«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Lições de um economista rock-star

Gillian Tett
Financial Times
25 de abril de 2014 
Thomas Piketty - economista francês
Na semana passada assisti a algo bastante peculiar se desdobrar num auditório da Universidade Municipal de Nova York. Uma coleção de zelosos economistas americanos se encontraram para refletir sobre uma brochura de 577 páginas a respeito de desigualdade e políticas de impostos escrito por Thomas Piketty, 42 anos, professor de economia em Paris.

Longe de ter sido apenas mais um encontro acadêmico, o evento foi tão procurado que as entradas se esgotaram e o debate precisou ser reproduzido num telão num outro auditório. Mas as emoções não param por aqui. Nos últimos dias, o novo livro de Piketty – “Capital in the Twenty-First Century” [O capital no século XXI] – subiu nas listas dos livros mais vendidos e suscitou intermináveis posts em blogs, debates e comentários.

A Casa Branca e o Departamento de Tesouro americano têm mantido conversas com o autor francês. Um segmento inteiro do programa televisivo chamado Morning Joe – apresentado em horário nobre – refletiu sobre sua ideia de reforma fiscal (com um dos apresentadores declarando: “Eu simplesmente não acho que um bilionário deve pagar 14% de imposto!”). O interesse está tão alto que a revista New Yorker chamou o autor francês de o “Economista Rock-Star”. Nada mal para um intelectual de esquerda que (quase) ninguém nos EUA tinha ouvido falar até um mês atrás, e especialmente porque seu livro sustenta, em essência, que a riqueza herdada e a desigualdade aumentaram demasiadamente e que esta só pode ser contida aplicando-se impostos muitos mais altos do que há hoje.

O que explica esta animação toda? Alguns analistas podem responder a esta pergunta baseando-se nos fatos: o tomo de Piketty está extremamente baseado em pesquisas e contém inúmeras estatísticas mostrando que o economista americano Simon Kuznets estava errado ao sustentar, na década de 1950, que as economias se tornariam mais igualitárias na medida em que amadurecessem. Pelo contrário, Piketty argumenta que a desigualdade cresceu nos EUA e na Europa na última década porque um novo quadro de “superadministradores” [ou supergerentes, altos funcionários das corporações] capturou mais rendimentos e os rendimentos da riqueza acumulada já ultrapassaram o ritmo (modesto) do crescimento econômico. Isso significa que as pessoas que já são ricas estão se tornando mais ainda prósperas, e muitas delas herdam suas riquezas.

Mas eu suspeito que a verdadeira razão para se recepcionar Piketty como uma estrela de rock não é a qualidade de seus números, mas o fato de que ele forçou os americanos a se confrontarem com a sensação crescente de dissonância cognitiva [leia abaixo]. Há quase dois séculos e meio, quando os pais fundadores criaram a nação americana, eles orgulhosamente acreditavam ter rejeitado a tradição europeia de uma aristocracia hereditária e de riqueza rentista. Pelo contrário, presumia-se que as pessoas deviam se tornar ricas através do trabalho duro, do mérito e pela competição.
Portanto, as desigualdades de riqueza eram frequentemente toleradas porque todos tinham a esperança de enriquecerem. Este era o sonho americano que nutriu ondas admiráveis de energia empreendedora e – de modo decisivo – forneceu uma coesão social.
O livro de Piketty mostra que este sonho é um mito. Nas décadas passadas, observa o autor, os Estados Unidos eram de fato mais igualitário do que a Europa. Mas hoje a riqueza no país é distribuída de forma mais desigual do que praticamente em qualquer outro lugar, e os rendimentos da riqueza acumulada são tão altos que as fortunas estão, cada vez mais, sendo herdadas – e não feitas.

A maioria dos americanos sabe ou tem a sensação disso. E antes mesmo que Piketty chegasse, esta questão já estava provocando um mal-estar. Investigações recentes feitas pelo Centro de Pesquisa Pew, por exemplo, sugerem que dois terços dos americanos pensam que sua sociedade está se tornando mais desigual, enquanto que 90% dos liberais, e 60% dos conservadores moderados, querem que o governo resolva esta questão. Enquanto isso, referências na mídia à “desigualdade” e “Estados Unidos” estiveram cinco vezes mais presentes no ano passado do que em 2010 ou 2005, segundo o banco de dados do Factiva; neste mês referências a estes termos subiram para seis vezes mais.

O que o livro de Piketty fez é abordar este assunto com uma nova clareza; como um Alexis de Tocqueville moderno, ele forçou os americanos a se confrontarem com algumas de suas contradições (embora a mensagem de Tocqueville datada do século XIX seja completamente diferente desta de hoje). Isso não significa que a elite aceitará suas análises; pelo contrário, analistas da direita vêm atacando-o. Tampouco implica que Congresso acolherá o seu chamado por taxas de impostos drasticamente mais altos; isso parece completamente impossível.

Seja como for, a obra de Piketty põe o dedo na ferida presente no sonho americano atual. Claro que um sonho, como um cínico – ou um antropólogo – poderia dizer, não precisa, necessariamente, ser “real” para funcionar como um elemento de coesão social; o que se precisa é ter as pessoas acreditando na ilusão. Mas poderá o “American dream” [o sonho americano], agora, sobreviver a uma mudança em direção à oligarquia? Poderá o mito igualitário, entretanto, agir como um fator de coesão social? Estas são as grandes perguntas implícitas no livro; e se a análise de Piketty estiver correta, elas só poderão se tornar mais agudas nos próximos anos na medida em que a desigualdade alimentar não apenas mais desigualdade, mas também uma maior dissonância cognitiva.

Informando:
Este livro será publicado no Brasil no segundo semestre de 2014,
pela editora Intrínseca, com o título: O Capital no Século XXI.

