«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Um país sem imunidade para dementes

 O pior está por vir

 Vinicius Torres Freire

Mestre em Administração Pública por Harvard (Estados Unidos) e Jornalista 

Na guerra da vacina e do general Maria Fofoca, bomba econômica está armada

 

A diversão está garantida nessas próximas semanas em que o pavio da bomba econômica continuará queimando, sem que o país em geral se importe muito. A diversão maior, no sentido de desvio de atenção, virá da guerra da vacina que ainda nem existe, das decisões que o Supremo deve tomar sobre a obrigação de tomá-la e da aprovação da “vacina chinesa paulista” pela Anvisa e pelo governo. 

Enquanto isso, o centrão e alas do governo se ocupam de disputar cadeiras ministeriais. Jair Bolsonaro trata de sua preocupação maior, livrar filhos da cadeia. Parlamentares articulam a eleição dos novos comandos do Congresso. 

Até fins de novembro, as eleições nos Estados Unidos e nas cidades brasileiras vão dizer qual o valor de mercado eleitoral de extremistas e lunáticos em geral. 

Eventual derrota de Donald Trump e de candidatos bolsonaristas nas cidades maiores pode aumentar o passivo político de Bolsonaro, embora esse débito talvez não seja cobrado tão cedo.

O risco maior para o presidente é a política econômica, ora em estado de animação suspensa.

Parte do centrão e gente do governo disputam a cadeira do general Luiz Ramos, ministro da Secretaria de Governo. Com o general Braga Netto, ministro da Casa Civil, Ramos levou Bolsonaro a criar uma coalizão bastante pelo menos para evitar um impeachment. 

Foi chamado na sexta-feira de Maria Fofoca pelo ministro do Mau Ambiente, Ricardo Salles, desafeto dos militares. 

Não importa muito a rixa que detonou o mexerico vulgaríssimo, portanto condizente com este governo. Interessa que isso explicitou movimentos para decapitar Ramos. Outra disputa de boquinha-mor é a do Ministério do Desenvolvimento, que Bolsonaro estuda recriar. Enquanto o país morre, queima e se endivida, é disso que tratam no Planalto. 

A revista Época revelou que Bolsonaro recorre à Polícia Federal, a seus espiões e a outros recursos do governo para cuidar de rolo de filho. É disso, talvez um crime de responsabilidade, que trata o presidente. 

Não se liga muito para os sinais de infecção na economia:

* Desde fins de agosto, as taxas de juros subiram degraus e lá no alto ficaram.

* O dólar não baixa da casa perigosa dos R$ 5,60, dado o rebu incompetente de um governo endividado.

* A combinação de desvalorização da moeda e de auxílio emergencial levou os preços dos alimentos às maiores altas em mais de década (como em 2008, 2013 e 2016). 

O custo da comida ainda não incomoda de modo generalizado, como de costume, porque ainda se pagam auxílios. Se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas. 

Juros de longo prazo e dólar foram às alturas em grande parte porque o país não tem Orçamento para 2021, porque pode ser que tenha até dois (um outro “emergencial”) e porque os donos do dinheiro temem furos no teto de gastos. Bolsonaro e a elite política empurraram a discussão dessa crise para depois de novembro. 

As soluções para o impasse orçamentário não são politicamente boas. Bolsonaro pode:

* decidir estourar o orçamento, o que vai dar em besteira feia.

* Pode ignorar o auxílio aos pobres, o que vai dar em fome feia.

* Pode arrochar outrem a fim de financiar alguma renda básica.

* Terá de enfrentar reformas, como a politicamente divisiva mudança tributária, sem o que o país vai ficar mais encalacrado (não se trata de dizer que vai ficar melhor ou pior para esta ou aquela gente, mas ficará encalacrado). 

Mesmo que não se tomem as piores decisões, a retomada da economia ainda será incerta. Mas a gente se diverte com outros horrores. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Mercado – Domingo, 25 de outubro de 2020 – Pág. A21 – Internet: clique aqui (Acesso em: 26/10/2020.

Breve ideia do Brasil

 Janio de Freitas

Jornalista 

É humilhante que o país continue suportando a vergonheira nos seus Poderes

 

Imagem do projeto "Freedom Kick", que consistiu em uma pelada de futebol jogada com uma reprodução da cabeça do presidente Jair Bolsonaro, em São Paulo; o trabalho é do coletivo americano INDECLINE com o artista espanhol Eugenio Merino
Foto: Jason Goodrich/Indecline

Bolsonaro teve uma ideia. Ofertou-a a você, eleitor talvez inseguro entre os possíveis destinos do seu voto. Bolsonaro criou a chave atualizada para o voto justo, consciente e consequente. “Você quer reeleger um cara ou não. Vê o que ele fez durante a pandemia. Vê se você concorda com as medidas que ele tomou, se fez o que você achava que tinha que fazer ou não. E você decide o seu voto.” 

É uma chave suficiente para lançar a ambição reeleitoral e o próprio Bolsonaro, e antes alguns prefeitos, na famosa lixeira da história. É ainda a resposta do eleitor a quem o abandona aos piores riscos, se não já à vitimação perversa, à ausência inapagável de familiares. É a resposta necessária para compensar, ao menos no plano individual, o escapismo acovardado e vendilhão dos apelidados de autoridades institucionais. As figuras minúsculas incumbidas de resguardar a população, e seu país, da sanha louca que não os quer sob a proteção nem de incertas vacinas. 

Surpreendo-me no dever de dar a João Doria o reconhecimento da única reação adequada ao desaforo feito ao país por Bolsonaro. “Não abrir mão” da sua “autoridade” para cancelar uma providência antipandemia, por politicagem obtusa, não é ato de autoridade. É o que disse Doria em seu momento até agora único:

“O presidente da República negar o acesso a uma vacina aprovada pela Anvisa, em meio a uma pandemia que já vitimou 155 mil brasileiros e deixou 5,1 milhões infectados, é criminoso”.

