«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria - Homilia

Evangelho: Lucas 2,16-21

Naquele tempo:
16 Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido, deitado na manjedoura.
17 Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino.
18 E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam.
19 Quanto a Maria, guardava todos estes fatos e meditava sobre eles em seu coração.
20 Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito.
21 Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido.

JOSÉ ANTONIO PAGOLA

A MÃE NOS ACOMPANHA

Costuma-se dizer que os cristãos de hoje vibram menos diante da figura de Maria que os crentes de outras épocas. Talvez, sejamos vítimas inconscientes de muitos receios e suspeitas diante de deformações que ocorreram na piedade mariana.

Às vezes, insistiu-se de modo excessivamente unilateral na função protetora de Maria, a Mãe que ampara seus filhos e filhas de todos os males, sem convertê-los a uma vida mais evangélica.

Outras vezes, alguns tipos de devoção mariana não souberam exaltar Maria como mãe sem criar uma dependência insana de uma “mãe idealizada” e fomentar uma imaturidade e um infantilismo religioso.

Quem sabe, esta mesma idealização de Maria como “a mulher única” acabou por alimentar um certo desprezo à mulher real e foi um reforço do domínio masculino. Ao menos, não deveríamos negligenciar essas reprovações que, a partir de várias frentes, são feitas a nós, católicos.

No entanto, seria lamentável que nós, católicos, empobrecêssemos nossa vida religiosa esquecendo o presente que Maria pode significar para aqueles que creem.

Uma piedade mariana bem entendida não encerra ninguém no infantilismo, mas assegura em nossa vida de fé a presença enriquecedora do feminino. O mesmo Deus quis encarnar-se no seio de uma mulher. Desde então, podemos dizer que “o feminino é caminho para Deus e de Deus” (Leonardo Boff).

A humanidade necessita, sempre, dessa riqueza que associamos ao feminino porque, ainda que também ocorra no varão, se condensa de modo especial na mulher: intimidade, acolhida, solicitude, carinho, ternura, entrega ao mistério, gestação, doação de vida.

Sempre que marginalizamos Maria de nossa vida, empobrecemos nossa fé. E sempre que desprezamos o feminino, nos fechamos a vias possíveis de abordagem desse Deus que se nos ofereceu nos braços de uma mãe.

Começamos o ano celebrando a festa da Santa Mãe de Deus, Maria.

·        Sua fidelidade e entrega à Palavra de Deus,
·        sua identificação com os pequenos,
·        sua adesão às opções de seu Filho Jesus,
·        sua presença servidora na Igreja nascente e, acima de tudo,
·        seu serviço de Mãe do Salvador
fazem dela a Mãe de nossa fé e de nossa esperança.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: Sopelako San Pedro Apostol Parrokia – Sopelan – Bizkaia (Espanha) – J. A. Pagola – Ciclo B [Homilías] – Internet: clique aqui.

MENSAGEM DE PAZ - PAPA FRANCISCO

“Já não escravos, mas irmãos”

Papa Francisco anuncia mensagem para Jornada Mundial da Paz 2015
Em mensagem para a 48ª Jornada Mundial da Paz de 2015, sob o título "Não escravos e sim irmãos”, Papa Francisco declara que, sendo o homem um ser relacional, é essencial que, para o seu desenvolvimento, se reconheça e se respeite sua dignidade, liberdade e autonomia. Para ele, a exploração do homem pelo homem é um fenômeno abominável, que aniquila, de múltiplas formas, os direitos fundamentais e suscita uma profunda reflexão à luz da Palavra de Deus, para que consideremos que todos os homens não são escravos e sim irmãos.

Na declaração, o Papa reforça que, como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão relacionadas pela fraternidade. E, mesmo com a escravidão oficialmente abolida do mundo e a comunidade internacional adotando diversas estratégias para combater o fenômeno, ainda há milhões de pessoas (crianças, homens e mulheres de todas as idades) privadas de sua liberdade e obrigadas a viverem em condições similares à escravidão.

