«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 31 de março de 2023

Será o começo de nosso fim???

 O domínio da inteligência artificial sobre a linguagem é uma ameaça à civilização

 Yuval Harari, Tristan Harris e Aza Raskin* 

Da esquerda para a direita, temos: Yuval Noah Harari, Tristan Harris e Aza Raskin

Ela poderia ajudar a derrotar o câncer, mas também devorar toda a cultura humana

Imagine que você está embarcando em um avião e metade dos engenheiros que o construíram lhe diz que há 10% de chance de a aeronave cair, matando você e todos os demais a bordo. Você embarcaria mesmo assim?

Em 2022, mais de 700 dos principais acadêmicos e pesquisadores por trás das maiores empresas de inteligência artificial foram questionados em uma sondagem a respeito do risco futuro da inteligência artificial (IA)

Metade dos entrevistados declarou que existe uma chance de 10% ou maior de extinção da humanidade (ou alguma insegurança similarmente permanente e grave) provocada por sistemas de IA. As empresas de tecnologia que constroem os maiores modelos de linguagem de hoje estão tomadas por uma corrida para colocar toda a humanidade nesse avião. 

A TORRE DE BABEL - provável pintura de Hendrick van Cleve (1525-1595), flamengo, encontra-se no Rijksmuseum Twenthe em Enschede, na Holanda. A narrativa da Torre de Babel nos recorda o quanto a linguagem é fundamental para toda a vida humana!

Necessidade de regulação 

Empresas farmacêuticas não podem vender novos medicamentos para as pessoas sem antes submeter seus produtos a rigorosos testes de segurança. Laboratórios de biotecnologia não podem lançar novos vírus à esfera pública para impressionar acionistas com sua feitiçaria. Igualmente, sistemas de inteligência artificial com o poder do GPT-4 e além não deveriam ser emaranhados às vidas de bilhões de pessoas a um ritmo mais veloz do que as culturas sejam capazes de absorvê-los com segurança.

A corrida pelo domínio do mercado não deveria determinar a velocidade do acionamento da tecnologia mais consequencial da humanidade.

Nós devemos nos mover a qualquer velocidade que nos possibilite fazer isso direito. 

O espectro da inteligência artificial assombra a humanidade desde meados do século 20, mas até recentemente não passava de um projeto distante, algo que pertencia mais à ficção científica do que ao debate científico e político sério. É difícil para as nossas mentes humanas captar e compreender as novas capacidades do GPT-4 e outras ferramentas similares, e é ainda mais difícil dar conta da velocidade exponencial na qual essas ferramentas estão desenvolvendo capacidades mais avançadas e poderosas. Mas a maioria das capacidades principais se resume a uma coisa: manipular e gerar linguagem, seja com palavras, sons ou imagens. 

No princípio era o verbo. A linguagem é o sistema operacional da cultura humana. Da linguagem emergem o mito e o direito, os deuses e o dinheiro, a arte e a ciência, as amizades, as nações e os códigos computacionais. O novo domínio da linguagem por parte da inteligência artificial significa que ela é capaz agora de invadir e manipular o sistema operacional da civilização. Ao ganhar domínio da linguagem, a IA está se apoderando da chave-mestra da civilização, de cofres de bancos a santos sepulcros. 

A inteligência artificial trabalhará, especialmente, com a linguagem e comunicação humanas, pois elas são a base de toda a nossa civilização

Controle sobre a linguagem 

O que significaria para os humanos viver em um mundo no qual uma grande porcentagem das narrativas, melodias, imagens, leis, políticas e ferramentas é moldada por inteligência não humana, que sabe como explorar com eficiência sobre-humana fraquezas, vieses e vícios da mente humana — ao mesmo tempo que sabe formar relações íntimas com os seres humanos?

Em jogos como xadrez, nenhum humano chega perto de superar um computador. O que acontece quando o mesmo suceder na arte, na política ou na religião?

A inteligência artificial poderia devorar rapidamente toda a cultura humana, tudo o que produzimos ao longo de milhares de anos, digerir e começar a jorrar uma torrente de novos artefatos culturais. Não apenas trabalhos escolares, mas também discursos políticos, manifestos ideológicos e livros sagrados para novos cultos. Até 2028, a corrida presidencial dos Estados Unidos poderia não ser mais protagonizada por humanos. 

Os humanos com frequência não possuem acesso direto à realidade. Nós somos encapsulados pela cultura, experimentando a realidade através de um prisma cultural. Nossas visões políticas são forjadas por reportagens de jornalistas e anedotas de amigos. Nossas preferências sexuais são ajustadas em função de arte e religião. Essa cápsula cultural tem sido, até aqui, tecida por outros humanos. Como será experimentar a realidade através de um prisma produzido por inteligência não humana? 

Por milhares de anos, nós, humanos, vivemos dentro de sonhos de outros humanos. Nós adoramos deuses, perseguimos ideais de beleza e dedicamos as nossas vidas a causas que se originaram na imaginação de algum profeta, poeta ou político. Logo nós também viveremos dentro de alucinações de inteligência não humana. 

Cartaz de um dos filmes da série MATRIX, nos quais a realidade dos seres humanos é totalmente inventada pela inteligência artificial, desaparecendo o autocontrole da vida!

Ilusões controladas por máquinas 

A franquia “O exterminador do futuro” retratou robôs correndo nas ruas e atirando em pessoas. “Matrix” assumiu que, para impor controle total sobre a sociedade humana, a inteligência artificial teria primeiro que controlar fisicamente nossos cérebros e conectá-los a uma rede computacional. Mas simplesmente obtendo domínio da linguagem a IA teria tudo o que precisa para nos envolver em um mundo de ilusões à la Matrix, sem atirar em ninguém nem implantar nenhum chip em nossos cérebros. Se tiros forem necessários, a IA fará humanos puxarem o gatilho simplesmente contando-nos a história certa. 

O espectro de ficar preso em um mundo de ilusões assombra a humanidade há muito mais tempo do que o espectro da inteligência artificial. Nós logo estaremos finalmente diante do gênio maligno de Descartes, da caverna de Platão e da maya budista. Uma cortina de ilusões poderia desprender-se sobre toda a humanidade, e nós poderemos jamais ser capazes de rasgá-la — ou até mesmo perceber sua presença. 

As redes sociais, através dos algoritmos incentivam as pessoas a se unirem, conversarem, se relacionarem mais com quem se parece com elas no pensar, agir e desejar! Com isso, a polarização ideológica aumenta e o distanciamento e incompreensão entre as pessoas também!

