«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O machismo sobrevive firme e forte no Brasil

Respeito de fachada

José de Souza Martins*

No Brasil, condenamos com paixão a violência contra mulheres, mas não reconhecemos nosso imaginário profundamente discriminatório, diz sociólogo
MANIFESTAÇÃO CONTRA A CULTURA DO ESTUPRO
Avenida Paulista - São Paulo - SP
Quarta-feira, 1 de junho de 2016

A comoção que provocaram em vários países o estupro e o assassinato de uma adolescente de 16 anos, na Argentina, e as reações decorrentes pedem uma reflexão sobre a complexidade social da descabida violência contra a mulher, que insiste e persiste. Mas pedem, também, uma ampliação dos marcos de referência das interpretações para essas manifestações de barbárie. Como pedem um exame crítico do modo como a questão tem sido tratada em países como o Brasil. Nossa compreensão do assunto é uma compreensão redutiva. Estamos em boa parte limitados ao âmbito do jurídico e policial.

A sociedade não tem sido indiferente a essas ocorrências. Sobretudo as mulheres de classe média têm lutado com afinco e coragem pela adoção de medidas legais de proteção à mulher e pela observância do que as leis determinam. Mas não se pode deixar de considerar, ainda que com apreensão, a reação espontânea de setores populares na repressão aos autores de violência contra a mulher. No Brasil, alguns dos linchamentos mais violentos das últimas décadas foram motivados por uma radical intolerância à agressão contra a mulher, especialmente à violência sexual.

Há, no entanto, um abismo separando as duas modalidades de reação social. Nelas, há duas e opostas concepções de mulher e dos direitos da mulher. De um lado, a mulher vista como cidadã e pessoa juridicamente igual ao homem, a mulher da concepção moderna da condição feminina. De outro lado, a mulher como sujeito da sociedade patriarcal, como potencial mãe de família, como personagem do caráter sagrado dos vínculos de sangue entre homem e mulher. Só na superfície essas duas concepções de mulher se encontram e essas duas concepções opostas de defesa da mulher convergem. No mais, porém, dizem respeito a dois mundos separados, o de um hoje tardio e o de um passado persistente.

Essa polarização reduz a eficácia das duas opostas orientações na defesa dos direitos da mulher e no combate à violência que a alcança. Porque falta, na sociedade brasileira, a ação que traduza essas reações na formação de uma cultura de respeito pela mulher e também de ação autodefensiva das próprias mulheres. Essa não é uma questão simples nem é questão que se resolva com discursos, embora os discursos também sejam necessários.

Tudo “ia bem” enquanto a mulher se mantinha nos limites de uma condição social que dela fazia vítima submissa e silenciosa de uma variante pouco considerada da escravidão, fosse ela negra, branca ou mameluca. A mulher servil persistiu mesmo depois da abolição da escravatura sem que se debatesse com honestidade o fato de que na história social brasileira a escravidão não se limitou ao negro nem foi exclusivamente escravidão fundada em raça e cor. Uma certa hipocrisia crônica, sem distinção de raça, cor, religião, idade e gênero, dissimula o fato de que mais do que racistas somos preconceituosos. O núcleo cultural da violência contra a mulher é o mesmo que anima outras modalidades de violência, como a violência contra o homem, contra o pobre, contra a criança, contra os jovens, contra os diferentes. 
Mulher morta por ex-marido que alegou ser chamado de "corno" é enterrada.
Estudante de direito foi sepultada no cemitério de Itapeva (SP).
Fernanda Pimenta Cerqueira foi morta em Guarujá
Itapeva (SP), 29 de janeiro de 2016

No Brasil, somos apaixonados nas manifestações contra racismo, contra a violência de gênero ou em relação a homossexuais, mas não temos a honestidade coletiva de reconhecer que somos radicalmente contra o direito à diferença e não colocamos sob ângulo crítico o nosso imaginário discriminante. Sem nos darmos conta de que a igualdade entre nós é adulta, masculina e branca. Isso é, desigual. É esse ser fictício e iníquo que serve de parâmetro no nosso modo de reconhecer os direitos dos diferentes. Aceitamos os diferentes apenas naquilo em que são iguais a nós.

Nosso imaginário contraria o que somos de fato. Durante séculos matamos os índios e, depois, os louvamos na música, na literatura, na toponímia. Fenômeno curioso é o de mulheres que sofreram violência doméstica e morreram e foram depois canonizadas pelas muitas pessoas que visitam seus túmulos. Ou meninas vitimadas e mortas pela violência sexual que se tornam objeto da devoção e da piedade popular.

Não obstante os mais de 100 anos de discursos sobre a igualdade jurídica das pessoas no Brasil, padres e pastores, nas cerimônias de casamento, continuam invocando versículos do capítulo 5 da Epístola de São Paulo aos Efésios, que proclamam a desigualdade de homem e mulher: o marido deve amar sua mulher; mas a mulher deve reverenciar o marido e sujeitar-se a ele, “porque o marido é a cabeça da mulher”. Com o princípio da desigualdade da mulher e sua sujeição ao homem estabelecido como dogma religioso fica difícil estranhar a violência doméstica contra a mulher e o componente de menosprezo e deboche que há nos frequentes estupros. Tudo tem dois lados. O mundo da violência não é um mundo de um lado só. Isso não dá razão a quem comete violência motivada por preconceito. Apenas propõe que o tema da violência contra a pessoa seja colocado no âmbito da complicada trama que a explica para então encontrar-se os meios eficazes de combatê-la.

* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é sociólogo e membro da Academia Paulista de Letras e autor, entre outros livros, de Uma Arqueologia da Memória Social (Ateliê).

Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 30 de outubro de 2016 – Pág. E2 – Internet: clique aqui.

Vai sobrar para o Brasil!

Colapso venezuelano

Lourival Sant'Anna

Brasil precisa elaborar com urgência um plano de contingência para uma
possível crise humanitária de grandes proporções na Venezuela 
MANIFESTANTES PROTESTAM CONTRA O GOVERNO DE NICOLÁS MADURO
No cartaz que a jovem carrega está escrito:
"ESTAMOS FARTOS DE SOBREVIVER, QUEREMOS VIVER"

O Brasil precisa elaborar com urgência um plano de contingência para uma possível crise humanitária de grandes proporções na Venezuela, associada ou não a um conflito armado. A resposta demandará um nível de coordenação sem precedentes, bem maior, por exemplo, do que a realização da Copa e da Olimpíada – eventos de data marcada com ampla antecedência. Envolve, num primeiro momento:
* os governos federal,
* de Roraima e Amazonas,
* ao menos dez municípios em cada um desses Estados,
* as Forças Armadas,
* a Polícia Federal,
* as polícias estaduais,
* a Defesa Civil,
* a Vigilância Epidemiológica,
* Conselhos Tutelares e demais órgãos ligados à saúde e à assistência social.