Traduzido do inglês por Isaque Gomes Correa.

"Dissonância cognitiva é um termo da psicologia social, que se refere ao conflito entre duas ideias, crenças ou opiniões incompatíveis. Como esse conflito geralmente é desconfortável os indivíduos procuram acrescentar 'elementos de consonância', mudar uma das crenças, ou as duas, para torna-las mais compatíveis".(Fonte: Wikipédia - A enciclopédia livre, clique aqui).

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 30 de abril de 2014 – Internet: clique aqui. 

“O Capital no século XXI” 
revoluciona ideias sobre desigualdade

Paul Krugman
The New York Times
Folha de S. Paulo
26/04/2014

Thomas Piketty, professor na Escola de Economia de Paris, não é muito conhecido, ainda que isso possa mudar com a publicação em inglês de sua abrangente e magnífica meditação sobre a desigualdade, "Capital in the Twenty-First Century". Mas sua influência é profunda.

Tornou-se comum afirmar que estamos vivendo uma segunda "Gilded Age" [Era Dourada, período de grande expansão econômica nos EUA entre 1870 e 1900] - ou, nas palavras de Piketty, uma segunda Belle Époque -, definida pela incrível ascensão do "1%". Essa afirmação só se tornou lugar-comum graças ao trabalho de Piketty.

Ele e colegas (especialmente Anthony Atkinson, de Oxford, e Emmanuel Saez, de Berkeley) são responsáveis pelo desenvolvimento de técnicas estatísticas que tornam possível rastrear a concentração de renda e de riqueza no passado distante - até o começo do século XX, no Reino Unido e nos EUA, e até o final do século XVIII na França.

O resultado foi uma revolução em nossa compreensão sobre as tendências da desigualdade em longo prazo.

Antes dessa revolução, a maioria das discussões sobre a disparidade econômica desconsiderava os muito ricos. Alguns economistas (para não mencionar políticos) tentavam sufocar aos gritos qualquer menção à desigualdade: "De todas as tendências prejudiciais a um estudo sólido da economia, a mais sedutora, e em minha opinião mais venenosa, é tomar por foco as questões de distribuição", declarou Robert Lucas, da Universidade de Chicago, o mais influente macroeconomista de sua geração, em 2004.

Mas mesmo aqueles que se dispunham a discutir a desigualdade se concentravam, em geral, na disparidade entre os pobres da classe trabalhadora e as pessoas prósperas, mas não mencionavam os verdadeiramente ricos.

O foco eram os formandos universitários cuja renda superava a de trabalhadores com nível mais baixo de educação, ou a sorte comparativa dos 20% mais prósperos da população ante os 80% menos afortunados, e não a rápida ascensão da renda dos executivos e banqueiros.

Portanto, foi uma revelação quando Piketty e colegas demonstraram que as rendas do hoje famoso "1%", e de grupos ainda mais estreitos, eram o mais importante na ascensão da desigualdade.

E essa descoberta surgiu acompanhada por uma segunda revelação: as menções a uma nova "Gilded Age", que podiam parecer hiperbólicas, na verdade nada tinham de exagerado.

Nos EUA, a proporção da renda nacional reservada ao 1% mais rico seguiu uma curva em U. Antes da Primeira Guerra Mundial, o 1% mais rico detinha 20% da renda nacional, tanto nos EUA quanto no Reino Unido. Por volta de 1950, essa proporção caíra a menos da metade. Mas de 1980 para cá a parcela reservada ao 1% disparou de novo - e nos Estados Unidos ela retornou ao ponto em que estava um século atrás.

Ainda assim, a elite econômica atual é muito diferente da elite do século XIX, não? Na época, as grandes fortunas tendiam a ser hereditárias; a elite econômica atual não é formada por pessoas que conquistaram suas posições com base no mérito?
Anthony Barnes Atkinson - economista de Oxford (Inglaterra)

Bem, Piketty nos diz que isso não é tão verdade quanto podemos imaginar e que de qualquer forma esse estado de coisas pode se provar não mais duradouro do que a sociedade de classe média que floresceu por uma geração depois da Segunda Guerra Mundial.

A grande ideia de "Capital in the Twenty-First Century" é não só a de que retornamos ao século XIX em termos de desigualdade de renda como a de que estamos no caminho de volta ao "capitalismo patrimonial", no qual os grandes píncaros da economia são ocupados não por indivíduos talentosos mas por dinastias familiares.

É uma afirmação notável - e é precisamente por ser tão notável que ela precisa ser examinada de maneira crítica e cuidadosa. Antes que eu trate desse assunto, porém, permita-me afirmar já de saída que Piketty escreveu um livro verdadeiramente soberbo. O trabalho combina abrangência histórica - quando foi a última vez que você ouviu um economista invocar Jane Austen e Balzac? - e análise minuciosa de dados.

E, ainda que Piketty zombe dos economistas, como profissão, por sua "paixão infantil pela matemática", a base de sua argumentação é um tour de force [trad.: façanha, proeza] de modelagem econômica, uma abordagem que integra a análise do crescimento econômico à da distribuição de renda e riqueza.

Esse é um livro que mudará a maneira pela qual pensamos sobre a sociedade e pela qual concebemos a economia.

O que sabemos sobre a desigualdade econômica, e sobre os momentos específicos nos quais adquirimos conhecimento sobre ela?

Até que a revolução de Piketty varresse o campo, a maior parte do que sabíamos sobre desigualdade de renda e riqueza vinha de pesquisas nas quais domicílios escolhidos aleatoriamente preenchem um questionário, e suas respostas são computadas para produzir um retrato estatístico do todo.

O padrão internacional para essas pesquisas é o levantamento anual conduzido pelo Serviço de Recenseamento dos EUA. O Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) também conduz uma pesquisa trienal sobre a distribuição de riqueza. As duas pesquisas são um guia essencial quanto à mudança da forma da sociedade dos Estados Unidos. Entre outras coisas, apontam para uma virada dramática no crescimento econômico americano, iniciada por volta de 1980.

