«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Pressão arterial deve ser medida nos dois braços do paciente

Fernanda Bassette

Valores diferentes podem indicar risco de doença vascular periférica, mostra revisão feita em 28 estudos
Uma revisão de 28 estudos publicada ontem na versão online da revista The Lancet aponta que os médicos deveriam medir a pressão arterial nos dois braços do paciente - e não apenas em um, como ocorre na maioria dos consultórios. Isso porque medidas diferentes de pressão nos braços podem indicar risco aumentado de doença vascular periférica.
Medir a pressão nos dois braços já é recomendado nas diretrizes de hipertensão da Sociedade Brasileira de Cardiologia - a última atualização foi publicada em 2010. A norma orienta que na primeira consulta os médicos meçam a pressão nos quatro membros do paciente: nos dois braços e nas duas pernas - o que nem sempre acontece.


A revisão foi conduzida pelo médico Christopher Clark [foto ao lado], da Universidade Exeter (Grã-Bretanha), e demonstrou que uma diferença de pressão sistólica acima de 15 milímetros de mercúrio (mm Hg) entre os dois braços está associada ao maior risco de ter uma das artérias parcialmente obstruída. Seria o caso, por exemplo, de um paciente ter a pressão arterial de 120 mm Hg por 80 mm Hg (12 por 8) em um dos braços e de 140 mm Hg por 80 mm Hg (14 por 8) no outro. A diferença de 140 para 120 é 20. Segundo o estudo, o paciente deveria ser encaminhado para exames mais específicos.


Aqui no Brasil, as diretrizes recomendam uma investigação mais aprofundada apenas nos casos em que a medição da pressão apresentar uma diferença superior a 20 mm Hg entre os dois braços. Para o cardiologista Luiz Aparecido Bortolotto, diretor da Unidade Clínica de Hipertensão do InCor, esse é um ponto que poderá ser reavaliado no País.


"Uma das coisas mais importantes desse estudo é que a diferença de pressão entre os dois braços a ser considerada perigosa é de 15, enquanto aqui no Brasil o valor é 20. Talvez a gente tenha de rever as diretrizes e também baixar esse número", diz.


Exame clínico
Para o cardiologista Marcelo Ferraz Sampaio, chefe do Laboratório de Biologia Molecular do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, a revisão de estudos reforça a necessidade de os médicos fazerem um exame clínico bem feito e mais demorado. "Medir a pressão nos dois braços faz parte do bom exame clínico e integra a diretriz. O problema é que no sistema acelerado de atendimento muitos médicos não fazem o exame corretamente por pressa", avalia.


A opinião é compartilhada pela cardiologista Fernanda Consolim Colombo, diretora da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo. "Os resultados chamam a atenção para a necessidade de os médicos fazerem o melhor exame físico possível, independentemente da queixa. O médico pode surpreender uma doença assintomática como a hipertensão." Para medir a pressão corretamente, o paciente deve estar sentado, descansado, de bexiga vazia e não deve ter fumado.


Medição pode ser feita na farmácia desde 2009


Uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicada em 2009 voltou a permitir a medição da pressão arterial em farmácias. Antes, uma norma proibia que os farmacêuticos medissem a pressão pois isso poderia induzir à compra desnecessária de remédios.


Desde então, a Sociedade Brasileira de Cardiologia têm trabalhado com as farmácias para orientar os profissionais.


Os médicos explicam, no entanto, que as pessoas não devem medir a pressão no Metrô, na rua ou em locais públicos caso não esteja acontecendo uma campanha específica, pois os profissionais podem não ser treinados adequadamente e passar dados incorretos.


Fonte: O Estado de S. Paulo - Vida - Terça-feira, 31 de janeiro de 2012 - Pg. A12 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,pressao-arterial-deve-ser-medida-nos-dois-bracos-do-paciente,829254,0.htm http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,medicao-pode-ser-feita-na-farmacia-desde-2009-,829309,0.htm

Made in mundo [E nós, no Brasil?]

THOMAS L. FRIEDMAN
THE NEW YORK TIMES

Líderes políticos veem criação de empregos como fenômeno nacional, mas mundialização da produção é irreversível

Após o debate dos pré-candidatos republicanos à Casa Branca, na Flórida, na semana passada, o ex-presidente de Cuba Fidel Castro escreveu um artigo no qual afirmou que "a escolha de um candidato republicano desse império globalizado e amplo é - e afirmo seriamente - a maior competição de idiotice e ignorância jamais vista". Quando marxistas estão se queixando de que políticos estão distantes das realidades globais de hoje, isso não é bom sinal. Mas eles não são os únicos.