A situação na Venezuela entrou em nova fase, a partir da decisão do Conselho Nacional Eleitoral, controlado pelo governo, de impedir a realização neste ano do referendo revogatório do mandato do presidente Nicolás Maduro. No ano que vem, o mandato presidencial terá ultrapassado a metade e, mesmo que os eleitores votem pela saída do presidente, como preveem as pesquisas, não se realizarão novas eleições. O presidente será substituído pelo seu vice, por ele nomeado – atualmente, Aristóbulo Istúriz, tão chavista quanto Maduro. A oposição não aceita essa manobra.

A Assembleia Nacional, dominada pela oposição, abriu um julgamento contra Maduro. Mas o presidente é protegido pelo Tribunal Supremo de Justiça, controlado pelos chavistas, que anula as decisões da Assembleia. Centenas de milhares de pessoas se manifestaram na quarta-feira nas principais cidades do país a favor do referendo neste ano e da saída do presidente. Se nos roubam o direito de votar, passamos a outra etapa na Venezuela, sentenciou o principal líder da oposição, Henrique Capriles.

Diante da convocação de greve geral para a última sexta-feira, Diosdado Cabello, vice-presidente do governista Partido Socialista Unido da Venezuela, afirmou: “Conversei sobre isso com o presidente. Empresa que pare, empresa que será tomada pelos trabalhadores e pelas Forças Armadas.”
NICOLÁS MADURO E OS CHAVISTAS CONTROLAM:
o Tribunal Supremo de Justiça e as Forças Armadas

Na quinta-feira, a oposição pretende realizar nova marcha, dessa vez até o Palácio de Miraflores, para supostamente entregar a Maduro o comunicado de sua destituição pelo Parlamento. Desde a tentativa de golpe contra Hugo Chávez, em abril de 2002, as cercanias do palácio se tornaram domínio dos chavistas. Eu estava lá naquela época, e em muitos outros momentos conturbados na Venezuela, e presenciei a ação de milicianos, que chegam em motos, com walkie-talkies, cassetetes e pistolas, para transformar manifestações pacíficas em distúrbios violentos, e assim justificar a repressão pela Guarda Nacional Bolivariana.

Igualmente explosivo é o conflito entre forças policiais municipais e estaduais, controladas pela oposição, e as forças de segurança federais. As Forças Armadas “Bolivarianas” foram politizadas por Chávez, que expurgou os oficiais que não lhe pareciam leais.

Premida pela falta de moeda forte, a Venezuela tem três taxas de câmbio. O governo decide quem pode transacionar com o dólar a 10 bolívares (taxa administrada) e vender a 658 (flutuante) ou a 1.417 (paralelo). Essas faixas geram enormes lucros para os oficiais, que foram colocados pelo governo nos negócios de importação e distribuição. Assim, as Forças Armadas têm motivos políticos e econômicos para impedir a alternância de poder. Nos bairros pobres, a distribuição está a cargo de militantes chavistas, e muitos moradores se queixam de não receber as cestas básicas por não serem governistas.

O colapso do abastecimento, do emprego e da renda só não produziu uma explosão social e uma fuga em massa dos venezuelanos para os países vizinhos porque deu origem a uma nova ocupação que permite a sobrevivência dos pobres: os bachaqueros (o nome vem da formiga tanajura, que carrega carga), que pegam imensas filas ou atuam no contrabando, para revender os produtos para quem tem algum dinheiro.

Conforme a crise se agrava, com o esgotamento das reservas cambiais, essa válvula de escape está se fechando. Daí a entrada de 30 mil venezuelanos em Roraima, desde o início do ano passado. Conforme o jornal O Estado de S. Paulo mostrou em reportagem há duas semanas, muitos dormem nas ruas de Pacaraima, na fronteira, e da capital, Boa Vista, não encontrando trabalho e sobrecarregando serviços públicos, já em colapso pelo corte de verbas federais.

Essa onda de migrantes tende a aumentar. Pode se transformar em avalanche humana em um cenário, muito provável, de aumento das manifestações, violenta repressão e confrontos com o governo, conduzindo ou não a um conflito armado em grande escala. O Brasil não está preparado para isso. Improvisar seria desastroso. Basta ver a Europa.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Internacional / Colunistas – Domingo, 30 de outubro de 2016 – Pág. A24 – Internet: clique aqui.

Lições das eleições no Brasil

1ª Lição:
PT saudações

Vera Magalhães

Derrota do partido é tão avassaladora que não permite nenhuma
leitura atenuante

Se alguém ainda acreditava na possibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva ser candidato novamente à Presidência da República em 2018, mesmo depois da Lava Jato e do impeachment de Dilma Rousseff, o eleitor brasileiro tratou de dizer de forma clara e cristalina: não vai acontecer.

A derrota do PT é tão avassaladora que não permite nenhuma leitura atenuante. Não se salvou nada nem ninguém no partido. Mesmo o rosário da renovação da sigla, que começou a ser desfiado por Tarso Genro e outros, não sobrevive a uma constatação dura: não há candidatos aptos à tarefa.

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, citado como opção na terra de cegos que virou o partido, não quer assumir a missão nem seria um nome com trânsito suficiente para desbancar os caciques de sempre e enterrar de vez o lulismo – do qual, diga-se, foi um dos últimos produtos exitosos.

Sim, porque a única remota chance de o PT se reerguer seria enterrar o lulismo, mas o partido há muito tempo fez a opção oposta, a de se enterrar se for preciso para defender Lula, em uma simbiose que as urnas acabam de rechaçar de maneira fragorosa.

Tanto que o partido não consegue pensar em uma alternativa para 2018 que não seja seu “comandante máximo”, para usar a designação que a Lava Jato deu ao ex-presidente. [Mas se não existem outros nomes de peso e popularidade no partido, quem ocuparia o lugar de Lula? O PT, ao meu ver, agarra-se tão intensamente a ele porque é consciente que sem ele o partido já teria implodido há muito tempo! Ruim com ele, pior sem ele, analisa o PT!]

A insistência na tese de que Lula é vítima de perseguição – com lances patéticos como queixa à ONU e manifestações internacionais bancadas por “sindicatos” que nada mais são que versões da CUT para gringo ver – mostra que o PT decidiu atrelar seu destino ao do ex-presidente.

Dilma já parece ter sido esquecida pelos petistas na mesma velocidade com que o foi pelos brasileiros. Tanto que, com exceção de Jandira Feghali, ninguém se lembrou dela nas eleições municipais.

A presidente cassada tem sido vista fazendo compras tranquilamente no Rio, em um sinal inequívoco de que o discurso de que houve um golpe era uma fantasia, a única saída para um partido que perdeu o poder porque já não tinha condições de governar nem apoio popular, como o resultado das eleições tratou de deixar evidente.

