«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Que mundo é esse ? ? ?

Presos na sagrada “modernidade”

Gianfranco Ravasi
Il Sole 24 Ore
28-10-2018
Cardeal italiano, biblista e teólogo renomado, atual prefeito do
Pontifício Conselho para a Cultura – Vaticano

Não se deve fugir do presente, mesmo em tão más condições do ponto de vista ético, mas sim tentar fazer com que bata de novo aquele coração-consciência entorpecido; é preciso redimir o passado para que seja uma recarga para o presente e uma propulsão para o futuro
GIANFRANCO RAVASI

Poucos atentam para a origem da palavra “moderno”: ela deriva do advérbio latino de modo, que significa “ora, agora, pouco tempo atrás”, e, portanto, evoca o imediatismo, a evolução, a motilidade própria do tempo que flui.

Ironicamente, Gadda, em Cognizione del dolore [Cognição da dor], escrevia que, “se uma ideia é mais moderna do que a outra, é sinal de que nem uma nem outra são imortais”.

Na verdade, a classificação da era “moderna” nos manuais históricos, como se sabe, tem uma acepção bem diferente, porque, geralmente, abrange um arco de tempo que vai da descoberta da América (1492) à Revolução Francesa (1789), além do qual se alarga a era “contemporânea”.

Na realidade, a acepção genérica de “moderno” adquiriu a conotação de novidade em relação ao passado: basta pensar, em âmbito teológico, no “modernismo” ou no “modern style”, que, em âmbito artístico, foi uma variante da “art nouveau”.

Já foi dada uma sacudida em 1917 pelo escritor Rudolf Pannwitz, quando introduziu a categoria da “pós-modernidade”, que fez a fortuna dos ensaios de Jean-François Lyotard (“A condição pós-moderna”, de 1979, e “Moralidades pós-modernas”, de 1993).

No entanto, o conceito básico de “moderno” como sinônimo de presente é dominante ainda hoje, como em um texto escrito a quatro mãos pelo renomadíssimo fundador do Censis, Giuseppe De Rita, e por outro estudioso, Antonio Galdo, autor de ensaios interessantes justamente sobre a modernidade contemporânea com o seu: L' eclissi della borghesia [Laterza, 2011 – trad.: A eclipse da burguesia], Prigionieri del presente. Come uscire dalla trappola della modernità [Einaudi, 2018 – trad.: Prisioneiros do presente. Como sair da armadilha da modernidade].

O título assim como o subtítulo da obra, que falam de uma prisão e de uma armadilha, permitem compreender a abordagem crítica da análise deles.

Eu a apresento apenas alusivamente nesta página deste suplemento dominical, por sua natureza reservado à religião, porque os quatro capítulos que formam a espinha dorsal do livro (aliás, muito agradável na sua clareza, sinceridade e concretude, distante da bruma ornada de verificações socioculturais análogas) abrangem quatro temas sobre os quais eu mesmo me pronunciei ininterruptamente:
* tempo “líquido”,
* cultura digital,
* economia,
* política.
E o apresento apesar de não ser um sociólogo, embora admita que meus interesses são ecléticos e móveis.

Isso ocorre porque os olhares que os dois autores dirigem ao panorama da “modernidade” têm um relevo capital também na experiência ético-religiosa. Exemplifico através de uma lista, nas entrelinhas dos quatro pontos cardeais indicados acima.

Comecemos com a já abusada mas efetiva detecção da “liquidez” do tempo atual, com todos os seus corolários de linguagem degradada, de esquecimento histórico-cultural, de esfarelamento das identidades de valor.

Continuemos ao longo das redes virtuais que envolvem aquela que, sem hesitação, é definida como “infoesfera”, onde não só a linguagem, mas também a ética se degradam nos murais informáticos que não conhecem vergonha e dignidade.

Sem falar, depois, na ilusória liberdade de navegação em rede que é mapeada pela indústria do “big data” [que “sugerem” temas, pessoas e páginas que se identificam com o usuário daquela rede social], como ensinam os recentes casos do mercado de dados sensíveis por grandes corporações, as “big five” estadunidenses, ou aquelas relacionadas com os condicionamentos eleitorais.

[Paul] Ricoeur não hesitava em nos lembrar que “vivemos em uma época em que a atrofia dos fins corresponde a uma bulimia dos meios”. Como não pensar no império da tecnocracia sobre a ciência e no predomínio das finanças sobre a economia, pelo qual capital e trabalho desmoronam?

E, por fim, De Rita e Galdo nos introduzem na desconcertante fluidez da política, verdadeiramente reduzida a “um evento de futebol”, em que a torcida mais sinistra apaga qualquer projeto racional e as bandeiras tremulantes no ar da atualidade são não tanto os “desejos” e os projetos pessoais e sociais altos, mas sim as “necessidades” primárias de segurança e bem-estar.

Pois bem, todas essas mudanças de paradigma – como se costuma classificá-las – têm forte envolvimento no âmbito religioso, entendido no sentido genuíno do termo e não apenas como mera ilha sagrada onde se elevam volutas de incenso, velas brilham e cantam-se hinos.

Justamente por isso, o Papa Francisco não tem medo de avançar com as suas encíclicas, os seus discursos e os seus atos no horizonte “moderno”, sem temor de sujar a batina cândida no pó de um presente do qual não se pode escapar, ao contrário do que desejam os dois autores do livro, mas ao qual, certamente, não devemos nos uniformizar, adequar ou resignar.

A antropologia proposta pelas coordenadas socioculturais da “modernidade”, de fato, é problemática, sobretudo em nível ético. É imperante não tanto a imoralidade, aliás, bem atestada, mas sim a amoralidade, aquela indiferença que se estende também ao âmbito religioso, em que:
* o ateísmo militante e coerente e a fé rigorosa e praticada foram substituídos pelo “apatismo” e,
* o fundamentalismo ou o vago sincretismo pela Nova Era.

Neste ponto, que valor tem falar de PECADO e, em um espectro mais amplo, que significado têm categorias fundamentais como NATUREZA HUMANA, CORPO, SAGRADO & PROFANO, FUTURO?

Essas perguntas são respondidas, de forma bastante original, por Vittorio Robiati Bendaud, um autor de matriz judaico-italiana líbia, aluno do falecido rabino de Milão  Giuseppe Laras. Digo “original” porque a sua abordagem não segue os parâmetros teóricos tradicionais, mas é uma série de percursos que usam uma instrumentação muito variada e às vezes até inesperada.

Ele recorre principalmente ao pensamento bíblico e judaico que constitui como que uma espécie de estrela guia dele, capaz de dar “sentido” àqueles conceitos enunciados acima, que agora estão afligidos por “pecados de sentido”, como diz o curioso título do livro.

Mas se esse guia interpretativo particular de “palavras já desgastadas e de reflexões abusadas no senso comum” é quase o baixo contínuo dos vários pequenos capítulos, o autor não hesita em avançar também em alguns campos da literatura e da ensaística contemporânea, sobretudo judaica, de Heschel a Buber, de Alain Corbin a Soloveitchik, de Gershom Scholem a Katzenelson e ao amado Laras, sem excluir, porém, por exemplo, o Cognetti das “Oito montanhas”, o Brontë de “Jane Eyre” e, particularmente, Daniel Varujan e Antonia Arslan, quando aborda o tema sensível do genocídio que também pertence ao povo armênio.

A trama, no entanto, é confiada principalmente às reflexões que, como se dizia, alimentam-se na fonte e no mesmo estilo epistemológico da tradição judaica. O apelo final, então, é o típico da própria religião bíblica, que é, por sua natureza, histórica e, portanto, encarnada. Não se deve fugir do presente, mesmo em tão más condições do ponto de vista ético, mas sim tentar fazer com que bata de novo aquele coração-consciência entorpecido; é preciso redimir o passado para que seja uma recarga para o presente e uma propulsão para o futuro.

Estamos, portanto, no espírito dialógico judaico-cristão: para muitos, a abundante colheita de ideias bíblico-judaica será uma surpresa justamente pela sua carga capaz de superar aquela resignada narrativa do presente que, de modo fulgurante e paralelo, foi proposta por duas figuras capitais do século XX. Por um lado, o agnóstico [Albert] Camus em “A queda” (1956): “Uma única frase bastará para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais”. Por outro lado, o crente [T. S.] Eliot em Fragment of an Agon (1922): “Nascimento, e cópula, e morte, / isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo... / No fim das contas, isso é tudo”.

