«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

MUDANÇAS DE COMPORTAMENTO - SINAIS DOS TEMPOS!

Liberdade de viver no espelho

MUNIZ SODRÉ*

O selfie é só uma amostra da possibilidade infinita de reproduções em que, a pretexto de se conectar com o outro, o indivíduo desfruta de si mesmo como átomo isolado numa paisagem de nômades

Pessoas fazem selfie diante de cafeteria em Sidney (Austrália) durante
o sequestro realizado por um radical religioso
Dias atrás, uma seção de revista semanal registrava a frase de uma moça para sua amiga num banheiro: “Eu me sinto tão livre quando saio com o carregador de celular!”.

Isso pode ser entendido de várias formas, a exemplo de “liberdade é a comunicação instantânea e ininterrupta”, ou então “liberdade é poder reproduzir a própria imagem sem limitações”, etc. Por seu poder de contágio social ou por sua potência “viral”, como agora se diz, o autorretrato ou selfie - eleita “palavra do ano” pelo Dicionário Oxford em 2013 - é hoje a principal obsessão dos usuários das redes sociais.

Assim como no pensamento reflexivo os conceitos têm de encadear-se para fazer sentido, é preciso que se encadeiem os atos inerentes à deriva eletrônica, se pretendemos compreender os pequenos jogos de usos emergentes: celular carregado, instantaneidade e selfie são momentos de um mesmo movimento de novas intensidades sociais. Que intensidades? Os jogos de palavras e de ações que repercutem nos corpos dos internautas.

A frase da moça no banheiro pertence, assim, ao mesmo fluxo semiótico (cultural?) de eventos semelhantes ao dos acompanhantes de um enterro que se autorretratam ao lado do caixão, ou então o dos autores de selfies em frente ao café onde terrorista e reféns estavam sendo mortos a tiros (Sidney, Austrália). Na condição sociopsíquica dessa nova ordem sociotécnica, a visibilidade e a conectividade dos sujeitos desempenham um papel crucial.

A visibilidade - o plano das aparências - não é um requisito simples, pois suscita os problemas do reconhecimento social e do valor humano. Logo, é uma questão de natureza ética. A distinção entre valor de uso (a utilidade de um bem) e valor de troca (a circulação do bem no mercado) refere-se apenas a objetos, mas a título provisório pode-se indagar sobre a possibilidade de aplicação desses conceitos a pessoas.

O valor de uso de um indivíduo seria, digamos, sua boa integração (civil, profissional, moral, etc.) na cidadania, algo imanente à esfera privada. O valor de troca seria a medida circulatória de sua imagem cidadã, o que implica avaliação ou reconhecimento por parte de outros, os concidadãos; portanto, algo basicamente público.

A coisa é, porém, mais complexa. Com o indivíduo, o valor é sempre ético e procede do próprio fato da existência: diferentemente do animal, o homem não só vive, mas existe, o que significa paixão pela vida, busca de sentido e ampliação de horizontes existenciais. O conceito de valor liga-se à complexidade do próprio pensamento, pois aborda a dimensão onde o espírito se movimenta para além do puro instinto de conservação de si mesmo.

Nessa dimensão, o valor individual não é antitético ao de sua imagem pública, circulante na comunidade. Daí, entre os antigos, o acolhimento comunitário da fama, que não seria o brilho superficial, o mero aparecer de alguém, mas o que sempre se escuta de novo em razão da força virtuosa de uma presença. A ética decorre precisamente das decisões que a comunidade toma sobre o valor quando se trata de orientar as relações individuais e coletivas no empenho de produção do real. O valor da imagem é ético quando se define como elemento dinâmico do agir.

Ser é então mais do que aparecer; o sujeito é falado porque é famoso.
Na sociedade contemporânea, onde as relações sociais tendem a reger-se por imagens midiáticas (imprensa escrita, televisão, internet) - portanto, por uma “comunidade segunda”, a reboque da tecnologia e do mercado -, a imagem de um indivíduo, principalmente na indústria do espetáculo, pode agregar valor econômico na medida de seu incremento técnico: amplitude do espelhamento e da atenção pública.