O Brasil não tem governo. E é difícil saber o que lhe resta, inclusive vergonha. Seu nome é posto em acordo de um punhado de ditaduras contra direitos das mulheres. O governo Trump manda a Brasília uma comissão para acordos econômicos. Econômicos? O chefe da delegação foi o secretário de Segurança Nacional dos Estados Unidos. O grupo, na verdade, veio pressionar os generais de Bolsonaro e outros da ativa no Exército contra a China. 

Pressão em especial contra a adoção do sistema 5G da Huawei, o mais avançado em prodígios da comunicação (os Estados Unidos estão com anos de atraso nesse campo). No seu disfarce habitual, que é um suborno nunca pago por completo, o governo Trump acenou com US$ 1 bilhão em ajuda, mas para comprar componentes americanos que substituam os da China em uso na telefonia daqui. 

A Amazônia e o Pantanal ardem, e os 1.600 combatentes do fogo recebem ordem de voltar às bases, porque não foram disponibilizados R$ 19 milhões que pagassem três meses de salários em atraso. No mesmo dia, Paulo Guedes discursa com pedido de dinheiro a investidores americanos e lhes diz: “Nos ajudem, em vez de só criticar. Toda essa história de matar índios, queimar florestas, é exagero”. Saíam os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais: em setembro foram detectados 32.020 focos na Amazônia, 60% acima de setembro do ano passado. Na mesma comparação mensal, o aumento do fogo no Pantanal chegou a 180%, com o maior quadro de incêndios de sua história. 

O cinismo, como o de Paulo Guedes, não pega mais. Nem por isso deixa de crescer. É o idioma desses que se passam por governo, dos que se deixam desmoralizar por Bolsonaro e desmoralizam seu generalato, dos que não podem fazer sessões no Supremo e podem fazer almoços e jantares com Bolsonaro e outros carnavalescos morais. Ao eleitor, é só não esquecer a ideia de Bolsonaro para escolher o voto. Mas é humilhante que o Brasil continue suportando, apenas para proveito do raso segmento de influentes, a vergonheira que se passa nos seus Poderes. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Poder / Colunista – Domingo, 25 de outubro de 2020 – Pág. A14 – Internet: clique aqui (Acesso em: 26/10/2020).

sábado, 24 de outubro de 2020

Sobre o matrimônio de homossexuais

 O Papa e as uniões civis homossexuais, “uma das grandes notícias do momento”

 José María Castillo

Teólogo espanhol

Religión Digital – 22-10-2020 

Estamos testemunhando a superação da estagnação que arrasta a Igreja desde o Iluminismo


A decisão do Papa Francisco, segundo a qual os homossexuais podem contrair matrimônio civil, já que o Direito Canônico (cân. 1055) define o citado matrimônio como “o consórcio de um homem e uma mulher para toda a vida”, foi uma das grandes notícias do momento, em um mundo tão agitado de notícias sensacionais, como estamos vivendo. 

Como é lógico, interessou especialmente aos homossexuais. Mas, se esse assunto for pensado de forma mais lenta, podemos e devemos dizer que estamos vivenciando um acontecimento que transcende o problema da homossexualidade. Isso claro, mas não só. Sem exagero nenhum, podemos garantir que estamos testemunhando a superação da estagnação que desde o século XVIII tem arrastado a Igreja, que foi ultrapassada pelo Iluminismo. 

Na verdade, e por incrível que pareça, a Igreja foi marginalizada, na sociedade e na cultura moderna, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789-1791). Declaração à qual o Papa Pio VI se opôs fortemente, em 29 de março de 1790, em uma assembleia de cardeais, na qual o Papa afirmou que os direitos humanos eram um atentado e uma ferida que foi feita à religião e para os direitos da Santa Sé. E assim o papado se manteve firme desde Pio VI, em 1790, até Pio X, em 1906. Aí veio a formulação do Direito Canônico, como já disse. Além disso, quando em 10 de dezembro de 1948 a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” foi assinada em Roma, Pio XII, poucos dias depois, fez um discurso, dirigido a toda a humanidade, no qual falou dos grandes acontecimentos do ano, mas nem mencionou “Direitos Humanos”. 

A primeira consequência de tudo isto, é que naquela hora o Estado da Cidade do Vaticano não poderia assinar – agora e depois de tantos anos – a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E a primeira coisa que ocorre a qualquer um é pensar: uma instituição que não pode assinar os Direitos Humanos, com que autoridade pode pregar o amor mútuo e universal como o primeiro e maior mandamento que o Senhor Jesus nos deixou em seu Evangelho? Isso, antes de tudo. 

Mas há, em tudo isso, algo muito mais sério. Algo que a teologia cristã não leva a sério. Refiro-me ao Mistério da Encarnação. Qual é o evento da Humanização de Deus.

Dizer que Deus se encarnou em Jesus é dizer que “o divino” se fundiu com “o humano”.

A tal ponto que, de acordo com os Evangelhos, quando o evento do juízo final chegar na realidade, e como é dito que Karl Rahner afirmou, tal juízo será um “juízo ateu”. Porque a ninguém vai ser perguntado se fez ou não fez tal coisa para Deus, mas eles vão nos dizer: “O que fizestes a um destes, tu fizestes a mim” (Mt 25,40). Além disso, quando Jesus se despediu dos discípulos, deu-lhes “um novo mandamento” (Jo 13,34-35). Que eles se amassem. Qual foi a novidade desta missão definitiva? Em que Deus não é mencionado. 

Termino com uma pergunta que nos obriga a pensar: Se o mais importante e decisivo é que nos amemos, será o que os altos funcionários da Cúria decidirem em Roma, que terá mais importância, mais peso e mais valor que o mais elementar e básico do amor, que é aceitar e viver a igualdade de todos em nossos direitos mais comuns, básicos e elementares? 