Como raiz do problema, Francisco destaca, principalmente:
  • a concepção da pessoa humana como objeto.
  • E cita ainda outras causas, como a pobreza,
  • o subdesenvolvimento,
  • a exclusão,
  • a corrupção,
  • os conflitos armados,
  • a violência,
  • o crime e
  • o terrorismo.
Esses fatores combinados à falta de educação e realidade escassa de trabalho colaboram para o agravamento das situações de escravidão, a exemplo da condição de vida de muitos emigrantes.

O Papa convoca para o compromisso comum para vencer a escravidão. Os Estados devem vigiar para que a legislação nacional relacionada à migração, ao trabalho, às adoções, respeite a dignidade humana. As empresas devem também garantir condições de trabalho e salários dignos. As organizações da sociedade civil precisam sensibilizar e estimular a consciência e medidas de combate e erradicação da escravidão.

A escravidão, como fenômeno mundial, é um flagelo contemporâneo que ultrapassa a competência de um só país. É necessário, então, unir esforços, "globalizar a fraternidade e não a escravidão nem a indiferença”. Nessa perspectiva, o Papa encerra sua declaração fazendo um chamamento urgente para que todos assumam a responsabilidade de realizar gestos de fraternidade para aqueles que se encontram em estado de sofrimento.

"A globalização da indiferença, que agora afeta a vida de tantos irmãos e irmãs, nos pede que sejamos artífices de uma globalização da solidariedade e da fraternidade, que lhes dê esperança e os faça retomar, com coragem, o caminho, através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que traz consigo, e que Deus coloca em nossas mãos.”, disse Francisco.

Jornada Mundial da Paz

A Jornada Mundial da Paz, celebrada no primeiro dia de cada ano, foi instituída em 1968, pelo Papa Paulo VI. Para a 48ª Jornada, que será realizada dia 1º de janeiro de 2015, o tema escolhido foi "Já nunca mais escravos, sim irmãos”, pela grave situação de escravidão enfrentada em todo o mundo.

MENSAGEM DO SANTO PADRE
FRANCISCO
PARA A CELEBRAÇÃO DO 
XLVIII DIA MUNDIAL DA PAZ

1º DE JANEIRO DE 2015

JÁ NÃO ESCRAVOS, MAS IRMÃOS

1. No início dum novo ano, que acolhemos como uma graça e um dom de Deus para a humanidade, desejo dirigir, a cada homem e mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões, os meus ardentes votos de paz, que acompanho com a minha oração a fim de que cessem as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais. Rezo de modo particular para que, respondendo à nossa vocação comum de colaborar com Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e da paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos de forma não digna da nossa humanidade.

Já, na minha mensagem para o 1º de Janeiro passado, fazia notar que «o anseio duma vida plena (…) contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar».[1] Sendo o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é fundamental para o seu desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade. Tal fenômeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre as quais desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus, possamos considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».

À escuta do projeto de Deus para a humanidade

2. O tema, que escolhi para esta mensagem, inspira-se na Carta de São Paulo a Filêmon; nela, o Apóstolo pede ao seu colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filêmon mas agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi afastado por breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16). Tornando-se cristão, Onésimo passou a ser irmão de Filêmon. Deste modo, a conversão a Cristo, o início duma vida de discipulado em Cristo constitui um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1 Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo fundante da vida familiar e alicerce da vida social.

Lemos, no livro do Gênesis (cf. 1, 27-28), que Deus criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os para que crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no cumprimento da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a primeira fraternidade: a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre, Caim e Abel são irmãos e, por isso, têm a mesma origem, natureza e dignidade de seus pais, criados à imagem e semelhança de Deus.

Mas, apesar de os irmãos estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidade exprime também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles. Por conseguinte, como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por Deus.

Infelizmente, entre a primeira criação narrada no livro do Gênesis e o novo nascimento em Cristo – que torna, os crentes, irmãos e irmãs do «primogénito de muitos irmãos» (Rom 8, 29) –, existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a nossa fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza de sermos irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro fratricídio. «O assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gen 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros».[2]

Também na história da família de Noé e seus filhos (cf. Gen 9, 18-27), é a falta de piedade de Cam para com seu pai, Noé, que impele este a amaldiçoar o filho irreverente e a abençoar os outros que o tinham honrado, dando assim lugar a uma desigualdade entre irmãos nascidos do mesmo ventre.