Aparecer é então mais do que ser; o sujeito é famoso porque é falado.

Nesse âmbito, a lógica circulatória do mercado, ao mesmo tempo que acena democraticamente para as massas com supostos “ganhos distributivos” (a informação ilimitada, a quebra das supostas hierarquias culturais), afeta a velha cultura disseminada na esfera pública. A participação nas redes sociais, a obsessão dos selfies - tanto falar e ser falado quanto ser visto - são índices do desejo de espelhamento.

Isso significa democratização e ampliação da esfera pública?

Realmente, não. O que de fato constituía a esfera pública era sua capacidade de conversão de qualquer discurso especializado (eclesiástico, artístico, etc.) ao comum da racionalidade discursiva. Como bem ressalta o pensador português José Gil: “O espaço público, no sentido em que empregamos essa expressão algo inadequada, não é o lugar da ‘opinião pública’ nem de manifestações coletivas, políticas ou outras. Mais mesmo do que um espaço de comunicação, é um lugar de transformação anônima dos objetos individuais de expressão (...) Sua característica primeira é a de constituir uma exterioridade, um ‘fora’ para os sujeitos (individuais ou coletivos) que nele penetram...”

Essa esfera pública era, portanto, essencialmente política.

Mas, à medida que se ampliava espacialmente por efeito das tecnologias da comunicação ao longo de todo o século 20, a esfera pública foi sendo expropriada do poder de conversão do “dentro” em “fora” característica do clássico espaço público burguês. Foi também progressivamente liberando-se da ideologia cívica característica do período oitocentista que, mesmo monopolizada pela burguesia ascendente, abrigava pretensões universalistas (“liberté, égalité, fraternité”) no que diz respeito ao escopo heterogêneo das classes sociais.

Pode-se, assim, aventar a hipótese do fim da clássica esfera pública (junto com o fim da política em seu sentido forte) e do início do espaço da conectividade, gerado pelas tecnologias eletrônicas. A democracia das opiniões dá lugar à democracia das emoções - baratas. Os signos, os discursos e os dispositivos técnicos são os pressupostos de uma forma nova de socializar ou de um novo ecossistema existencial em que a comunicação equivale a um modo geral de organização da vida social e não a uma superfície transitiva de linguagem.

Instalada como um mundo de sistemas interligados de produção, circulação e consumo, a nova ordem sociotécnica visa a assegurar a continuidade, com dominância financeira e tecnológica, da mercantilização alavancada pelo capitalismo no início da modernidade ocidental. No atual rearranjo de pessoas e coisas, a comunicação revela-se como principal forma organizativa.

Comunicar não é falar (como supõe a ideologia jornalística), mas fazer conexões. No âmbito do capitalismo financeiro que nos rege, essa dimensão implica uma nova orientação existencial, homóloga ao novo modo de ser da riqueza. O princípio de organização do comum humano é agora reinterpretado por sistemas movidos a tecnologia eletrônica. Goethe fala disso no Fausto, ao chamar a atenção para o fato de que a vida “natural” não é a realidade última e sim “as formas de ser”.

São inquietantes as formas de ser compatíveis com o novo modo de ser da riqueza. Inquietantes porque representam um abalo no solo em que pisamos, atingindo nosso sentido de pertencimento ao mundo e ao sistema de valores do que consideramos “próprio”. É um abalo de longa data ou longa maturação, um terremoto latente nas dobras do racionalismo ocidental.

Por exemplo, para o cineasta britânico Terry Gilliam, que tematiza no filme O Teorema Zero a solidão do indivíduo contemporâneo, “hoje em dia, parece que só existimos quando tuitamos, telefonamos para alguém, postamos uma foto ou um comentário nas redes sociais. Somos como neurônios de um grande sistema nervoso, ligados por sinapses a outros neurônios”.