Papa Francisco, uniões civis e o reconhecimento da intimidade

 Andrea Grillo

Teólogo italiano

Come Se Non – 23-10-2020 

O “elogio da fraternidade” por parte de Francisco torna-se um novo paradigma eclesial, uma nova disciplina cultural e também uma nova interpretação da relação, tanto pessoal quanto sexual


As poucas frases com as quais o Papa Francisco respondeu a algumas perguntas em maio de 2019, repercutidas em um recente documentário, não têm as costas suficientemente largas para resistir a uma “mudança de paradigma”. 

No entanto, sem exagerar, elas podem ser consideradas um indício bastante autorizado de uma “passagem” que não é um exagero definir como “epocal”. Elas podem ser assim consideradas se comparadas à persistência, ao longo dos últimos dois séculos, de uma abordagem muito diferente às questões relativas ao exercício da sexualidade, às formas da convivência e da vida familiar, às separações e aos divórcios, pensados muitas vezes como “alterações” da doutrina matrimonial. 

De fato, desde o início, deve-se reconhecer que a “matéria” em torno da qual se exercita a discussão – ou seja, identidade sexual, família, matrimônio – não pode ser compreendida de forma “cindida”. A abstração de uma “competência eclesial” e de uma “competência civil” é – de fato – apenas a abstração que inventamos (e sofremos) a partir do Código de Direito Canônico de 1917. Uma invenção do século XX não é nem de direito divino, nem uma prova da existência de Deus. É, antes, a tentativa antimodernista (mas produzida com instrumentos rigorosamente modernos) para superar um “conflito de competências” sobre a vida dos sujeitos. 

Quem decide sobre a união? Quem decide sobre a geração? Deus ou o ser humano? A essa pergunta drástica demais – e equivocada demais – demos respostas inevitavelmente exageradas, tanto do lado eclesial, quanto do lado civil. 

Daí nasceu o imaginário difundido – e não muito escondido – de uma espécie de “revanche” contra a “brecha da Porta Pia”, que iludiu a Igreja de poder definir um âmbito de autoridade – matrimônio e família – sobre o qual poderia se declarar como a única competente. Quase uma resistência de uma pequena fatia de “poder temporal”. 

Foi assim desde o fim do século XIX, passando pelo Código, até os anos 1920. Depois, já naquela década, com a Concordata, foi preciso renunciar à exclusividade e chegar a um acordo com o diabo... que, depois, não era assim tão diabólico, mesmo que, nesse caso, era precisamente um Estado “não liberal”. E a aposta em unir dois “antiliberalismos” – um antimoderno e outro hipermoderno – não durou sequer 20 anos. 

Apesar da Segunda Guerra Mundial, do Concílio Vaticano II e do início da reforma da Igreja, a abordagem sobre a doutrina matrimonial permaneceu muito encastelada e se fortaleceu com os choques sobre as duas leis civis, primeiro sobre o divórcio e depois sobre a interrupção da gravidez. Duas leis que foram vividas como “traumas”. 

Essa leitura unilateralmente pedagógica da lei civil estendeu-se ao longo do século, até a Familiaris consortio [de São Papa João Paulo II], em 1981, e mais adiante, até os dois Sínodos de 2014 e 2015. Mas, com a Amoris laetitia [de Papa Francisco], as coisas mudaram. Não tanto no plano da imediata operatividade de novas disciplinas, mas precisamente no coração de uma doutrina identificada com a “lei objetiva”. 

A esperança de poder “juridicizar” cada questão, para torná-la um exercício de autoridade formal, e a consequente confusão entre prerrogativas civis e prerrogativas eclesiais, cessa ao se chocar com as palavras límpidas com as quais a Amoris laetitia redefine, ao mesmo tempo, o papel do magistério, o fenômeno familiar e a relação com a lei.

a) o magistério não deve definir tudo, mas saber escutar;

b) a família é acima de tudo um fato a ser reconhecido, formas plurais que vivem de comunhão;

c) A conformidade com a lei objetiva não implica, necessariamente, em conformidade com a vontade de Deus. 

A esse desenvolvimento, deve-se acrescentar, mais recentemente, com a encíclica Fratelli tutti [de Papa Francisco], a capacidade do magistério eclesial de falar no mesmo registro da Gaudium et spes, em um elogio à fraternidade humana e à amizade social, que não deve necessariamente partir da destruição da liberdade e da igualdade. 

A cena muda porque o campo não é mais dividido em duas partes contrapostas, entre VERDADE e LIBERDADE, entre DEVER e DIREITO, mas se busca, em vez disso, ilustrar os limites das conquistas de liberdade e de igualdade – que não devem ser rejeitadas como tais – porque devem ser relidos em chave fraterna, dialógica, filial e paterna. 

Esse “elogio da fraternidade” torna-se um novo paradigma eclesial, uma nova disciplina cultural e também uma nova interpretação da relação, tanto pessoal quanto sexual. 

Não seria arriscado pensar que, com base nesses dois faróis magisteriais, a reconsideração das questões relativas às “uniões civis” pode ser orientada de um modo mais articulado – e mais refinado – de considerar precisamente o papel da lei civil. 

Que fique claro: a ideia de uma “resistência eclesial” à lei civil – algo totalmente compreensível e também desejável em muitas circunstâncias –, se for estendida a “juízo geral” sobre tudo o que diz respeito à ampliação da proteção dos direitos dos sujeitos, corre o risco de se basear em um conceito unicamente “pedagógico” de lei. 

Mas a lei só pode ser concebida de modo exclusivamente pedagógico quando não se admite a liberdade de consciência dos sujeitos humanos. Ora, não há dúvida de que só uma leitura equilibrada do humano permite conciliar a liberdade originária e a liberdade como tarefa. Ai de nós se nos esquecermos da pedagogia. Mas a aquisição de uma “relevância incontornável” do sujeito e da sua liberdade constitui um dos sinais decisivos do nosso tempo. 

A fraternidade implica o respeito radical pelo outro como diferente, precioso precisamente na sua alteridade.