É essa reflexão que o PT terá de fazer se quiser se refundar. Isso pressupõe:
* admitir que patrocinou um esquema de corrupção cuja dimensão ainda está por ser inteiramente conhecida.
* Admitir que levou a economia do País à maior recessão da história.
* Que perdeu a governabilidade antes de Dilma perder a cadeira.
* E que Lula não é uma vítima de uma perseguição implacável que envolve Judiciário, imprensa, Ministério Público e sabe-se lá mais quem.

Quais as chances de o partido fazer isso seriamente? Remotas, para não dizer inexistentes.

Do outro lado do pêndulo político, o PSDB sai do pleito municipal como o grande vencedor mais por memória do eleitorado de décadas de polarização com o PT do que por força própria. Mas o fim dessa alternância, pelo simples fato de que um dos polos se esfacelou, também obrigará os tucanos a reverem sua estratégia para voltar a ter chance de governar o País.

Isso significa trocar as disputas de bastidores entre caciques para ver quem será o candidato da vez, uma constante desde a sucessão de Fernando Henrique Cardoso, por alguma nitidez programática capaz de mostrar ao eleitorado que o partido tem um projeto para tirar o País do buraco.

A pulverização de votos por uma miríade de siglas mostra que o eleitor, embora ainda enxergue no PSDB e PMDB as alternativas mais seguras à ruína petista, começa a procurar opções.

A negação da política é uma das marcas indeléveis de 2016. O único político de expressão nacional que saiu vitorioso, Geraldo Alckmin, acertou ao perceber o Zeitgeist [o espírito da época – os sinais dos tempos] e apostar em um candidato em São Paulo com o discurso da não política. Em escala nacional, no entanto, o País já viu o estrago que a eleição de um outsider pode provocar. Com Fernando Collor, antes. E com Dilma depois.

2ª lição:
É hora de discutir o voto obrigatório

Taxa de brancos e nulos é recorde para o segundo turno

Daniel Bramatti, Rodrigo Burgarelli,
Guilherme Duarte e Fabiana Cambricoli

No total, 14,3% dos eleitores que foram às urnas neste domingo, 30 de outubro, deixaram de escolher candidato, o maior número desde 2004

As eleições de 2016 registraram a maior taxa de votos brancos e nulos no segundo turno das disputas municipais desde 2004, primeiro ano para o qual o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) divulga estatísticas digitalizadas. No total, 14,3% dos eleitores que foram às urnas neste domingo, 30, nas 57 cidades onde houve nova consulta não escolheram nenhum dos dois candidatos à cadeira de prefeito.

Essa taxa de anulação está bem acima da média histórica:
* Em 2012, por exemplo, 9,2% dos eleitores decidiram anular ou votar em branco nas 50 cidades em que houve segundo turno.
* Em 2008, quando só 30 municípios foram para uma segunda disputa, esse porcentual foi de 7,5%.
* E, em 2004, apenas 5,4% dos eleitores votaram branco ou nulo nessa etapa.

A abstenção também foi recorde na série histórica dos segundos turnos municipais – 21,5% do eleitorado registrado no TSE não apareceu neste domingo para votar, mais do que em qualquer outro ano desde 2004. O recorde anterior havia sido justamente em 2012, quando 19,1% dos eleitores no cadastro não apareceram para votar no segundo turno.

Analisar esse dado, porém, pode ser enganador, já que nem sempre o cadastro do TSE está atualizado. Eleitores que morrem ou mudam-se para outras cidades sem recadastrar o título, por exemplo, podem aumentar artificialmente a taxa de abstenção em cidades onde o registro eleitoral está defasado.

Isso atrapalha especialmente a comparação com anos anteriores, pois quanto mais tempo sem atualizar a base, mais desatualizado fica o cadastro e maior a chance de “eleitores fantasmas” puxar para cima essa estatística.

Escolha

Mesmo levando em consideração essa ressalva, o porcentual de eleitores cadastrados que deixou de escolher candidato neste segundo turno é impressionante. Foram 32,8%, ou praticamente um em cada três. Esse número era 11 pontos porcentuais menor em 2004 e vem aumentando pouco a pouco a cada ciclo eleitoral.

A taxa de eleitores que “lavaram as mãos” foi especialmente alta no Rio de Janeiro. No total, um entre cada quatro cariocas que foram às urnas decidiu votar nulo ou branco. Somado à abstenção, esse contingente chega a 41,5% do eleitorado. É menor apenas do registrado em Mauá e São Bernardo do Campo, ambas no ABC Paulista: 42,3% e 41,7%, respectivamente.

Do outro lado do ranking, estão São Luís (MA) e Maringá (PR), os únicos que registraram uma taxa de votos brancos e nulos menor que 5%. Já a menor abstenção foi registrada em Olinda (PE), uma das cidades onde houve recadastramento eleitoral com registro de biometria no começo de 2016. Lá, só 8% dos eleitores não compareceram às suas seções.

Maioria dos eleitores é contra o voto obrigatório,
diz Ibope

José Roberto de Toledo

Do mesmo modo como cresceram os votos brancos e nulos, voltou a aumentar a proporção dos eleitores brasileiros contrários à obrigatoriedade do voto. Segundo pesquisa nacional do Ibope, divulgada aqui com exclusividade, desde 2010 cresceu de 51% para 54% a taxa daqueles que são contra o voto obrigatório. É a mesma proporção que havia sido encontrada pelo Ibope dez anos atrás.

Diante do crescimento em 2016 dos votos brancos e nulos e do aumento da abstenção (embora em grande parte provocado pela desatualização do cadastro eleitoral, que inclui muitos mortos), há o temor de que o fim da obrigatoriedade de votar viesse a diminuir a representatividade da democracia brasileira. No limite, arriscaria a sua legitimidade, por causa da chance teórica de os governantes serem eleitos pela minoria da minoria.

Porém, a pesquisa Ibope revela também que nada menos do que 62% dos eleitores brasileiros dizem que iriam votar mesmo que que não fossem obrigados. Mais importante: essa taxa cresceu 13 pontos em comparação a 2014. É o segundo maior valor da série histórica do Ibope, menor apenas do que o de outubro de 2010, quando a situação econômica do Brasil e a popularidade dos governantes estava muito acima da sua média habitual.

Nem mesmo a insatisfação da população brasileira com a classe política fez diminuir o desejo voluntário de votar. Ou seja, a maioria absoluta dos brasileiros é contra o voto obrigatório mas se diz disposta a participar da eleição por vontade própria.