Na narração das origens da família humana, o pecado de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão torna-se uma expressão da recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão (cf. Gen 9, 25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de geração em geração: rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades. Daqui se vê a necessidade duma conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação de Cristo na cruz, confiantes de que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça (…) por Jesus Cristo» (Rom 5, 20.21). Ele, o Filho amado (cf. Mt 3, 17), veio para revelar o amor do Pai pela humanidade. Todo aquele que escuta o Evangelho e acolhe o seu apelo à conversão, torna-se, para Jesus, «irmão, irmã e mãe» (Mt 12, 50) e, consequentemente, filho adotivo de seu Pai (cf. Ef 1, 5).

No entanto, os seres humanos não se tornam cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto é, sem o exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da conversão: «Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um o baptismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (Act 2, 38). Todos aqueles que responderam com a fé e a vida àquela pregação de Pedro, entraram na fraternidade da primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped 2, 17; Act 1, 15.16; 6, 3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1 Cor 12, 13; Gal 3, 28), cuja diversidade de origem e estado social não diminui a dignidade de cada um, nem exclui ninguém do povo de Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar da comunhão vivida no amor entre os irmãos (cf. Rom 12, 10; 1 Tes 4, 9; Heb 13, 1; 1 Ped 1, 22; 2 Ped 1, 7).

Tudo isto prova como a Boa Nova de Jesus Cristo – por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21, 5)[3] – é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo a relação entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos têm em comum: a filiação adoptiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15).

As múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje

3. Desde tempos imemoriais, as diferentes sociedades humanas conhecem o fenômeno da sujeição do homem pelo homem. Houve períodos na história da humanidade em que a instituição da escravatura era geralmente admitida e regulamentada pelo direito. Este estabelecia quem nascia livre e quem, pelo contrário, nascia escravo, bem como as condições em que a pessoa, nascida livre, podia perder a sua liberdade ou recuperá-la. Por outras palavras, o próprio direito admitia que algumas pessoas podiam ou deviam ser consideradas propriedade de outra pessoa, a qual podia dispor livremente delas; o escravo podia ser vendido e comprado, cedido e adquirido como se fosse uma mercadoria qualquer.

Hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa humanidade[4] – foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito internacional, como norma inderrogável.

Mas, apesar de a comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenômeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.

Penso em tantos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufatureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como – ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.

Penso também nas condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajeto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho... Sim! Penso no «trabalho escravo».

Penso nas pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas e escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento.

Não posso deixar de pensar a quantos, menores e adultos, são objeto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para atividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional.

Penso, enfim, em todos aqueles que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objetivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.

Algumas causas profundas da escravatura

4. Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos como objetos. Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim.

Juntamente com esta causa ontológica – a rejeição da humanidade no outro –, há outras causas que concorrem para se explicar as formas atuais de escravatura. Entre elas, penso em primeiro lugar na pobreza, no subdesenvolvimento e na exclusão, especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes, oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo.

Entre as causas da escravatura, deve ser incluída também a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das pessoas humanas requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção dos intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros atores do Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro, e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou econômico, deve estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores».[5]

Outras causas da escravidão são os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo. Há inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas, recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se veem obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência, arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas.

Um compromisso comum para vencer a escravatura

5. Quando se observa o fenômeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral.

Sem negar que isto seja, infelizmente, verdade em grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que muitas congregações religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente, há tantos anos, a favor das vítimas. Tais institutos atuam em contextos difíceis, por vezes dominados pela violência, procurando quebrar as cadeias invisíveis que mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e exploradores; cadeias, cujos elos são feitos não só de subtis mecanismos psicológicos que tornam as vítimas dependentes dos seus algozes, através de chantagem e ameaça a eles e aos seus entes queridos, mas também através de meios materiais, como a apreensão dos documentos de identidade e a violência física. A atividade das congregações religiosas está articulada a três níveis principais: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.

Este trabalho imenso, que requer coragem, paciência e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da sociedade. Naturalmente o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo da exploração da pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a nível institucional: prevenção, proteção das vítimas e ação judicial contra os responsáveis. Além disso, assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer este fenômeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade.

