Sobre o matrimônio de homossexuais

 O Papa e as uniões civis homossexuais, “uma das grandes notícias do momento”

 José María Castillo

Teólogo espanhol

Religión Digital – 22-10-2020 

Estamos testemunhando a superação da estagnação que arrasta a Igreja desde o Iluminismo


A decisão do Papa Francisco, segundo a qual os homossexuais podem contrair matrimônio civil, já que o Direito Canônico (cân. 1055) define o citado matrimônio como “o consórcio de um homem e uma mulher para toda a vida”, foi uma das grandes notícias do momento, em um mundo tão agitado de notícias sensacionais, como estamos vivendo. 

Como é lógico, interessou especialmente aos homossexuais. Mas, se esse assunto for pensado de forma mais lenta, podemos e devemos dizer que estamos vivenciando um acontecimento que transcende o problema da homossexualidade. Isso claro, mas não só. Sem exagero nenhum, podemos garantir que estamos testemunhando a superação da estagnação que desde o século XVIII tem arrastado a Igreja, que foi ultrapassada pelo Iluminismo. 

Na verdade, e por incrível que pareça, a Igreja foi marginalizada, na sociedade e na cultura moderna, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789-1791). Declaração à qual o Papa Pio VI se opôs fortemente, em 29 de março de 1790, em uma assembleia de cardeais, na qual o Papa afirmou que os direitos humanos eram um atentado e uma ferida que foi feita à religião e para os direitos da Santa Sé. E assim o papado se manteve firme desde Pio VI, em 1790, até Pio X, em 1906. Aí veio a formulação do Direito Canônico, como já disse. Além disso, quando em 10 de dezembro de 1948 a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” foi assinada em Roma, Pio XII, poucos dias depois, fez um discurso, dirigido a toda a humanidade, no qual falou dos grandes acontecimentos do ano, mas nem mencionou “Direitos Humanos”. 

A primeira consequência de tudo isto, é que naquela hora o Estado da Cidade do Vaticano não poderia assinar – agora e depois de tantos anos – a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E a primeira coisa que ocorre a qualquer um é pensar: uma instituição que não pode assinar os Direitos Humanos, com que autoridade pode pregar o amor mútuo e universal como o primeiro e maior mandamento que o Senhor Jesus nos deixou em seu Evangelho? Isso, antes de tudo. 

Mas há, em tudo isso, algo muito mais sério. Algo que a teologia cristã não leva a sério. Refiro-me ao Mistério da Encarnação. Qual é o evento da Humanização de Deus.

Dizer que Deus se encarnou em Jesus é dizer que “o divino” se fundiu com “o humano”.

A tal ponto que, de acordo com os Evangelhos, quando o evento do juízo final chegar na realidade, e como é dito que Karl Rahner afirmou, tal juízo será um “juízo ateu”. Porque a ninguém vai ser perguntado se fez ou não fez tal coisa para Deus, mas eles vão nos dizer: “O que fizestes a um destes, tu fizestes a mim” (Mt 25,40). Além disso, quando Jesus se despediu dos discípulos, deu-lhes “um novo mandamento” (Jo 13,34-35). Que eles se amassem. Qual foi a novidade desta missão definitiva? Em que Deus não é mencionado. 

Termino com uma pergunta que nos obriga a pensar: Se o mais importante e decisivo é que nos amemos, será o que os altos funcionários da Cúria decidirem em Roma, que terá mais importância, mais peso e mais valor que o mais elementar e básico do amor, que é aceitar e viver a igualdade de todos em nossos direitos mais comuns, básicos e elementares? 

Papa Francisco, uniões civis e o reconhecimento da intimidade

 Andrea Grillo

Teólogo italiano

Come Se Non – 23-10-2020 

O “elogio da fraternidade” por parte de Francisco torna-se um novo paradigma eclesial, uma nova disciplina cultural e também uma nova interpretação da relação, tanto pessoal quanto sexual


As poucas frases com as quais o Papa Francisco respondeu a algumas perguntas em maio de 2019, repercutidas em um recente documentário, não têm as costas suficientemente largas para resistir a uma “mudança de paradigma”. 

No entanto, sem exagerar, elas podem ser consideradas um indício bastante autorizado de uma “passagem” que não é um exagero definir como “epocal”. Elas podem ser assim consideradas se comparadas à persistência, ao longo dos últimos dois séculos, de uma abordagem muito diferente às questões relativas ao exercício da sexualidade, às formas da convivência e da vida familiar, às separações e aos divórcios, pensados muitas vezes como “alterações” da doutrina matrimonial. 

De fato, desde o início, deve-se reconhecer que a “matéria” em torno da qual se exercita a discussão – ou seja, identidade sexual, família, matrimônio – não pode ser compreendida de forma “cindida”. A abstração de uma “competência eclesial” e de uma “competência civil” é – de fato – apenas a abstração que inventamos (e sofremos) a partir do Código de Direito Canônico de 1917. Uma invenção do século XX não é nem de direito divino, nem uma prova da existência de Deus. É, antes, a tentativa antimodernista (mas produzida com instrumentos rigorosamente modernos) para superar um “conflito de competências” sobre a vida dos sujeitos. 

Quem decide sobre a união? Quem decide sobre a geração? Deus ou o ser humano? A essa pergunta drástica demais – e equivocada demais – demos respostas inevitavelmente exageradas, tanto do lado eclesial, quanto do lado civil. 

Daí nasceu o imaginário difundido – e não muito escondido – de uma espécie de “revanche” contra a “brecha da Porta Pia”, que iludiu a Igreja de poder definir um âmbito de autoridade – matrimônio e família – sobre o qual poderia se declarar como a única competente. Quase uma resistência de uma pequena fatia de “poder temporal”. 