Antes disso, famílias de todos os níveis viam suas rendas crescerem mais ou menos em linha com o ritmo de crescimento da economia como um todo. Depois de 1980, porém, a parte do leão dos ganhos passou a caber ao topo da escala de renda, e as famílias na metade inferior ficaram muito para trás.

Historicamente, outros países não mostravam igual eficiência em rastrear quem fica com o que; mas a situação mudou ao longo do tempo, em larga medida devido ao Estudo de Renda do Luxemburgo (do qual em breve farei parte). E a crescente disponibilidade de dados de pesquisa que podem ser comparados entre diferentes países resultou em novas percepções importantes.

Sabemos agora, especialmente, tanto que os Estados Unidos têm uma distribuição de renda muito mais desigual que a das economias avançadas da Europa quanto que boa parte dessa diferença pode ser atribuída diretamente a ações do governoAs nações europeias em geral têm rendas altamente desiguais como resultado das atividades de mercado, como os Estados Unidos, ainda que talvez não na mesma extensão. Mas conduzem redistribuição muito maior por meio de taxas e transferências do que os Estados Unidos fazem, o que resulta em desigualdade muito menor em termos de renda disponível.

No entanto, apesar de toda a sua utilidade, os dados dessas pesquisas têm limitações importantes. Tendem a subestimar, ou desconsiderar de todo, a renda que cabe ao punhado de indivíduos que ocupam o verdadeiro topo da escala de renda. Também apresentam profundidade histórica limitada. Os dados de pesquisa norte-americanos, por exemplo, remontam a apenas 1947.

É aí que entram Piketty e seus colegas, que se voltaram a uma fonte de dados inteiramente diferente: os registros tributários. Essa ideia não é novidade. De fato, as análises iniciais de distribuição de renda dependiam de dados tributários, porque não havia muitos outros dados com que pudessem contar. Piketty e seus colaboradores, porém, encontraram maneiras de combinar dados tributários e outras fontes a fim de produzir informações que complementam de maneira crucial os dados das pesquisas. E as estimativas baseadas nos impostos podem recuar muito mais ao passado.

Os Estados Unidos têm um imposto sobre a renda em vigor desde 1913; no Reino Unido, ele surgiu em 1909; a França, graças aos registros elaborados de coleta de impostos sobre propriedades e aos seus históricos detalhados, tem dados sobre patrimônio que remontam ao final do século XVIII.

Explorar esses dados não é fácil. Mas usando todos os truques da profissão, e alguns palpites bem informados, Piketty consegue produzir um sumário da queda e ascensão da desigualdade extrema ao longo dos últimos cem anos.

Como eu disse, descrever nossa era como uma nova "Gilded Age" ou Belle Époque não é simples hipérbole; é a verdade pura e simples. Mas como foi que isso aconteceu? 
Emmanuel Saez - economista de Berckeley (Califórnia, EUA)

Piketty lança um desafio intelectual imediato com o título do seu livro: "Capital no Século XXI". Economistas ainda podem falar assim? Não é apenas a alusão evidente a Marx que torna o título tão surpreendente. Ao invocar o capital desde o começo, Piketty abandona as discussões mais modernas sobre a desigualdade e retorna tradição mais antiga.

A suposição geral da maior parte dos pesquisadores sobre a desigualdade era que a renda auferida, em geral na forma de salário, é o mais importante, e que a renda gerada pelo capital não é nem importante nem interessante.

Piketty demonstra, porém, que mesmo hoje é a receita do capital, e não a renda do trabalho, que predomina no topo da distribuição de renda. Ele também demonstra que, no passado - durante a Belle Époque europeia e, em menor escala, a "Gilded Age" norte-americana - a propriedade desigual de ativos, e não o salário desigual, foi o principal propulsor da disparidade de renda. E argumenta que estamos no caminho de volta àquele tipo de sociedade.

Não se trata de especulação casual de sua parte. "Capital in the Twenty-First Century", afinal, é um trabalho que respeita os princípios do empirismo, e é propelido por um arcabouço teórico que busca unificar a discussão do crescimento econômico e da distribuição tanto de renda quanto de riqueza. Piketty basicamente vê a história econômica como a de uma corrida entre a acumulação de capital e outros fatores que propelem o crescimento, como o crescimento populacional e o progresso tecnológico.

É certo que essa é uma corrida que não pode ter vencedor permanente. Em prazo muito longo, o estoque de capital e a renda total precisam crescer mais ou menos no mesmo ritmo. Mas um lado ou outro pode permanecer décadas em vantagem.

Na véspera da Primeira Guerra Mundial, a Europa havia acumulado capital seis ou sete vezes maior que a renda nacional de cada país. Ao longo das quatro décadas seguintes, porém, uma combinação de destruição física e de desvio de poupança para esforços de guerra reduziu essa proporção à metade.

A acumulação de capital foi retomada depois da Segunda Guerra Mundial, mas o período registrou crescimento econômico espetacular - os "Trente Glorieuses", ou "30 anos gloriosos". Por isso, a razão entre capital e renda permaneceu baixa.

Desde os anos 70, porém, a desaceleração do crescimento implicou em alta na razão entre capital e renda, de modo que o capital e a riqueza vêm caminhando de volta aos níveis que detinham na Belle Époque. Essa acumulação de capital, diz Piketty, terminará por recriar desigualdade ao estilo da Belle Époque, a menos que seja combatida por tributação progressiva.

Por quê? É tudo uma questão de r versus g: a taxa de retorno sobre o capital (r) versus o ritmo de crescimento econômico (g).