Essa perspectiva transforma o mundo e também a intimidade: não porque a torne “política” e desminta a sua profundidade, mas porque a coloca em uma proximidade com a identidade que não pode mais ser contornada. E também por isso, depois de tantas angústias conturbadas e de tantas lutas exasperadas, “gaudet mater ecclesia” [tradução livre: Alegre-se, Igreja-Mãe]! 

As repercussões dessa abordagem diferente são numerosas e surpreendentes, tanto nas relações extraeclesiais quanto nas intraeclesiais. Seria diplomacia fácil tentar demonstrar que aquilo que foi afirmado pelo Papa Francisco sobre a “proteção das uniões civis” não afeta minimamente a doutrina católica sobre o matrimônio e a sexualidade. Mas seria um grave erro subestimar o fato de que o matrimônio, precisamente como sacramento eclesial, é síntese de natureza, cultura e , e não pode se desinteressar de nenhum desses três níveis pelos quais é constituído. 

Uma Igreja que aceita verdadeiramente reconhecer o “bem possível” de uma união civil – hetero ou homossexual, com as devidas diferenças – deve estar pronta para pensar mais a fundo aquele “mistério de amor entre Cristo e a sua Igreja”, que se manifesta, surpreendentemente, onde um homem ou uma mulher pode começar a viver não mais para si mesmo, mas para o outro. 

A fraternidade e a alegria com que sabemos acolher uma boa notícia nesse fenômeno natural, cultural e eclesial também podem nos fazer reconhecer que muitas das nossas categorias tradicionais, com toda a sua história notável, assemelham-se agora apenas a majestosos amontoados de palha. 

Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sábado, 24 de outubro de 2020 – Internet: clique aqui e aqui (Acesso em: 24/10/2020).

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Você quer compreender o Brasil?

 Então, leia este livro, sem falta!

 Gilberto Costa

Agência Brasil 

A cada dia fica mais claro o seguinte: alguns, neste País, dão certo devido à família e às condições em que nascem, outros estão destinados a serem a “ralé”, ou seja, os que sempre vão perder!


A desigualdade social que se desdobra nas diferenças de classe, gênero, cor e idade, é, para alguns cientistas sociais, o principal problema a ser pesquisado na sociedade brasileira. 

Essa é a opinião do sociólogo Jessé Souza, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que está [re]lançando o livro “A Ralé Brasileira” (Editora Contracorrente, 2020 – 3ª edição ampliada com nova introdução), que organizou com artigos seus e de outros autores. 

“A ralé é a grande questão esquecida. O Brasil não tem 500 problemas, mas um grande problema, que é essa desigualdade abissal do qual decorre mais de mil problemas”, afirmou. 

De acordo com levantamento estatístico contido no livro, um terço dos brasileiros vivem sob condições precárias e excluídos socioculturalmente. 

Para Jessé, o problema da ralé é “a questão mais importante no Brasil moderno” e está associado a outros problemas:

* como a segurança pública,

* o trabalho informal [os “bicos”, serviços temporários etc.],

* o racismo e

* o preconceito regional.

Apesar da importância social que tem, “a desigualdade não é nem percebida enquanto tal. Nós a naturalizamos”, na avaliação do sociólogo. Ele, no entanto, acredita que esse pensamento não é algo racional, mas tem uma função mais eficiente justamente por ser “pré-reflexivo”. 

“As ideias estão dentro da cabeça para justificar nosso comportamento”, assinala.

«Queremos que matem a ralé, mas ninguém vai dizer “eu odeio pobre, eles têm mais é que morrer”. O comportamento efetivo, a ação do brasileiro, porém, vai ser de bater palmas»,

disse referindo-se ao episódio em que um policial militar matou um homem que fazia uma mulher refém, em Vila Isabel, Rio de Janeiro, há cerca de um mês. 

Segundo Jessé, a imagem do policial militar dando um tiro certeiro no homem – repetida várias vezes na televisão – dá margem a críticas à mídia brasileira que, para ele, “é conservadora” e pautada pelo interesse econômico. Na sua avaliação, a mídia reproduz um comportamento predominante no país, “mesquinho, medíocre, avesso ao debate”. 

O professor critica os seus pares, inclusive autores da sociologia clássica brasileira, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Raimundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso, além do antropólogo Roberto Da Matta, que, na sua opinião, ajudaram a construir e perpetuar o mito da “brasilidade”, com conceitos sofisticados”. Para ele, a criação do mito foi extremamente eficiente, “está em todas as células dos brasileiros. Ela é uma verdadeira cegueira [por meio da qual] nós possamos nos perceber e nos autocriticar”. 

“A nossa ciência se construiu em continuidade e não em crítica. A ciência social foi montada para uma sociedade que é autoindulgente [tolerante com seus erros], que não é autocrítica”, opina. Em sua avaliação, “o debate científico, assim como o debate público e do senso comum, é pobre e fragmentário e não capta a totalidade. É exatamente isso do que o dinheiro precisa”. 

Além do mito da brasilidade e da baixa autocrítica, a sociedade também se caracteriza pela ausência de transformações políticas e revoluções sociais, segundo Jessé Souza.

“O Brasil é uma sociedade que se modernizou apenas economicamente. Não houve processo de aprendizagem coletiva por meio da luta”,

diz o professor ao lembrar o processo que ocorreu na Revolução Francesa, no século 18, quando a ralé teve voz ativa, diferentemente da população brasileira excluída. 

De acordo com ele, o livro também mostra como, em vez da luta, a ralé brasileira compartilha do consenso que legitima a desigualdade e a exclui. A importância do livro, na visão dele, é a possibilidade de reflexão. “Não existe crescimento de sociedade sem autocrítica”, acredita Jessé. 

Fonte: EcoDebate – Notícia –  28/10/2009 – Internet: clique aqui. 

Abrindo o Sumário do livro

 Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 


Após a INTRODUÇÃO, o livro nos traz 15 capítulos divididos em duas partes, acrescidas de CONCLUSÃO (“A Má-Fé da Sociedade e a Naturalização da Ralé”), POSFÁCIO (“Sobre o Método da Pesquisa”), REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS e dois anexos: a) Posições de Classes Destituídas no Brasil e b) Os Números dos Destituídos no Brasil. 