O alerta das redes sociais 

As redes sociais foram o primeiro contato entre a inteligência artificial e a humanidade, e a humanidade perdeu. O primeiro contato nos deixa um sabor amargo do que está por vir. Nas redes sociais, IA primitiva foi usada não para criar conteúdo, mas para curar conteúdo gerado pelos usuários. A IA por trás dos nossos feeds de notícias ainda está escolhendo quais palavras, sons e imagens chegam às nossas retinas e tímpanos com base na seleção das postagens que obtêm mais viralidade, mais reações e mais engajamento.

Ainda que muito primitiva, a inteligência artificial por trás das redes sociais foi suficiente para criar uma cortina de ilusões que elevou a polarização social, minou nossa saúde mental e desgastou a democracia.

Milhões de pessoas confundiram essas ilusões com a realidade. Os Estados Unidos têm a melhor tecnologia da informação na história, mas os cidadãos americanos não conseguem mais concordar sobre quem venceu as eleições. Apesar de todos estarem agora cientes dos problemas das redes sociais, eles ainda não foram solucionados porque tantas de nossas instituições sociais, econômicas e políticas estão emaranhadas. 

Os grandes modelos de linguagem são nosso segundo contato com a inteligência artificial. Nós não podemos nos dar ao luxo de perder novamente. Mas sobre quais bases nós deveríamos acreditar que a humanidade é capaz de alinhar essas novas formas de IA para nosso benefício? Se nós continuarmos a fazer as coisas como sempre, as novas capacidades de IA serão usadas novamente para obtenção de lucro e poder, mesmo isso que destrua inadvertidamente as fundações da nossa sociedade. 

Importantíssimos e inimagináveis avanços a Medicina poderá obter com o auxílio da inteligência artificial, porém, há imensos riscos também!

Benefícios x Riscos 

A inteligência artificial tem potencial para nos ajudar a derrotar o câncer, descobrir drogas que salvam vidas e inventar soluções para nossas crises climáticas e energéticas. Há inumeráveis outros benefícios que nem conseguimos imaginar. Mas o tamanho do monte de benefícios da IA não importa se sua base ruir.

A hora do acerto de contas com a inteligência artificial é antes da nossa política, nossa economia e nossa vida cotidiana se tornarem dependentes dela.

Democracia é diálogo, diálogos têm base em linguagem, e quando a própria linguagem é hackeada, o diálogo acaba, e a democracia fica insustentável. Se esperarmos o caos se abater, será tarde demais para remediá-lo. 

Mas uma dúvida pode persistir em nossas mentes: se nós não nos movimentarmos o mais rápido possível o Ocidente não arrisca perder para a China? Não. O acionamento e envolvimento descontrolado de inteligência artificial na sociedade, desprendendo poderes divinos desvencilhados de responsabilidade, poderia ser a razão da derrota do Ocidente para a China. 

Que futuro queremos? 

Nós ainda podemos escolher qual futuro queremos com a inteligência artificial. Quando os poderes divinos vierem acompanhados de responsabilidades e controles proporcionais nós poderemos concretizar os benefícios prometidos pela IA. 

Nós invocamos uma inteligência alienígena. Nós não sabemos muita coisa sobre ela, a não ser que é extremamente poderosa e nos oferece presentes deslumbrantes, mas também poderia invadir as fundações da nossa sociedade. Nós conclamamos os líderes a responder a este momento à altura do desafio que ele apresenta. A primeira coisa é ganhar tempo para modernizar nossas instituições do século 19 para um mundo com inteligência artificial — e aprender a dominá-la antes que ela nos domine. 

Traduzido do inglês por Guilherme Russo. 

* Yuval Noah Harari é historiador; autor de “Sapiens”, “Homo Deus” e “Implacáveis”; e um dos fundadores da empresa de impacto social Sapienship. Tristan Harris e Aza Raskin são fundadores do Centro para Tecnologia Humana e apresentam o podcast “Your Undivided Attention”. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Caderno 2: Cultura & Comportamento – Quarta-feira, 29 de março de 2023 – Págs. C6 – C7 – Internet: clique aqui (Acesso em: 31/03/2023). 

Será que é hora de pausar a inteligência artificial? 

Pedro Doria

Jornalista – Colunista do Estadão 

Talvez seja preciso dar uma pausa e pensar em quais são as regras que queremos adotar

Nas duas últimas semanas, dois manifestos distintos foram publicados cobrando limites para a inteligência artificial (IA). O primeiro, assinado pelo historiador israelense Yuval Noah Harari e os ativistas digitais Tristan Harris e Aza Raskin. O segundo por tecnólogos como Elon Musk e o co-fundador da Apple, Steve Wozniak. Há algo quase extraordinário quando intelectuais e pessoas dedicadas ao avanço tecnológico pedem uma moratória. Cobram que o mundo pare e pense. 

A história do avanço da humanidade é uma de constante busca pelo novo, pela criação do que antes parecia impossível. Toda filosofia que sustenta nossas democracias modernas é voltada para que o conhecimento possa avançar com liberdade. Aqueles que passamos a considerar nossos direitos mais sagrados são, todos, voltados à procura de criar algo original. São as liberdades de expressão e pensamento, de que podemos nos reunir com quem quisermos mesmo que em espaço público. É por isso que tem de surpreender quando tecnólogos e pensadores liberais pedem uma pausa no avanço

Mas Harari e Harris têm razão num ponto fundamental. A primeira geração de IA, embutida em nossas redes, criou um ambiente gerador de conflitos políticos. O contato em massa com esta tecnologia cindiu em dois o processo eleitoral, ao tornar o debate de ideias inviável

Várias consequências nos esperam com o avanço e introdução, sempre maiores, da inteligência artificial no processo produtivo e organizativo das empresas. Estamos nos preparando para isso? Claro que não!!!

A IA que apenas começa a se popularizar, que gera conteúdo, é a de terceira geração. E como ela tende a melhorar, vai avançar em sua capacidade de criação. O que eles pedem, portanto, é simples:

... será que não é hora de dar uma pausa e pensar em quais são as regras que desejamos adotar?

Ainda assim, o pedido de socorro de quem está acompanhando esta revolução de perto não é trivial. Estados Unidos e China estão engatados numa nova Guerra Fria. E a principal luta é por domínio tecnológico justamente em IA. 

Como, nessas circunstâncias, o governo americano poderia pedir às empresas do país que parem de criar novos produtos? A China faria o mesmo? Se ambos se comprometessem a fazê-lo, como um pode ter certeza de que o outro está mesmo fazendo? 

É inútil cobrar que o Congresso Nacional, aqui no Brasil, se debruce a sério sobre o problema. O jogo, em Brasília, é outro – o das chantagens de Arthur Lira. No Executivo seria possível? Talvez. Mas a disputa ideológica lá ainda não deixou o século 20. 