Existe atualmente uma enorme diferença entre a maneira que muitos executivos americanos - não só figuras de Wall Street, mas indivíduos à frente de empresas de primeira linha, que produzem coisas e criam empregos - olham o mundo e como a média dos parlamentares, senadores ou o presidente, o encaram. Literalmente, eles enxergam dois mundos diferentes, um fenômeno que se aplica a democratas e republicanos.


Veja a reunião à qual o New York Times se referiu, em fevereiro do ano passado, entre o presidente Barack Obama e o cofundador da Apple, Steve Jobs, que morreu em outubro. O presidente, compreensivelmente, perguntou a Jobs por que quase todos os 70 milhões de iPhones, os 30 milhões de iPads e os 59 milhões de outros produtos vendidos pela Apple eram produzidos no exterior. Obama perguntou: "E esse trabalho não poderia ser feito de novo aqui?". Jobs respondeu-lhe: "Esses empregos estão voltando".


Os políticos veem o mundo como blocos de eleitores vivendo em espaços geográficos específicos. Eles consideram o emprego dessas pessoas uma ampliação dos benefícios econômicos de cada área geográfica. Mas muitas empresas veem cada vez mais o mundo como um espaço em que os seus produtos podem ser produzidos em qualquer lugar, por meio de suas cadeias de suprimento globais (frequentemente constituídas por trabalhadores sem nenhuma proteção sindical) e vendidos no mundo todo.


Esses executivos raramente se referem à "terceirização" atualmente. Hoje seu mundo está tão integrado que não existe mais "fora" ou "dentro".


Nas suas empresas, todos os produtos e muitos serviços são idealizados, projetados, promovidos e fabricados por meio das cadeias de suprimentos globais sempre em busca dos mais talentosos e os menores custos. Eles são "Made in Mundo" e não "Made in Estados Unidos". E é aí que surge a tensão. Há muitas empresas "nossas" que hoje se consideram cidadãs do mundo. Mas Obama é presidente dos Estados Unidos.


Victor Fung [foto acima], diretor da Li & Fung, a mais antiga manufatura têxtil de Hong Kong, com quem conversei no ano passado, disse-me que durante muitos anos sua companhia operava com base em uma regra: "Você se abastece na Ásia e vende nos Estados Unidos e na Europa". Hoje, a regra é "abastecer em qualquer lugar, manufaturar em qualquer lugar e vender em qualquer lugar". A noção de "exportação" está desaparecendo.


Mike Splinter [foto ao lado], CEO da Applied Materials, explicou-me a questão da seguinte maneira: "A terceirização existiu dez anos atrás, quando então você dizia: 'vamos enviar parte da geração de software para o exterior'. Hoje não é esse tipo de terceirização que praticamos. Ela significa apenas onde pretendo ter alguma coisa produzida. Agora seu raciocínio é o seguinte: 'metade dos meus funcionários com doutorado no meu departamento de Pesquisa e Desenvolvimento preferiria viver em Cingapura, Taiwan ou China, pois ali é seu país e eles podem ir para lá e continuar trabalhando para minha companhia'". Assim as coisas evoluem. Ele tem muitas outras opções.


Michael Dell [foto ao lado], fundador da Dell Inc., diz: "Sempre lembro às pessoas que, hoje, 96% dos nossos novos clientes potenciais vivem fora dos EUA". É o restante do mundo. E, se empresas como a Dell querem vender para esses clientes, elas necessitam projetar e manufaturar algumas partes dos seus produtos naqueles países.


Oportunidade
Esse é o mundo em que estamos vivendo. E não vai desaparecer. Mas os EUA podem prosperar neste mundo, explicou Yossi Sheffi [foto abaixo], especialista em logística do MIT. O país precisa capacitar o maior número possível de nossos trabalhadores para participar dos diferentes elos dessas cadeias de suprimento globais. Podemos conceber, comercializar, desenhar e orquestrar sua cadeia de suprimentos. Também podemos manufaturar produtos de alta qualidade e vendê-los no varejo. Se cumprirmos nossa parte, teremos bons resultados.