Livros mencionados:

1. Giuseppe De Rita; Antonio Galdo. Prigionieri del presente. Torino: Einaudi, 98 páginas.
2. Vittorio Robiati Bendaud. Peccati di senso. Cinisello Balsamo (Milano): San Paolo, 125 páginas.

Traduzido do espanhol por Moisés Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 31 de outubro de 2018 – Internet: clique aqui.

Faltou uma carta aos adultos!

Cansados, irritados, decepcionados por serem chamados de “jovens”

Armando Matteo
Settimana News
29-10-2018
Padre italiano e teólogo, professor de teologia fundamental da
Pontifícia Universidade Urbaniana, em Roma

Não são os jovens que precisam de nós, adultos;
somos nós que precisamos deles.
É a sociedade, é a Igreja que precisa deles!

Eu tive um sonho. Era o dia 28 de outubro de 2018. Ao término da solene celebração eucarística presidida pelo Papa Francisco, para a conclusão do Sínodo sobre os jovens, um cardeal se levanta e lê uma mensagem. Ei-la.

Carta dos Padres sinodais aos adultos

A vocês, adultos do mundo, dirigimo-nos nós, Padres sinodais. Nos últimos dias, convocados aqui em Roma, sob a amável orientação de Francisco, recolhemos o grito dos jovens: o grito dos filhos e filhas de vocês. É um grito de justiça dirigido a todos nós, adultos, e a todos nós, já velhos. E o grito dos jovens é este.

É o grito de quem pede que não lhe seja tirada a possibilidade de fazer a sua parte nesta história.

É o grito de quem está cansado de ser chamado de “jovem”, apenas para receber a amarga indicação pela qual haverá um tempo – só Deus sabe quando – em que poderá finalmente receber este mundo das nossas mãos adultas.

É o grito de quem está irritado por ser chamado de “jovem” apenas para ficar sabendo que a sua tarefa seria a de “não perturbar” a nós, adultos, enquanto destruímos com incrível precisão e cinismo esta sociedade, este belíssimo planeta, a nossa mãe Igreja.

É o grito de quem, além de qualquer medida, está decepcionado por ser chamado de “jovem”, apenas para a recordação daquela amena banalidade de que lhe faltaria aquela experiência do mundo que nós, adultos, teríamos em abundância. Talvez nos esquecemos de que ninguém nasce no mundo já sabendo?

Mas os jovens nascem no mundo com tudo o que devem ter para renovar, revigorar, reumanizar este mundo. Sua potência de ser é algo único em termos de força e de capacidade de visão.

Francisco nos lembrou que as características do ser dos jovens são as mesmas características de Deus. E é exatamente assim.

Mas, se é exatamente assim, então não percamos tempo.

Porque é hora de que nós, adultos, passemos a bola. Os jovens estão prontos.

Foi isso que nós entendemos nestes dias. E também entendemos que não são os jovens que precisam de nós, adultos; somos nós que precisamos deles. É a sociedade, é a Igreja que precisa deles.

Não subtraiamos dos jovens, por ainda mais tempo, a oportunidade de dar uma nova vida e uma vida nova a esta nossa sociedade e a esta nossa Igreja, demasiadamente “desfiguradas” por nós, adultos.

Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Para acessar a versão original deste artigo, clique aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 31 de outubro de 2018 – Internet: clique aqui.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Sínodo sobre os Jovens: um balanço

“Com os jovens rumo a uma sinodalidade missionária. Síntese de uma experiência eclesial”

Juan Bytton
Religión Digital
28-10-2018
Padre jesuíta, capelão da Pontifícia Universidade Católica do Peru,
participou do Sínodo dos Bispos sobre os Jovens, nomeado pelo Papa Francisco
como auditor no atual Sínodo dos Bispos, cujo tema foi a juventude

Fica claro que os jovens são também aqueles que fazem uma Igreja participativa e corresponsável. Tornar realidade esta metodologia nas Igrejas locais dependerá de quanto integramos os jovens no próprio processo
PAPA FRANCISCO
Sua presença foi essencial no decorrer dos trabalhos sinodais

Chega o final de um mês de trabalho sinodal. Um mês intenso, na forma e na profundidade. E esta é uma primeiríssima reflexão do que foi vivido. Já o Instrumentum Laboris expressava muito bem qual era o objetivo do Sínodo: “como o Senhor Jesus caminhou com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13-35), também a Igreja está convidada a acompanhar todos os jovens, sem excluir ninguém, para a alegria do amor” (n. 1).

O tema que nos chamou era os jovens, e foi se descobrindo dia a dia, com a ajuda do Espírito, que:
* os jovens não são um tema, mas uma realidade;
* que não são um objeto, mas sujeito de uma vida eclesial ativa;
* que não são o futuro, mas o presente da experiência cristã.
Os jovens em aula [sala onde se realizavam os debates] e todo o trabalho pré-sinodal permitiram que a Assembleia trabalhasse com abertura e “parresia” [= sinceridade, franqueza].

O ícone bíblico que foi escolhido para embasar o documento final foi a passagem dos discípulos de Emaús:
* Caminhar com...,
* abrir os olhos...,
* eles voltaram sem demora.
Esses três momentos da relação entre Jesus e os discípulos foram os três momentos do Sínodo, do documento final e, sem dúvida, dos passos a seguir. Podemos dizer que o documento foi o próprio Sínodo, que procurou espelhar o que foi refletido à luz da realidade do mundo – e nela os jovens – e da fé em Jesus Cristo.

A experiência sinodal ajudou a sentir o espírito e a descobrir o que Deus nos pede hoje a partir da vida dos jovens. Foram e são os jovens que despertam a Igreja e lhe pedem modos renovados de ser e fazer. É por isso que a sinodalidade missionária começou a ocupar um espaço muito especial. Assim, fica claro que os jovens são também aqueles que fazem uma Igreja participativa e corresponsável. Tornar realidade esta metodologia nas Igrejas locais dependerá de quanto integramos os jovens no próprio processo.

A metodologia tem sido a do DISCERNIMENTO, que nos deixou surpreender pela novidade que cada um e cada uma trazia. A novidade que ia acontecendo com os trabalhos cotidianos na aula: a convivência diária, o trabalho em grupos, os intervalos, a vivência em cada local de alojamento. “Assim como todo crente, também a Igreja está sempre em discernimento”, nos diz o documento final.

Os temas discutidos e que aparecem no documento são os temas que tocam o coração dos jovens de hoje:
* o ambiente digital com suas vantagens e seus riscos,
* os migrantes,
* os pobres,
* o corpo,
* a sexualidade,
* a iniciação cristã,
* a política,
* a vida da Igreja local,
* a educação e
* o chamado à santidade, eixo central das conclusões.

A “arte do discernimento” nos ajudou e nos ajudará a responder fielmente ao “evangelho da liberdade” e seu viver na Igreja ao longo dos séculos. Neste processo ocupa um lugar central o compromisso fundamental com os pobres, pois, como observava um dos padres sinodais [= nome dado aos bispos que participam do Sínodo], não se trata de integrar os pobres na vida da Igreja, mas que a própria Igreja se integre na vida dos pobres.
Participação de jovens do mundo todo no Sínodo

Da mesma maneira, levanta-se a voz diante da urgência dos migrantes, muitos deles jovens, que faz com que os quatro verbos dirigidos pelo Papa Francisco como um apelo ao mundo inteiro, sejam agora verbos sinodais:
* ACOLHER,
* PROTEGER,
* PROMOVER e
* INTEGRAR.
O valor teológico e pastoral da escuta torna os jovens “um lugar teológico”.

Por outro lado, a presença do Papa foi crucial. Ele faltou a pouquíssimas sessões devido a compromissos já assumidos. O seu encontro diário e próximo com todos os participantes fez com que o próprio Sínodo tivesse aquele ar de fraternidade e sinceridade. Neste momento em que a Igreja está passando por não pequenas dificuldades, a trágica questão dos abusos sexuais não foi deixada de lado. A Igreja está comprometida com:
* uma reforma na formação dos seminários e
* com um crescimento saudável da integração da sexualidade e da vocação.

A fragilidade abre a possibilidade à conversão, e é isso que exige caminhar ao lado de Jesus. O Ressuscitado quer caminhar com os jovens, compartilhando sua vida inteira, como fez com os discípulos de Emaús. Demos mais um passo em direção ao dinamismo que uma Igreja em saída nos pede. É um novo Pentecostes porque reconhecemos a ação renovadora do Espírito. Falamos de uma fé feita diaconia [= serviço], porque somente o serviço tornará as palavras dignas de crédito.

O que, concretamente, resta a ser feito?