O Brasil não vai assumir as rédeas de seu futuro neste processo, seguirá a reboque do que os outros decidirem

Fonte: O Estado de S. Paulo – Colunista – Sexta-feira, 31 de março de 2023 – 05h00 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui (Acesso em: 31/03/2023).

Domingo de Ramos – Ano A – Homilia

 Evangelho: Mateus 21,1-11 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Jesus: um messias de paz, não de poder e violência

A narração da entrada de Jesus em Jerusalém, no Evangelho de Mateus, é rica de citações do Antigo Testamento, com as quais o evangelista quer encerrar e resumir toda a história do seu povo. Mas vamos ler esta passagem importante, é o capítulo 21, os primeiros onze versículos. 

Mateus 21,1a: «Quando se aproximaram de Jerusalém, chegaram a Betfagé, junto ao Monte das Oliveiras.»

As indicações do evangelista não pretendem ser topográficas, mas teológicas. Betfagé significa “casa dos figos” e, após a entrada em Jerusalém, haverá o episódio da figueira estéril (Mt 21,18-22), figura do Templo. O Monte das Oliveiras é a montanha onde, segundo a tradição, o messias teria se manifestado. Pois é o monte que ocupa uma posição mais elevada que o Templo. 

Mateus 21,1b-2: «Jesus enviou dois discípulos, dizendo-lhes: “Ide até o povoado ali na frente, e logo encontrareis uma jumenta amarrada e, com ela, um jumentinho. Desamarrai-os e trazei-os a mim!»

Toda vez que o termo “povoado/aldeia” aparece nos Evangelhos, é sempre como sinal de incompreensão da novidade trazida por Jesus, portanto devemos esperar algo de incompreensão, senão hostilidade, nesta passagem. Qual é o significado desta jumenta e deste jumentinho? Como dissemos, o evangelista carrega esta passagem de citações, aqui devemos voltar ao primeiro livro da Bíblia, o livro do Gênesis, no testamento que Jacó faz, e na bênção sobre seus filhos. Sobre Judá diz: “O cetro não será tirado de Judá, nem o bastão de comando de entre seus pés, até que venha aquele a quem pertence e a quem vai a obediência de povos. Ele amarra à videira seu jumentinho, à parreira escolhida o filho da jumenta” (Gn 49,10-11a), eis a referência. Existe essa profecia, dessa figura do libertador, do messias de Israel, que precisava ser realizada. Aqui, então, está o significado desse jumentinho e dessa jumenta. 

Mateus 21,3-5: «E se alguém vos disser alguma coisa, direis: ‘O Senhor precisa deles, mas logo os mandará de volta’”. Isso aconteceu para se cumprir o que fora dita pelo profeta: “Dizei à filha de Sião: Eis que o teu rei vem a ti, manso e montado num jumento, num jumentinho, num potro de jumenta”.»

É a única vez que Jesus se define assim, como “O Senhor”. Senhor não significa quem está acima dos outros, quem manda, mas quem não tem ninguém acima de si, quem é livre para dispor da própria vida, um senhor que não manda, mas põe a sua vida ao serviço dos outros. Aqui, novamente, há outra referência ao Antigo Testamento. Assim, na primeira citação (Gênesis), Jesus tinha dito: “desamarrai-os”, isto é, tornai esta profecia real. A segunda é tirada do livro do profeta Zacarias, que o evangelista, no entanto, não relata exatamente, adapta-a e diz: “Dizei à filha de Sião”, na verdade a passagem de Zacarias começou em um tom mais exaltado, de fato ele disse: “Enche-te de grande júbilo, filha de Sião, prorrompe em gritos, filha de Jerusalém” (Zc 9,9a). Não, não há nada para se exultar nem para se jubilar. Jerusalém, desde o início do Evangelho, tem sido apresentada sob uma luz sinistra, é a cidade simbólica da instituição religiosa, que sempre matou os enviados de Deus, por isso é apenas informado, “dizei à filha de Sião”.

Eis que o teu rei vem a ti”, e o profeta Zacarias havia escrito: “eis que o teu rei vem a ti, ele é justo e vitorioso”, bem o evangelista omite “ele é justo e vitorioso. Justo significa o fiel observador da lei, o vitorioso que triunfou, e Jesus não triunfará pelas armas, pelo poder. O evangelista prossegue citando a profecia de Zacarias: “manso e montado num jumento, num jumentinho, num potro de jumenta”, é aqui que o evangelista quis chegar. Esse messias que entra não tem a insígnia do poder, não se senta em um animal de guerra, que poderia ter sido um cavalo, ou mesmo em uma montaria real, que era uma mula, mas em um jumento. O jumento era a montaria normal das pessoas humildes, das pessoas simples. Então Jesus pede para liberar, para desatar essa profecia, que havia sido anulada, porque ia contra os ideais de vingança, de violência do povo de Israel, sobre os dominadores romanos e de predomínio sobre todas as outras nações. Portanto, era uma profecia que foi colocada de lado. Jesus nos convida a desamarrá-la, libertá-la, atualizá-la. 

Mateus 21,6-8: «Então os discípulos foram e fizeram como Jesus lhes havia mandado. Trouxeram a jumenta e o jumentinho e puseram seus mantos em cima, e Jesus montou. A numerosa multidão estendeu seus mantos no caminho, enquanto outros cortavam ramos de árvores e os espalhavam pelo caminho.»

Os mantos, na simbologia judaica, indicam a realidade da pessoa, por isso os discípulos aderem a esta imagem de um messias não violento, um messias de paz, um messias desarmado. Na investidura do rei, em sinal de submissão, tirava-se o manto da pessoa, que indicava o próprio indivíduo, estes mantos ficavam na estrada, e o rei passava por cima, era uma expressão de submissão ao rei.

Bem, a multidão não quer esse messias de paz, mas quer um rei a quem se submeter.

Estes ramos cortados das árvores recordam a Festa das Tendas, a festa onde, segundo a tradição, o messias se teria manifestado, por isso pretendem acolher este Jesus como o rei triunfante. 

Mateus 21,9: «As multidões que iam à sua frente e as que o seguiam, clamavam: “Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas alturas!”»