Os 62% encontrados pelo Ibope estão acima da taxa de comparecimento em todas as eleições presidenciais nos Estados Unidos desde 1960. Na reeleição de Barack Obama, por exemplo, só 55% dos norte-americanos em idade de votar votaram. A taxa projetada pelos brasileiros é próxima ao comparecimento às urnas nas últimas eleições na Espanha, Alemanha e Reino Unido. [Este é um dado importante, digno de ser comemorado! Afinal, os brasileiros não são tão despolitizados quanto se poderia imaginar!]

Além da representatividade e da legitimidade, há outra questão relevante: a abstenção e o voto de protesto não são equânimes. Em São Paulo, no primeiro turno, a periferia pobre que costumava votar em candidatos petistas se absteve ou invalidou seu voto com mais intensidade que o centro antipetista.

Se o voto fosse tornado facultativo no Brasil, qual o impacto que isso teria sobre o resultado da eleição? Quem seria mais beneficiado ou prejudicado? A resposta a essa pergunta é – claro – especulativa. Mas, baseando-a no perfil de quem diz que compareceria à urna mesmo sem ser obrigado, pode-se esperar que candidatos e partidos com eleitorado mais escolarizado, menos pobre e concentrado nas pequenas cidades se sairiam melhor.

Nos municípios com até 50 mil habitantes, 69% dizem que votariam mesmo se o voto fosse facultativo – contra 58% nas cidades com 500 mil habitantes ou mais. A taxa cai para 52% entre os moradores dos municípios periféricos das metrópoles. Dos que cursaram até a 4ª série, 59% dizem que votariam mesmo se não fossem obrigados, contra 73% que quem fez faculdade. A diferença entre mais ricos e mais pobres é de 11 pontos: 71% a 60%. [Como a escolarização é fundamental para o bom funcionamento da democracia!]

Levando-se em conta o partido de preferência do eleitor, o PT teria hoje mais a perder com o fim do voto obrigatório do que PMDB e PSDB: 62% dos petistas dizem que votariam mesmo se não fossem obrigados, contra 72% dos peemedebistas e 79% dos tucanos. Mas esses simpatizantes são só um terço do eleitorado. Quem menos diz que apareceria para votar voluntariamente são os eleitores sem preferência partidária. Mesmo assim, 54% votariam.

O voto facultativo não seria neutro no Brasil como não é nos Estados Unidos. Lá, os democratas costumam precisar se empenhar mais que os rivais para seus eleitores irem votar. Mas nem isso é imutável. Em 2012, o baixo comparecimento dos republicanos ajudou Obama. Convencer o eleitor a votar é parte do processo. O melhor argumento do governante é não decepcionar quem votou nele.

Fontes: O Estado de S. Paulo – Política / Eleições 2016 – Segunda-feira, 31 de outubro de 2016 – Pág. A6 – Internet: clique aqui; Pág. A11 – Internet: clique aqui; Pág. A11 – Internet: clique aqui.

domingo, 30 de outubro de 2016

31º Domingo do Tempo Comum – Ano C – Homilia

Evangelho: Lucas 19,1-10

Naquele tempo:
1 Jesus tinha entrado em Jericó e estava atravessando a cidade.
2 Havia ali um homem chamado Zaqueu, que era chefe dos cobradores de impostos e muito rico.
3 Zaqueu procurava ver quem era Jesus, mas não conseguia, por causa da multidão, pois era muito baixo.
4 Então ele correu à frente e subiu numa figueira para ver Jesus, que devia passar por ali.
5 Quando Jesus chegou ao lugar, olhou para cima e disse: «Zaqueu, desce depressa! Hoje eu devo ficar na tua casa.»
6 Ele desceu depressa, e recebeu Jesus com alegria.
7 Ao ver isso, todos começaram a murmurar, dizendo: «Ele foi hospedar-se na casa de um pecador!»
8 Zaqueu ficou de pé, e disse ao Senhor: «Senhor, eu dou a metade dos meus bens aos pobres,
e se defraudei alguém, vou devolver quatro vezes mais.»
9 Jesus lhe disse: «Hoje a salvação entrou nesta casa, porque também este homem é um filho de Abraão.
10 Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.» 

JOSÉ ANTONIO PAGOLA

Eu posso mudar?

Lucas narra o episódio de Zaqueu para que seus leitores descubram melhor o que podem esperar de Jesus: o Senhor que invocam e seguem nas comunidades cristãs «veio buscar e salvar o que estava perdido». Não irão esquecer disso.

Ao mesmo tempo, seu relato da atuação de Zaqueu ajuda a responder a pergunta que muitos trazem em seu íntimo: Eu ainda posso mudar? Não seria demasiado tarde para refazer uma vida que, em boa parte, deixei-a se perder? Que passo posso dar?

Zaqueu é descrito com dois traços que definem com precisão a sua vida. Ele é «chefe dos cobradores de impostos» e «rico». Em Jericó, todos sabem que ele é um pecador. Um homem que não serve a Deus, mas aos dinheiro. Sua vida, como tantas outras, é pouco humana.

No entanto, Zaqueu «procurava ver Jesus». Não é mera curiosidade. Quer saber quem ele é, o que se encontra neste Profeta que tanto atrai o povo. Não é tarefa fácil para um homem instalado em seu mundo. Porém este desejo por Jesus mudará a sua vida.

O homem terá de superar diversos obstáculos. É «muito baixo», sobretudo porque a sua vida não é motivada por ideais muito nobres. O povo é outro impedimento: terá de superar preconceitos sociais que dificultam o encontro pessoal e responsável com Jesus.

Porém Zaqueu prossegue sua busca com simplicidade e sinceridade. Corre para antecipar-se à multidão, sobe em uma árvore como uma criança. Não pensa em sua dignidade de homem importante. Somente quer encontrar o momento e o lugar adequados para entrar em contato com Jesus. Quer vê-lo.

É quando descobre que Jesus também o está procurando, pois vai até o lugar onde está, busca-o com o olhar e lhe diz: «O encontro será hoje mesmo em tua casa de pecador». Zaqueu desce e recebe-o em sua casa cheio de alegria. Há momentos decisivos pelos quais Jesus passa pela nossa vida porque quer salvar aquilo que nós estamos deixando perder. Não podemos deixar essa ocasião nos escapar!

Lucas não descreve o encontro. Somente fala da transformação de Zaqueu. Ele muda sua maneira de encarar a vida: não pensa mais apenas em seu dinheiro, mas no sofrimento dos demais. Muda seu estilo de vida: fará justiça aos que explorou e compartilhará seus bens com os pobres.