Os Estados deveriam vigiar por que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as adopções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos por meio da exploração do trabalho sejam efetivamente respeitadoras da dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na pessoa humana, que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os recuperem reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são necessários também mecanismos eficazes de controle da correta aplicação de tais normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda que seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.

As organizações intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos migrantes. Torna-se necessária uma cooperação a vários níveis, que englobe as instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações da sociedade civil e do mundo empresarial.

Com efeito, as empresas [6] têm o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, mas também de vigiar por que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A par da responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de que «comprar é sempre um ato moral, para além de econômico».[7]

As organizações da sociedade civil, por sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.

Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do tráfico e a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os diversos atores unam os seus esforços e cooperem para acabar com este flagelo.[8] Além disso, foram organizados alguns encontros com a finalidade de dar visibilidade ao fenômeno do tráfico de pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes atores, incluindo peritos do mundo académico e das organizações internacionais, forças da polícia dos diferentes países de origem, trânsito e destino dos migrantes, e representantes dos grupos eclesiais comprometidos em favor das vítimas. Espero que este empenho continue e se reforce nos próximos anos.

Globalizar a fraternidade, não a escravidão nem a indiferença

6. Na sua atividade de «proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade»,[9] a Igreja não cessa de se empenhar em ações de carácter caritativo guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o caminho da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver no outro – seja ele quem for – um irmão e uma irmã em humanidade, a reconhecer a sua dignidade intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a história de Josefina Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros, especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança[10] para as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».[11]

Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo a respectiva missão e responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões económicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa que tateia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta realidade.

Temos de reconhecer que estamos perante um fenômeno mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação. Para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio fenômeno. Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo,[12] o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt  25, 40.45).

Sabemos que Deus perguntará a cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos.

Vaticano, 8 de Dezembro de 2014.

FRANCISCUS



N O T A S

[2] Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2014, 2. 
[3]
 Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 11.
[4] Cf. Discurso à Delegação internacional da Associação de Direito Penal (23 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/X/2014), 9.
[5] Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano(ed. portuguesa de 06/XI/2014), 9.
[6] Cf. Pontifício Conselho «Justiça e Paz», La vocazione del leader d’impresa. Una riflessione (Milão e Roma, 2013).
[7] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 66.
[8] Cf. Mensagem ao Senhor Guy Rydes, Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho, por ocasião da 103ª sessão da Conferência da O.I.T. (22 de Maio de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 05/VI/2014), 7.
[9] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 5.
[10] «Mediante o conhecimento desta esperança, ela estava “redimida”, já não se sentia escrava, mas uma livre filha de Deus. Entendia aquilo que Paulo queria dizer quando lembrava aos Efésios que, antes, estavam sem esperança e sem Deus no mundo: sem esperança porque sem Deus» ( Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 3).
[11] Discurso aos participantes na II Conferência Internacional « Combating Human Trafficking: Church and Law Enforcement in partnership» (10 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 17/IV/2014), 8; cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 270.
[12] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 24270.
F0nte: CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – Imprensa – Internacional – Quinta-feira, 11 de dezembro de 2014 – Internet: clique aqui & ADITAL – Notícias da América Latina e Caribe – Mundo – 19/12/2014 – Internet: clique aqui.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A PALAVRA DO ANO: D E S I G U A L D A D E !

Perdedores em primeiro lugar

Lúcia Guimarães
Elizabeth Warren - senadora do Partido Democrático dos EUA
 
Qual a palavra do ano? Os juízes do mais tradicional concurso de miss vocabular na língua inglesa, os acadêmicos dos Dicionários Oxford, escolheram vape, uma abreviação de vaporizar ou vapor, por causa da moda de cigarros eletrônicos.

As listas de fim de ano - melhores e piores - passaram por uma transformação graças à velocidade da mídia digital. Os algoritmos são o equivalente matemático do populismo cultural. Se especialistas ou críticos eram consultados sobre os maiores avanços científicos ou melhores livros do ano, os fenômenos virais e a facilidade de se aferir o que é popular transfere o poder das listas às nações online.