Eis que não é Jesus quem conduz a procissão, mas há uma multidão que o precede: assim como o tentador o trouxe a Jerusalém no pináculo do Templo, agora as multidões dão sequência às tentações de Jesus, mostram-lhe o caminho a seguir, e qual é o caminho a tomar? O do poder e o da dominação. “E as que o seguiam clamavam”, infelizmente Jesus é colocado no meio: tanto os que o precedem como os que o seguem gritam “Hosana”, Hosana é uma expressão hebraica que significa: “salve-nos, então”, Hosana a quem? “Ao Filho de Davi!”, eis o grande mal-entendido, que levará então os mesmos que agora gritam Hosana, a gritar: “crucifica-o”. Acham que Jesus é Filho de Davi, ou seja, um messias como Davi. Davi foi o grande guerreiro, o grande rei, que através de um banho de sangue conseguiu reunir as tribos de Israel, é isso que eles esperam. Quando perceberem que Jesus não é Filho de Davi, não saberão o que fazer com esse messias, e escolherão Barrabás, e, para Jesus, pedirão a crucificação. 

Mateus 21,10-11: «Quando Jesus entrou em Jerusalém, a cidade inteira ficou alvoroçada, e diziam: “Quem é este?” E as multidões respondiam: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia”.»

O verbo usado pelo evangelista é o que indica um terremoto, um sismo. A cidade estremece: como no princípio, no anúncio do nascimento, se abalou (cf. Mt 2,3), agora, quando Jesus entra em Jerusalém, se estremece, porque é a cidade que mata, que mata os profetas, e matará também o Filho de Deus. “E diziam: ‘Quem é este?’” Quem é ele? Expressão de desprezo!

A cidade santa não conhece o “Deus conosco”, como Jesus foi apresentado, porque o seu Deus é outro, é o interesse, a conveniência, é o dinheiro, é o tesouro do Templo.

Esta cidade não apenas não vai ao encontro do messias que vem, mas também fica irritada: quem é esse? “E as multidões respondiam”, e eis o grande mal-entendido, “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia”. A Galileia era a região turbulenta, de onde saíam os revolucionários, os zelotes, aqueles que queriam lutar contra domínio romano. É lembrado Judas, o Galileu, que, nos anos 6 e 7 d.C., iniciou duas revoltas contra os romanos, que terminaram em um banho de sangue. Aqui está o que a cidade espera. Quando perceberem que Jesus não é o Filho de Davi, mas o Filho de Deus, não saberão o que fazer com isso

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 6. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2022. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Quando caminhamos sem a Cruz, quando construímos sem a Cruz e quando confessamos a um Cristo sem a Cruz... não somos discípulos do Senhor: somos mundanos; somos bispos, sacerdotes, cardeais, papas, porém não discípulos do Senhor.»

(Papa Francisco: 266º Papa da Igreja Católica – argentino)

A cena da entrada de Jesus em Jerusalém tinha tudo para se parecer com as solenes entradas processionais dos reis e monarcas vitoriosos da antiguidade! Eles traziam suas tropas e as pessoas capturadas em batalha, as multidões celebravam a vitória, havia aclamações com hinos, ao final de tudo, havia uma cerimônia religiosa no templo da cidade, confirmando a vitória e o poder do monarca! No entanto, não é bem isso que constatamos ou ler ou ouvir, atentamente, essa cena que o evangelista nos narra! 

No fundo, como bem constata José María Castillo, o que nós temos, aqui, é uma paródia do poder imperial. Paródia, segundo os melhores dicionários, é a imitação dos procedimentos de alguma obra seja artística ou não, com o objetivo de ser jocoso, satírico, crítico ao que se imita! Jesus nos mostra, com a sua atitude, que não segue nem, muito menos, concorda com o exercício do poder tal como exercido por Roma e demais poderosos de seu tempo! A vida humana possui outro sentido, outro destino! 

«Um destino que não pode admitir regozijar-se no ato desumano de dominar a alguém e, menos ainda, humilhá-lo, mas que deve ser totalmente o contrário: a exaltação da simplicidade, da humanidade, da bondade, da proximidade aos pobres.» (J. M. Castillo)

Afinal, somente a bondade é digna de fé! Todo o restante é balela, é desperdício! É triste observar, nos tempos atuais, quantas pessoas cultuam um Cristo que não corresponde, absolutamente, àquele revelado pelos Evangelhos! Há pessoas que criaram para si um Jesus Cristo para chamar de seu! Pois ele não existe nos Evangelhos, no restante do Novo Testamento de nossa Bíblia, mas, apenas e tão somente, na mente, na ideologia de certas pessoas que não entendem e aceitam o Cristo da Cruz, o Cristo pobre e sofredor com os sofredores, o Cristo que não exalta e justifica o poder e a riqueza, nem mesmo, consola as consciências dos ricos e poderosos que não sabem partilhar do que é seu e, por isso mesmo, jamais conhecerão ou experimentarão quem é Deus, de verdade! 

O Domingo de Ramos nos convida a não sermos como a elite de Jerusalém que não reconheceu o verdadeiro Messias, nem o seguiu, nem ficou contente com a sua presença na sua cidade! Tenhamos a coragem de crer em um Messias que nos desconserta, nos surpreende, nos desafia, nos faz mudar de vida, pois é disso que estamos precisando, de fato! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Tu montaste um jumentinho. Tu manifestaste tua força escolhendo a penúria. Montaste um jumentinho em sinal de pobreza, mas com a tua glória conquistas Sião. As roupas dos teus discípulos eram pobres, mas as crianças e a multidão te engrandeciam, exclamando: Hosana, salva-nos Tu que estás nos mais altos céus. Salva, Altíssimo, os oprimidos. Tem piedade de nós, por estes ramos, Tu que vens nos lembrar de Adão!»

(Fonte: Romano il Melode. Domenica delle Palme: orazione finale. In: CILIA, Anthony O.Carm. Lectio Divina sui vangeli festivi: per l’anno liturgico A. Leumann [TO]: Elledici, 2010, p. 190.)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – Domenica delle Palme – Anno A – 5 aprile 2020 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/03/2023).

quinta-feira, 30 de março de 2023

Pastoral Hollywoodiana

 Não converte, mas ilude e manipula!

 Pe. Alfredo José Gonçalves

Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos), é vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) 

Pe. Alfredo José Gonçalves, cs

Pastoral em tempos líquidos, diria Zygmunt Bauman

O mais importante é despertar sensações. No pano de fundo de uma música em geral tempestuosa, desfilam velozes os diálogos, gestos e imagens. Luzes, cores e ação devem levar ao espetáculo. Este último é a razão de ser da filmagem, seja ela de natureza real ou fictícia. Objetos, rostos e multidões percorrem a tela numa corrida vertiginosa. Importa menos a conexão das fotografias e da linguagem do que os arrepios que elas são capazes de provocar. O grande sucesso é deixar o espectador emocionalmente ébrio e hipnotizado. A ponto de ele praticamente sequer repousar e recostar-se. Numa atitude permanente de expectativa e quase de medo, ele tende a ocupar apenas a ponta da poltrona. O olhar grudado naquela alucinante sucessão ou justaposição de ações que surgem e desaparecem no seu campo de visão, a cabeça pendida para frente, ele mal consegue respirar com regularidade. As surpresas o mantêm o tempo todo alerta. Pouca deverá ser a preocupação com o processo de encadeamento. Menor ainda a definição e os contornos de tempo e espaço. Fugaz e veloz, tudo desliza com um sonho. Sonho meio fantasia e meio pesadelo, onde a conexão entre causa e efeito não sabe exatamente onde colocar os pés. 