Na minha opinião, levar o Sínodo às Igrejas locais [= dioceses] de três modos diferentes:
1. Compartilhar o que foi vivido e fazer o documento final ser conhecido;
2. Convocar sínodos diocesanos com os jovens;
3. Retomar o caminho de uma Igreja sinodal [= participativa, que escuta, que integra].

Concluindo, falamos de um tema: ser e fazer Igreja com os jovens; de uma forma: a sinodalidade; e de um método: o discernimento.

Os jovens ajudaram a Igreja a avançar rumo a uma sinodalidade missionária renovada. Todos os membros da Igreja são necessários (1Cor 12). É o caminho da unidade através da diversidade, um mosaico de vidas que mostra a beleza de ser Igreja universal, que é e deve ser sempre a beleza do Evangelho, capaz de superar todos os obstáculos que impedem o ser humano de estar à altura de sua dignidade de filho e filha de Deus.

A íntegra do documento final, em italiano, pode ser lida
clicando aqui

Veja a seguir a carta do Sínodo aos Jovens:


 Traduzido do espanhol por André Langer. Para acessar a versão original deste artigo, clique aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 29 de outubro de 2018 – Internet: clique aqui.

Ao encerrar o Sínodo, o Papa Francisco destaca
“os três passos fundamentais para
o caminho da fé”

Gerard O’Connell
America
28-10-2018

Escutar, fazer-se próximo e testemunhar
PAPA FRANCISCO
Entra em procissão na Basílica de São Pedro para a Missa de Encerramento da
XV Assembleia Sinodal - 28 de outubro de 2018

Há “três passos fundamentais no caminho da fé: escutar, fazer-se próximo e testemunhar”, disse o Papa Francisco em sua homilia na missa de encerramento do Sínodo sobre os jovens na Basílica de São Pedro, nesse domingo, 28 de outubro.

Ele fez a sua desafiadora homilia sobre “o caminho da fé” ao concelebrar a missa com os 260 Padres sinodais de mais de 130 países. Também participaram da missa os 36 jovens de todos os continentes que participaram ativamente desse evento histórico e que entraram em procissão na basílica na frente dos padres, bispos, cardeais e do papa. Durante a missa, os jovens leram as duas primeiras leituras das Escrituras em inglês e em italiano, e depois leram as preces em hindi, espanhol, polonês, português e chinês.

Comentando a história do Evangelho de São Marcos sobre o cego e mendigo Bartimeu, que gritou a Jesus enquanto caminhava na estrada de Jericó a Jerusalém, o papa lembrou que, depois que Jesus parou, escutou o que ele tinha a dizer e lhe devolveu a visão, o homem tornou-se discípulo e caminhou com ele e os outros discípulos até a cidade santa.

Nós também caminhamos juntos, ‘fizemos sínodo’”, disse ele, antes de oferecer um mapa para as suas vidas futuras.
PAPA FRANCISCO
Procissão de entrada da Missa de Encerramento da
XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos

Primeiro passo: ESCUTAR

Apontando para como Jesus arrumou tempo para parar e ouvir o cego, Francisco disse que “o primeiro passo para ajudar o caminho da fé” é “escutar. “É o apostolado do ouvido: escutar, antes de falar”.

Ele lembrou que muitos daqueles que estavam com Jesus “repreenderam Bartimeu para que se calasse”, consideraram esse “necessitado” como um mero “incômodo no caminho, um imprevisto no programa pré-estabelecido. Preferiram os seus tempos aos do Mestre, as suas palavras à escuta dos outros: seguiam Jesus, mas tinham em mente os seus próprios projetos”.

Francisco advertiu os seguidores de Jesus de hoje que esse “é um risco para se proteger sempre” e lembrou-lhes que “para Jesus o grito de quem pede ajuda não é um incômodo que atrapalha o caminho, mas uma demanda vital”. Ele lembrou que Deus sempre nos ouve:Deus nunca se cansa; sempre se alegra quando o procuramos”.

Então, olhando para os jovens sentados à sua frente, Francisco lhes pediu: “Em nome de todos nós, adultos: desculpem-nos se, muitas vezes, não os escutamos, se, em vez de lhes abrir o coração, enchemos os seus ouvidos”.

E lhes assegurou: “Como Igreja de Jesus, desejamos nos colocar à sua escuta com amor, certos de duas coisas: que a vida de vocês é preciosa para Deus, porque Deus é jovem e ama os jovens; e que a vida de vocês é preciosa também para nós ou, melhor, necessária para seguir em frente”.

Segundo passo: FAZER-SE PRÓXIMO

Ele, então, explicou que “um segundo passo para acompanhar o caminho da fé é fazer-se próximo. Ele lembrou que, no relato do Evangelho, Jesus vai “pessoalmente” encontrar o mendigo cego, “não delega alguém” para fazer isso. “É assim que Deus faz, envolvendo-se em primeira pessoa com um amor de predileção por cada um. No seu modo de fazer, ele já passa a sua mensagem”, disse Francisco.

Francisco alertou que, “quando a fé se concentra puramente em formulações doutrinais, corre o risco de falar só à cabeça sem tocar o coração. E, quando se concentra apenas em fazer, corre o risco de se tornar moralismo e de se reduzir ao social”.

O papa jesuíta explicou que “a fé, por sua vez, é vida: é viver o amor de Deus que mudou a nossa existência”. Ele disse aos bispos e aos jovens: “Não podemos ser doutrinalistas ou ativistas. Somos chamados a levar adiante a obra de Deus à maneira de Deus, na proximidade: agarrados a Ele, em comunhão entre nós, próximos dos irmãos”. Ele enfatizou que a proximidade é “o segredo para transmitir o coração da fé”.

Além disso, afirmou, “fazer-se próximo é levar a novidade de Deus à vida do irmão, é o antídoto contra a tentação das receitas prontas”. Fazer-se próximo significa rejeitar “a tentação de se lavar as mãos”, disse; significa “imitar Jesus e, como ele, sujar as mãos”. Francisco lembrou: “Jesus se fez meu próximo: tudo começa a partir dali. E, quando, por amor a ele, também nós nos fazemos próximos, nos tornamos portadores de vida nova” e “testemunhas do amor que salva”.

Terceiro passo: TESTEMUNHAR

O Papa Francisco falou em seguida sobre o terceiro passo no caminho da fé: testemunhar. Retomando o relato do Evangelho, ele relembrou que Jesus enviou seus discípulos ao cego e mendigo “não com uma moedinha tranquilizadora ou para dispensar conselhos”, mas apenas para lhe dizer: “Coragem! Levanta-te. Ele te chama”. Jesus “cura o espírito e o corpo”, disse o papa. “Só Jesus chama, mudando a vida de quem O segue, pondo novamente de pé quem está no chão, levando a luz de Deus para as trevas da vida”.

O Papa Francisco lembrou aos bispos e jovens que, no mundo de hoje “tantos filhos, tantos jovens, como Bartimeu, buscam uma luz na vida. Buscam o amor verdadeiro. E, assim como Bartimeu, apesar da grande multidão, invoca apenas Jesus, assim também eles invocam vida, mas muitas vezes encontram apenas promessas falsas e poucos que realmente se interessam por eles”.

Ele disse a eles e à toda a comunidade de fiéis que “não é cristão esperar que os irmãos em busca batam nas nossas portas; devemos ir ao encontro deles, não levando a nós mesmos, mas sim a Jesus. Ele nos manda, como aqueles discípulos, a encorajar e a reerguer no seu nome. Ele nos manda para dizer a cada um: ‘Deus te pede que te deixes amar por ele’”.

O Papa Francisco observou: “Quantas vezes, em vez dessa libertadora mensagem de salvação, levamos a nós mesmos, as nossas próprias ‘receitas’, os nossos ‘rótulos’ na Igreja! Quantas vezes, em vez de assumir as palavras do Senhor, vendemos as nossas ideias como palavra d’Ele!”.

Ele acrescentou: “Quantas vezes as pessoas sentem mais o peso das nossas instituições do que a presença amiga de Jesus! Então, passamos por ONG, por uma organização paraestatal, não pela comunidade dos salvos que vivem a alegria do Senhor”.

Ele concluiu a sua homilia lembrando que o “caminho da fé” expressado nesses três passos fundamentais no Evangelho desse domingo termina de uma forma bela e surpreendente, quando Jesus diz: “Vai, tua fé te curou”.

Francisco chamou a atenção para o fato de que “Bartimeu não fez profissões de fé, não fez obra alguma; apenas pediu piedade”, e disse: “Sentir-se necessitado de salvação é o início da fé. É o caminho direto para encontrar Jesus”.