Eis o título de cada uma das 2 partes e dos 15 capítulos que compõem essa obra: 

PARTE 1      O mito brasileiro e o encobrimento da desigualdade

Capítulo 1     A construção do mito da “brasilidade”

Capítulo 2     Senso comum e justificação da desigualdade

Capítulo 3     Como o senso comum e a “brasilidade” se tornam ciência conservadora?

Capítulo 4     A tese do patrimonialismo

Capítulo 5     Os limites do politicamente correto

 

PARTE 2      O Brasil além do mito – Novo olhar e novos conflitos

Capítulo 6     Como é possível perceber o Brasil contemporâneo de modo novo?

As mulheres da ralé

Capítulo 7     “Do fundo do buraco”

Capítulo 8     A miséria do amor dos pobres

Capítulo 9     A dor e o estigma da puta pobre

Os homens da ralé

Capítulo 10   O crente e o delinquente

Capítulo 11   O trabalho que (in)dignifica o homem

A má-fé institucional

Capítulo 12   A instituição do fracasso: A educação da ralé

Capítulo 13   “Fazer viver e deixar morrer”: A má-fé da saúde pública no Brasil

Capítulo 14   A má-fé da Justiça

O racismo no Brasil

Capítulo 15   Cor e dor moral: Sobre o racismo na ralé

 

CONCLUSÃO

A má-fé da sociedade e a naturalização da ralé

POSFÁCIO

Sobre o método da pesquisa

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ANEXOS

Anexo I        Posições de classes destituídas no Brasil

Anexo II       Os números dos destituídos no Brasil

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Nova encíclica de Papa Francisco

  

PAPA FRANCISCO assina a sua terceira encíclica, "Fratelli Tutti", diante do túmulo de São Francisco na Basílica Inferior, em Assis, Itália - Dia 03 de outubro de 2020
(AFP Photo/Vatican Media/Handout)

"Fratelli tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social" 

Alessandro De Carolis

Vatican News - 05-09-2020 

A encíclica “Fratelli Tutti”, com o subtítulo “Sobre a fraternidade e a amizade social” foi assinada após a missa que o Papa celebrou na Basílica franciscana, em Assis, na Itália

Sobre o túmulo do Santo [São Francisco] que viu a fraternidade em cada criatura de Deus e a transformou em um canto sem tempo, inicia-se a nova etapa do Magistério do Papa que escolheu carregar o nome do Santo da Úmbria. 

Depois da “Lumen fidei” (2013) e “Laudato si'” (2015) - que ecoa no título o início do Cântico dos Cânticos - desta vez é a cidade do Pobrezinho que batizará a terceira Encíclica “Fratelli tutti” (Todos irmãos), que o Papa assinou na tarde do dia 3 de outubro, depois de chegar a Assis às 15h00 e celebrar a Santa Missa na Basílica inferior. 

Uma celebração ainda condicionada pela pandemia, já que a Prefeitura da Casa Pontifícia refere em uma declaração o desejo de Francisco de que a visita “se realize de forma privada, sem qualquer participação dos fiéis, por causa da situação de saúde”. 

Ou seja, o título da encíclica, assim como a Laudato si' é inspirado num dos textos de São Francisco de Assis.

[...] 

Para ler, baixar ou imprimir o texto completo da encíclica “Fratelli Tutti – Todos Irmãos”, clique aqui 

Fratelli Tutti: os maiores ensinamentos da nova encíclica de Francisco 

Vincent J. Miller, Drew Christiansen e Kevin Ahern*

America Magazine - 08/10/2020 

Observação: um BOM RESUMO da encíclica “Fratelli Tutti” pode ser baixado aqui

Para assistir a um VÍDEO com uma ótima síntese da encíclica, clique sobre a imagem abaixo:  

Um chamado para discernir as profundezas políticas 

Com o lançamento de cada encíclica, há uma corrida intelectual para avaliar o que há de novo e digno no mais recente documento, para ocupar as primeiras linhas nas mídias sociais e publicações. Há muitos deles em Fratelli Tutti, por exemplo, as críticas enérgicas aos efeitos divisivos do capitalismo e da tecnologia, uma rejeição magistral inequívoca da pena de morte e o que é talvez a denúncia mais sustentada da Igreja ao nacionalismo e populismo desde “Mit Brennender Sorge” em 1937 [encíclica do Papa Pio XI sobre a situação da Igreja Católica no Reich alemão – leia esse documento pontifício em espanhol, clicando aqui). Mas se concentrar apenas nas passagens que mais se destacam pode levar alguém a perder a proposta como um todo. 

Fratelli Tutti é cuidadosamente construída de uma forma que revela um aspecto distinto do ministério papal de Francisco. Sim, ele exorta fortemente os cristãos a buscarem a intimidade da amizade social, em vez da descartabilidade e indiferença do capitalismo contemporâneo ou a exclusão violenta do nacionalismo populista. Muito mais profunda do que uma discussão ou catequese, assim, a encíclica é um trabalho de discernimento espiritual. 


O “coração” da encíclica 

O coração de Fratelli Tutti é a reflexão de Francisco sobre o bom samaritano, reflexão que é oferecida ao modo dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Em vez de buscar uma “moralização abstrata” ou uma “mensagem social e ética”, Francisco nos convida a entrarmos nesta parábola evangélica. As palavras de Cristo para o mestre da lei são voltadas para nós: “Com qual das pessoas você se identifica?... Com qual desses personagens você se parece?”. Enfrentamos uma escolha fundamental. “Aqui, todas as nossas distinções, rótulos e máscaras caem: é a hora da verdade. Vamos nos curvar para tocar e curar as feridas dos outros?”. 