Cedo ou tarde, todos corremos o risco de «nos acomodarmos» na vida renunciando a qualquer aspiração de viver com mais qualidade humana. Os que creem devem saber que um encontro mais autêntico com Jesus pode fazer nossa vida mais humana e, sobretudo, mais solidária.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: MUSICALITURGICA.COM – Homilías de José A. Pagola – Segunda-feira, 24 de outubro de 2016 – 09h08 [Horário da Europa Central – Espanha] – Internet: clique aqui.

sábado, 29 de outubro de 2016

Vivemos a era das grandes turbulências

Ignácio Ramonet*

O Ocidente declina, mas os Estados Unidos conservam o poder militar decisivo. A crise do capitalismo arrasta-se, espalha insegurança, corrói a democracia. Onde encontrar a esperança?
IGNÁCIO RAMONET

ð Qual o desenho do novo cenário mundial?
ð Quais são suas principais características?
ð Que dinâmicas estão determinando o funcionamento real de nosso planeta?
ð Que características dominarão nos próximos 15 anos, daqui a 2030?

Para analisar este novo cenário e prever seu futuro imediato, vamos utilizar a bússola da geopolítica, uma disciplina que nos permite compreender o jogo geral das potências e avaliar os principais riscos e perigos. Para antecipar, como um tabuleiro de xadrez, os movimentos de cada potência adversária.

E o que nos diz esta bússola?

1. O declínio do Ocidente

A principal constatação é o declínio do Ocidente. Pela primeira vez desde o século 15, os países ocidentais estão perdendo poder frente a ascensão das novas potências emergentes. Começa a fase final de um ciclo de cinco séculos de dominação ocidental do mundo. A liderança internacional dos Estados Unidos da América [EUA] viu-se ameaçada pelo surgimento de novos polos de poder (China, Rússia e Índia) em escala internacional. A “degradação estratégica” dos EUA já começou. O “século americano” parece chegar ao seu fim, enquanto o “sonho europeu” desaparece.

Embora os EUA sigam sendo uma das principais potenciais planetárias, estão perdendo sua hegemonia econômica para a China. E já não exercerão mais sua “hegemonia militar solitária” como fizeram desde o fim da Guerra Fria (1989). Estamos caminhando para um mundo multipolar em que os novos atores (China, Rússia e Índia) têm vocação para construir sólidos polos regionais e a disputar a supremacia internacional com Washington e seus aliados históricos (Reino Unido, França, Alemanha e Japão).

 Na terceira linha aparece uma série de potenciais intermediarias, com demografias em alta e fortes taxas de crescimento econômico, convertendo-se também em polos hegemônicos regionais e com tendência a se transformar, daqui a 15 anos, em um grupo de influência planetária (Indonésia, Brasil, Vietnã, Turquia, Nigéria, Etiópia).

Para se ter uma ideia da importância e da rapidez da degradação ocidental que se avizinha, basta observar essas cifras: a participação dos países ocidentais na economia mundial vai passar de 56% hoje para 25% em 2030… Ou seja, em menos de 15 anos o Ocidente perderá mais da metade de sua preponderância econômica. Uma das principais consequências será que os EUA e seus aliados não terão mais os meios financeiros para assumir o policiamento do mundo… De tal modo que esta mudança estrutural poderá debilitar o Ocidente duplamente.
Museu Nacional da China - Praça da Paz Celestial - Pequim

2. A incontível emergência da China

O mundo está “desocidentalizando” e é cada vez mais multipolar. Destaca-se, mais uma vez, o papel da China que emerge, a princípio, como uma grande potência no coração do século 21 — apesar de estar longe de representar ainda uma autêntica rivalidade com Washington. Por um lado, a estabilidade de Pequim não está garantida porque coexistem em seu seio o capitalismo mais selvagem e o comunismo mais autoritário. A tensão entre essas duas dinâmicas causará, cedo ou tarde, uma ruptura que poderá debilitar sua potência.

De qualquer maneira, hoje, em 2016, os EUA seguem exercendo uma indiscutível dominação hegemônica sobre o planeta. Tanto no terreno militar (fundamental), quanto em vários outros setores cada vez mais determinantes: em particular, na tecnologia (internet) e no soft power (cultura de massas). Isso não quer dizer que a China não tenha realizado também avanços prodigiosos nos últimos anos. Nunca na história, um país cresceu tanto em tão pouco tempo.

No momento, enquanto declina o poder dos EUA, a ascensão da China é incontornável. Já é a segunda potência econômica do mundo (à frente do Japão e Alemanha).

Para Washington, a Ásia é agora a zona prioritária desde que o presidente Barack Obama decidiu a reorientação estratégica de sua política externa. Os EUA buscam frear a expansão da China, cercando-a com bases militares e apoiando seus aliados locais tradicionais: Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Filipinas. É significativo que a primeira viagem de Obama, depois da sua reeleição em 2012, tenha sido para Birmânia, Camboja e Tailândia, três países da Associação de Nações da Ásia do Sudeste (ASEAN), uma organização que reúne os aliados de Washington na região, cujos membros têm problemas de limites marítimos com Pequim.

Os mares da China tornaram-se as zonas com maior potencial de conflito armado da área Ásia-Pacífico. Há tensões entre Pequim e Tóquio, a propósito da soberania sobre as ilhas Senkaku (Diaoyú para os chineses). Também a disputa com Vietnã e Filipinas sobre a propriedade das ilhas Spratly está subindo o tom perigosamente. A China está modernizando toda sua marinha em alta velocidade. Em 2012, lançou seu primeiro porta-aviões, o Lioning, e está construindo um segundo, com a intenção de intimidar a Casa Branca. Pequim suporta cada vez menos a presença militar dos EUA na Ásia. Entre estes dois gigantes, está se instalando uma perigosa “desconfiança estratégica” que, sem nenhuma dúvida, poderá marcar a política internacional nesta região até 2030.

3. O terrorismo jihadista

Outras das ameaças globais indicadas por nossa bússola é o terrorismo jiahadista praticado ontem pela Al-Qaeda e hoje pelo Estado Islâmico (ISIS). As principais causas do terrorismo atual têm de ser buscadas nos desastrosos erros e crimes cometidos pelas potências que invadiram o Iraque em 2003 — além das intervenções caóticas na Líbia (2011) e na Síria (2014).

O Oriente Médio segue situado no atual foco de desestabilização do mundo. Em particular, em torno da inexplicável guerra civil na Síria. O que está claro é que, neste país, as grandes potências ocidentais (EUA, Reino Unido, França), aliadas aos Estados que mais difundem pelo mundo a concepção mais arcaica e retrógrada do islã (Arábia Saudita, Qatar e Turquia), decidiram apoiar (com dinheiro, armas e instruções) a insurgência islamista sunita. Os EUA constituíram nesta região um amplo “exército sunita” com o objetivo de derrubar Bashar Al-Assad e prejudicar um grande aliado regional de Teerã. Entretanto, o governo de Assad, com o apoio da Rússia e do Irã, resistiu e segue consolidando-se. O resultado de tantos erros é o terrorismo jihadista atual que multiplica os atentados odiosos contra civis inocentes na Europa e nos EUA.