Quase todos os modelos econômicos nos dizem que, caso g caia - o que vem acontecendo desde os anos 70 e deve continuar -, r cairá. Mas Piketty assevera que r cairá menos que g. Se for suficientemente fácil substituir trabalhadores por máquinas - se, para usarmos o jargão técnico, a elasticidade de substituição entre capital e trabalho for superior a um -, o crescimento lento, e a alta consequente na razão entre capital e renda, ampliarão a disparidade entre r e g.

E Piketty argumenta que é isso que os registros históricos provam que acontecerá.

Uma consequência imediata será uma redistribuição da renda, dos trabalhadores para os detentores de capital.

A sabedoria dominante foi sempre a de que não precisávamos nos preocupar, que as parcelas respectivas do capital e do trabalho na renda total se provam fortemente estáveis ao longo do tempo. Em prazo muito longo, porém, isso pode não ser verdade. No Reino Unido, por exemplo, a parcela do capital na renda - quer em forma de lucros empresariais, dividendos, renda fixa ou vendas de propriedades, por exemplo - caiu de cerca de cerca de 40% antes da Primeira Guerra para pouco mais de 20% em 1971, e de lá para cá recuperou cerca de metade do terreno. Nos EUA, esse arco histórico é menos claro, mas a redistribuição em favor do capital está em curso.

É especialmente importante apontar que os lucros das empresas dispararam desde o começo da crise financeira, enquanto os salários - incluindo os das pessoas com nível mais elevado de educação - se estagnavamUma parcela maior para o capital, por sua vez, eleva diretamente a desigualdade, porque a propriedade do capital é sempre distribuída de modo mais desigual do que a renda do trabalho.

Mas os efeitos ultrapassam isso, porque, quando o ritmo de retorno sobre o capital excede fortemente o ritmo de crescimento, "o passado tende a devorar o futuro": a sociedade tende a ser dominada pela riqueza hereditária.

Considere a Europa da Belle Époque. Os proprietários de capital podiam esperar retornos de 4% a 5% sobre seus investimentos, com tributação mínima; enquanto isso o crescimento econômico era de apenas cerca de 1% ao ano. Assim, os ricos podiam reinvestir parte suficiente de sua renda para garantir que sua riqueza, e sua renda, crescesse mais rápido que a economia, o que reforçava seu domínio, e ao mesmo tempo gastar o suficiente para levar vidas de grande luxo. 

E o que acontecia quando esses indivíduos ricos morriam? Sua riqueza era legada aos herdeiros, com tributação mínima. Dinheiro herdado respondia por entre 20% e 25% da renda anual; a maior proporção das riquezas (cerca de 90%) era herdada e não auferida com o trabalhoE se concentrava nas mãos de minorias muito pequenas. Em 1910, o 1% mais rico da população controlava 60% da riqueza da França; na Grã-Bretanha, eram 70%.

Não admira, portanto, que os romancistas do século 19 fossem obcecados por heranças. Piketty discute extensamente os conselhos do canalha Vautrin a Rastignac em "Pai Goriot", de Balzac, resumidos na afirmação de que nem a mais bem-sucedida carreira poderia resultar em mais que uma fração da fortuna que Rastignac seria capaz de adquirir ao se casar com a filha de um homem rico. Vautrin estava certo: ser parte do 1% mais rico dos herdeiros do século 19 conferia um padrão de vida 2,5 vezes superior ao que se poderia atingir por meio de esforço que a levasse ao 1% mais bem pago dos trabalhadores.

Seria tentador dizer que a sociedade moderna em nada se parece com isso. Mas tanto a renda do capital quanto a riqueza hereditária, ainda que menos importantes do que na Belle Époque, continuam a ser poderosos propulsores da desigualdade - e sua importância está crescendo. Na França, mostra Piketty, a parcela hereditária da riqueza total caiu muito nas guerras e no pós-guerra; por volta de 1970, era de menos de 50%. Mas retornou aos 70% e continua a crescer

Da mesma forma, houve primeiro queda e depois nova alta na importância das heranças no que tange a fazer de alguém parte da elite. O padrão de vida do 1% de herdeiros mais ricos caiu abaixo do 1% de trabalhadores mais bem pagos, entre 1910 e 1950, mas voltou a crescer depois de 1970. Ainda não estamos plenamente de volta ao padrão de Rastignac, mas uma vez mais se tornou mais valioso ter os pais certos (ou escolher os sogros certos) do que o emprego certo.

E isso pode ser apenas o começo. As estimativas de Piketty sobre o r e g mundiais em longo prazo sugerem que a era da equalização ficou para trás e que as condições são propícias ao restabelecimento do capitalismo patrimonial.

Dado esse quadro, por que a riqueza hereditária desempenha papel tão pequeno no discurso político moderno? Piketty sugere que as dimensões das fortunas hereditárias, por serem tão vastas, as tornam invisíveis: "A riqueza é tão concentrada que um grande segmento da sociedade literalmente não tem consciência de sua existência, de forma que algumas pessoas imaginam que pertença a entidades surreais". É um argumento muito bom. Mas certamente não constitui a explicação completa. Pois o fato é que o exemplo mais conspícuo de uma disparada na desigualdade no mundo moderno - a ascensão do 1% de muito ricos no mundo anglo-saxão, especialmente nos EUA, não tem muito a ver com acúmulo de capital, pelo menos por enquanto. Tem mais a ver com remuneração e renda salarial excepcionalmente altas.

"Capital no Século XXI", como espero ter deixado claro, é um trabalho excelente. Em um momento no qual a concentração de renda e riqueza nas mãos de uns poucos ressurgiu como questão política central, Piketty não oferece apenas documentação inestimável sobre o que está acontecendo, e com profundidade histórica incomparável. Também oferece o que podemos descrever como uma teoria do campo unificado para a desigualdade, integrando crescimento econômico, a distribuição de renda entre o capital e o trabalho e a distribuição de renda e riqueza entre os indivíduos em um só arcabouço.