O foco no discernimento marcou o papado de Francisco desde o início. Olhando para trás, é impressionante o quanto discutiu sobre discernimento em sua entrevista com Antonio Spadaro, S.J., aquele primeiro vislumbre de seus pensamentos sobre o papado. Francisco não se ofereceu como um líder heroico a ser seguido, ou um estudioso brilhante com respostas para tudo. Em vez disso, o papa procurou promover processos como os sínodos nos quais a Igreja pudesse ouvir, discernir e agir coletivamente (este foco em ouvir torna a ausência de vozes femininas em Fratelli Tutti ainda mais chocante). 

Nesse modo de discernimento, Fratelli Tutti entra com força em nossa política. As representações de Francisco sobre o populismo doentio podem ser retiradas de eventos de campanha contemporâneos. A palavra “muros” aparece 14 vezes como um símbolo de nossa tentação de nos isolar das necessidades dos outros. 

Não à pena de morte e à violência 

A reafirmação de Francisco sobre a inadmissibilidade da pena de morte e seu apelo à sua abolição não termina com excomunhões, mas termina em um tom pastoral: “Aos cristãos que hesitam e se sentem tentados a ceder a qualquer forma de violência, convido-os a lembrar este anúncio do livro de Isaías: «transformarão as suas espadas em relhas de arado» (2, 4). Para nós, esta profecia encarna em Jesus Cristo, que, ao ver um discípulo excitado pela violência, lhe disse com firmeza: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, morrerão pela espada» (Mt 26,52)”.

A doutrina social brota do coração do Evangelho

 Aqui, novamente, Francisco não empurrou isso em uma proibição moral, mas o apresenta como uma ação “do coração de Jesus” que fala para o presente “como um apelo duradouro” ao qual cada um de nós deve decidir como responder. Em alguns setores da Igreja, a doutrina social é relegada às periferias da preocupação cristã; aqui, Francisco mostra que ela brota do coração do Evangelho. Em Fratelli Tutti, o papa fala a uma Igreja polarizada e nos chama não apenas para corrigir nossa política, mas para discernir as profundas apostas espirituais em suas profundezas. 


Nunca mais a guerra 

Em sua nova encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco deu mais um grande passo para distanciar a Igreja Católica de seu apoio tradicional à teoria da guerra justa. Ele escreve: “hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível «guerra justa». Nunca mais a guerra!”. 

Fratelli Tutti é o último de uma série de pronunciamentos de papas recentes expressando ceticismo sobre a continuidade da viabilidade da tradição bélica. O que uma vez descrevi como “pensamento estrito de guerra justa” tornou-se, com o tempo, mais uma teologia moral da pacificação, mostrando uma preferência pela não violência e caminhando para o pacifismo. 

Quando se trata de guerra nuclear, Francisco já deixou claro em uma condenação de 2017 que as armas nucleares, mesmo para supostos fins de dissuasão, não são mais aceitáveis. Durante a Assembleia Geral das Nações Unidas no mês passado, o arcebispo Richard Paul Gallagher, ministro das Relações Exteriores do Vaticano, foi além, repudiando os “direitos legados” às armas nucleares para as potências nucleares signatárias do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. 

Fratelli Tutti vai o mais longe que se pode ir no sentido de criticar a noção de guerra justa, sem rejeitá-la. Talvez a posição da Igreja em relação à guerra hoje possa ser comparada à sua posição sobre a pena de morte na década de 1980 - o início de etapas e declarações políticas incrementais que podem eventualmente tornar a ideia de uma guerra justa “inadmissível”. 

O papa parece ter começado a reconhecer que, embora em princípio uma guerra possa ser racionalmente justificável, por uma questão de prática o abuso da tradição da guerra justa e as realidades da guerra moderna tornam impossível travar uma guerra justa hoje. A extensão do ceticismo de Francisco pode ser vista em sua rejeição de “desculpas supostamente humanitárias, defensivas e preventivas” para fazer a guerra. Parece que isso inclui até intervenções baseadas no que ficou conhecido como a “responsabilidade internacional de proteger” comunidades não-combatentes ou indefesas (“Princípios de precaução” são o que os advogados humanitários internacionais chamam de normas de guerra justas). 

O reverendo J. Bryan Hehir falou que acreditava que não havia guerra que São João Paulo II teria considerado justa. João Paulo II, no entanto, apelou à intervenção para prevenir o genocídio na ex-Iugoslávia, na região dos Grandes Lagos da África Central e em Timor-Leste. 

Olhando para casos como a Líbia e a Síria, pode haver razão para repudiar a intervenção militar justificada por motivos humanitários. Eu teria gostado, no entanto, de ter visto uma análise mais detalhada desses casos difíceis e julgamentos mais precisos sobre eles. Outras intervenções preventivas, como aquela em Costa do Marfim, tiveram sucesso. E a Líbia pode ter sido um fracasso de política e não de princípios, embora esse grande fracasso de política em si possa ser uma razão para questionar a intervenção humanitária pela força. 

A principal razão para o distanciamento do Papa Francisco do pensamento de guerra justa parece ser suas consequências humanitárias, tanto experimentadas quanto potenciais. O sumo pontífice pede a seus leitores que “toquem a carne ferida das vítimas”, especialmente civis cujo assassinato foi considerado “dano colateral”. Ele sugere que os analistas da guerra justa estão muito distantes dos sofrimentos infligidos pela guerra. 

“Não podemos mais pensar na guerra como uma solução”, argumenta o papa, “porque seus riscos provavelmente sempre serão maiores do que seus supostos benefícios”. As novas tecnologias, observa, “conferiram à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes. É verdade que nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem”. 


Fraternidade em notas de rodapé: o estilo e as fontes de “Fratelli Tutti” 

As notas de rodapé papais sinalizam para o leitor como um texto oficial da Igreja está se baseando na Tradição. As notas de rodapé ajudam a iluminar a amplitude e a profundidade da tradição católica, enraizando os insights doutrinários sobre questões contemporâneas em uma conversa centenária. 

