois estamos recebendo o que merecemos, mas este, não fez nada de mal”.»

Então este indivíduo crucificado com Jesus é um criminoso, ele é um delinquente. Aqui, ele reconhece, este bandido, este criminoso crucificado com Jesus, reconhece a realidade de Jesus, aquela realidade que os Atos dos Apóstolos, pelas palavras de Pedro, nos apresentam: “Por toda a parte, ele [Jesus de Nazaré] andou fazendo o bem, e curando a todos os que estavam dominados pelo diabo; pois Deus estava com ele” (At 10,38). 

Lucas 23,42: «E acrescentou: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino”.»

Então este criminoso reconhece que Jesus é inocente, e se volta para Jesus e lhe pede: “Jesus, lembra-te”, este verbo lembrar faz parte da linguagem da oração hebraica. Recordar, lembrar significa pedir a Deus que lance um olhar de bondade, que intervenha em favor de quem ora, portanto é um pedido: “lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino” – ou melhor, segundo uma variante deste versículo – “quando vieres no teu Reino”, isto é, quando vieres como Rei, lembra-te de mim.

Lucas 23,43: «Ele lhe respondeu: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”.»

Pois bem, a resposta de Jesus desloca a todos. Desloca ouvintes, leitores da época e nos desloca também, porque, repito, não é como a história, posteriormente, vai tentar diluir esse episódio falando do “bom ladrão”. Este é um delinquente, um criminoso, que, como ele diz, merecia com razão este terrível castigo. Pois bem, a resposta de Jesus “em verdade” – portanto é uma afirmação solene – “te digo: hoje estarás comigo no paraíso”. Enquanto o bandido havia pedido “lembra-te de mim, quando entrares no teu reino”, então não imediatamente, a resposta de Jesus é imediata, hoje. Então não amanhã, não no tempo, mas hoje, imediatamente, “tu estarás comigo no paraíso. É a única vez que o termo “paraíso” aparece no Evangelho de Lucas. Quando Jesus tem que falar de vida que continua além da morte, ele fala de vida eterna, de vida indestrutível, mas ele nunca usa esse termo “paraíso”. “Paraíso” é um termo persa, que significa simplesmente “jardim”; era o lugar intermediário onde as almas esperavam a ressurreição.

Por que Jesus fala precisamente de paraíso? O evangelista quer contrastar a ação de Jesus com a descrita no livro de Gênesis.

No livro de Gênesis, Deus expulsa do paraíso o homem pecador; com Jesus o primeiro a entrar no paraíso com ele é precisamente o homem pecador.

O que o evangelista quer dizer é o que ele seguiu ao longo de seu evangelho: o amor de Deus não é dirigido às pessoas por seus méritos, mas por suas necessidades.

Que mérito esse bandido tem para entrar no paraíso? Ele não tem mérito, mas tem necessidade, o amor de Deus olha para as necessidades das pessoas. Para Jesus, pela força do seu amor, não existem casos impossíveis que o amor de Deus, o amor de Jesus, não possa vencer. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2021.


 Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Nenhum pecador jamais foi salvo por entregar seu coração a Deus. Não somos salvos por nossa entrega, somos salvos pelo que Deus entregou.”

(Arthur Walkington Pink [1886-1952] – estudioso da Bíblia, evangelista e escritor britânico)

O Evangelho deste domingo nos oferece uma explicação da figura de Jesus mediante um forte contraste entre os seguintes personagens:

* de um lado, os líderes do povo judeu, os soldados romanos e um dos malfeitores (em grego: lestaí = rebelde político) crucificados ao lado de Jesus, que debocham, zombam, ironizam a triste e terrível situação do Filho de Deus agonizante na cruz! Aqui, não há alguma piedade, sensibilidade e empatia para com o sofredor!

* De outro lado, a misericórdia, o amor, o perdão agindo na pessoa de Jesus que, mesmo agonizante, sabe dirigir uma palavra de esperança a um dos criminosos condenados ao seu lado. Aqui, temos a empatia em pessoa! Jesus de Nazaré soube, a vida toda, colocar-se na carne, nas vestes, no lugar das outras pessoas, especialmente dos pecadores e marginalizados pela sociedade israelita da época. 