E, no entanto, há uma coisa que subtrai algum mérito a essa realização - uma espécie de prestidigitação intelectual, se bem que ela não envolva nenhuma trapaça ou falsidade da parte de Piketty.

Mesmo assim, eis: O principal motivo para que houvesse necessidade de um livro como esse é a ascensão não só do 1%, mas do 1% dos EUA, especificamente. Mas essa ascensão, como se verifica, aconteceu por razões que não integram o escopo da grande tese de Piketty.

Ele é um economista bom e honesto demais para tentar enrolar com relação a fatos inconvenientes. "A desigualdade nos EUA em 2010", afirma, "é quantitativamente tão extrema quanto na velha Europa da primeira década do século 20, mas a estrutura dessa desigualdade é - muito claramente - distinta". De fato, o que vimos nos EUA e estamos começando a ver em outros lugares é algo de "radicalmente novo": a ascensão dos "supersalários".

O capital ainda importa. Nos escalões mais elevados da sociedade, a renda do capital ainda excede a renda dos salários e bonificações. Piketty estima que a desigualdade aumentada da renda do capital responda por cerca de um terço do aumento da desigualdade nos EUA. Mas a renda salarial no topo também disparou. Os salários reais dos EUA cresceram pouco, se alguma coisa, do começo dos anos 70 para cá, mas os salários do 1% mais bem pago subiram em 165%, e os do 0,1% mais bem pago, 362%. Se Rastignac estivesse vivo hoje, Vautrin talvez reconhecesse que ele poderia se sair tão bem arrumando emprego à frente de um fundo de hedge quanto com um casamento rico.

O que explica essa ascensão dramática na desigualdade de renda, com a parte do leão dos ganhos reservada às pessoas no topo da escala? Alguns economistas dos EUA sugerem que a tendência seja propelida por mudanças na tecnologia. Em um famoso estudo publicado em 1981, intitulado "A Economia dos Superastros", Sherwin Rosen, economista de Chicago, argumentava que a moderna tecnologia de comunicação, ao estender o alcance dos indivíduos talentosos, criava mercados nos quais todas as recompensas cabiam ao vencedores, mesmo que eles fossem apenas modestamente melhores naquilo que fazem do que rivais menos bem pagos.

Piketty não aceita essa teoria. Ele aponta que economistas conservadores adoram falar sobre os altos salários de astros de cinema ou do esporte, para sugerir que as altas rendas são merecidas. Mas esse tipo de pessoa forma uma fração muito pequena da elite. O que há é principalmente executivos - cujo desempenho é, de fato, muito difícil de avaliar ou de definir em termos de valor monetário.

O que determina o valor de um presidente-executivo em uma grande companhia? Bem, existe um comitê de remuneração, indicado pelo presidente-executivo mesmo. Na prática, argumenta Piketty, os executivos de alto nível ditam sua remuneração, restringidos apenas pelas normas sociais e não por qualquer forma de disciplina de mercado. E ele atribui a disparada nos salários a uma erosão das normas sociais. Na prática, ele atribui a disparada na renda salarial entre os mais bem pagos a forças sociais e políticas, e não estritamente econômicas.

É justo apontar que ele oferece uma possível análise econômica sobre essa mudança de normas, argumentando que a queda das alíquotas tributárias para os ricos na verdade fez com que a elite ganhasse em ousadiaQuando um importante executivo retinha apenas uma pequena fração da renda que poderia receber violando as normas sociais e estabelecendo para si mesmo um salário muito alto, ele talvez decidisse que o opróbrio que sofreria nesse caso não valeria a pena. Mas o corte drástico de sua alíquota tributária pode levar uma pessoa como essa a se comportar diferentemente. E quanto mais os titulares de supersalários violarem as normas, mais essas normas mesmas mudarão.

Há muito a elogiar nesse diagnóstico, mas lhe falta claramente o rigor e a universidade da análise de Piketty sobre a distribuição e retornos da riqueza. Além disso, não acho que "Capital no Seculo XXI" rebata adequadamente a crítica mais reveladora quanto à hipótese sobre o poder dos executivos: a concentração de rendas muito altas nas finanças, onde é possível avaliar desempenhos. Não mencionei administradores de fundo de hedges irrefletidamente. Pessoas como eles são pagas com base em sua capacidade de atrair clientes e obter retornos sobre seus investimentos. Pode-se questionar o valor social das finanças modernas, mas os Gordon Gekkos do mercado são claramente bons em alguma coisa, e sua ascensão não pode ser atribuída apenas a relações de poder, ainda que eu imagine que seja possível argumentar que a disposição de se envolver em transações financeiras dúbias, assim como a disposição de violar as normas sociais quanto aos salários, é incentivada pelos impostos baixos.

No geral, a explicação de Piketty sobre a alta na desigualdade salarial me parece convincente, ainda que o fato de que não inclua a desregulamentação no quadro analítico seja um desapontamento significativo. Mas, como afirmei, a análise dele quanto a isso carece do rigor de sua análise sobre o capital, para não mencionar sua imensa e inspiradora elegância intelectual.

No entanto, não devemos exagerar em nossa reação a isso. Mesmo que a disparada na desigualdade norte-americana até o momento tenha sido propelida principalmente por renda salarial, o capital ainda assim exerceu papel significativo. E, de qualquer jeito, a história no futuro deve se provar bastante diferente. A atual geração de norte-americanos muito ricos pode consistir em larga medida de executivos e não rentiers, ou seja, pessoas que vivem de capitais acumulados. Mas esses executivos têm herdeiros. E dentro de duas décadas os EUA podem ser uma sociedade dominada pelos rentiers, com desigualdade ainda maior do que a da Europa na Belle Époque.