Ele explicou que “a fé que salvou Bartimeu não estava nas suas ideias claras sobre Deus, mas em buscá-lo, em querer encontrá-lo”. Francisco enfatizou que “a fé é questão de encontro, não de teoria. No encontro, Jesus passa; no encontro, palpita o coração da Igreja. Então, não as nossas pregações, mas o testemunho da nossa vida será eficaz”.

Ele concluiu agradecendo a todos que participaram do Sínodo pelo seu “testemunho” e por terem “trabalhado em comunhão e com franqueza, com o desejo de servir a Deus e ao seu povo”. Ele rezou para que o Senhor “abençoe os nossos passos, para que possamos escutar os jovens, fazermo-nos próximos e testemunhar-lhes a alegria da nossa vida: Jesus”.

No fim da missa, o secretário geral do Sínodo, cardeal Lorenzo Baldisseri, leu “Uma carta dos Padres sinodais aos jovens”.

Para ler esta carta, clique aqui

Mais tarde, no Ângelus, o Papa Francisco, depois de recordar que hoje é o 60º aniversário da eleição do Papa João XXIII, falou novamente sobre o Sínodo dos jovens.

Ele o descreveu como “uma boa colheita da uva”, que já está fermentando e “promete um bom vinho”. Depois, enfatizou que o “primeiro fruto” desse Sínodo deveria estar não no documento final, mas “no exemplo de um método que se tentou seguir, desde a fase preparatória”. Ele explicou que esse “estilo sinodal” não tem como objetivo principal a redação de um documento, que, mesmo assim, “é precioso e útil”. Ao contrário, disse, “mais do que o documento [final], é importante que se difunda”, em toda a Igreja, “um modo de ser e de trabalhar juntos, jovens e idosos, na escuta e no discernimento, para chegar a escolhas pastorais que respondem à realidade”.

O Papa Francisco deixou claro que deseja que o método de escutar, discernir e chegar a conclusões, que foi usado no Sínodo sobre os jovens, se estenda e se torne operativo em toda a Igreja Católica, construindo assim “uma Igreja sinodal”.

Traduzido do inglês por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão original deste artigo, clicando aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 29 de outubro de 2018 – Internet: clique aqui.

sábado, 27 de outubro de 2018

30º Domingo do Tempo Comum – Ano B – Homilia

Evangelho: Marcos 10,46-52

Naquele tempo:
46 Jesus saiu de Jericó, junto com seus discípulos e uma grande multidão. O filho de Timeu, Bartimeu, cego e mendigo, estava sentado à beira do caminho.
47 Quando ouviu dizer que Jesus, o Nazareno, estava passando, começou a gritar: «Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!»
48 Muitos o repreendiam para que se calasse. Mas ele gritava mais ainda: «Filho de Davi, tem piedade de mim!»
49 Então Jesus parou e disse: «Chamai-o». Eles o chamaram e disseram: «Coragem, levanta-te, Jesus te chama!»
50 O cego jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus.
51 Então Jesus lhe perguntou: «O que queres que eu te faça?» O cego respondeu: «Mestre, que eu veja!»
52 Jesus disse: «Vai, a tua fé te curou». No mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho.

JOSÉ MARÍA CASTILLO*

Este relato está redigido de modo que nele se destacam três coisas:
1) a situação de Bartimeu: era cego e mendigo.
2) A fé firme e insistente que teve este homem.
3) Quando a fé é assim tão forte, aquele que a tem – no caso de um cego – começa a ver a realidade tal como é.

Quando nos evangelhos se fala de cegos que começam a ver, o que menos importa é se produziu-se ou não um «milagre». O que importa de verdade é o «significado» que tem para nós o relato. E o significado consiste em que, com demasiada frequência não vemos a realidade, mas nossas interpretações ou representações da realidade. A fé, quando é autêntica, faz-nos ver a realidade da vida e da sociedade em que vivemos.

Porém, a força deste relato compreende-se se levarmos em conta:
1) que a cegueira era considerada, naquela época, como um castigo de Deus (Ex 4,11; Jo 9,2; At 13,11).
2) Que os cegos se viam obrigados, frequentemente, a mendigar (Mc 10,46; Jo 9,1).
3) Que a cura de um cego era vista como um fato portentoso (Jo 9,16).
4) Que a cegueira simbolizava as trevas do espírito e a dureza de coração (Is 6,9s; Mt 15,14; 23,16-26; Jo 9,41; 12,40).

É evidente que Jesus devolveu a este homem a visão, liberou-o de sua condição de mendigo e restituiu-lhe a dignidade que as crenças religiosas e a sociedade lhe haviam arrebatado. A religião atribui a castigos divinos o que são desgraças humanas. E a sociedade marginaliza e despreza ao que não é reconhecido e estimado, seja pela sua mísera posição econômica, pela sua indignidade ética ou por sua má imagem como crente.

Jesus rompe com tudo isso. Para Jesus, o decisivo é a integridade da vida, a felicidade das pessoas e a dignidade dos que a «boa» sociedade e a religião mais «ortodoxa» consideram indignos.

* JOSÉ MARÍA CASTILHO SÁNCHEZ nasceu em Puebla de Don Fadrique , província de Granada, Espanha, em 16 de agosto de 1929. É um padre católico e membro da Companhia de Jesus (Jesuítas) até 2007, escritor e teólogo com produção extensiva. Boa parte de sua biografia é narrada pelo próprio Castillo no capítulo "Meu itinerário teológico", em Juan Bosch Navarro (ed.), Panorama de la teología española (Estella, Ediciones Verbo Divino, 1999, pp. 181-198). Ingressou no noviciado da Companhia de Jesus em 1946, quando tinha dezessete anos de idade, mas ficou doente e os médicos o aconselharam a sair. Em 1947, ele entrou no seminário de Guadix. Foi ordenado sacerdote em dezembro de 1954 pelo bispo de Guadix Rafael Álvarez Lara. Depois de exercer o ministério de pároco em uma cidade de Granada, concluiu sua licenciatura (= mestrado) na Faculdade de Teologia de Granada (1955) e entrou novamente na Companhia de Jesus (1956). Em 1962, alguns dias antes da abertura do Concílio Vaticano II, ele foi para Roma para um doutorado em Teologia na Universidade Gregoriana , onde ele defendeu sua tese de doutorado sobre La afectividad en los Ejercicios según Francisco Suárez, em 1964. Foi professor de Teologia Dogmática na Faculdade de Teologia de Granada (Espanha) de 1968 até 1988. A partir deste momento, Castillo foi chamado para ensinar seus cursos anualmente na Universidad Centroamericana "José Simeon Cañas" de El Salvador, onde foi um dos professores que substituíram os jesuítas assassinados em 1989. Ele também foi professor visitante na Universidade Gregoriana de Roma, na Universidade Pontifícia Comillas em Madri e em várias instituições teológicas latino-americanas, especialmente no Equador, Argentina, Paraguai e América Central. Ele foi vice-presidente da Associação de Teólogos João XXIII. Dentre sua vasta produção bibliográfica, temos publicado no Brasil, os seguintes livros: Sete palavras: pobres, Jesus, Igreja, liberdade, justiça, oração, utopia (Paulus Editora, 1998); Deus e nossa felicidade (Edições Loyola, 2006); O futuro da vida religiosa: das origens à crise atual (Paulus Editora, 2008); A ética de Cristo (Ed. Loyola, 2010); Espiritualidade para insatisfeitos (Paulus Editora, 2012); Jesus: a humanização de Deus (Editora Vozes, 2015); Teologia popular - Volume I: A boa-nova de Jesus (Ed. Loyola, 2016); Teologia popular - Volume II: O reinado de Deus (Ed. Loyola, 2016); Teologia popular - Volume III: Os últimos dias de Jesus e o futuro (Ed. Loyola, 2017); A humanidade de Jesus (Editora Vozes, 2018).

JOSÉ ANTONIO PAGOLA**

ÀS MARGENS DO CAMINHO

Em seu início, o cristianismo era conhecido como «o caminho» (At 18,25-26). Mais que entrar em uma nova religião, «tornar-se cristão» era encontrar o caminho acertado da vida, seguindo os passos de Jesus. Basta estudar de perto a vida das primeiras comunidades cristãs para comprovar que «ser cristão» significa para eles «seguir» a Jesus. Isto é fundamental, insubstituível.