E aqui está a boa notícia: temos uma enorme vantagem natural para competir nesse novo mundo, simplesmente se nos organizarmos.


Num mundo em que os maiores ganhos são daqueles que conceberam e projetaram um produto, não existe uma sociedade com maior capacidade de imaginação do que os EUA. Num mundo em que o talento é a mais importante vantagem competitiva, não há nenhum país que, historicamente, acolheu mais imigrantes de talento do que os EUA.


Num mundo em que a proteção da propriedade intelectual e mercados de capital seguros são enormemente valorizados por inovadores e investidores, não existe país mais seguro do que os EUA. Num mundo em que os ganhos obtidos com a inovação são surpreendentes, os financiamentos do governo americano nas áreas da biociência, das novas tecnologias e energia limpa constituem um imenso ganho. Num mundo em que a logística será a fonte de inúmeros empregos para a classe média, os EUA têm empresas como a FedEx e a UPS.


Se apenas conseguirmos nos unir numa estratégia nacional para fortalecer e expandir todas essas vantagens naturais: 

  • mais imigração, 
  • mais educação de nível superior
  • melhor infraestrutura
  • mais pesquisas patrocinadas pelo governo
  • incentivos aplicados de modo inteligente para estimular a criação de milhões de startups (pequenas empresas inovadoras recém-criadas) - e 
  • um projeto de longa duração para resolver de fato nossos problemas da dívida de longo prazo - ninguém conseguirá nos atingir. Estamos chegando perto.

TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK.


Fonte: O Estado de S. Paulo - Internacional -  Terça-feira, 31 de janeiro de 2012 - A10 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,made-in-mundo--,829265,0.htm

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Obra relaciona capitalismo e gestão de afetos

VLADIMIR SAFATLE

Livro da socióloga Eva Illouz [foto ao lado] propõe compreender sistema econômico sob a ótica das afeições pessoais e crenças
Ela ainda foi capaz de mostrar como a valorização do capital poderia ser impulsionada por uma boa gestão de afetos

Estamos acostumados a compreender o capitalismo como um sistema econômico caracterizado principalmente pelo livre mercado, pela concorrência entre os atores econômicos e por uma dinâmica de autovalorização incessante do capital.


No entanto, o capitalismo é, também, uma forma de vida que racionaliza várias dimensões sociais a partir de um conjunto de valores morais, psicológicos e de princípios de avaliação.


Podemos falar, aqui, que estamos diante de uma forma de vida, porque não se deseja da mesma forma dentro e fora do capitalismo, assim como não se trabalha e não se fala da mesma forma.


O desejo, o trabalho e a linguagem têm uma configuração específica no interior das sociedades capitalistas avançadas.


Foi tomando tal perspectiva como ponto de partida que a socióloga Eva Illouz propôs compreender os afetos nos tempos do capitalismo ou, para ser mais preciso, compreender o capitalismo como um sistema de produção e gestão de afetos.


TRADUÇÃO
Infelizmente, por alguma razão obscura, a tradução mudou o título para um injustificável "O Amor nos Tempos do Capitalismo" (e não afetos nos tempos do capitalismo, como seria o correto).


Pois a interessante tese central do livro é de que a psicanálise freudiana desencadeou a produção de uma "cultura afetiva intensamente especializada", de um "novo estilo afetivo, o estilo afetivo terapêutico", que servirá de base para uma modificação mais profunda na maneira com que o mundo contemporâneo do trabalho, do consumo e das instituições implica sujeitos.


Illouz descreve, por exemplo, este rápido processo por meio do qual a maneira freudiana de pensar o eu, com sua história de conflitos, seu modo de narrar tal história e exigir reconhecimento social, irá reconfigurar a imaginação empresarial.


Desde os estudos clássicos de Elton Mayo sobre o trabalho na General Electric, o mundo empresarial aprendeu o léxico das relações humanas, a terminologia da psicologia motivacional e a necessidade de "comunicar seus sentimentos".


Em suma, ele aprendeu aquilo que a autora chama de "cultura terapêutica".


Um aprendizado que não deixava de tecer relações com as modificações produzidas por Freud em nossa compreensão do eu.
Assim, "um discurso científico [a psicologia] que versava primordialmente sobre pessoas, interações e sentimentos transformou-se no candidato natural para moldar a identidade no trabalho".