Algumas capitais ocidentais seguem pensando que a potência militar maciça é suficiente para derrotar o terrorismo. Mas a história militar mostra exemplos abundantes de grandes potências incapazes de derrotar adversários mais débeis. Basta recordar os fracassos norte-americanos no Vietnã em 1975, e na Somália em 1994. Em um combate assimétrico, aquele que pode mais, não ganha necessariamente. O historiador Eric Hobsbawn nos recorda que “Na Irlanda do Norte, durante cerca de 30 anos, o poder britânico se mostrou incapaz de derrotar um exército minúsculo como o IRA. Certamente o IRA não venceu, porém nem por isso, foi vencido”.

Os conflitos do novo tipo, quando uma potência enfrenta o débil ou o louco, são mais fáceis de começar do que de terminar. E o emprego maciço de meio militares pesados não necessariamente permite alcançar os objetivos buscados.

A luta contra o terrorismo também está justificando, em matéria de governança e de política doméstica, todas as medidas autoritárias e todo os excessos, inclusive uma versão moderna do “autoritarismo democrático” que tem como alvo, além das organizações terroristas, todos os manifestantes que se opõem às políticas globalizadoras e neoliberais.

4. Há crises para muito tempo…

Outra constatação importante: os países ricos seguem padecendo de consequências do terremoto econômico-financeiro que foi a crise de 2008. Pela primeira vez, a União Europeia, (e o “Brexit” confirma), vê ameaçada sua coesão e até sua existência. Na Europa, a crise econômica durará ao menos mais uma década, até pelo menos 2025.

Há crise, em qualquer setor, quando algum mecanismo deixa de atuar, começa a ceder e acaba rompendo-se. Essa ruptura impede que o conjunto da maquinaria siga funcionando. É o que aconteceu com a economia mundial desde o estouro da crise das sub-primes em 2007-2008.

As consequências sociais desse cataclismo econômico foram brutalmente inéditas: 23 milhões de desempregados na União Europeia e mais de 80 milhões de pobres… Os jovens, em particular, são as principais vítimas; gerações sem futuro. Mas as classes médias também estão assustadas porque o modelo neoliberal de crescimento abandonou-as à margem do caminho.

A velocidade da economia financeira de hoje é de relâmpago, enquanto que a velocidade da política, em comparação, é de caracol. Resulta que fica cada vez mais difícil conciliar tempo econômico e tempo político. E também crises globais e governos nacionais. Tudo isto provoca, nos cidadãos, frustração e angústia. [Pois as soluções para os dramas e problemas que a população vive não está – somente – nas mãos dos governos locais, mas é um jogo jogado em escala global, mundial!]

A crise global produz perdedores e ganhadores. Os ganhadores encontram-se, essencialmente, na Ásia e nos países emergentes, que não têm uma visão tão pessimista da situação, como os europeus. Também há muitos ganhadores no interior dos países ocidentais, cujas sociedades encontram-se fraturadas pela desigualdade entre ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres.

Na realidade, não estamos suportando uma crise, mas uma série de crises, uma soma de crises mescladas tão intimamente umas às outras que não conseguimos distinguir entre causas e efeitos. Porque os efeitos de umas são as causas das outras, e assim até formar um verdadeiro sistema de crises. Ou seja, enfrentamos uma autêntica crise sistêmica do mundo ocidental, que afeta a tecnologia, a economia, o comércio, a política, a democracia, a identidade, a guerra, o clima, o meio ambiente, a cultura, os valores, a família, a educação, a juventude etc.

Do ponto de vista antropológico, essas crises estão sendo traduzidas por um aumento do medo e do ressentimento. As pessoas vivem em estado de ansiedade e incerteza. Voltam os grandes pânicos ante ameaças indeterminadas, como podem ser a perda do emprego, os choques tecnológicos, as biotecnologias, as catástrofes naturais, a insegurança generalizada… Tudo isso constitui um desafio para as democracias. Porque esse terror transforma-se às vezes em ódio e em repúdio. Em vários países europeus, e também nos EUA, ele dirige-se hoje contra o estrangeiro, o imigrante, latinos, ciganos, subsaarianos, “sem visto”, e etc. Crescem os partidos xenofóbicos e de extrema direita.
OS PERDEDORES DA GLOBALIZAÇÃO:
Trabalhadores de países mais desenvolvidos e juventude em geral

5. Decepção e desencanto

É preciso entender que, desde a crise financeira de 2008 (de que ainda não saímos), nada é igual em nenhum lugar. Os cidadãos estão profundamente desencantados. A própria democracia, como modelo, perdeu credibilidade. Os sistemas políticos foram sacudidos pela raiz. Na Europa, por exemplo, os grandes partidos tradicionais estão em crise. E em toda parte percebemos o crescimento de formações de extrema direita (na França, na Áustria e nos países nórdicos) ou de partidos anti-sistema e anticorrupção (Itália, Espanha). A paisagem política parece radicalmente transformada.

Esse fenômeno chegou aos Estados Unidos, um país que já conheceu, em 2010, uma onda populista de direita devastadora, então encarnada pelo Tea Party. A ascensão do multimilionário Donald Trump na corrida pela Casa Branca prolonga essa onda e se constitui numa revolução eleitoral que nenhum analista soube prever. Ainda que sobreviva, aparentemente, a velha bicefalia entre democratas e republicanos, a ascensão de um candidato tão heterodoxo como Trump constitui um verdadeiro terremoto. Seu estilo direto, popularesco, e sua mensagem maniqueísta e reducionista, com apelo aos baixos instintos de certos setores da sociedade, conferiram-lhe um caráter de autenticidade aos olhos do setor mais decepcionado dos eleitores de direita.

A esse respeito, o candidato republicano soube interpretar o que poderíamos chamar de “rebelião das bases”. Melhor que todos, percebeu a fratura cada vez maior entre as elites políticas, econômicas, intelectuais e midiáticas, por um lado, e a base do eleitorado conservador, por outro. Seu discurso violentamente anti-burocracia de Washington, anti-mídia e anti-Wall Street seduz, em particular, os eleitores brancos, pouco cultos e empobrecidos pelos efeitos da globalização econômica.
DONALD TRUMP
O candidato republicano à Casa Branca soube aproveitar-se da decepção, desilusão e desespero de muitos
trabalhadores brancos norte-americanos que perderam seu trabalho e viram sua renda diminuir

6. Terremotos e mais terremotos

Poderíamos dizer que outra grande característica do novo cenário global são os terremotos:
* Terremotos financeiros, monetários, das bolsas;
* terremotos climáticos,
* energéticos,
* tecnológicos,
* sociais,
* geopolíticos como o restabelecimento de relações entre Cuba e Estados Unidos, ou, em outro sentido,
* o recente golpe de Estado institucional no Brasil contra a presidenta Dilma Rousseff.
* Terremotos eleitorais como a recente vitória do “não” na Colômbia aos Acordos de Paz entre o governo de Juan Manuel Santos e as FARC; ou o recente “Brexit” no Reino Unidos, ou o êxito da extrema direita na Áustria, ou a derrota de Angela Merkel em várias eleições parciais na Alemanha.
* Ou o enorme terremoto que poderia constituir, efetivamente, a eventual vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos.