Hoje, as coisas mudaram. O cristianismo conheceu durante estes vinte séculos um desenvolvimento doutrinal muito importante e produziu uma liturgia e um culto próprios muito elaborados. Faz já muito tempo, que o cristianismo é considerado uma religião entre outras. Por isso, não é estranho encontrar-se hoje com pessoas que se sentem cristãs, simplesmente, porque estão batizadas, aceitam mais ou menos a doutrina oficial da Igreja e cumprem seus deveres religiosos, ainda que jamais tenham impostado a vida como um seguimento de Jesus Cristo. Este fato, hoje bastante generalizado, teria sido inimaginável nos primeiros tempos do cristianismo.

Esquecemos que ser cristão é «seguir» a Jesus Cristo, mover-se, dar passos, caminhar, construir a própria vida seguindo os passos do Mestre.

Nosso cristianismo fica, frequentemente, em uma fé teórica e inoperante ou em uma prática religiosa estéril. Fizemo-nos nossa ideia do cristianismo – alguns o defendem até com fanatismo diante de outras posturas possíveis –, porém essa fé não transforma nossa vida, pois não é seguimento de Cristo.

Depois de vinte séculos de cristianismo, a contradição maior dos cristãos é pretender sê-lo sem seguir a Jesus Cristo. Aceita-se a religião cristã (como poder-se-ia aceitar outra), pois dá segurança e tranquilidade diante do «desconhecido», porém não se entra na dinâmica do seguimento fiel a Cristo. Conhece-se, ainda que somente de maneira elementar, a mensagem e a atuação de Jesus; sua figura atrai, porém – já se sabe –, deve-se tomá-lo com «prudência e sadio realismo».

Estamos cegos e não vemos onde se encontra o essencial da fé cristã. O episódio da cura do cego de Jericó é um convite para sair de nossa cegueira. No começo do relato, aquele homem «está sentado à beira do caminho». É um homem cego e desorientado, fora do caminho, sem capacidade de seguir a Jesus. Curado de sua cegueira por Jesus, o cego não somente recobra a luz, mas converte-se em um verdadeiro «seguidor» de seu Mestre, pois, a partir daquele dia, «seguia Jesus pelo caminho» (Marcos 10,52). É a cura da qual necessitamos.

** JOSÉ ANTONIO PAGOLA é sacerdote espanhol. Mestre em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma (1962), Mestre em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (1965), Diplomado em Ciências Bíblicas pela École Biblique de Jerusalém (1966). Professor no Seminário de San Sebastián e na Faculade de Teologia do norte da Espanha (sede de Vitoria). Desempenhou o encargo de reitor do Seminário diocesano de San Sebastián e, sobretudo, o de Vigário Geral da diocese San Sebastián (Espanha). É autor de vários ensaios e artigos, especialmente o famoso livro: Jesus. Aproximação Histórica (publicado no Brasil por Editora Vozes, 2010 – já na 7ª edição, 2018). No Brasil, Pagola tem, ainda, os seguintes livros já publicados: O Caminho Aberto por Jesus. Mateus (Editora Vozes, 2009); O Caminho Aberto por Jesus. Lucas (Ed. Vozes, 2012); O Caminho Aberto por Jesus. Marcos (Editora Vozes, 2013); Pai-nosso: Orar com o Espírito de Jesus (Ed. Vozes, 2012); O Caminho Aberto por Jesus. João (Ed. Vozes, 2013); Salmos Para Rezar ao Longo da Vida (Ed. Vozes, 2013); Jesus e o Dinheiro. Uma Leitura Profética da Crise (Ed. Vozes, 2014); Olhos fixos em Jesus: Nos umbrais da fé (juntamente com: Dolores Aleixandre e Juan Martín Velasco – Ed. Vozes, 2014); Originalidade do matrimônio cristão (Paulinas Editora, 6ª edição, 2015); Grupos de Jesus (Ed. Vozes, 2016); Voltar a Jesus. Para a Renovação das Paróquias e Comunidades (Ed. Vozes, 2016); É bom crer em Jesus (Ed. Vozes, 2016).

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fontes: José M. Castillo. La religión de Jesús: comentario al Evangelio diario – Ciclo B (2017-2018). Bilbao: Desclée De Brouwer, 2017, páginas 380-381; Sopelako San Pedro Apostol Parrokia – Sopelana – Bizkaia (Espanha) – J. A. Pagola – Ciclo B (Homilías) – Internet: clique aqui.

COMO CHEGAMOS A ISSO ? ? ?

«Estejam preparados para viver com as consequências dessa escolha; se o pior acontecer, vocês não vão poder dizer que não sabiam»

Entrevista com Rodrigo Guimarães Nunes
Doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Atualmente é professor visitante na Brown University, Estados Unidos, período em que trabalha no seu novo livro, Beyond the Horizontal. Rethinking the Question of Organisation [tradução livre: Além do horizontal. Repensando a questão da organização], que será publicado em 2019 pela editora inglesa Verso.

Vitor Necchi

“Um desastre em câmera lenta”
RODRIGO GUIMARÃES NUNES

Rodrigo Nunes atualmente é professor visitante em uma universidade nos Estados Unidos. À distância, revela como vê o processo político em curso no Brasil: “Um desastre em câmera lenta”. Avalia que, desde quando foram definidas as candidaturas, estava claro que existia a possibilidade de vitória da extrema direita: “Os sinais estavam todos aí, e a cada nova rodada dava para ver a probabilidade crescer”.

Para compreender a situação atual, Nunes afirma que “é tremenda” a responsabilidade da direita mais moderada e de setores como a mídia e o Judiciário. A origem mais recente do bolsonarismo começa no primeiro governo Lula. “No auge do pacto lulista, quando o boom das commodities serviu para criar uma situação em que mais ricos e mais pobres ganhavam, a oposição não tinha como dizer que as coisas iam mal; todo mundo estava vivendo melhor que no governo FHC.” Naquele momento, restou à oposição uma única linha de ataque: “requentar as paranoias anticomunistas da Guerra Fria ou explorar pânicos morais envolvendo pautas como aborto e diversidade sexual”, diz em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Ao tentar explicar o sucesso eleitoral de um candidato que se notabilizou por um discurso de ódio, preconceito e declarações violentas e que enaltece a ditadura e a tortura, Nunes salienta: “Não vamos esquecer que este discurso vem sendo gradualmente normalizado faz tempo, ou por não ser punido legalmente, ou por ser minimizado como ‘polêmico’ quando na verdade é, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro, criminoso”.

Ao analisar a comunicação cultivada pelo candidato à presidência Jair Bolsonaro, à frente nas pesquisas eleitorais, observa que ela é característica da extrema direita e consiste em desmentir-se constantemente:

“Você afirma um absurdo, nega, diz que foi mal interpretado, depois faz tudo de novo”. Com essa tática, consegue “mandar mensagens para os elementos mais radicalizados da base, bem como para a elite econômica, ao mesmo tempo em que alimenta uma confusão sobre as verdadeiras ideias ou objetivos do líder”.

O entendimento da situação atual passa por lembrar não apenas a não condenação da tortura e dos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura de 1964, mas também pela memória de “dois crimes contra a humanidade que estão na fundação do Brasil: o genocídio indígena e a escravidão”. Conforme o professor, essa lembrança não consiste em um gesto meramente retórico, porque “quando você vê que uma parte da população se ressente profundamente de qualquer ganho de direitos por outra parte da população, percebe que isso não é trivial”.

Para Nunes, “uma das coisas mais poderosas que se pode dizer agora àqueles de quem somos próximos e que pretendem votar em Bolsonaro: estejam preparados para viver com as consequências dessa escolha; se o pior acontecer, vocês não vão poder dizer que não sabiam”. 
Gravura do artista e viajante alemão Johann Moritz Rugendas, integra sua obra
"Voyage pittoresque dans le Brésil" (1835). Nome da gravura:
"Nègres a fond de Calle"
Confira a entrevista:

IHU On-Line – Qual é sua percepção de quem está acompanhando as eleições de longe? Como está vendo o processo?

Rodrigo Nunes – Como um desastre em câmera lenta. Uma das características da tragédia é que o destino dos personagens se desenrola inexoravelmente a partir de atos que fazem sentido individualmente, mas cuja concatenação conduz ao pior resultado possível – e esta lógica, visível para o espectador, é invisível aos personagens, que vão se enredando cada vez mais nos efeitos de suas escolhas. Não vou dizer que previ que estaríamos tão próximos de uma vitória da extrema direita, porque “previsão” em política é só um cálculo de probabilidades; mas desde quando foram definidas as candidaturas, estava claro que a possibilidade existia. Porque estas estavam destinadas a ser eleições marcadas por um forte sentimento antissistêmico[1]; porque não existia uma candidatura forte da direita mais moderada; porque o PT tinha votos suficientes para passar no primeiro turno, mas uma rejeição que dificultava a vitória no segundo; porque o establishment[2] político e econômico já começava a sinalizar acomodação com a hipótese Bolsonaro. Os sinais estavam todos aí, e a cada nova rodada dava para ver a probabilidade crescer.