Por ironia da história, o motivo da condenação de Jesus é de natureza política! Ele foi condenado como tendo cometido o delito de seditio, ou seja, subversão da ordem estabelecida por Roma. Logo, Jesus de Nazaré que jamais promoveu alguma revolta política, nem proferiu juízos contra Roma, contra a ocupação romana, contra a crueldade dos legionários romanos, contra os abusos fiscais ou a repressão militar exercida pelo império romano! Mesmo assim, foi condenado como “rei dos judeus”. 

É preciso ficar bem claro que Jesus nunca buscou esse título de rei! Jamais favoreceu que o povo o tratasse como tal, antes, escapava de situações desse tipo (cf.: Jo 6,15). Mas é verdade que a pregação e prática de Jesus contrariavam os dois pilares sobre os quais se assentavam o direito romano e a ideologia do império:

1º) Defesa absoluta do “direito de propriedade”.

2º) A defesa do “poder dos poderosos” (cf.: José M. Castillo. La religión de Jesús: comentarios al evangelio diario – Ciclo C (2018-2019). Bilbao: Desclée De Brouwer, 2018, p. 435).

O reino que Jesus pregava encontrava-se na contramão da ideologia dessa sociedade desigual e injusta! Assim, como está na contramão da sociedade atual! Como expõe, muito bem, J. M. Castillo (idem):

«O que Jesus queria era afirmar que “outro mundo é possível”. Um mundo não edificado sobre o poder e o capital, mas sobre a ética da honradez, do respeito, da igualdade de direitos e garantias de todos os seres humanos, a bondade acima de tudo e a ajuda a todo o que sofre. Nisso consiste o reinado de Cristo

Portanto, celebrar Cristo, rei no universo, significa aderir, encampar, optar por instaurar o seu reinado neste mundo, aqui e agora!

Esse desafio do Reino de Deus, obviamente, coloca em xeque o comodismo, a insensibilidade, o egoísmo, a apatia e o conformismo de uma parcela de nossa sociedade que vive no conforto, no bem-estar, na segurança e na abundância! Bem como, desinstala cada um de nós! Afinal, como Igreja, como comunidade, como indivíduos o que estamos realizando, concretamente, para que esse “outro mundo” desejado por Jesus Cristo aconteça?


 Oração após a meditação do Santo Evangelho

 «Senhor, parece-me estranho dar-te o nome de rei. Um rei não se aproxima facilmente... E hoje te encontro sentado ao meu lado, na covinha do meu pecado, aqui onde eu nunca teria pensado em encontrar-te. Os reis estão nos palácios, longe da vida dos pobres. Tu, por outro lado, vives tua senhoria vestindo as roupas gastas de nossa pobreza. Que festa, para mim, ver-te aqui onde fui me esconder para não sentir sobre mim os olhares indiscretos do julgamento humano. À beira dos meus fracassos, quem encontrei senão tu? O único que poderia censurar minhas incoerências vem me procurar para sustentar minha angústia e minha humilhação! Quanta ilusão quando pensamos que temos que vir até ti apenas quando alcançamos a perfeição... Tu não gostas de quem eu sou, eu pensaria, mas talvez não seja exatamente assim: não me agrada aquilo que eu sou! Para ti estou bem de qualquer maneira, porque teu amor é algo especial que respeita tudo em mim e faz de cada momento um espaço de encontro e doação. Senhor, ensina-me a não descer da cruz na absurda pretensão de me salvar! Concede-me saber esperar, ao teu lado, o hoje do teu Reino na minha vida. Amém.»

(Fonte: BOSCHI, Maria Teresa della Croce, O.Carm. 34ª Domenica: Gesù Cristo Re dell’Universo. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico C. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 647) 

Assista ao vídeo com a íntegra da homilia acima, clicando sobre esta imagem: 

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – XXXIII Domenica del Tempo Ordinario – Anno C – 17 novembre 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 08/11/2022).