O que não significa que isso precise inevitavelmente acontecer.

Há momentos em que Piketty parece oferecer uma visão determinista da história, sob a qual tudo deriva do ritmo de crescimento populacional e de progresso tecnológico. Na realidade, porém, "Capital in the Twenty-Fist Century" deixa claro que a política pública pode fazer imensa diferença. Mesmo se as condições econômicas apontarem para desigualdade extrema, isso pode ser detido e até revertido, se o organismo político assim decidir. 

O ponto chave é que o que importa é o retorno obtido pela riqueza após os impostos. Assim, uma taxação progressiva - especialmente da riqueza e das heranças - pode limitar a desigualdade. Infelizmente, a história que Piketty mesmo conta não leva ao otimismo.

É verdade que, por boa parte do século XX, uma forte tributação progressiva ajudou a reduzir a concentração de renda e riqueza. Poderia-se imaginar que uma alta tributação para rendas mais elevadas seja o desfecho político natural para enfrentar desigualdades extremas. Mas Piketty rejeita essa conclusão: o triunfo da tributação progressiva durante o século XX foi apenas "o efêmero produto do caos".

Como provas, ele oferece o exemplo da Terceira República francesa [1870-1940]. A ideologia oficial da república era altamente igualitária. Mas a riqueza e a renda eram quase tão concentradas, os privilégios econômicos quase tão dominados pelas heranças, quanto na monarquia constitucional britânica. E a política pública quase nada fazia para se opor ao domínio econômico dos rentiers: os impostos sobre as heranças eram ridiculamente baixos.

Por que os cidadãos franceses não votavam em políticos que assumissem o compromisso de enfrentar a classe dos rentiers? Bem, então, como agora, a riqueza comprava muita influência não apenas sobre a política, mas sobre o discurso público.

O mesmo fenômeno é visível hoje. Um aspecto curioso do cenário americano é que a política da desigualdade parece estar caminhando até à frente da realidade. Como vimos, a essa altura as elites econômicas dos EUA ainda devem seu status aos salários, e não à renda do capital.

Mesmo assim, a retórica econômica conservadora já enfatiza e celebra o capital, de preferência ao trabalho - os "criadores de empregos", não os trabalhadores.

[...]

Piketty conclui com um apelo, especialmente, por impostos sobre a riqueza, se possível em escala mundial. É fácil ser cínico sobre as perspectivas de sucesso dessa empreitada. Mas certamente o magistral diagnóstico de Piketty sobre a situação para a qual nos encaminhamos torna o êxito consideravelmente mais provável. Por isso, seu livro é extremamente importante em todas as frentes. Piketty transformou nosso discurso econômico; jamais voltaremos a falar sobre renda e desigualdade como fazíamos.

Traduzido do inglês por Paulo Migliacci.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Terça-feira, 29 de abril de 2014 – Internet: clique aqui.

CORRUPÇÃO: Lavando dinheiro público

Editorial
Alberto Youssef - megadoleiro

Uma amostra, apenas uma amostra, do que se faz com o dinheiro do contribuinte no Brasil - quando os que deviam zelar por ele estão olhando para o outro lado ou fingem manter os olhos bem fechados enquanto as lambanças correm soltas no seu campo de visão - está no relatório da Polícia Federal (PF) sobre a evasão de divisas em escala industrial para a qual foi usado o Laboratório Labogen. Trata-se de uma das tantas firmas de fachada abertas pelo megadoleiro Alberto Youssef para que pudesse aprimorar o exercício de sua especialidade. O seu nome veio a público pela primeira vez no curso da CPI do Banestado que, entre 2002 e 2004, apurou a remessa ilegal de cerca de R$ 30 bilhões para o exterior pelo clássico método do dólar cabo, a transferência virtual de valores.
Antes de ser preso e indiciado - assim como o seu colaborador próximo Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás -, Youssef havia modernizado a sua atividade. A quebra do sigilo bancário e fiscal do Labogen, no âmbito da Operação Lava Jato, da PF, evidenciou que, entre janeiro de 2009 e dezembro de 2013, a firma assinou 1.945 contratos de câmbio em nome de duas coligadas, que também levam o seu nome, para importações fictícias de medicamentos. Com isso, Youssef pôde transferir para seus cúmplices em Hong Kong e Taiwan US$ 113,3 milhões. Pelas contas da Procuradoria-Geral da República, foi mais. No mesmo período, as contas de três outras empresas - Hmar Consultoria em Informática, GFD Investimentos e Piroquímica Comercial - foram usadas por Youssef para despachar recursos obtidos de negócios superfaturados com órgãos públicos. Graças a 991 contratos mutretados de câmbio, desovaram no estrangeiro outros US$ 71 milhões.
A rede de lavanderias de Youssef terá movimentado ao todo R$ 10 bilhões, informou a Polícia Federal quando ele foi preso, em 17 de março último. Na semana passada, o doleiro foi acusado formalmente de ter usado o Labogen e similares de fachada para tirar clandestinamente do País US$ 444,7 milhões. Essa informação foi até certo ponto ofuscada pela divulgação de mensagens monitoradas pela PF entre ele e o deputado André Vargas, eleito pelo PT paranaense. Na mais bombástica do lote, de novembro de 2013, o parlamentar escreveu ao cambista que o então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, pré-candidato ao governo paulista, sugeriu o nome de um executivo para trabalhar no Labogen. O indicado, Marcus Cezar Ferreira da Silva, tinha sido nomeado em 2011 coordenador de promoção e eventos da pasta. Padilha negou ter parte com a história e anunciou que interpelará o deputado na Justiça. Ele, por sua vez, foi pressionado a sair do PT.
Sede do Laboratório Labogen (Indaiatuba - SP)
Só que Marcus Cezar está de fato no Labogen desde o ano passado, informa a Folha de S. Paulo. Ganha R$ 25 mil mensais para fazer lobby. Para a PF, o operador e testa de ferro da firma é o administrador Leonardo Meirelles. O relatório policial equipara a atuação do laboratório-lavanderia a uma "ferramenta para sangria dos cofres públicos". A Procuradoria é mais específica. Atribui a Youssef e ao ex-petroleiro Paulo Roberto Costa a prática de lavagem de dinheiro ilícito arrecadado mediante esquemas de corrupção e peculato (apropriação de recursos por funcionário da administração direta ou indireta). A cena do crime seriam as obras da inacabada Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, de cujas contas superfaturadas Costa teria extraído R$ 7,95 milhões em propinas. A instalação tinha sido orçada em US$ 2,3 bilhões. Não sairá por menos de US$ 20 bilhões.
Dep. Fed. André Vargas (ex-PT - PR)
"Caracterizada pela divisão formal de tarefas", afirma a Procuradoria, o Labogen tinha por objetivo "obter, direta ou indiretamente, vantagem indevida derivada dos crimes de peculato, corrupção ativa e corrupção passiva e lavagem de dinheiro em detrimento da Petrobrás". Nessa e em outras áreas, wheeler-dealers [fraudulentos] como Youssef e seus indispensáveis parceiros no Executivo, no Congresso e nas estatais fazem parte das tantas engrenagens responsáveis pelo crescimento criminoso do custo e da eternização das obras públicas no País. Sem falar na sonegação de tributos por negociantes inescrupulosos. Ao Estado resta pouco mais do que correr atrás do prejuízo.
Fonte: O Estado de S. Paulo - Notas & Informações - Terça-feira, 29 de abril de 2014 - Pg. A3 - Internet: clique aqui.