Cena de ação em filme produzido por Hollywood

Em lugar de fatos, com seu respectivo sequenciamento, prevalecem as emoções e sentimentos. As cenas, em cadeia não raro, desconectada, entram pelos olhos e eletrizam os neurônios do cérebro, sem passar pela razão. Não há meio nem tempo de engolir, mastigar, digerir e selecionar o que se vê e ouve. Tampouco haverá reflexão possível e menos ainda espaço para uma formulação de juízo crítico. Imperam as verdades e certezas, não as hipóteses, buscas e pesquisas. Tanto que, ao sair da sala de projeção para a rua, o espectador sente-se literalmente cruzar de um mundo para outro. É como se tivesse feito uma longa viagem a um lugar secreto, misterioso. De repente, a nave espacial o abandona em meio à dura realidade do cotidiano. 

Os dois parágrafos anteriores servem para ilustrar o que tende a ocorrer quando, em lugar de uma pastoral de processo, privilegiamos uma “pastoral hollywoodiana”. Multidões, espetáculos, heroísmos e grandes proezas tomam o protagonismo dos trabalhadores e trabalhadoras. Daí a relevância dada à solenidades e às pompas exteriores, em detrimento da concentração e reflexão pessoal e coletiva. Nestes casos, não será incomum que a parafernália dos gestos e objetos litúrgicos ganhem um formalismo ritual exageradamente rico e vistoso.

É preciso compensar o vazio interior com a exuberância, o exibicionismo e a ostentação exterior.

Sobretudo, é preciso “encher os olhos” das câmeras, dos holofotes e dos microfones, uma vez que as cerimônias tendem a ultrapassar as paredes do templo e chegar ao espectador através das telas e telinhas. A linguagem da pose, da indumentária, das frases feitas e de certos ritualismos obtusos retornam da noite dos tempos.

A teatralização se sobrepõe ao processo de oração, reflexão, meditação e contemplação.

Nesse cenário fantasioso de luzes e cores, não difícil transformar qualquer celebração em show. E neste, fazem valer sua performance tanto o celebrante quanto os ministros, coroinhas, cantores, e assim por diante.

O espetáculo, a vibração, a emoção são os resultados que importam!

Mais pernicioso, todavia, vem a ser quando a pastoral hollywoodiana, além de predominante nos momentos celebrativos, invade igualmente o campo da conscientização, organização e mobilização populares, à luz da Palavra de Deus. A tendência hoje é deixar de lado, como ultrapassadas:

* a opção preferencial pelos pobres,

* o caráter combativo das Pastorais Sociais,

* as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)!

* E, juntamente com tais práticas a reflexão teórico-crítica da Teologia da Libertação (TdL) que as acompanhava.

Por que trilhar este caminho longo, lento e laborioso, quando podemos usar os atalhos da espetacularização? E o povo aplaude, uma vez que não é fácil olhar para a realidade nua e crua. Menos fácil ainda é pensar, refletir e lutar. Melhor festejar, receber pronta a receita, vestir um jaleco branco e fazer parte integrante do show, mesmo que seja alguns degraus abaixo dos figurantes centrais. 

Convém deixar claro que não tem sido pouca a influência de alguns canais católicos de televisão para esse retrocesso de uma PASTORAL DO PROCESSO para uma PASTORAL DO ESPETÁCULO. A via do envolvimento pastoral e do compromisso sociopolítico da fé cedeu o lugar à via curta e emocionante da festa.

Através desse atalho, tenta-se chegar à ressurreição sem passar pela dor e o sofrimento, pela paixão e a morte, pela superação da cruz e do túmulo.

Ademais, a interiorização e espiritualização individuais da religião é bem mais cômoda do que ter de lidar com relações novas para com o “outro, o diferente e o estrangeiro”. São essas relações, contudo, as únicas que apontam o caminho do Reino dos Céus. 

Fonte: Enviado pelo autor – Quinta-feira, 30 de março de 2023.

Capitalismo comunista

 Sim, é isso mesmo!

 Giorgio Agamben

Filósofo italiano, autor de obras que percorrem temas que vão da estética à política 

GIORGIO AGAMBEN

Surge um novo capitalismo, pior que os anteriores

O capitalismo que está se consolidando em escala planetária não é o capitalismo na forma em que ele havia assumido no ocidente: é, antes, o capitalismo em sua variante comunista, que unia um desenvolvimento extremamente rápido da produção a um regime político totalitário. Esse é o significado histórico do papel de liderança que a China está assumindo, não somente na economia em sentido estrito, mas também, como mostrou eloquentemente o uso político da pandemia, enquanto paradigma de governo dos homens. 

O fato de que os regimes instaurados nos países supostamente comunistas eram uma forma particular de capitalismo, adaptada especialmente aos países economicamente atrasados, e por isso denominada como capitalismo de Estado, era algo perfeitamente conhecido para aqueles que sabem ler a história; inesperado era no entanto que essa forma de capitalismo, que parecia ter exaurido a sua tarefa e que portanto era obsoleta, estivesse destinada a se tornar, em uma configuração tecnologicamente atualizada, o princípio dominante na fase atual do capitalismo globalizado. É possível, de fato, que estejamos assistindo a um conflito entre o capitalismo ocidental, que convivia com o Estado de direito e as democracias burguesas, e o novo capitalismo comunista, um conflito do qual este último parece sair vitorioso. 

Aquilo que é certo, todavia, é que o novo regime unirá em si o aspecto mais desumano do capitalismo com aquele mais atroz do comunismo estatista, combinando a extrema alienação das relações entre os homens com um controle social sem precedentes.

Publicado originalmente em italiano no Quodlibet em 15 dezembro de 2020. A tradução é de Felipe Catalani. 

Fonte: blog – Boitempo – 9 de abril de 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 30/03/2023).

Padres para as comunidades

 O sacerdócio fundado no batismo e o sacerdócio de quem é ordenado

 Severino Dianich

Teólogo e padre católico italiano. Publicado por «Vita Pastorale», abril, 2023 

SEVERINO DIANICH

Padres de série A e de série B?