Voltando ao vape: soa mal, em inglês ou qualquer língua que conheço. O instituto de pesquisa que tem expediente incerto aqui na cozinha, geralmente enquanto estou coando café, elegeu vencedora outra palavra que, embora não tenha despontado em 2014, resume melhor a realidade e a consciência global este ano.
Desigualdade.

O economista mais influente de 2014, o francês Thomas Piketty, com seu best-seller Capital no Século XXI [publicado no Brasil pela Editora Intrínseca], levantou a cortina sobre o aumento da desigualdade ao examinar estatísticas de renda em 20 países, ao longo de 300 anos. Mas uma cortina continuou fechada quando Piketty tentou, em vão, obter do governo brasileiro dados históricos e atuais sobre declarações de imposto de renda. O que o Planalto queria esconder? Que a desigualdade de renda no Brasil aumentou na última década e os dez por cento mais afluentes passaram a abocanhar uma fatia maior da riqueza do país? O governo federal ainda não tinha certeza, mas seu apego a cortinas é comparável ao do Mágico de Oz. Ao encomendar ao Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] uma pesquisa para ver aonde Piketty queria chegar, chegou lá e engavetou os números.

Sim, estamos competindo com os Estados Unidos no campeonato da desigualdade social. Piketty argumenta que a desigualdade é inevitável na medida em que os afluentes detentores de imóveis, heranças e investimentos sempre ficarão à frente de assalariados. De passagem pelo Brasil para lançar seu livro, ele declarou que a desigualdade no Brasil é provavelmente subestimada. Qualquer assalariado da classe C dispensa doutorado em economia para saber que, quando um pesquisador do PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] bate à porta de um afluente brasileiro, o entrevistado vai subestimar sua renda. Já a sua declaração ao Leão é um retrato mais fiel da distância que o separa dos noventa por cento da população.

Não sei o que a turma dos Dicionários Oxford estava fumando quando escolheu vape, mas nos Estados Unidos, que se recuperaram da grande recessão de 2009 mais rápido do que a Europa, é a desigualdade que está bombando, tanto o mal como a palavra. A recuperação americana incluiu a esperada euforia no mercado de capitais, mas, pela primeira vez na história, excluiu a classe média, que durante quase meio século, acreditou no aforismo popularizado por John Kennedy, "A maré que sobe levanta todos os barcos".

A mulher mais demonizada por Wall Street é a senadora Democrata Elizabeth Warren, uma crítica da impunidade da indústria financeira e do passe livre fiscal que permitiu a volta da desigualdade a níveis pré-Grande Depressão, em 1928. Embora afirme que não vai se candidatar a presidente, Warren começa a erodir a concentração de capital político de Hillary Clinton até agora tratada como candidata com a inevitabilidade de sucessões monárquicas. Não será surpresa se a mulher de Bill Clinton, cuja presidência foi um modelo de lua de mel com Wall Street, começar a citar números como este: nos Estados Unidos, 300 mil detêm a riqueza equivalente à de 280 milhões.

A desigualdade deixou de ser província ideológica da esquerda. Assim como a desigualdade brasileira aumentou sob a dinastia petista [do Partido dos Trabalhadores], a desigualdade americana foi apropriada pelo Partido Republicano para dar uma surra nos democratas na eleição intermediária de novembro. Quando o Fórum Econômico Mundial perguntou a dois mil líderes globais qual a tendência que mais ameaça o mundo em 2015, a maioria respondeu: o aumento da desigualdade.

Num detalhado exame do calvário em que se transformaram as viagens de avião, "A Guerra das Companhias Aéreas Contra os 99%", um jornalista vê na aviação comercial o reflexo de um mundo cada vez mais desigual e sugere que a distribuição de espaço nos assentos pode seguir um modelo Piketty de análise - os ricos cada vez mais espremem a classe econômica. No artigo da revista The American Prospect, Harold Meyerson escreve que, diante da disparidade de acomodações, "Como folhetim sócio econômico, o Titanic poderia ter nova versão a bordo de um avião".

Desigualdade, um iceberg na noite de capitães negligentes.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Caderno 2 – Segunda-feira, 29 de dezembro de 2014 – Pg. C8 – Internet: clique aqui.