Envelhecimento no campo

Xico Graziano*

Nas comemorações do Dia do Trabalho, que ocorrem esta semana, sempre se costuma reclamar, com razão, do desemprego. Na economia agrária, porém, esse problema desapareceu da agenda. Ao contrário de antes, quando sobrava gente na roça e não havia faina para todos, atualmente o campo se esvaziou. Procura-se trabalhador.
"Apagão de mão de obra" foi destaque da Bienal da Agricultura, encontro recentemente promovido, em Cuiabá, pela Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato). Especialmente no Centro-Oeste, nas fronteiras de expansão da agricultura nacional, depara-se com forte escassez de pessoal. Segundo Alexandre Mendonça de Barros, consultor presente no evento, o grande desafio hoje é "encontrar, qualificar e reter o profissional" na fazenda. Nada fácil.
Nas novas regiões agropecuárias do Brasil central impera o mundo da moderna tecnologia. E a oferta de trabalho local não mostra tarimba capaz de operar os sistemas tecnológicos, mecanizados e computadorizados que funcionam na linha de produção rural. A "agricultura de precisão", conectada aos satélites de posicionamento global (GPS), avança maximizando a produtividade e minimizando o uso de insumos. Maravilha tecnológica da lavoura nacional, o plantio direto, que permite realizar duas ou três safras sucessivas na mesma área, ou ainda a integração entre a lavoura e a pecuária - sai a soja entra a boiada - são sistemas que exigem elevada qualificação profissional. Tudo mudou desde quando a enxada carpia o mato do milharal e as galinhas caipiras botavam ovos no ninho do curral.
Onde ocorreu a ocupação agrícola tradicional, como nas zonas cafeeiras de Minas Gerais e São Paulo, próximas das montanhas da Mantiqueira, o gargalo anda apertando na hora da colheita. No passado, sobrava gente para a apanha do café; hoje, é cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas a subir os morros, derriçar os grãos, varrer o chão, ensacar o produto. Fora a qualidade. O que se fala, por aí afora, é que sumiram os trabalhadores dedicados, e os que se recrutam agora fazem meros bicos, sem gosto pelo serviço. Desejam ocupações mais "nobres" do que sofrer debaixo do sol escaldante. A escassez e a baixa qualificação da mão de obra afetam igualmente a colheita manual na citricultura. Pior, volta e meia se descamba para o litígio na Justiça. Em vários setores de produção no campo, a outrora alegria da colheita se transformou no desgosto da encrenca trabalhista.
Nesse contexto, a mecanização da colheita continua se impondo. Há meio século as primeiras colheitadeiras, mais simples, começaram a chegar às lavouras de milho e de arroz. Depois, mais elaboradas, avançaram para o feijão e o algodão. O progresso tecnológico nunca cessou. Complexas e eficientes máquinas dominaram também fases jamais imaginadas escaparem do processo manual, por serem difíceis, tais como o arranquio de batatas ou de amendoim. O último degrau da sofisticação da colheita chegou aos cafezais. Poucos conseguem imaginar como uma supercolheitadeira consegue, com seus múltiplos bastões, qual dedos vibratórios, derrubar os grãos de café por dentro da planta, derrubando-os automaticamente sem quebrar a galharia. Simplesmente sensacional.
Colheitadeira de café
Há tempos os economistas agrários discutem sobre este dilema histórico: a falta de trabalhadores estimulou a mecanização da colheita ou foi a introdução da colheita mecânica que expulsou os operários rurais? A difícil resposta, semelhante ao enigma do ovo e da galinha - quem veio primeiro? -, pouco importa aqui. Fundamental é mostrar que, na realidade da agricultura brasileira atual, existe falta de mão de obra generalizada, nas tarefas simples ou qualificadas, lacuna que em alguns lugares já está causando a desistência da produção rural. Nem se encontram mais facilmente trabalhadores permanentes dispostos a residir nas propriedades rurais. Desamparadas, cresce nelas o roubo vulgar.
Soma-se a esse cenário socioeconômico um terrível fenômeno demográfico: o envelhecimento dos agricultores. Não apenas os operários progressivamente se distanciam do campo, em busca das oportunidades e do modo de vida oferecidos na cidade grande, como poucos filhos permanecem ao lado dos pais, suportando sua trajetória, atavicamente apaixonados pelo ambiente agrícola. Os jovens saem para estudar e buscam fazer brilhar sua carreira longe da poeira do estradão. Nada segura a força de atração dos aglomerados urbanos.
Não é exclusivo do Brasil. Na Europa, o envelhecimento dos produtores rurais vem sendo analisado há muito tempo. No relatório (2013) do Parlamento Europeu para a aprovação da atual Política Agrícola Comum (PAC), lamenta-se que apenas 7% dos agricultores europeus apresentam menos de 40 anos e que daqui a cerca de 10 anos 4,5 milhões de produtores rurais irão se aposentar. Esse drama agrário atrapalha a inovação, empaca a produtividade, reduz a ousadia. A notória perda de competitividade agrícola foi compensada com fartos subsídios, que seguram a renda familiar e confortam os agricultores, mas, ao mesmo tempo, os acomoda.
Nos EUA também se discute, nestes dias, a alteração nos vistos de entrada para trabalhadores estrangeiros, incluindo o programa H2-A, destinado aos assalariados temporários na agricultura. A Califórnia, especialmente, ressente-se da falta de mão de obra rural. Segundo a Western Growers Association, 80 mil acres de frutas e vegetais deixaram de ser cultivados no Estado em decorrência da falta de braços nas lavouras.
Como atrair gente para o trabalho na agricultura? Como estimular os jovens a permanecerem no campo? As respostas indicarão o Brasil que será construído no futuro.
* Xico Graziano é agrônomo, foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.
Fonte: O Estado de São Paulo - Espaço aberto - Terça-feira, 29 de abril de 2014 - Pg. A2 - Internet: clique aqui.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