Bem antes de McLuhan, o jesuíta Teilhard de Chardin havia descrito dessa maneira, em meados do século passado, o sistema de comunicação, que já se antevia como planetário. Mais do que uma questão de discurso ou de mera transmissão de mensagens, a comunicação implica uma transformação geográfica no sentido de que seus deslocamentos, por efeito da compressão temporal do espaço, formam um novo “continente”, o oitavo, feito de bytes, virtual, acima ou abaixo de todos os outros.

O cerne da questão está de fato na “aceleração” da experiência humana. A compressão do espaço pela aceleração do tempo é a razão última de nosso deslocamento global, em que os afetos (emoções, sensações, comoções, sentimentos) emergem com o poder das imagens e dos algoritmos, relegando ao segundo plano a lógica argumentativa das palavras. Aqui se localiza uma parte das razões da crise contemporânea da imprensa.

Por outro lado, os conceitos de espetacularização e narcisismo já se revelam insuficientes para dar conta dessa nova “forma de ser” compatível com a financeirização e com a tecnologia eletrônica. Mais vale atentar para a espetacularização ou o gozo do estar-conectado, como uma nova forma de estar-no-mundo em que o sujeito parece existir apenas quando reproduzido no espelho, à espera de uma conexão.

Toda conexão é gozosa, como bem o sabem os órgãos do corpo e os dispositivos técnicos do corpo-sem-órgãos agenciados por indústria e consumo. A banalidade é fatal. E o selfie é só um pequeno índice dessa possibilidade infinita de reprodução no espelho em que, a pretexto de uma conexão com um outro, o indivíduo desfruta de si mesmo como um átomo isolado numa paisagem social de seres nômades ou dispersos. No deserto humano que cresce, contra a irredutível banalidade dos atos nada pode o divino, nem a obra de arte.

* MUNIZ SODRÉ, PROFESSOR EMÉRITO DA UFRJ [UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO], FOI PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL (2005-2010) E ACABA DE PUBLICAR A CIÊNCIA DO COMUM - NOTAS PARA O MÉTODO COMUNICACIONAL (EDITORA VOZES).

Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 21 de dezembro de 2014 – pg. E2 – Internet: clique aqui.

Ex-majestade

JOEL BIRMAN*

Os trágicos “esquecimentos” de bebês em carros mostram que na nova experiência de família a importância dos filhos virou de ponta-cabeça
No início da noite da quarta-feira, uma criança de 2 anos foi encontrada morta dentro de um carro em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Segundo o relato da Polícia Militar, que ouviu o pai após a tragédia, ele disse ter saído para trabalhar e esquecido de levar a criança à creche. Quando, no final do dia, voltou à escola para buscar a filha, soube que a menina não teria ido. Só então, desesperado e atônito, foi até onde tinha estacionado o carro. Ao saber da morte da criança, entrou em estado de choque.

Não sabemos nada sobre a figura do pai em questão, nem sobre sua condição social, tampouco sobre a sua história, pessoal ou familiar. Pouco importa, aliás, pois não se trata aqui de fazer sociologia desse fait divers [notícia], muito menos realizar um exercício de psicanálise selvagem. O que importa como grave nessa trágica narrativa é a repetição dessa modalidade de acontecimento quase inacreditável, em que pais esquecem filhos em carros por horas. As crianças são também deixadas ao léu pelos adultos em outros lugares. A indagação que se impõe de maneira irrefutável é por que se tornou comum que pais esqueçam seus filhos em circunstâncias perigosas e com um final funesto.

A primeira constatação é que essa nova modalidade de acontecimento ocorre nas cidades grandes e médias, onde existe uma experiência urbana complexa. Digo isso para destacar que existe uma relação insofismável entre a sociedade contemporânea e as novas relações dos pais com os filhos. A nova experiência da família e a importância nesta conferida aos filhos se transformou de ponta-cabeça, não apenas no Brasil, mas em escala global.