Reportamos a resposta a um leitor da revista que considera teologicamente pouco sustentável a ordenação de viri probati porque correria o risco de criar mais uma discriminação no ministério sacerdotal com padre de série A e de série B (o Deus de Jesus Cristo não faz diferença entre pessoas). 

NOTA: viri probati é uma expressão latina que significa homens de virtude comprovada, isto é, pessoas confiáveis, que possuam uma preparação adequada e sólida, que poderiam exercer o sacerdócio, mesmo sendo já casados.

O comentário é do teólogo e padre italiano Severino Dianich, cofundador e ex-presidente da Associação Teológica Italiana e professor da Faculdade Teológica de Florença. 

O problema dos viri probati não é um problema doutrinário, nem tem em seu pano de fundo uma teologia própria, seja a favor ou contra. É uma questão puramente prática: é conveniente ou não? A lei sobre o celibato sempre teve suas variações, tanto ao longo do tempo quanto na diferença das tradições locais. O leitor levanta, com alguma razoabilidade, o risco de que se crie uma discriminação dentro do ministério ordenado. 

Para dizer a verdade, já existem discriminações. De fato, temos três categorias de ministros ordenados:

* bispos,

* padres e

* diáconos.

Ao longo da história, no início, apenas o bispo presidia a Eucaristia. Quando a Igreja se espalhou pelas vastas áreas do interior, os padres também celebraram a Eucaristia. Os diáconos nem antes nem depois. Não é por acaso que o Concílio Vaticano II distingue ao declarar divinitus institutum (de instituição divina) o ministério ordenado como tal e a distinção dos três graus vigentes iam ab antiquo, ou seja, fundada na antiga tradição (Lumen Gentium, 28). 

Para as comunidades sem padre seria melhor ter um padre não formado em teologia, em tempo parcial, porque tem que trabalhar para ganhar a vida e com família, do que ficar, meses e às vezes anos, sem poder ter uma missa.

O problema teológico é a relação entre o sacerdócio de todos, fundado no batismo, e o sacerdócio daqueles que recebem o sacramento da Ordem. Se há uma “preferência pessoal” nisso, é a favor de todos os batizados, porque...

... os ministros são ordenados para servir o povo de Deus, e não o contrário.

Se somos nós que mudamos as cartas na mesa, façamos um mea culpa. Se o Código de Direito Canônico também faz isso, que seja reformado. 

Traduzido do italiano por Luisa Rabolini. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 29 de março de 2023 – Internet: clique aqui (Acesso em: 30/03/2023).

A insurreição da extrema direita

 A força e o futuro da extrema direita no Brasil pós-8 de janeiro de 2023

 Vladimir Safatle

Professor titular de Filosofia e Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e autor, entre outros livros, de Em um com o impulso: experiência estética e emancipação social (editora Autêntica, 2022) 

VLADIMIR SAFATLE

Brasil serve de laboratório para a fase revolucionária da extrema direita mundial

As ações históricas mais expressivas são feitas por quem sequer tem ideia do que está fazendo. Foi impossível deixar de pensar nisso ao ver a imagem do manifestante que entrou no Palácio do Planalto e achou por bem esfaquear, com uma violência tanto mais impactante porque displicente, a tela As Mulatas, de Di Cavalcanti. Seria fácil dizer que se trata de simples vandalismo, cometido por uma pessoa tão brutalizada que é incapaz de perceber o valor de um quadro “de 8 milhões de reais”, como se disse à época.

Mas a verdade é que conflitos sociais reais acabam sempre por encontrar suas imagens e significações, a despeito da intenção dos seus agentes.

O que o manifestante queria fazer ou acreditava estar fazendo tem pouca importância, pois não foi exatamente ele quem agiu, mas toda uma estrutura por meio dele. E, como costumava dizer Jacques Lacan, há momentos em que as estruturas descem às ruas

O quadro "Mulatas", de Di Cavalcanti, danificado durante ação terrorista no Palácio do Planalto, dia 8 de janeiro de 2023

É possível olhar para tudo que ocorreu em Brasília em 8 de janeiro passado e agir como se fosse a expressão irracional da violência das massas. Mas o que aconteceu – e provavelmente se repetirá mais à frente – não foi de fato “irracional”. Foi, na verdade, um acontecimento várias vezes previsto e anunciado: uma certa repetição do que se viu na invasão do Capitólio, em Washington. Durante muito tempo se destacou um lugar para esse acontecimento na racionalidade das lutas políticas atuais no Brasil. A questão é que essa racionalidade mudou, embora muitos prefiram não admiti-lo

O desejo de não enxergar é tão forte que, depois das imagens muito vistas do 8 de janeiro, seguiram-se imagens não vistas, como a que registrou o que ocorreu na Praça dos Três Poderes, em 31 de janeiro passado, terça-feira. Na tarde desse dia, um senhor de 58 anos, cuja identidade não foi divulgada, ateou fogo no próprio corpo gritando palavras de ordem contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o ministro Alexandre de Moraes. O homem morreu no dia 2 de fevereiro, e a maioria da imprensa preferiu não noticiar o caso. Decisão questionável, pois apenas reforça o desconhecimento da opinião pública a respeito do momento em que efetivamente nos encontramos, marcado pela força de engajamento e sacrifício da extrema direita.

A melhor maneira de não resolver um problema é ignorar sistematicamente sua real extensão e profundidade.

Mas quem segue os fatos políticos das últimas décadas se lembrará de como a Primavera Árabe começou. Em dezembro de 2010, em uma pequena cidade no interior da Tunísia, um homem se autoimolou como forma desesperada de protesto contra as extorsões que sofria da polícia e do governo local. “Isso é mera analogia sem real poder explanatório”, dirão alguns. Eu gostaria, porém, de insistir no contrário. Essa repetição com os sinais invertidos demonstra que estamos outra vez diante de uma dinâmica insurrecional, mas agora capitaneada pela extrema direita

Alexandre Leite de Andrade, 58 anos, estava no Distrito Federal havia alguns dias; ele foi professor, maquinista e estava aposentado. Ele ateou fogo a si mesmo em protesto contra o Supremo Tribunal Federal, no dia 31 de janeiro de 2023

Nesses últimos meses, uma parte do país foi pega de surpresa pela insistência, a abnegação e o entusiasmo com que pessoas de extrema direita se mobilizaram. Achar que essa dinâmica foi rompida apenas por que agora se fez algumas prisões é simplesmente tomar nossos desejos por realidade. Vimos algo muito parecido em 2021, na sequência dos eventos ocorridos em Sete de Setembro, quando Bolsonaro fez ataques ao STF e estimulou discursos incendiários: ocorreram prisões e declarações de que o então presidente havia “ultrapassado os limites”, desarticulando com isso a sua base popular. No entanto, o que ocorreu foi outra coisa. A mobilização da extrema direita não retraiu, não arrefeceu, não acabou. Ou seja, não se deve agora, em absoluto, descartar a hipótese de que o Brasil se tornou o laboratório de uma nova fase da extrema direita mundial, a saber, justamente, a fase insurrecional

Nesse contexto, “fase insurrecional” significa que a extrema direita mundial tenderá, cada vez mais, a operar como força ofensiva anti-institucional de longa duração.