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

33º Domingo do Tempo Comum – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 21,5-19 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Com a nossa perseverança salvaremos a nossa vida

Para compreender a passagem do Evangelho que vamos examinar agora, é necessário recorrer a um episódio ocorrido cerca de sete séculos antes, quando Senaqueribe, o poderoso rei da Assíria em 701 a.C., depois de ter incendiado 46 cidades, também sitiou Jerusalém e a cidade se viu perdida! Para grande surpresa, pela manhã, quando a batalha deveria começar, o acampamento de Senaqueribe estava deserto. O que tinha acontecido? Provavelmente o rei Ezequias havia pagado o seu tributo, mas a tradição pensava que Deus havia intervindo. Então isso levou os judeus a acreditar que, no momento de maior perigo para Jerusalém, haveria uma intervenção divina que a salvaria. Isso também foi celebrado nos Salmos, por exemplo no Salmo 46,6, onde lemos: “Deus está em seu meio”, de Jerusalém, “ela não se abalará”.

Bem, a passagem do evangelho que agora examinamos é o capítulo 21 de Lucas, dos versículos 5 ao 19; o contexto é posterior ao episódio da viúva (Lc 21,1-4), que oferece tudo o que tinha para viver ao templo.

E Deus não tolera uma instituição religiosa, em vez de socorrer os mais pobres, se faz manter pelos mais pobres, sugando realmente o sangue das suas veias. 

Lucas 21,5-6: «Quando alguns comentavam, a respeito do templo, que era enfeitado com belas pedras e ofertas votivas, Jesus disse: “Aquilo que admirais, dias virão em que não ficará disso pedra sobre pedra. Tudo será destruído”.»

O templo era uma das magnificências da época, havia começado a ser construído por Herodes, o Grande, com um esplendor inimaginável. O verbo grego usado significa “admirar”; portanto, os discípulos ainda não romperam com esta instituição, a qual admiram! No entanto, Jesus havia denunciado o templo como um covil de ladrões (Lc 19,46). É o que acontecerá, então, em 70 d.C., com o cerco dos romanos que vão minar toda esta maravilhosa construção. 

Lucas 21,7-8: «Eles, porém, perguntaram: “Mestre, quando será, e qual o sinal quando isso irá acontecer?” Ele respondeu: “Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu!’, e ainda: ‘O tempo está próximo’. Não andeis atrás deles!»

Assim, diante do anúncio da destruição do templo de Jerusalém, os discípulos não só não parecem assustados, mas quase excitados! Exatamente por quê? Porque eles sabiam que no momento de maior perigo Deus interviria em defesa. Mas, para Jesus, Deus não intervém. Qualquer instituição que, em vez de ajudar a pessoa, a demole, a destrói, não está no plano de Deus e, portanto, só merece desaparecer. E Jesus responde, empregando o imperativo: “Cuidado para não serdes enganados!” Haverá um tempo em que muitos alegarão ter mensagens divinas, ser um messias, para fazer o quê? Para restaurar o reino de Israel. O reino de Israel está extinto.

Jesus não veio para reviver o reino de Israel, mas para inaugurar o Reino de Deus. 

Lucas 21,9: «Quando ouvirdes falar de guerras e revoluções, não fiqueis apavorados. É preciso que essas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim”.»

E Jesus, usando a linguagem típica dos profetas ao descrever as grandes convulsões de época, fala: “Quando ouvirdes falar de guerras e revoluções, não fiqueis apavorados”. A mensagem de Jesus não é, de forma alguma, uma mensagem que cause medo; tanto que no versículo 28, que não consta da passagem evangélica deste domingo, o evangelista escreve que Jesus diz: “Quando essas coisas começarem a acontecer, reerguei-vos e levantai a cabeça, porque está próxima a vossa libertação”. Portanto, não é uma mensagem que pretenda aterrorizar, mas é o anúncio de uma libertação, uma libertação que, no entanto, infelizmente não será indolor: “É preciso que essas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim”. 