A dependência do Bolsa Família

Editorial
A mais recente Síntese de Indicadores Sociais do IBGE mostra que os brasileiros mais pobres dependem cada vez mais dos programas de transferência de renda. Com uma década de existência, o Bolsa Família representa hoje a maior parte dos ganhos de uma parcela significativa da população. O programa - que deveria ser temporário e servir apenas como forma de auxiliar os beneficiários em sua luta para sair da miséria - consolidou-se como a base da sobrevivência dessas famílias, pois a renda do trabalho, quando existe, é insuficiente, e não há perspectivas de que essa situação mude num futuro previsível. Esses brasileiros se tornaram, portanto, clientes permanentes de favores do Estado.

Segundo o estudo divulgado pelo IBGE, a participação da renda do trabalho no orçamento das famílias mais pobres - com renda per capita de até um quarto de salário mínimo - caiu de 73,6% em 2004 para 57% em 2013. Já a participação de "outras fontes" - que, no caso das famílias mais pobres se limita ao Bolsa Família e a outros programas de transferência de renda - subiu de 20,3% para 37,5%, contra uma média nacional de 18,3%. No Nordeste, esse porcentual chega a 43,8%; no Piauí, atinge 53,2%.

Os responsáveis pela pesquisa concluíram que o orçamento dessas famílias passou a ser determinado por essa renda oferecida pelo governo, embora a maior parte dessas pessoas continue a ter alguma renda proveniente do trabalho.

"Essas famílias têm uma característica de inserção precária no mercado de trabalho", disse Barbara Cobo, coordenadora do levantamento. "Elas entram e saem do mercado de trabalho o tempo todo. Com a transferência de renda governamental, elas passam a contar com uma renda complementar", explicou Barbara, salientando que o Bolsa Família é uma garantia de que o beneficiário terá alguma renda mesmo desempregado e pode recusar trabalho degradante.

A importância do Bolsa Família em um país desigual como o Brasil é evidente. O problema, conforme a pesquisa do IBGE mostra, é que o programa se tornou central, e não mais auxiliar, para seus beneficiários. E isso acontece porque não há "porta de saída".

Os números mostram que a pobreza diminuiu nos últimos anos. A mesma síntese do IBGE indica que a participação dos 10% mais ricos na renda do País recuou de 45,8% em 2004 para 41,7% em 2013. Já a participação dos 40% mais pobres cresceu de 9,4% para 11,6% no período. Enquanto isso, o Índice de Gini, que vai de 0 a 1, no qual zero representa menor desigualdade social, caiu de 0,555 para 0,501 entre 2004 e 2013.

No entanto, é importante sublinhar que essa queda da desigualdade se deu em um contexto econômico bem diverso do atual. Entre 2004 e 2011, o PIB do País cresceu em média 4,3% ao ano, graças principalmente ao aumento global do consumo de commodities vendidas pelo Brasil. Não é mera coincidência que o Índice de Gini tenha caído de forma mais acelerada (de 0,555 para 0,506) justamente naquele período.

Mas essa mudança socioeconômica só chegaria a bom termo se o País continuasse a crescer e se, principalmente, estivesse lastreada em pesados investimentos no setor produtivo e na melhoria da educação e da saúde justamente daqueles que hoje mais precisam do Bolsa Família. Os governos lulopetistas, no entanto, preferiam o caminho fácil da expansão do crédito e do estímulo ao consumo - como se a capacidade de pagar prestações fosse suficiente para definir a condição social dos cidadãos e como se essa fórmula econômica gerasse impulso suficiente para o crescimento sustentável do País.

Diante do estado vegetativo da economia sob o governo de Dilma Rousseff, é improvável que a tendência apontada pela pesquisa do IBGE se altere nos próximos tempos. Isso significa que os brasileiros mais pobres continuarão fortemente dependentes do Bolsa Família e, como mostraram as últimas eleições, traduzirão sua gratidão em votos naqueles que lhes concedem esse imenso favor - perpetuando assim uma relação clientelista que nada tem a ver com distribuição de renda.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Notas e Informações – Segunda-feira, 29 de dezembro de 2014 – Pg. A3 – Internet: clique aqui.