Força essa que pode se expressar em:

* grandes mobilizações populares,

* em ações diretas,

* em formas de recusa explícita das autoridades constituídas.

Ou seja, toda uma gramática de luta que até pouco tempo atrás caracterizava a esquerda revolucionária agora está migrando para a extrema direita, como se estivéssemos em um mundo invertido. 

Melhor aceitar isso do que continuar com explicações “deficitárias” a respeito do bolsonarismo, como se fez à exaustão nos últimos anos. Explicações deficitárias são aquelas que colocam a causa dos fenômenos em pretensas deficiências dos agentes, como dizer que o bolsonarismo é resultado do ressentimento (deficiência psicológica), do obscurantismo e das fake news (deficiências cognitivas), do ódio (deficiência moral). Explicações dessa natureza servem mais para corroborar a crença do analista em sua pretensa superioridade moral e intelectual do que para auxiliar na compreensão efetiva de um fenômeno sociopolítico de inegável complexidade. 

Manifestantes em frente ao Palácio do Planalto após depredarem violentamente o prédio, no dia 8 de janeiro de 2023

Não deixa de ser significativo que a extrema direita descreva a esquerda brasileira recorrendo aos mesmos termos. Aos olhos da extrema direita, a esquerda é obscurantista, ideologicamente cega, ressentida e marcada pelo ódio. O que mostra o caráter eminentemente estratégico desses “conceitos analíticos”. Eles são peças de um embate retórico e, no máximo, descrevem efeitos, não causas. Ninguém passa meses tomando chuva diante de um quartel movido pelo ressentimento, mas porque acredita fazer parte de um movimento real de ruptura e transformação que irá “passar o país a limpo” e reconstruir a história brasileira, o que exige sacrifício. Há um sistema positivo de motivações movendo essas pessoas que precisa ser analisado enquanto tal. 

Este texto começou com uma digressão sobre as facadas contra uma tela de Di Cavalcanti que parece ter ficado perdida no primeiro parágrafo. Na verdade, era uma maneira de introduzir o verdadeiro argumento do artigo: em todo processo de insurreição popular ocorre a afirmação de que o povo representado pelo poder não é o povo real.

Para os insurgentes, o POVO REAL é aquele que destrói as representações do poder.

Por isso, nunca houve insurreição popular sem derrubada de estátuas, profanação de espaços públicos, degradação de patrimônio histórico e artístico. O poder público não é apenas um conjunto de aparatos de controle e legislação. É um conjunto de sistemas estéticos de apresentação do povo. É a gestão contínua de toda uma série de hinos, canções “populares”, espaços arquitetônicos, pinturas, imagens, poemas, romances que visam não exatamente a “representar” um povo, mas a construí-lo. E não há país melhor para demonstrar como isso funciona do que o Brasil. 

De certa forma, o Brasil é uma construção estética. Se toda nação mobiliza, em alguma escala, tal dimensão para se constituir como povo, é fato que o Brasil moderno é impensável se não for visto também assim. Não é possível compreender os desejos de modernização e desenvolvimento no país sem articulá-los a um processo amplo de construção e modernização estética do próprio povo. O ápice disso é a criação de Brasília. Como dizia o crítico de arte Mário Pedrosa, na época da fundação da capital federal (e é bom que se leia isso reparando em seu tom de utopia concreta), “edificar a cidade nova é a maior obra de arte que se possa fazer no século”.

Há que se acrescentar que quem constrói uma cidade não constrói apenas uma urbis: constrói também seus habitantes.

Como toda insurreição popular é, entre outras coisas, um processo de desautorização estética, o manifestante que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti ignorou não apenas este trabalho, como se indispôs contra as linhas curvas de Oscar Niemeyer, os murais de Athos Bulcão e o paisagismo de Burle Marx. Com seu gesto, ele queria dizer, como outros já disseram em vários momentos da história: “Esse povo representado pelas obras modernistas de Brasília não é o povo real. O povo está em outro lugar”

O arquiteto brasileiro OSCAR NIEMEYER enfrente algumas de suas obras projetadas em Brasília (DF): o Congresso Nacional

Vale a pena refletir sobre isso com vagar. Porque é possível imaginar que algumas pessoas tenham dito: “Toda destruição popular de signos do poder tem algo de liberador. Não é possível criticar quem fez o que fez em Brasília em 8 de janeiro.” Mas essa posição resulta de um equívoco duplo. O primeiro consiste em acreditar que toda destruição é igual. O segundo, e ainda pior, que toda construção também é igual. 

Comecemos pelo segundo erro. Como disse anteriormente, o Brasil “moderno” é uma ideia artística. A construção nacional tem entre seus eixos fundamentais o uso da modernização estética como força de redefinição do espaço, do tempo e do território. O Brasil entrou para a história como o único país do mundo (junto com a União Soviética), onde o modernismo se tornou um verdadeiro projeto de Estado. O que levou o arquiteto Lucio Costa, que fez o Plano Piloto de Brasília, a anunciar que, com a construção da capital, estava surgindo “uma nova era política, na qual a arte retomaria mais uma vez o controle da técnica”. 

Plano Piloto de Brasília (PPB) idealizado pelo arquiteto LUCIO COSTA

A ideia de construção estética de um povo, ou de fundação de um povo a partir de forças de produção simbólica e unificação social próprias a certas experiências artísticas, remete ao começo do século XIX europeu. Todo professor de filosofia, classe na qual me incluo, conhece o sentido histórico de textos como A Educação Estética do Homem (1795), de Friedrich Schiller, e O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão (1796-7, de autoria incerta, é atribuído a Hegel, Schelling e Hölderlin). São textos que defendem a tarefa histórica de uso das artes como dispositivo de emancipação política e social. E não por acaso foram animados pelas transformações globais impulsionadas pela Revolução Francesa. 