Foi assim desde o fim do século XIX, passando pelo Código, até os anos 1920. Depois, já naquela década, com a Concordata, foi preciso renunciar à exclusividade e chegar a um acordo com o diabo... que, depois, não era assim tão diabólico, mesmo que, nesse caso, era precisamente um Estado “não liberal”. E a aposta em unir dois “antiliberalismos” – um antimoderno e outro hipermoderno – não durou sequer 20 anos. 

Apesar da Segunda Guerra Mundial, do Concílio Vaticano II e do início da reforma da Igreja, a abordagem sobre a doutrina matrimonial permaneceu muito encastelada e se fortaleceu com os choques sobre as duas leis civis, primeiro sobre o divórcio e depois sobre a interrupção da gravidez. Duas leis que foram vividas como “traumas”. 

Essa leitura unilateralmente pedagógica da lei civil estendeu-se ao longo do século, até a Familiaris consortio [de São Papa João Paulo II], em 1981, e mais adiante, até os dois Sínodos de 2014 e 2015. Mas, com a Amoris laetitia [de Papa Francisco], as coisas mudaram. Não tanto no plano da imediata operatividade de novas disciplinas, mas precisamente no coração de uma doutrina identificada com a “lei objetiva”. 

A esperança de poder “juridicizar” cada questão, para torná-la um exercício de autoridade formal, e a consequente confusão entre prerrogativas civis e prerrogativas eclesiais, cessa ao se chocar com as palavras límpidas com as quais a Amoris laetitia redefine, ao mesmo tempo, o papel do magistério, o fenômeno familiar e a relação com a lei.

a) o magistério não deve definir tudo, mas saber escutar;

b) a família é acima de tudo um fato a ser reconhecido, formas plurais que vivem de comunhão;

c) A conformidade com a lei objetiva não implica, necessariamente, em conformidade com a vontade de Deus. 

A esse desenvolvimento, deve-se acrescentar, mais recentemente, com a encíclica Fratelli tutti [de Papa Francisco], a capacidade do magistério eclesial de falar no mesmo registro da Gaudium et spes, em um elogio à fraternidade humana e à amizade social, que não deve necessariamente partir da destruição da liberdade e da igualdade. 

A cena muda porque o campo não é mais dividido em duas partes contrapostas, entre VERDADE e LIBERDADE, entre DEVER e DIREITO, mas se busca, em vez disso, ilustrar os limites das conquistas de liberdade e de igualdade – que não devem ser rejeitadas como tais – porque devem ser relidos em chave fraterna, dialógica, filial e paterna. 

Esse “elogio da fraternidade” torna-se um novo paradigma eclesial, uma nova disciplina cultural e também uma nova interpretação da relação, tanto pessoal quanto sexual. 

Não seria arriscado pensar que, com base nesses dois faróis magisteriais, a reconsideração das questões relativas às “uniões civis” pode ser orientada de um modo mais articulado – e mais refinado – de considerar precisamente o papel da lei civil. 

Que fique claro: a ideia de uma “resistência eclesial” à lei civil – algo totalmente compreensível e também desejável em muitas circunstâncias –, se for estendida a “juízo geral” sobre tudo o que diz respeito à ampliação da proteção dos direitos dos sujeitos, corre o risco de se basear em um conceito unicamente “pedagógico” de lei. 

Mas a lei só pode ser concebida de modo exclusivamente pedagógico quando não se admite a liberdade de consciência dos sujeitos humanos. Ora, não há dúvida de que só uma leitura equilibrada do humano permite conciliar a liberdade originária e a liberdade como tarefa. Ai de nós se nos esquecermos da pedagogia. Mas a aquisição de uma “relevância incontornável” do sujeito e da sua liberdade constitui um dos sinais decisivos do nosso tempo. 

A fraternidade implica o respeito radical pelo outro como diferente, precioso precisamente na sua alteridade.

Essa perspectiva transforma o mundo e também a intimidade: não porque a torne “política” e desminta a sua profundidade, mas porque a coloca em uma proximidade com a identidade que não pode mais ser contornada. E também por isso, depois de tantas angústias conturbadas e de tantas lutas exasperadas, “gaudet mater ecclesia” [tradução livre: Alegre-se, Igreja-Mãe]! 

As repercussões dessa abordagem diferente são numerosas e surpreendentes, tanto nas relações extraeclesiais quanto nas intraeclesiais. Seria diplomacia fácil tentar demonstrar que aquilo que foi afirmado pelo Papa Francisco sobre a “proteção das uniões civis” não afeta minimamente a doutrina católica sobre o matrimônio e a sexualidade. Mas seria um grave erro subestimar o fato de que o matrimônio, precisamente como sacramento eclesial, é síntese de natureza, cultura e , e não pode se desinteressar de nenhum desses três níveis pelos quais é constituído. 

Uma Igreja que aceita verdadeiramente reconhecer o “bem possível” de uma união civil – hetero ou homossexual, com as devidas diferenças – deve estar pronta para pensar mais a fundo aquele “mistério de amor entre Cristo e a sua Igreja”, que se manifesta, surpreendentemente, onde um homem ou uma mulher pode começar a viver não mais para si mesmo, mas para o outro. 

A fraternidade e a alegria com que sabemos acolher uma boa notícia nesse fenômeno natural, cultural e eclesial também podem nos fazer reconhecer que muitas das nossas categorias tradicionais, com toda a sua história notável, assemelham-se agora apenas a majestosos amontoados de palha. 

Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sábado, 24 de outubro de 2020 – Internet: clique aqui e aqui (Acesso em: 24/10/2020).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A necessidade de dessacerdotalizar a Igreja Católica

Dominação evangélica para o Brasil

Eleva-se uma voz profética