E tudo isso resulta de decisões que os diferentes agentes tomaram porque eram vantajosas para eles, logo “racionais”. Assim, o PSDB decidiu em 2016 não correr o risco de repetir 2005 – quando achava que bastava deixar o Mensalão “sangrar” Lula, mas este se recuperou – e embarcou na aventura do impeachment. Aí o desastre do governo Temer enterrou o PSDB e ajudou o PT a recuperar alguma popularidade, pondo Lula na dianteira da corrida presidencial. O Judiciário então acelerou o julgamento de Lula para tirá-lo do páreo. O cálculo era que Bolsonaro tinha um teto baixo e logo seria ultrapassado por uma candidatura da direita mais moderada. Mas agora Lula tinha votos suficientes para passar do primeiro turno e, sem candidato próprio, o PT corria o risco de ser dizimado no Congresso. Então, pensando na sobrevivência do partido, Lula escolheu a candidatura própria e manobrou para que o PSB não apoiasse Ciro Gomes. O PT ofereceu a vice-presidência para Ciro, mas este via que sua grande oportunidade era como terceira via, porque as duas candidaturas mais fortes também tinham alta rejeição. Este ativo, ele calculou, seria neutralizado se ele integrasse a chapa do PT.

Então o PT tinha votos para chegar no segundo turno, mas uma rejeição proibitiva quando chegasse lá; e Ciro tinha dificuldade de passar para o segundo turno, mas, chegando lá, tinha boas chances, pois tinha menor rejeição. Os dois avaliaram que dava para tentar ganhar sem o apoio um do outro e pagaram para ver. E todo o tempo o cálculo deles era o mesmo de todos os analistas e toda a classe política: que Bolsonaro murcharia, que a polarização seria com o PSDB. Mas como o PSDB foi quem mais encolheu nestas eleições, logo ficou claro que, se a aposta deles desse errado, o custo não era uma vitória de Alckmin, mas entregar a presidência a Bolsonaro.

Todo mundo sabia dos riscos e todo mundo agiu racionalmente, buscando maximizar seus interesses a partir das informações que tinha. O resultado está aí.

IHU On-Line – Faltou grandeza a Lula e a Ciro?

Rodrigo Nunes – Que discutamos estas coisas em termos de qualidades pessoais – se este tem ou não tem grandeza, se aquele tem ou não tem direito de querer ser candidato – já dá a dimensão do problema. Como decisões tão importantes, com efeitos nas vidas de todos, ficam na mão de indivíduos? Como que nós, que constituímos a base eleitoral da esquerda, não temos nenhuma interferência nisso? Isso diz muito sobre as estruturas partidárias (ou falta delas), sobre a necessidade de reorganização da esquerda, mas também sobre nós. Iniciativas como o Quero Prévias até tentaram constituir um contraponto às direções partidárias para forçar o debate, mas não funcionou – seja pela maneira como isso foi feito, seja porque toda a incerteza dos últimos anos tornou as pessoas mais, e não menos, dispostas a passar cheques em branco para as lideranças.

IHU On-Line – Muitas análises têm responsabilizado a esquerda pela situação, mas qual o papel de outros segmentos políticos?

Rodrigo Nunes – A responsabilidade da direita mais moderada e de setores como a mídia e o Judiciário no que está acontecendo é tremenda.

Se quisermos buscar as origens mais recentes do bolsonarismo, veremos que suas sementes começam a ser plantadas já no primeiro governo Lula. No auge do pacto lulista, quando o boom das commodities[3] serviu para criar uma situação em que mais ricos e mais pobres ganhavam, a oposição não tinha como dizer que as coisas iam mal; todo mundo estava vivendo melhor que no governo Fernando Henrique Cardoso [FHC]. A única linha de ataque possível para a oposição naquele momento era requentar as paranoias anticomunistas da Guerra Fria ou explorar pânicos morais envolvendo pautas como aborto e diversidade sexual.
JOSEPH RAYMOND MCCARTHY (1908-1957)
Senador Republicano pelo Estado de Wisconsin (Estados Unidos): 1947-1957

Órgãos de imprensa semanalmente levantavam grandes acusações sem nenhuma prova: Cuba teria financiado a campanha de Lula, os ministros do STF estariam sendo grampeados... E os líderes da oposição “responsável” emprestavam sua credibilidade a estas histórias, aparecendo na imprensa para comentar que, se verdadeiras, as acusações eram muito graves etc. Organizações como o Instituto Millenium injetaram fortunas em discursos que misturavam pregação ultraliberal e macarthismo[4] delirante; houve um boom editorial deste tipo de literatura. Paralelo a isso, a direita mais moderada também incentivou pânicos morais como o famigerado “kit gay” e foi trazendo o discurso religioso conservador, que já crescia com os representantes do eleitorado evangélico, para o centro do debate. Tudo isto foi abrindo o mainstream[5] cada vez mais a um conservadorismo moral militante, a discursos de extrema direita e à lógica das teorias da conspiração.

Invariavelmente, a escolha do PT foi buscar a conciliação. Assim, ao invés de tentar regular o setor inteiramente desregulado que é a mídia, ele foi fazendo concessões; da mesma forma, buscou alianças com a bancada do boi, da bala e da Bíblia, abrindo mão de pautas e aumentando a penetração da agenda conservadora. Isso não serviu para nada quando estes setores embarcaram entusiasticamente no impeachment.

Além disso, fomentou-se um ativismo jurídico que, sob a cobertura de dar respostas rápidas à opinião pública, exacerbou a insegurança jurídica e interferiu diretamente no processo político. Quando um juiz de primeira instância grava uma conversa da presidente da República e a torna pública sem medo de sofrer as devidas punições legais, é porque ele sabe que está blindado.

Como coroação dessa irresponsabilidade, veio o impeachment. E durante todo o tempo em que se semeava confusão, o cálculo era claramente que, ao final de todas as manobras, as eleições cairiam no colo do PSDB, e a elite política poderia se recompor.

A lógica era incitar forças perigosas a fim de explorá-las em benefício próprio. No fim, essas forças engoliram a direita mais moderada, e o establishment agora faz que não é com ele: denuncia o caos que ajudou a criar, estabelece uma falsa equivalência entre Haddad e Bolsonaro, e se prepara para negociar um lugar à mesa do provável novo governo.
Sessão da Câmara dos Deputados (Brasília - DF) de 18 de abril de 2016 na qual foi aprovado
o impeachment da presidente Dilma Rousseff por 367 votos contra 137

IHU On-Line – O senhor escreveu que as chicanas que caracterizaram o processo de impeachment deram um reforço de legitimidade institucional a um espírito de vale-tudo. Isso é suficiente para explicar o clima que se instaurou no país?

Rodrigo Nunes – Não só o impeachment, mas uma série de intervenções que veio antes e depois. Por seu caráter errático e frequentemente parcialora céleres e rigorosas, como no julgamento de Lula, ora lentas ou “matadas no peito”, como no tratamento dispensado a Aécio Neves ou na atuação pífia do Tribunal Superior Eleitoral - TSE –, elas contribuíram para desmoralizar ainda mais o Judiciário e as instituições como um todo. Nossas instituições sempre foram madrastas com a maioria da população; mas quando o vale-tudo é liberado mesmo no topo da pirâmide do sistema político, isto gera um efeito em cadeia cujo resultado é a generalização de um misto de anomia[6] e voluntarismo[7].

Anomia, porque a grande função das instituições, que é garantir a previsibilidade dos processos políticos e sociais, é abandonada; tudo se torna imprevisível porque tudo é reduzido às relações circunstanciais de força, à lei do mais forte. E voluntarismo porque, num quadro assim, cresce a demanda justamente pela força – por indivíduos que saltem por sobre a lei e imponham um resultado unilateralmente, sem qualquer mediação.

Historicamente, anomia e voluntarismo não só são a combinação da qual nasce o fascismo[8], mas também aquela que o sustenta, que ele precisa fomentar para existir. É o coquetel do qual se alimenta uma liderança autoritária como Bolsonaro. E daí para que a força deixe de ser exercida por dentro das instituições e passe também às ruas, virando violência física, é só um passo.

Para além da instabilidade institucional, o impeachment foi profundamente deseducativo do ponto de vista da prática democrática. Ao fazer uma gambiarra para premiar a demanda por um “terceiro turno” das eleições...