Tal engenharia psicológica, segundo a autora, saturou a esfera econômica com afetos: "Um tipo de afeto comprometido com o imperativo de cooperação e com uma modalidade de resolução de conflitos baseada no 'reconhecimento'".


Ela ainda foi capaz de mostrar como a valorização do capital poderia ser impulsionada por uma boa gestão de afetos, pelo bom uso da "inteligência emocional".


Illouz ainda lembra como tal saturação da esfera econômica pelos afetos não poderia deixar de interferir nos relacionamentos íntimos.


Esses, por sua vez, foram cada vez mais objetos de racionalização e cálculos de custo/benefício dignos do mundo empresarial.


Ou seja, ao voltar para a dimensão dos relacionamentos familiares e amorosos, a preocupação com os afetos trouxe os princípios de racionalização que regem a esfera econômica.


NEGOCIAÇÃO DO AMOR


Um estudo, no capítulo final, sobre sites de relacionamento e entrevistas com usuários procura expor o ponto extremo de tal processo.
Maneira de mostrar até onde pode ir o processo de mercantilização e reificação das relações amorosas.


Processo no interior do qual "é difícil separar o sentimento romântico da experiência do consumo".


Com tais teses importantes, o estudo de Illouz demonstra o tipo de contribuição que a articulação entre teoria social de inspiração frankfurtiana e psicanálise ainda é capaz de fornecer para uma perspectiva crítica das sociedades capitalistas.


Ele demonstra como não há crítica possível sem levar em conta a perspectiva dos indivíduos com seus sistemas de afetos e crenças.


O AMOR NOS TEMPOS DO CAPITALISMO
AUTOR: Eva Illouz
EDITORA: Zahar
TRADUÇÃO: Vera Ribeiro
QUANTO: R$ 36 (188 págs.)
AVALIAÇÃO: ótimo


Fonte: Folha de S. Paulo - Ilustrada/livros - Sábado, 28 de janeiro de 2012 - Pg. E7 - Internet: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/22485-obra-relaciona-capitalismo-e-gestao-de-afetos.shtml

São Paulo - Cidade desigual [Excelente análise!]

ODED GRAJEW

Em 26 distritos da cidade de São Paulo, não há nenhum leito hospitalar; o Itaim Bibi tem mais de 2.000 vezes mais empregos do que Marsilac
Um estudo da Rede Nossa São Paulo divulgado recentemente apresenta o quadro da desigualdade em São Paulo. Os dados da cidade mais rica do Brasil são vergonhosos.


São Paulo é dividida em 31 subprefeituras e em 96 distritos. A população média de cada subprefeitura supera os 350 mil habitantes. Em cada distrito, há mais de 110 mil habitantes (eles são maiores do que 95% das cidades brasileiras).


Verificamos em vários distritos a ausência de equipamentos públicos. Alguns exemplos: em 44 distritos não há nem sequer uma biblioteca municipal, 56 distritos não mantém nenhum equipamento esportivo público e 59 não têm nenhum centro cultural.


Isso sem mencionar os 1,3 milhões de paulistanos que vivem em favelas e os milhões que, em função da sua baixa renda, têm enorme dificuldade de ter acesso à cultura, ao esporte e à moradia digna.


Em 26 distritos, não há nenhum leito hospitalar. Segundo pesquisa Irbem/Ibope, o tempo médio de marcação de consultas nos serviços de saúde públicos é de 52 dias. Entre a marcação e a realização de exames, gasta-se 65 dias. Entre a marcação e a realização de procedimentos mais complexos, como cirurgias, são necessários 146 dias.
Muita gente pobre, que depende do sistema público de saúde, certamente morre no meio do caminho.


As desigualdades são enormes. No item emprego, por exemplo, a diferença entre o melhor distrito (Itaim Bibi) e pior (Marsilac) é de 2218,6 vezes - cerca de 300 mil empregos no primeiro distrito, apenas 136 no segundo. Para ter acesso ao trabalho, quem ganha até um salário mínimo fica, em média, duas horas ao dia no transporte público.


Milhões de paulistanos precisam percorrer enormes distâncias para ter acesso ao trabalho, à saúde, à cultura e ao esportes, entupindo as vias de circulação. Assim, no item mortes no trânsito, a diferença entre o melhor (Barra Funda) e o pior distrito (Marsilac) é de 32,2 vezes.