Antes do Papa Francisco, as fontes reconhecidas limitavam-se quase exclusivamente aos textos bíblicos, aos papas anteriores e às percepções dos santos. Com a Laudato Si’, Francisco ampliou os parceiros de conversa para incluir referências a fontes não-cristãs, incluindo um místico muçulmano sufi, teólogos contemporâneos e ensinamentos de conferências nacionais de bispos. 

Com Fratelli Tutti, o Papa Francisco novamente reflete uma conversa mais ampla. Além de muitas referências às Escrituras, a encíclica cita 292 fontes em 288 notas de rodapé. A maioria dessas citações, 172, vem de seus próprios escritos. Laudato Si’ recebe o maior número de citações de qualquer texto único com 23 referências. Evangelii Gaudium segue com 22 referências. Coletivamente, suas mensagens para o Dia Mundial da Paz são citadas 11 vezes. Para grande desgosto de seus críticos, talvez, Francisco cita seu documento conjunto com o Sheikh Ahmed Al-Tayyeb, sobre a “Fraternidade Humana”, um total de nove vezes, incluindo uma citação substancial no final (Fratelli Tutti, nº 285). 

O papa Bento XVI obtém o maior número de referências depois de Francisco com 22 citações. Caritas in Veritate é referenciada 19 vezes. Outros papas são citados 29 vezes. Francisco novamente afirma o trabalho das conferências episcopais e parece querer ter pelo menos uma referência a cada região do mundo. Em Fratelli Tutti, o papa cita o trabalho de 12 conferências, incluindo os documentos sobre racismo e migração produzidos pelos bispos norte-americanos. 

Com Fratelli Tutti, o papa novamente expande o círculo de conversa além de bispos e santos, incluindo Karl Rahner, S.J., Paul Ricoeur e, notavelmente, Rabino Hillel (nos números 59-60). Mas este círculo é grande o suficiente? 

Antes de se dedicar à obra do Beato Carlos de Foucauld, o papa fala que se inspirou nos escritos de São Francisco de Assis, Martin Luther King Jr., Desmond Tutu e Mahatma Gandhi (nº 286). Isso é um tanto estranho, porque em nenhum lugar Francisco cita diretamente o trabalho de King, Tutu ou Gandhi. Uma citação mais direta de King teria fortalecido a condenação do texto ao racismo. Da mesma forma, um envolvimento mais direto com a filosofia de não violência de Gandhi poderia ter contribuído para a seção sobre a guerra. 

Mas a omissão mais flagrante nas notas de rodapé é qualquer referência às vozes das mulheres. O papa poderia facilmente ter trazido o trabalho de Dorothy Day, que citou em seu discurso de 2015 no Congresso, ou o ativista pela paz liberiano Leymah Gbowee, que foi mencionado ao lado de King e Gandhi na mensagem do papa para o Dia Mundial da Paz de 2017. Muitas teólogas feministas há muito abordam os temas do documento. E a vida de inúmeras religiosas, de Santa Clara a Santa Josefina Bakhita, poderia ter sido elevada como modelos de amizade social. 

Embora a ampliação da conversa para fontes não papais realmente reflita o estilo do papa, a omissão das mulheres também pode ser reflexo de algo mais profundo. Esperançosamente, a próxima encíclica não repetirá esse erro. 

* Vincent Miller é Cátedra Gudorf de Teologia Católica e Cultura na Universidade de Dayton. Ele é o autor de Religião consumindo: fé crisc’tã e prática em uma cultura de consumo. Drew Christiansen, S.J., ex-editor-chefe da America, é um distinto professor de Ética e Desenvolvimento Humano na Georgetown University e membro sênior do Berkley Center for Religion, Ethics and World Affairs. Kevin Ahern é um eticista teológico e presidente do movimento católico leigo ICMICA-Pax Romana. Ele é professor associado de estudos religiosos no Manhattan College, onde também dirigiu o programa de estudos do trabalho. 

Fontes: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 05 de setembro de 2020 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/10/2020); Dom Total Religião – Quarta-feira, 14 de outubro de 2020 – Internet: clique aqui (Acesso em: 16/10/2020).

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Você não pode perder este filme!

Documentário “O Dilema das Redes” mostra que a democracia está em risco 

Leila Kiyomura

 Entrevista com Giselle Beiguelman

Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP 

Giselle Beiguelman comenta o alerta de ex-executivos do Google, Facebook e de Shoshana Zuboff, Professora Emérita da Universidade Harvard

Cena do filme-documentário "O DILEMA DAS REDES"

O Dilema das Redes, dirigido por Jeff Orlowski, que estreou recentemente na Netflix, é o filme que Giselle Beiguelman comenta em sua coluna Ouvir Imagens, na Rádio USP (clique e ouça o player abaixo). “O documentário é sobre o lado B das redes sociais, isto é, a manipulação algorítmica de nossas afetividades e visões políticas.” 

Para ouvir a entrevista com a professora Giselle, clique sobre o link a seguir, vale a pena (!): aqui. 

O filme reúne ex-funcionários do primeiro escalão de gigantes da tecnologia. “São ex-executivos de companhias como o Google e o Facebook e especialistas como a sensacional Shoshana Zuboff, Professora Emérita da Universidade Harvard e autora do conceito de capitalismo de vigilância”, explica Giselle Beiguelman. “O filme costura a narrativa mostrando o cotidiano de uma família ficcional, com filhos adolescentes, e é a partir dela que os temas abordados pelos especialistas ganham clareza, especialmente para o público mais leigo.” 

A professora lembra, no entanto, que o filme não traz novidades para o público mais especializado, com um olhar mais complexo para a tecnologia das redes sociais. “Mas é muito interessante ouvir os engenheiros e designers responsáveis pelo desenvolvimento dos recursos de captura do público contarem como é o processo de sua concepção.” 