Lucas 21,10-11: «Jesus lhes dizia: “Há de se levantar nação contra nação e reino contra reino. Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em vários lugares; acontecerão coisas pavorosas, e haverá grandes sinais no céu.»

É a imagem do que vem de repente, o terremoto e toda guerra traz a fome, a peste. Jesus diz: “acontecerão coisas pavorosas, e haverá grandes sinais do céu”, não no céu, “do céu”; todos os fenômenos do céu, dos relâmpagos ao granizo, foram vistos e interpretados como sinais divinos. Pois bem, tudo isso fará parte desse processo de libertação por parte da humanidade.

Todo poder, baseado na dominação, na exploração das pessoas, especialmente em nome de Deus, está destinado a desaparecer. 

Lucas 21,12-19: «Antes disso tudo, porém, vos prenderão e perseguirão, vos entregarão às sinagogas e aos cárceres, e sereis conduzidos à presença de reis e governadores por causa do meu nome. Será a ocasião para dardes testemunho. Determinai não preparar a vossa defesa, porque eu vos darei palavras e sabedoria a que não poderão resistir ou contradizer todos os vossos adversários. Sereis entregues até pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. A alguns de vós matarão. Sereis odiados por todos, por causa de meu nome, mas nem um só fio de cabelo cairá da vossa cabeça. Por vossa perseverança salvareis a vossa vida!”»

Por que a adesão a Jesus por parte dos seus discípulos com a radical subversão de valores é um crime tão grave que consegue atrair o ódio de alguém? Daquelas instituições sagradas que foram a base da sociedade: Deus, pátria e família. Pois bem, Jesus denuncia que estes, que eram considerados valores sagrados, são na realidade valores diabólicos porque são contrários e inimigos do plano do Criador para a humanidade. E, aqui, está Jesus que diz: “vos entregarão às sinagogas”, portanto à religião; “aos cárceres e sereis conduzidos à presença de reis e governadores”, isto é, à nação, à pátria. Mas Jesus chega a dizer: “Sereis entregues até pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. A alguns de vós matarão. Sereis odiados por todos, por causa de meu nome”. O que isso significa? Deus, pátria e família são os três âmbitos onde o poder absoluto é exercido:

* o poder de Deus através da instituição religiosa,

* o poder do rei ou governantes na pátria e

* também na família, onde o homem/macho era o senhor absoluto dos membros, da esposa aos filhos. Pois bem, Jesus veio para denunciar esses valores que não são sagrados, mas são satânicos e os substituiu.

Em vez de Deus falará de Pai, se em nome de Deus se pode tirar a vida de alguém, em nome do Pai só se pode dar a própria; invés de pátria a substituirá pelo Reino de Deus, ou seja, aquele espaço sem fronteiras, sem muros, sem limites, onde todos podem ser acolhidos. E mesmo a família será substituída por Jesus por uma comunidade de ideais, não mais ligada pelo valor do sangue, mas pelo próprio ideal do amor. Portanto, ao poder, Jesus substitui os três valores sagrados que são distintos pelo amor generoso que se coloca ao serviço dos outros

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2021.

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Quando o poder do amor superar o amor pelo poder, o mundo conhecerá a paz.”

(Jimi Hendrix [1942-1970] – guitarrista, cantor e compositor norte-americano)

Uma coisa é certa: Jesus sempre foi um crítico do sistema religioso israelita fundamentado, sobretudo, no templo de Jerusalém, para onde acorriam os fiéis, ao menos uma vez por ano, a fim de fazer realizar os seus sacrifícios, penitenciar-se e ficarem “de bem” com Deus. Por que Jesus era crítico desse tipo de religião? Muito simples, porque toda a religiosidade israelita era centrada no bom relacionamento com o templo, fundamentado em rituais e tradições. Enquanto, Jesus veio inaugurar um novo modo de relacionar-se com Deus, o seu Pai, precisamente, a boa relação com os demais seres humanos: “todas as vezes que fizestes isso [matar a fome, saciar a sede, acolher o forasteiro, vestir o maltrapilho, cuidar dos doentes e visitar os prisioneiros] a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (Mt 25,40). 