NADA DE TV E INTERNET NO QUARTO?

Jairo Bouer
Psiquiatra

Televisão ou internet no quarto é tudo o que seu filho quer na vida, mas novas evidências têm demonstrado que essa pode ser uma péssima ideia para a saúde dele. Pesquisa da Escola de Saúde Pública de Harvard, nos Estados Unidos, publicada no jornal inglês Daily Mail da semana passada [clique aqui], mostra que, para cada hora de televisão a que as crianças assistem por dia, elas perdem sete minutos de sono.

O estudo avaliou 1.800 crianças entre 6 meses e 8 anos. Quem tinha TV no quarto dormia menos. Os garotos parecem ser ainda mais sensíveis à presença da tecnologia perto da cama. A avaliação faz parte de um projeto (Project Viva - acesse o site, clicando aqui), que acompanhou crianças de seu nascimento até 8 anos de idade para tentar determinar quais os fatores que podem influenciar seu desenvolvimento.
O trabalho foi um dos poucos que observaram o comportamento das crianças por um longo período de tempo, e o resultado mostra que tanto assistir a muita TV como ter uma televisão no quarto podem diminuir o tempo de sono em uma fase da vida em que dormir pelo menos oito horas é fundamental para a saúde. Algumas pesquisas recentes relacionam, por exemplo, menos horas de sono com um maior risco de obesidade em crianças e jovens.
Além disso, dormir menos pode piorar a concentração, a atenção, a memória e o rendimento em um momento em que as células nervosas estão se desenvolvendo em um ritmo acelerado e vão determinar nosso funcionamento intelectual e psíquico.
Não foi à toa que, há duas semanas, por exemplo, em Manchester, no Reino Unido, na Conferência Anual da Associação de Professores, noticiada pelo jornal Evening Standard, foi discutido o impacto que o uso dos tablets, celulares inteligentes e computadores, durante a noite, estão tendo no desempenho dos alunos em sala de aula.
Professores estão percebendo, cada vez mais, jovens sonolentos, irritados e com dificuldade de concentração após passarem noites em claro ou com poucas horas de sono por causa do uso excessivo de tecnologia, principalmente quando eles estão sozinhos, o que acontece com frequência em seus quartos à noite.
Redes sociais, serviços de troca instantânea de mensagens e jogos online seriam os principais "vilões" dessa história. Mesmo proibidos pelos pais de acessar a internet à noite, os jovens conseguem facilmente driblar esse controle graças, principalmente, aos dispositivos móveis e portáteis, como os smartphones.
Alguns desses professores, preocupados com essa queda de rendimento dos alunos na escola, e com medo do risco de dependência dos jovens à internet, sugeriram que os pais deveriam desligar o Wi-Fi de suas casas à noite, o que dificultaria o acesso das crianças.
Do ponto de vista da saúde, uma série de estudos tem demonstrado que tanto a radiação emitida pelas telas de celular e computador como a excitação psíquica provocada pelos jogos e papos online podem dificultar que o jovem "pegue" no sono. Além disso, há um problema crescente em desligar esses aplicativos no meio de uma conversa com amigos, de uma paquera ou de uma etapa eletrizante de um game, porque no dia seguinte existe trabalho ou escola.
Na semana passada, também, outra pesquisa mostrou mais um possível impacto negativo da internet, dessa vez principalmente em garotas. Realizado em universidades americanas e inglesas, o estudo sugeriu que as meninas que passam mais tempo nas redes sociais tenderiam a se comparar mais com amigas e conhecidas e teriam um risco maior de terem uma percepção negativa do seu corpo, da sua imagem e da sua aparência.
Talvez a principal conclusão de todos esses trabalhos seja que o uso das tecnologias precisa ser redimensionado, com urgência, na vida de muitos jovens.
Fonte: O Estado de S. Paulo -  Metrópole - Domingo, 27 de abril de 2014 - Pg. A21 - Internet: aqui aqui.