Uma das consequências de uma revolução popular é a crença de que podem emergir novas dinâmicas de constituição do povo, possibilitando a modificação estrutural da sensibilidade e da imaginação. Uma sociedade liberada da reprodução material de tradições e mitos fundadores pode mobilizar a experiência estética como solo de criação social de novas formas. Algo dessa crença orientou o desenvolvimento do modernismo em certos países de constituição nacional tardia, como o Brasil. Animado por um processo que não foi uma revolução social, mas uma “revolução pelo alto”, a partir de 1930, o Brasil utilizou o horizonte utópico do modernismo para impulsionar a formação de um Estado nacional propulsor de uma modernização “ambígua”

O adjetivo “ambígua” não foi usado por acaso. Poder algum se associa à força construtiva de experiências estéticas autônomas sem que isso traga acordos instáveis e difíceis de controlar. O modernismo brasileiro não foi uma emulação do Estado. Ele se realizou como uma estética da conciliação nacional, em que a aspiração vanguardista de “criar um povo que falta” se encontrava com os desejos de modernização conservadora e de progresso do Estado populista brasileiro a partir da era Vargas. Para que essa conciliação funcionasse, foram necessários muitos apagamentos e silenciamentos. Pois, para criar um povo que falta, se faz necessário negar um povo que já existe, é preciso jogar na invisibilidade esse povo que não se adequa à geometria estelar e à amplidão do vão livre arquitetônico que o modernismo brasileiro consagrou. 

Por outro lado, essa modernização – e aí está seu traço ambíguo – exige que não nos apoiemos mais no solo, no território, na tradição, nas formas já constituídas de vida. Ela pede um empuxo de criação e invenção que, como eu disse, nenhum poder consegue controlar muito bem. Imbuído desse espírito do modernismo brasileiro, Celso Furtado falava de uma improvável “fantasia organizada”, uma das mais belas expressões para se referir à utopia estética nacional. Algo não muito distante do que disse Lucio Costa, ao declarar que, com Brasília, havia construído uma cidade capaz de aliar “trabalho ordenado e devaneio”. De fato, o processo é contraditório, mas essa contradição é real. Triste o tempo em que o pensamento crítico não conhece mais contradições reais. 

CELSO FURTADO (1920-2004): economista paraibano e um dos intelectuais brasileiros de maior destaque ao longo do século XX

A pessoa que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti dentro do Palácio do Planalto agiu contra os dois lados da contradição. Ela recusou a conciliação prometida pela representação oficial do povo, dizendo com isso que há uma irreconciliação ativa, que esse não é o povo real. Mas não parou aí. Seu gesto incluiu ainda uma segunda intenção, que consiste em também não aceitar o empuxo de criação e ruptura que a construção modernista do povo expressou no Brasil. Esse segundo gesto inconsciente, mas brutalmente real por ser inconsciente, nos lembra do primeiro equívoco que mencionei antes: o de acreditar que toda destruição é igual. Há destruições que são a condição para se criar o que ainda não foi visto. E há destruições que apenas negam aquilo que ainda guarda a força silenciosa de criação de novas configurações sociais. Nesse caso, por meio da negação, busca operar uma restauração. 

Esse segundo gesto do agressor da tela de Di Cavalcanti só pode ser compreendido em sua real intenção se entendermos que o bolsonarismo não é simplesmente “a destruição da cultura”. É a encarnação de um embate centenário que atravessa a história do Brasil e consiste em tentar destituir um projeto de construção estética do povo em nome de outro, pretensamente mais popular e que não seja a expressão das “elites culturais globalistas”.

O movimento será sempre este: o de construir esteticamente um povo, mas destruindo outro. No mesmo espaço.

Quando Bolsonaro perdeu as eleições e deixou os palácios da Alvorada e do Planalto, não foram poucos os que fizeram troça das “obras de arte” de gosto duvidoso recebidas pelo ex-presidente e empacotadas para sua mudança, como uma motocicleta esculpida em madeira, esculturas feitas de cartuchos de balas e quadros em que ele aparece ao lado de Jesus Cristo. As redes sociais se deleitaram com tamanha miséria estética. Eram trabalhos de cunho artesanal ou feitos por autodidatas que celebravam o próprio Bolsonaro. No entanto, qualquer pessoa familiarizada com o integralismo brasileiro não deixaria de reconhecer neles elementos estéticos do movimento, com sua mescla de formas populares, “poesia ingênua e sentimental” e referências religiosas e patrióticas

Estátua enfrente ao Supremo Tribunal Federal pichada no dia 8 de janeiro de 2023

De fato, o integralismo, ou seja, o fascismo brasileiro, foi inicialmente uma outra construção estética do povo – contraposta à do projeto modernista que predominou. O que não poderia ser diferente, se lembrarmos que o fundador do integralismo, Plínio Salgado (1895-1975), além de exercer a atividade política, foi escritor e participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e dos embates internos do modernismo brasileiro, tendo redigido seus próprios manifestos artísticos, como o do Movimento Verde-Amarelo, de 1926. A estética integralista celebrou outra forma de conciliação nacional, ainda mais violenta – e muito menos ambígua –, entre a:

* acumulação capitalista primitiva, de cunho extrativista,

* a religião,

* a tradição e

* o extermínio indígena. 

Como é um modernismo cortado de sua raiz de ruptura formal, mas que preserva seu desejo de autonomia do presente, o integralismo adequa a tradição às exigências de desenvolvimento predatório capitalista, que não verte lágrimas por aquilo que destrói. Ele é a expressão de um povo que estaria conciliado com a violência do progresso colonial e extrativista, do empreendedorismo capitalista, com a ordem atual da sensibilidade, que não questiona o que socialmente aparece como “natural”, as hierarquias “naturalmente” dadas (como as que constituem a família burguesa e o poder teológico-político). Muitos desses elementos serão atualizados nessa “estética da produção agrária exportadora” que sela a associação entre a indústria cultural brasileira e o bolsonarismo. Basta lembrar, por exemplo, a dicotomia construída por Plínio Salgado entre os tupis, que na concepção dele se permitiriam dizimar “pacificamente” para viver no sangue de cada brasileiro, e os tapuias, cujo ímpeto guerreiro e hostil à assimilação os levou ao completo apagamento. 

Tudo isso indica um fenômeno que é importante não esquecer. Se há algo que a estetização política produzida pelo fascismo compreendeu é que não há insurreição popular sem reconstrução estética do povo. Há uma dimensão profunda dos embates políticos que são embates estéticos – entre formas distintas de afecções e circulação da experiência sensível. De certo modo, involuntariamente – como é involuntário todo verdadeiro ato político –, o manifestante que esfaqueou a tela de Di Cavalcanti disse exatamente isso. 

Fonte: Piauí – Questões Vultuosas – Edição 198 – Março de 2023 – Internet: clique https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-insurreicao/ (Acesso em: 06/03/2023).