O que é fundamental para Jesus não é se as pessoas são fiéis aos ritos, às tradições religiosas, à visita ao templo e aos seus sacrifícios! O tratamento, o cuidado, o amor e atenção que dispensamos uns aos outros, fazendo-nos próximos àqueles que necessitam é o que mais conta para Jesus! Por isso, as autoridades que dirigiam o templo e dele se aproveitavam não podiam tolerar essa atitude de Jesus. No julgamento religioso que ele sofreu no Sinédrio, a acusação mais grave era sobre a sua pretensa intenção de destruir o templo (Mc 14,58). Na realidade, o que Jesus anunciou não foi a destruição da religião, simbolizada pelo templo de Jerusalém, mas a transformação dela! 

Essa passagem do Evangelho é, para nós, motivo de esperança! Sim, Jesus não deseja assustar e amedrontar os seus seguidores de ontem e de hoje! As crises que o mundo enfrenta são ocasiões especiais para o testemunho dos cristãos (cf.: Lc 21,13). No entanto, Jesus é realista! Ele constata que os cristãos sofrerão perseguições, calúnias, julgamentos, prisões e, até mesmo, morte (cf.: Lc 21,12.16-17). Porém, tudo isso faz parte de um processo de libertação! Libertação dos poderes deste mundo que não comungam com o Reino de Deus! 

A sociedade atual é pródiga em:

* concentrar as riquezas em pouquíssimas mãos;

* privilegiar e premiar mais o dinheiro especulativo aplicado em bolsas de valores, títulos bancários, papéis, criptomoedas etc., do que o capital produtivo, aplicado na geração de empregos e conhecimento;

* contribuir para produzir um exército de desocupados, fomentando um desemprego crônico, que frustra a vida de milhões de pessoas;

* produzir uma massa imensa de seres humanos famintos, miseráveis e sem o mínimo de dignidade;

* destruir a natureza a fim de manter uma produção, cada vez mais, intensa e supérflua;

* gerar a emergência climática que vivemos, ameaçando a sobrevivência de bilhões de seres humanos e espécies animais e vegetais por todo o planeta;

* provocar guerras, conflitos e violência que obriga milhões de famílias a se deslocarem e deixarem suas terras, casas e, até mesmo, países;

* alienar as pessoas, estimulando o consumo de álcool, drogas, jogos eletrônicos, fumo e tudo aquilo que vicia e serve para distrair a mente daquelas pessoas deprimidas pela vida que levam;

* a lista é longa e poderia prosseguir, mas isso já basta!

Diante dessa realidade, interroguemo-nos sobre as nossas atitudes:

a) “Assumimos posições responsáveis, despertando em nós um sentido básico de solidariedade, ou estamos vivendo de costas a tudo aquilo que possa disturbar a nossa tranquilidade?

b) O que fazemos a partir de nossos grupos e comunidades cristãs?

c) Estabelecemos uma linha de ação generosa ou vivemos celebrando nossa fé à margem do que está acontecendo?” (José Antonio Pagola)

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Bom Deus, cujo reino é todo amor e paz, cria em nossa alma aquele silêncio que é necessário para que tu te comuniques a ela. Agir com calma, desejo sem paixão, zelo sem agitação: tudo isso só pode vir de ti, sabedoria eterna, atividade infinita, repouso inalterável, princípio e modelo de verdadeira paz. Tu nos prometeste esta paz pela boca dos profetas, tu a fizeste vir por meio de Jesus Cristo, tu nos deste a garantia com o derramamento do teu Espírito. Não permitas que a inveja do inimigo, a perturbação das paixões, os escrúpulos da consciência nos façam perder este dom celeste, que é o penhor do teu amor, o objeto das tuas promessas, a recompensa do sangue do teu Filho. Amém.»

(Fonte: Santa Teresa de Jesus, Vida 38,9-10) 

Assista ao vídeo com a íntegra da homilia acima, clicando sobre esta imagem: 


Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – XXXIII Domenica del Tempo Ordinario – Anno C – 17 novembre 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 08/11/2022).