... o impeachment ensinou, para uma parcela da população que pouco tinha participado da política até ali, que a democracia não é um espaço de negociação das diferenças, mas uma arena em que é legítimo quem se julga maioria exigir a gratificação imediata do próprio desejo, sem diálogo, procedimentos ou instituições.

Disso resulta, por um lado, o desejo de uma mão forte, de alguém capaz de impor sua vontade unilateralmente; e, por outro, uma lógica de não negociação com a diferença cujo limite é, mesmo se nem todos se dão conta disso, a eliminação física do outro: “ou você deixa de ser diferente, ou você deixa de ser”. É para este horizonte que falas sobre “acabar com o ativismo” e “eliminar os vermelhos”, para não falar da violência contra jornalistas e população LGBTQ[9], apontam.

Esta demanda por gratificação imediata está clara em dois elementos do discurso do bolsonarismo. Primeiro, nessa frase recorrente em todos estes episódios de violência que têm acontecido, “essa farra vai acabar”. É como se dissessem: “esse tempo em que era preciso negociar meus desejos, em que eu precisava abrir mão do meu gozo, está chegando ao fim”. Segundo, na concepção mágica da política que se expressa na frase “se ele não der certo, a gente tira e bota outro no lugar”.
Pichação racista encontrada em um dos banheiros do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

IHU On-Line – O que explica o sucesso eleitoral de um candidato que se notabilizou por um discurso de ódio, preconceito e declarações violentas contra pessoas LGBTs, mulheres, negros e índios, que enaltece a ditadura e a tortura? Como milhões de pessoas conseguem votar em alguém que atenta contra a própria existência de pessoas?

Rodrigo Nunes – Não vamos esquecer que este discurso vem sendo gradualmente normalizado faz tempo, ou por não ser punido legalmente, ou por ser minimizado como “polêmico” quando na verdade é, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro, criminoso. Não vamos esquecer, também, o quanto elementos deste discurso foram nutridos pelo mainstream ao longo desse tempo; há alguns anos, por exemplo, a moda eram os humoristas “politicamente incorretos”, celebrados como tribunos da liberdade de expressão. Não vamos esquecer, ainda, que os próprios governos petistas, especialmente durante a gestão de Dilma, contribuíram para a minimização das questões ambiental e indígena e se curvaram para o conservadorismo. Por último, não vamos esquecer que as raízes de vários elementos deste discurso estão no desconforto real sentido por diferentes setores diante de transformações ocorridas na última década: o crescimento da visibilidade e das demandas de atores historicamente excluídos. Quando ocorreu o impeachment, eu já dizia que o verdadeiro golpe era contra estas tendências.

Bolsonaro cultiva um tipo de comunicação característico da extrema direita, que consiste em desmentir-se constantemente: você afirma um absurdo, nega, diz que foi mal interpretado, depois faz tudo de novo. Trump faz muito isso. Esta tática permite mandar mensagens para os elementos mais radicalizados da base, bem como para a elite econômica, ao mesmo tempo em que alimenta uma confusão sobre as verdadeiras ideias ou objetivos do líder. Assim, ele pode ser todas as coisas para todas as pessoas: quem quer fascismo ouve fascismo, quem não quer ouve só um arroubo espontâneo, quem deseja uma política ouve essa política, quem deseja outra ouve outra.

Esta tática dificulta a compreensão do próprio eleitorado bolsonarista. Até que ponto quem vota nele o faz porque:
* se sente inseguro,
* está farto da política convencional,
* deseja mudança e
* realmente não acredita que ele represente maiores riscos, a não ser para os corruptos e os criminosos?
Ou acredita que ele representa riscos para a democracia e as instituições, mas que estes são pequenos? Ou acredita que ele representa riscos razoáveis, mas está disposto a corrê-los, porque avalia que os riscos são só para os outros? Ou efetivamente deseja que ele seja realmente tudo aquilo que fala? Não há uma fronteira absolutamente clara entre estes grupos, mas é evidente que seu eleitorado se compõe de tudo isso. Há diferentes tipos de eleitores de Bolsonaro, que têm motivações diferentes, e é preciso relacionar-se diferentemente com cada um deles.

IHU On-Line – É possível falar em fascismo?

Rodrigo Nunes – Há basicamente duas maneiras de pensar o fascismo. A) Uma é a da história e da ciência política; ela consiste em montar uma lista de características que historicamente caracterizariam o fascismo e comparar os fenômenos sob investigação com ela. Um dos problemas dessa abordagem é que não há consenso sobre quais elementos devem pertencer à lista.

B) Outra abordagem vê o fascismo como uma questão de psicologia social; ele é da ordem do desejo. Isso implica que, propriamente falando, não há fascistas, mas desejos fascistas, e indivíduos que podem ser atravessados por esses desejos em maior ou menor grau, de maneira mais ou menos consciente.

Importam, aí, quatro características gerais dos desejos.

Primeiro, eles são diretamente sociais: eles atravessam as pessoas ao invés de estar dentro delas.

Segundo, eles são, por isso mesmo, flutuantes e variáveis. A pesquisa comparando o comício de Bolsonaro no último domingo com a manifestação pró-Lava Jato de 2017 mostra isso: são provavelmente as mesmas pessoas, mas elas agora se dizem “muito conservadoras”. Quando eu criticava a ideia de “ascensão conservadora” três anos atrás, era para dizer que se negamos a legitimidade dos sentimentos antissistêmicos, se reduzimos todos que discordam de nós a condição de fascistas, estamos perdendo diálogo com as pessoas e deixando espaços para que estes sentimentos sejam disputados por práticas e discursos que podem, sim, tornar-se fascistas. Daí também a pergunta, após a eleição de Trump, sobre como lidar com a entrada de um discurso obsceno na política.

Terceiro, também por isso, desejos podem entrar em reverberação ou feedback positivo: quando aparece uma liderança que os galvaniza, quando eles ganham visibilidade nos meios de comunicação, quando as pessoas os expressam publicamente, eles se reforçam e expandem.

Quarto, desejos são mais fortes que interesses: as pessoas são capazes de desejar coisas que vão contra seus próprios interesses. Como dizia Spinoza, nós não desejamos algo porque é bom, nós achamos que algo é bom porque o desejamos.

E o que caracteriza este desejo? Um investimento no líder, na força e na vontade como saídas para uma situação percebida como impasse e anomia. O incômodo diante da diferença, que eu culpo pelo impasse e pela anomia, que me impedem de ser feliz. E a condensação desse incômodo na figura de um OUTRO que precisa ser suprimido ou eliminado para que eu possa obter minha felicidade.

É neste sentido que o fascismo é fundamentalmente antidemocrático:
* ele não suporta a ideia de ter de negociar, construir, mudar;
* ele quer eliminar o incômodo, isto é, o outro.
A isso se agrega todo tipo de interesse imediato e mesquinho, de pequenos ódios e invejas cotidianos, que se tornam justificáveis na medida em que eu posso culpar o outro por eles. Os dois primeiros filmes de Pablo Larraín sobre a ditadura no Chile, Tony Manero e Post Mortem, são retratos perfeitos disso.

Há desejos fascistas à solta? É claro que há, e os episódios de violência das últimas semanas mostram que há indivíduos inteiramente atravessados por eles. Lidar com isso é como um trabalho de epidemiologia: é preciso tentar conter esses desejos e essas pessoas, imunizar os demais contra eles, mobilizar os desejos e afetos não fascistas que movem as pessoas contra eles. Porque, ainda segundo Spinoza, afetos e desejos só podem ser neutralizados por afetos e desejos na direção contrária.
PAU-DE-ARARA
Um dos métodos mais comuns de tortura durante a ditadura militar no Brasil

IHU On-Line – A não condenação da tortura e dos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura de 1964 é determinante para se entender esta situação?

Rodrigo Nunes – Antes da memória da ditadura, temos a memória de dois crimes contra a humanidade que estão na fundação do Brasil: o genocídio indígena e a escravidão. Parece um gesto meramente retórico lembrar disso, mas quando você vê que uma parte da população se ressente profundamente de qualquer ganho de direitos por outra parte da população, percebe que isso não é trivial. Uma parte do Brasil dá por ganho um direito sobre o tempo e os corpos de outras pessoas que não é absolutamente normal em lugares como a Europa; ela acha que são os pobres, negros e indígenas que têm uma dívida com ela e não o contrário. No fim, a elite brasileira é acostumada a um grau de privilégios que só é compatível com uma república de bananas – daí, justamente, que nossa história política seja atravessada por golpes e viradas de mesa que vêm sempre de cima para baixo, nunca de baixo para cima.