Acontecimentos imprevistos irrompem com força sem que ninguém, ou quase ninguém, os tenha visto chegando. Há uma falta de visibilidade geral. Se governar é prever, vivemos uma evidente crise de governança geral. Em muitos países, o Estado que protegia os cidadãos deixou de existir. Há uma crise da democracia representativa: “Não nos representam!”, diziam os “indignados”. As pessoas reivindicam que a autoridade política volte a assumir seu papel condutor na sociedade. Insiste-se na necessidade de reinventar a política e de que o poder político ponha fim ao poder econômico e financeiro dos mercados. 

7. Internet, ciber-espionagem e ciber-defesa

O novo cenário global também se caracteriza pela multiplicidade de rupturas estratégicas, cujo significado às vezes não compreendemos. Hoje, a internet é o vetor da maioria das mudanças. Quase todas as crises recentes têm alguma relação com as novas tecnologias da comunicação e da informação, com a desmaterialização e a digitalização generalizadas, e com a explosão inédita das redes sociais. Mais que uma tecnologia, a Internet é pois um ator fundamental da crise. Basta recordar o papel de WikiLeaks, Facebook, Twitter e das demais redes sociais na aceleração da informação e da conectividade social pelo mundo.

Daqui a 2030, no novo cenário, algumas das maiores coletividades do planeta já não serão países, mas comunidades congregadas e vinculadas entre si pela internet e pelas redes sociais. Por exemplo:
*Facebooklandia”: mais de um bilhão de usuários… Ou
*Twitterlandia”, mais de 800 milhões…
Sua influência, no jogo da geopolítica mundial, poderia revelar-se decisiva. Hoje, as estruturas de poder se borram graças ao acesso universal à rede e ao uso de novas ferramentas digitais.

Por outro lado, pela estreita cumplicidade que algumas grandes potências estabeleceram com as grandes empresas privadas que dominam as indústrias de informática e de telecomunicações, a capacidade em termos de espionagem de massas cresceu também de forma exponencial. As mega empresas como Google, Apple, Microsoft, Amazon e mais recentemente Facebook estabeleceram laços estreitos com o aparato do Estado em Washington, especialmente com os responsáveis pela política exterior. Essa relação converteu-se numa evidência. Compartilham as mesmas ideias políticas e têm idêntica visão de mundo. Em última instância, os estreitos vínculos e a visão comum do mundo, por exemplo, do Google e do governo estadunidense estão a serviço dos objetivos da política externa dos Estados Unidos.

Essa aliança sem precedentes (Estado + aparato militar de segurança + empresas gigantes da Web) – criou um verdadeiro império da vigilância, cujo objetivo claro e concreto é colocar a internet sob escuta, toda a internet e todos os internautas, como denunciaram Julian Assange e Edward Snowden.

O ciberespaço converteu-se numa espécie de quinto elemento. O filósofo grego Empédocles sustentava que nosso mundo estava formado por uma combinação de quatro elementos: terra, ar, água e fogo. Mas o surgimento da Internet, com seu misterioso “inter-espaço” superposto ao nosso, formado por bilhões de intercâmbios digitais de todo tipo, por seu roaming, seu streaming e seu clouding, engendrou um novo universo, de certo modo quântico, que vem completar a realidade do nosso mundo contemporâneo como se fosse um autêntico quinto elemento.

Nesse sentido, deve-se ressaltar que cada um dos quatro elementos tradicionais constitui, historicamente, um campo de batalha, um lugar de confronto. E que os Estados tiveram de desenvolver componentes específicos das forças armadas para cada um desses elementos: para a terra, o exército; para o ar, a aeronáutica; para a água, a Marinha; e, com caráter mais singular, para o fogo, os bombeiros, ou “soldados do fogo”. De modo natural, todas as grandes potências estão acrescentando hoje, aos três exércitos tradicionais e aos combatentes do fogo, um novo exército, cujo ecosistema é o quinto elemento: o ciberexército, encarregado da ciberdefesa, que tem suas próprias estruturas orgânicas, seu Estado maior, seus cibersoldados e suas próprias armas: supercomputadores preparados para defender as ciberfronteiras e travar a ciberguerra digital no âmbito da Internet.

8. Uma mutação do capitalismo: a economia colaborativa

Trinta anos depois da expansão maciça da Web, os hábitos de consumo também estão mudando. Impõe-se pouco a pouco a ideia de que a opção mais inteligente é usar algo em comum, e não necessariamente comprando-o. Isso significa abandonar, pouco a pouco, uma economia baseada na submissão dos consumidores e no antagonismo ou na competição entre os produtores — e passar a uma economia que estimula a colaboração e o intercâmbio entre os usuários de bens e serviços. Tudo isso causa uma verdadeira revolução no seio do capitalismo, que está operando uma nova mutação, diante de nossos olhos.

É um momento irresistível. Milhares de plataformas digitais de intercambio de produtos e serviços estão se expandindo com muita rapidez. A quantidade de bens e serviços que podem ser alugados ou trocados mediante plataformas online, sejam pagas ou gratuitas (como a Wikipédia), é já literalmente infinita.

Em nível planetário, essa economia colaborativa cresce atualmente entre 15% e 17% ao ano. Com alguns exemplos de crescimentos absolutamente espetaculares. Por exemplo o Uber, o aplicativo digital que conecta passageiros com motoristas, em apenas cinco anos de existência já vale 68 bilhões de dólares e opera em 132 países. O Airbnb, a plataforma online de hospedagem para particulares surgida em 2008 e que já encontrou cama para mais de 40 milhões de viajantes, vale hoje na Bolsa (sem ser proprietária de uma única habitação) mais de 30 bilhões de dólares, ou seja, mais que os grande grupos Hilton, Marriott ou Hyatt.

A esse respeito, outro traço fundamental que está mudando – e que foi nada menos que a base da sociedade de consumo –, é o sentido de propriedade, o desejo de posse. Adquirir, comprar, ter, possuir eram os verbos que melhor traduziam a ambição essencial de uma época em que o ter definia o ser. Acumular “coisas” (casas, carros, geladeiras, televisores, móveis, roupa, relógios, livros, quadros, telefones etc) constituía, para muitas pessoas, a principal razão da existência. Parecia que, desde o início dos tempos, o sentido materialista de posse era inerente ao ser humano.