O Dilema das Redes mostra que o uso das redes sociais pode ter sérios impactos políticos. “Um dos pontos altos é o debate que o filme suscita acerca da responsabilidade das redes sociais sobre o conteúdo que circula nesses espaços”, pontua. “Já que não me parece ser possível reverter esse processo da presença das redes sociais nas nossas vidas, é preciso que se criem instrumentos para responsabilizá-las. Caso contrário, a democracia pode ser colocada em risco pela manipulação das redes.” 

Fonte: Jornal da USP – Coluna de Giselle Beiguelman – Segunda-feira, 21 de setembro de 2020 – Internet: clique aqui (acesso em: 12/10/2020). 

“Se você puder sair das redes, saia”

 Marcelo Marthe

 Entrevista com Tristan Harris

Ativista digital, ex-Google

 

TRISTAN HARRIS

As redes representam de fato uma ameaça à humanidade, como faz crer o documentário? Não é um exagero? 

Tristan Harris: Se a tecnologia continuar levando o mundo para o caminho atual, a ameaça existencial será concreta. A lógica das redes destrói a noção de uma realidade compartilhada por todos, ao fragmentar as pessoas em bolhas sem contato entre si. Se você não tem uma realidade em comum com as pessoas a sua volta, terá violência. As redes servem para fornecer a cada grupo um espelho de autoafirmação, e não para informar. 

Essas bolhas de opinião dentro das redes são culpadas pela polarização de hoje?

Harris: As inteligências artificiais das redes criam uma espécie de túnel da realidade que leva as pessoas cada vez mais para o interior de suas próprias bolhas. Por definição, personalização é lucrativo, e polarização também, porque você dá à pessoa uma versão extrema da própria realidade. Se uma adolescente começa a ver vídeos de dietas no YouTube, o aplicativo vai mostrar mais vídeos de dietas. O YouTube não sabe se são bons ou ruins, apenas calcula se as ofertas vão prender a atenção. 

Não é alarmismo sustentar que todos somos manipulados pelas redes sociais?

Harris: Evoluímos para nos importarmos com coisas como a aprovação social. Se muitas pessoas falam coisas ruins sobre mim no Twitter ou no Instagram, isso machuca. Mesmo que haja milhares de comentários positivos, se houver dois negativos, eu só terei olhos para os negativos. Quando as redes usam essa suscetibilidade para seus propósitos, isso é manipular. Se você tenta se afastar no Instagram ou do Facebook, eles mandam e-mails para fazer você voltar. É como um traficante de drogas perguntando se você não quer um pouco mais de cocaína. 

O vício nas redes e a dependência química se equivalem?

Harris: Os traficantes são apenas uma metáfora — mas que funciona. O ponto é: você se sente no controle quando olha o TikTok, o Facebook e o YouTube, ou entra para dar uma olhada e uma hora depois não sabe por que continuou ali? Isso é um sintoma de que a humanidade perdeu o controle do próprio destino.

Se eles controlam nossa informação, eles controlam nossas ações.

Se quisermos retomar o controle, precisamos reconhecer que eles controlam mais a gente do que nós controlamos a tecnologia. 

Como as redes afetam nosso bem-estar?

Harris: Está muito claro que as empresas de mídias sociais não são construídas para que as pessoas se sintam realizadas em viver suas vidas. Nós valemos mais para o Facebook se formos viciados, distraídos, indignados, polarizados, narcisistas e desinformados do que se vivermos livremente de maneira rica, e não grudados nas telas. Uma pessoa que acampa com os amigos ou passa horas jogando futebol não é tão rentável para o Facebook como aquelas que passam a maior parte do tempo preocupadas com a aprovação social desse sistema. 

Percebe algum movimento das empresas para mudar essa lógica?

Harris: As companhias nunca vão mudar seu modelo por conta própria. Isso só vai acontecer com uma pressão externa poderosa e regulamentações governamentais. Espero que o filme crie um desejo coletivo, e que as pessoas acordem. Muitos primeiros-ministros, senadores, membros do Parlamento britânico e líderes de empresas de tecnologia assistiram ao documentário e estão respondendo positivamente. Funcionários dessas empresas veem o filme e sabem que é a verdade. 

No Brasil, as fake news são um problema muito debatido, mas sem solução. Como lidar com elas?

Harris: É um problema grave. Vi um estudo mostrando que, na última eleição brasileira, mais de 80% das pessoas tiveram acesso a pelo menos uma fake news antes de Jair Bolsonaro ser eleito presidente. Agora mesmo há pessoas mal-intencionadas tentando manipular eleições nos Estados Unidos e na África. A terceira guerra mundial não se dará com armas e munição, mas com bombardeios de informação. 

Como evitar isso?

Harris: É complicado. Nós acreditamos no que queremos acreditar, porque queremos afirmação. Um dos atalhos da mente é deduzir que, se todos acreditam em algo e dizem que é verdade, então deve ser verdade. Precisamos dar um passo para trás e nos questionar se podemos confiar em qualquer informação que se espalhe de modo viral. Separar a verdade da mentira cabe a nós. 

Um dos conselhos do filme é checar tudo o que se lê nas redes. Qual a importância da imprensa profissional nesse esforço?

Harris: As redes, especialmente o Facebook e o Twitter, transformaram a imprensa: agora, o jornalismo precisa se enquadrar em posts virais para ganhar visibilidade. Até os bons jornalistas têm de entrar no jogo e exagerar alguns aspectos dos fatos. As pessoas precisam de fontes de informação que as tratem como consumidores que pagam por uma assinatura e têm de ser respeitados. 

Como é sua relação com o celular e as redes sociais hoje?

Harris: Eu uso o mínimo possível. Estou no Twitter e no Facebook, mas não os utilizo muito, e sou muito consciente do que compartilho. Tenho um perfil no Instagram que, após ficar desativado por oito anos, ganhou 30000 seguidores na semana passada, por causa do filme. Mas meu conselho é: se você puder sair das redes, saia. 

Fonte: VEJA – Edição 2706 – Ano 53 – nº 40 – 30 de setembro de 2020 – Págs. 64-65 – Internet: clique aqui (acesso em: 13/10/2020).