No Canadá é costume, antes de eventos culturais ou acadêmicos, anunciar: “estamos no território de tal tribo”. Parece uma mera formalidade, e em certa medida é; mas um amigo canadense me disse: “é porque estamos há décadas fazendo esse tipo de coisa que algo como Belo Monte não seria possível aqui”.

O direito à memória é também o direito de não deixar esquecer, e isso se aplica não só a quem cometeu os crimes, mas a quem ficou indiferente enquanto crimes eram cometidos.

Quando os Hijos na Argentina fazem um protesto em frente ao edifício de um torturador da ditadura, eles não estão apenas dizendo para a vizinhança: “aqui mora um torturador”. Eles também estão dizendo: “muitos de vocês provavelmente sabiam ou suspeitavam que o vizinho de vocês era um torturador e seguiram cumprimentando-o no elevador durante anos”.

Esta produção pública de vergonha tem um efeito potente. Porque o fascismo é um fenômeno de massa e, no meio da massa, as relações entre causa e efeito se tornam mais tênues; ninguém se sente mais tão responsável. Uma questão central da psicologia de massas sempre foi: como pode que pessoas absolutamente comuns no meio de grandes grupos em ebulição façam coisas absolutamente terríveis?

Mas estatisticamente o mais comum não é que pessoas normais façam coisas horríveis, mas que pessoas normais não façam nada horrível, mas também não façam nada enquanto coisas horríveis acontecem a seu redor. Ao estabelecer uma relação, ainda que retrospectiva, entre causa e efeito, e cobrir esta relação com o afeto negativo da vergonha, o exercício do direito de não deixar esquecer deixa uma marca para o futuro: “pense bem nas consequências de suas ações ou omissões hoje, porque amanhã você poderá ser cobrado publicamente delas”.

Esta, me parece, é uma das coisas mais poderosas que se pode dizer agora àqueles de quem somos próximos e que pretendem votar em Bolsonaro: estejam preparados para viver com as consequências dessa escolha; se o pior acontecer, vocês não vão poder dizer que não sabiam.

IHU On-Line – Como entender o fenômeno das “fake news”? As plataformas digitais constituíram uma realidade paralela, com características próprias?

Rodrigo Nunes – Cada um de nós acredita em mais coisas do que pode comprovar diretamente; eu nunca medi a distância daqui à Lua, mas acredito que temos conhecimento verdadeiro dela. Por quê? Porque é a crença mais razoável: há várias evidências indiretas que corroboram essa ideia.

O fenômeno das “fake news” não é uma ou outra ideia falsa, mas a erosão do ambiente de formação de crenças; ele funciona por saturação. Se você satura o entorno das pessoas com informações falsas que se comprovam mutuamente, ou com informações falsas que desacreditam as autoridades nas quais elas normalmente acreditariam, você as desorienta, as faz confiar em mentiras e achar que todas as vozes dizendo o contrário, mesmo as mais respeitadas, são parte de uma conspiração para esconder a verdade.

Mas é preciso lembrar: esta saturação não começou nestas eleições, e ela foi durante anos amplamente explorada pela direita mais moderada. “Especialistas” cansaram de prever cataclismas que não se realizaram; quem passou os últimos 15 anos lendo [a revista] Veja já habita uma realidade paralela faz tempo. O petismo também criou um aparato de notícias duvidosas, mas este, sem ter ressonância na grande mídia, teve penetração restrita à militância.

O WhatsApp de hoje é apenas o espelho distorcido, rizomático e militante, que reflete a exploração cínica destas táticas pelo mainstream. E nem tão militante assim: como descobrimos na última semana, o alto engajamento voluntário da campanha de Bolsonaro é sustentado por uma estrutura de propaganda profissionalmente montada para este propósito.
ÍNDIO REALIZA PROTESTO CONTRA O ASSASSINATO DE IRMÃOS SEUS

IHU On-Line – O que esperar de um governo Bolsonaro?

Rodrigo Nunes – No fim das contas, acredito que Bolsonaro é menos um fanático que um oportunista. Como Trump, suspeito que ele deva terceirizar áreas inteiras de seu governo aos lobbies do:
* mercado financeiro,
* da educação privada,
* das mineradoras,
* do agribusiness etc.
Isso, obviamente, será desastroso para os pobres, para o meio ambiente, para os indígenas, para os negros, para os LGBTQ. Mas também significa que, em algum momento, ele não conseguirá mais ser todas as coisas para todo mundo: sua agenda econômica prejudicará muita gente, seu discurso anticorrupção será contradito por suas alianças no Congresso. O que acontecerá nesse momento? Ele pode compensar radicalizando o elemento punitivo e violento de sua figura, atiçando sua base contra um “inimigo interno” a ser eliminado. Os resultados podem ser terríveis, comparáveis a um Duterte, das Filipinas.

O establishment claramente já fez a aposta de que é possível controlá-lo. O caso de fraude eleitoral que explodiu na semana passada ficará cozinhando em fogo lento para chantageá-lo com o risco de anulamento da chapa. Ele aceitará a chantagem ou apostará no caos para se fortalecer? É impossível prever agora.

IHU On-Line – E o que esperar de um governo Haddad?

Rodrigo Nunes – Será um governo fraco, sob constante ameaça. Só espero que a esquerda, diante disso, não repita o mesmo erro de achar que, porque o governo é fraco, é melhor não se mobilizar. Porque, se não houver esquerda na rua, a única base social mobilizada será da direita, e Haddad não terá capital nenhum para negociar. Quando 2013 abriu um flanco à esquerda, o PT se moveu ainda mais para o centro, enquanto a direita se organizava para disputar as ruas e se deslocava para a extrema direita. No fim, enquanto a direita radicalizava, o PT assumiu o papel de único que acreditava nas instituições, e ficou com o mico. Sem uma esquerda independente para cobrar uma agenda, o movimento em direção ao centro continuará – e o centro já demonstrou que não está preocupado com a democracia ou as regras do jogo.

Ganhe quem ganhar, o problema para a esquerda continuará o mesmo dos últimos anos: finalmente começar o trabalho de se reinventar.

N O T A S

[1] Antissistêmico: quer dizer contra o «sistema» político que predomina no país até o momento. Podendo significar, também, contra o sistema econômico vigente, bem como, contra normas de convivência e comportamento sociais.
[2] Establishment: palavra inglesa que significa a ordem ideológica, econômica, política e legal que constitui uma sociedade ou um Estado. Pode ser também, como é o caso aqui na entrevista, a elite social, econômica e política de um país.
[3] Boom das commodities: são duas palavras inglesas. A primeira, «boom» significa aumento dos negócios. A segunda, «commodities» refere-se a mercadorias de origem animal (carne, embutidos etc.), vegetal (madeira, soja, açúcar etc.) ou mineral (minério de ferro, manganês etc.). Então, «boom das commodities» significa um significativo aumento da venda de mercadorias de origem animal, vegetal e mineral. No caso brasileiro, nosso maior comprador atual é a China.
[4] Macarthismo: prática política que se caracteriza pelo sectarismo, notadamente anticomunista, inspirada no movimento dirigido pelo senador Joseph Raymond McCarthy 1909-1957, durante os anos 1950, nos Estados Unidos. Consiste na prática de formular acusações e fazer insinuações sem provas, comparável àquela que caracterizou o movimento desencadeado pelo político norte-americano acima mencionado.
[5] Mainstream: corrente dominante ou convencional de pensamento mais comum ou generalizada no contexto de determinada cultura. A corrente dominante inclui toda a cultura popular e cultura de massa, as quais são difundidas pelos meios de comunicação de massa.
[6] Anomia: ausência de lei ou de regra, desvio das leis naturais; anarquia, desorganização. Sociologicamente falando, seria o estado da sociedade em que desaparecem os padrões normativos de conduta e de crença, e o indivíduo, em conflito íntimo, encontra dificuldade para conformar-se às contraditórias exigências das normas sociais (Houaiss).
[7] Voluntarismo: comportamento autoritário, voluntarioso (agindo segundo sua vontade, sem considerar a vontade de outrem, com obstinação).
[8] Fascismo: movimento político e filosófico ou regime (como estabelecido por Benito Mussolini na Itália, em 1922) que defende a prevalência, isto é, a superioridade dos conceitos de nação, Estado e raça sobre os valores individuais. Um regime político fascista é representado por um governo autocrático, centralizado na figura de um ditador.
[9] LGBTQ: é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis ou Transgêneros e Qeer, que são aqueles que questionam sua identidade sexual para além do binômio masculino e feminino, o qual é considerado um construto social.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 26 de outubro de 2018 – Internet: clique aqui.