A economia colaborativa constitui assim um modelo baseado no intercâmbio e no compartilhamento de bens e serviços por meio do uso de plataformas digitais. Inspira-se nas utopias de compartilhamento e de valores não mercantis como a ajuda mútua ou a convivialidade, e também do espírito de gratuidade, mito fundador da internet. Sua ideia principal é: “o meu é seu”, ou seja, compartilhar em vez de possuir. E o conceito básico é a troca. Trata-se de conectar, por via digital, as pessoas que buscam “algo” com as pessoas que o oferecem. As empresas mais conhecidas desse setor são: Uber, Airbnb, Netflix, Blabacar etc. 

Muitos indícios levam a pensar que estamos assistindo ao ocaso da 2ª revolução industrial, baseada no uso maciço de energias fósseis e em telecomunicações centralizadas. E vemos a emergência de uma economia colaborativa que obriga, como já dissemos, o sistema capitalista a mudar.

Por outro lado, num contexto em que as mudanças climáticas tornaram-se a principal ameaça para a sobrevivência da humanidade, os cidadãos não desconhecem os perigos ecológicos inerentes ao modelo de hiperprodução e de hiperconsumo globalizado. Aí também a economia colaborativa oferece soluções menos agressivas para o planeta.

Num momento como o atual, de forte desconfiança com relação ao modelo neoliberal e às elites políticas, financeiras, midiáticas e bancárias, a economia colaborativa parece aportar respostas a muitos cidadãos em busca de sentido e de ética responsável. Exalta valores de ajuda mútua e desejo de compartilhamento. São critérios que, em outros momentos, foram argamassa de teorias comunitárias e de ambições socialistas. Mas que hoje são – e ninguém duvide – o novo rosto de um capitalismo mutante, desejoso de afastar-se da selvageria amarga de seu recente período ultraliberal.

Nossa bússola também nos indica a aparição de tensões entre os cidadãos e alguns governos em dinâmicas que vários sociólogos qualificam de “pós-políticas” ou “pós-democráticas”… Por um lado, a generalização do acesso à Internet e a universalização do uso das novas tecnologias estão permitindo à cidadania alcançar altas cotas de liberdade e desafiar seus representantes políticos (como durante a crise dos “indignados”). Mas essas mesmas ferramentas eletrônicas proporcionam aos governos, como já vimos, uma capacidade sem precedentes para vigiar seus cidadãos.

9. Ameaças não militares

“A tecnologia – assinala um informe recente da CIA – continuará sendo o grande nivelador, e os futuros magnatas da internet, como poderia ser o caso do Google e do Facebook, possuem montanhas de base de dados, e manejam em tempo real muito mais informação que qualquer governo”. Por isso, a CIA recomenda ao governo dos EUA que faça frente a essa ameaça eventual das grandes corporações de internet, ativando o Special Collection Service, um serviço de inteligência ultrassecreto – administrado em conjunto pela NSA (National Security Agency) e o SCE (Service Cryptologic Elements) das Forças Armadas – especializado na captação clandestina de informações de origem eletromagnética. O perigo de que um grupo de empresas privadas controle toda essa massa de dados reside, principalmente, em que poderia condicionar o comportamento em grande escala da população mundial e inclusive das entidades governamentais. Também se teme que o terrorismo jihadista seja substituído por um ciberterrorismo ainda mais impactante.

A CIA leva a sério esse novo tipo de ameaça porque, afinal, o declínio dos Estados Unidos não foi provocado por uma causa externa, mas por uma crise interna: a quebra econômica ocorrida a partir de 2007-2008. O informe insiste em que a geopolítica de hoje deve interessar-se por novos fenômenos que não possuem, forçosamente, um caráter militar. Pois ainda que as ameaças militares não tenham desaparecido, alguns dos principais perigos que nossas sociedades correm hoje são de ordem não militar:
* mudanças climáticas,
* mutação tecnológica,
* conflitos econômicos,
* crime organizado,
* guerras eletrônicas,
* esgotamento dos recursos naturais…

Sobre esse último aspecto, é importante saber que um dos recursos que está se esgotando mais aceleradamente é a água doce. Em 2030, 60% da população mundial terá problemas de abastecimento de água, dando lugar ao surgimento de “conflitos hídricos”… Em contraste, no que diz respeito aos combustíveis fósseis, a exploração de petróleo e de gás de xisto está alcançando níveis excepcionais, graças às novas técnicas de fraturação hidráulica. Os Estados Unidos já são quase autossuficientes em gás, e em 2030 poderão sê-lo em petróleo, cujos custos de produção tendem a baratear. Além disso, encorajam a relocalização de suas indústrias. Mas se os EUA – principal importador atual de combustíveis fósseis – deixarem de importar petróleo, pode-se prever a queda do preço do barril. Quais serão então as consequências para os grandes países exportadores?

10. Rumo ao triunfo das cidades e das classes médias

No mundo a que nos dirigimos, 60% das pessoas viverão nas cidades, pela primeira vez na história da humanidade. E, como consequência da redução acelerada da pobreza, as classes médias serão dominantes e triplicarão, passando de 1 para 3 bilhões de pessoas. Isso que, em si, é uma revolução colossal, acarretará como consequência, entre outros efeitos, uma mudança geral dos hábitos culinários e, em particular, um aumento do consumo de carne em escala planetária – o que agravará a crise ambiental.

Em 2030, os habitantes do planeta seremos 8,5 bilhões, mas o aumento demográfico cessará em todos os continentes, menos na África, com o consequente envelhecimento geral da população mundial. Em troca, o vínculo entre o ser humano e as tecnologias protéticas acelerará o surgimento de novas gerações de robôs e a aparição de “super-homens” capazes de proezas físicas e intelectuais inéditas.

Muito raramente o futuro é previsível. Nem por isso, deve-se deixar de imaginá-lo, em termos de prospectiva. Isso nos prepara para agir diante de diversas circunstâncias possíveis, das quais só uma se realizará. Para isso, a geopolítica é uma ferramenta extremamente útil. Ajuda-nos a tomar consciência das rápidas evoluções em curso e a refletir sobre a possibilidade, para cada um de nós, de intervir e apontar o rumo. Para tratar de construir um futuro mais justo, mais ecológico, menos desigual e mais solidário.

Traduzido do espanhol por Cauê Ameni e Inês Castilho.

* IGNÁCIO RAMONET é jornalista, editor do Le Monde Diplomatique, edição espanhola, e presidente da rede Memória das Lutas – Medelu.

Fonte: Outras Palavras – 15 de outubro de 2016 – Internet: clique aqui.