Nos tempos áureos da modernidade ocidental os filhos representavam o que havia de mais precioso, no campo social e psíquico. Com efeito, quando imperava a família nuclear burguesa, forjada no final do século 18, as crianças eram os bens maiores da existência dos pais, que se sacrificavam por elas, pois eram elas que realizariam tudo aquilo que eles não puderam ser e fazer na vida. Os filhos estavam, portanto, numa posição soberana. Pode se evocar aqui a famosa passagem de Freud no ensaio Introdução ao Narcisismo no qual afirmava que a criança seria para os pais “Sua Majestade, o bebê”.

Essa modalidade de relação libidinal entre pais e filhos supunha um projeto biopolítico preciso, como diria Michel Foucault, pelo qual a riqueza do Estado supunha a existência de uma população qualificada, dos pontos de vista sanitário e escolar. Daí porque as crianças representavam o que existia de mais precioso para a economia política e simbólica dos Estados modernos, pois delas dependia a pujança futura da nação.

Desde os anos 1970 e 80, porém, assistimos à desconstrução progressiva da família nuclear burguesa, assim como das formas tradicionais de conjugalidade. Os homens e as mulheres estabelecem entre si laços efêmeros, que permanecem apenas na medida em que o parceiro possa potencializar o seu desejo e seus projetos existenciais. Se assim não ocorrer, as rupturas são soluções tangíveis e não necessariamente traumáticas, tudo na maneira oposta ao que ocorria na modernidade.

Nesse contexto, os filhos não representam mais a realização ideal de seus pais no futuro. Não apenas a prole se reduziu a olhos vistos, como também não é incomum que os filhos sejam encarados como obstáculos importantes à realização dos projetos existenciais dos pais. Daí porque uma parcela significativa das classes médias e das elites prefira ter filhos, e mesmo se casar, bem mais tarde, para que homens e mulheres possam consolidar e construir suas carreiras profissionais sem grandes “estorvos”.

Esses pais investem libidinalmente pouco nos filhos, que apresentam frequentemente signos de desnarcisação, como evidenciam diferentes formas de sofrimento psíquico. Das compulsões às drogas até as perturbações alimentares, passando pela disseminação das doenças psicossomáticas e das fragilizações da imagem corporal, o esvaziamento narcísico dos corpos é uma evidência incontornável. Quando se diz que vivemos numa sociedade narcísica, como afirma o historiador norte-americano Lasch, é preciso acrescentar que o dito narcisismo é francamente negativo.

Dessa maneira, podemos assistir de modo patético à naturalização com que pais matam e abandonam seus filhos na contemporaneidade quando esses se transformam em “empecilhos” para aqueles. Assim como se torna também costumeiro que filhos possam assassinar os pais.

Tudo isso pode parecer paradoxal numa sociedade como a brasileira, que constituiu um código de proteção à infância e à juventude cujo ápice é a lei da penalização da palmada. Portanto, não é um acaso que a pedofilia se dissemine como um rastilho de pólvora na sociedade contemporânea. Crianças mal-amadas e desnarcisadas se tornam presas fáceis de adultos inescrupulosos.

Enfim, as crianças esquecidas dentro dos carros e abandonadas em outros contextos estranhos se inscrevem num campo mais amplo, no qual se decide que tipo de investimento desejante queremos realizar com nossos filhos. Na atualidade se inverte a fórmula enunciada por Freud. O que assistimos, com frequência, é os pais exibirem seus filhos como troféus do que eles foram capazes. Hoje são eles, os pais, que estão na posição da majestade e do gozo soberano.

* JOEL BIRMAN É PSICANALISTA, PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UFRJ [UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO] E PROFESSOR ADJUNTO DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UERJ [UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO].

Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 21 de dezembro de 2014 – pg. E3 – Internet: clique aqui.

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