No item mortalidade infantil, a diferença é de 13 vezes (Cambuci e Jaguara); em gravidez na adolescência, de 24 vezes (Moema e Marsilac); e em homicídios, de 28,5 vezes (Barra Funda e Pinheiros são os melhores, o Brás é o pior).


A diferença entre a melhor (Capela do Socorro) e pior subprefeitura (Itaim Paulista) no item área verde por habitante é de 176,3 vezes. Na porcentagem de domicílios sem ligação com o esgoto, a diferença é de 44 vezes (Sé e Cidade Ademar).


Por que aquilo que se atingiu nos melhores distritos não pode ser atingido em todos?


Mais de 174 mil crianças, basicamente de famílias pobres, estão sem creche. No item analfabetismo, a diferença entre a melhor e pior subprefeitura é de 2,4 vezes. O abandono e a distorção entre a idade e a série são, respectivamente, 52 e 42 vezes menores no ensino privado do que no ensino público.


Educação de qualidade, fundamental para o acesso à cidadania e ao trabalho mais bem remunerado, é, portanto, privilégio da população de maior renda.


Não é por acaso que todas as grandes lideranças religiosas, sociais e humanas sempre lutaram pela justiça social.


Do ponto de vista ético, moral, social e econômico, não há nada mais insustentável, danoso, antiético, vergonhoso e degradante em uma sociedade do que a desigualdade. Ela está na origem de todos os problemas que afetam a qualidade de vida da população.


O quadro da desigualdade completo, com 91 indicadores, está disponível no site  http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/. Queremos que ele seja útil aos cidadãos na cobrança dos seus direitos e que ele sensibilize os candidatos nas eleições de 2012.


É necessário que eles elejam a justiça social como a prioridade dos seus programas (mesmo sabendo que as pessoas de menor renda não financiam campanhas eleitorais).


Do próximo prefeito, esperamos que o plano de metas que, por força de lei, ele deve apresentar 90 dias após a posse, tenha como eixo principal a redução das desigualdades.


* ODED GRAJEW, 67, empresário, é coordenador-geral da secretaria executiva da Rede Nossa São Paulo e presidente emérito do Instituto Ethos. É idealizador do Fórum Social Mundial e integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).


Fonte: Folha de S. Paulo - Opinião - Domingo, 29 de janeiro de 2012 - Pg. A3 - Internet: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/22778-cidade-desigual.shtml

O novo léxico do mundo globalizado

Ivan Marsiglia

Com oito volumes, 4.032 páginas e um total de 650 verbetes - alguns assinados por estudiosos brasileiros -, chega ao País a International Encyclopedia of Political Science

As consequências do deslocamento de populações no mundo pós-globalização, a crise dos partidos tradicionais e as novas formas de representação política, a financeirização da economia e o crescente poder dos bancos centrais, o terrorismo e o tema da segurança global, os direitos dos povos indígenas e a internacionalização do movimento ambientalista. Essas são algumas das questões contemporâneas sintetizadas na International Encyclopedia of Political Science (importada, US$ 990), que será lançada dia 6 de fevereiro em um painel na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.


Obras congêneres, como o clássico Dicionário de Política, editado em 1983 por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, que a Editora Universidade de Brasília traduziu para o português, The Blackwell Encyclopedia of Political Science (1987), de Vernon Bogdanor, e a The Blackwell Encyclopedia of Political Thought (1991), de David Miller, refletem um outro momento da ciência política como disciplina, em que ela tentava afirmar sua singularidade em relação aos estudos políticos de viés sociológico. De lá para cá, a ciência política avançou não só na incorporação de métodos de análise quantitativa e estatística, como na sofisticação de suas abordagens de política comparada.


A própria forma como a nova enciclopédia - com oito volumes, 4.032 páginas e 650 verbetes, que também podem ser adquiridos na versão online - foi produzida pela Associação Internacional de Ciência Política (a Ipsa, na sigla em inglês) demonstra esse esforço de universalidade e abrangência. Única instituição acadêmica efetivamente global na área, a Ipsa baseou o conteúdo da obra na produção acadêmica dos membros dos 53 comitês de pesquisa que coordena no mundo todo. Por uma questão de representatividade, cada comitê é obrigatoriamente integrado por pesquisadores de cinco países e três continentes.


"Diferentemente de livros de referência já conhecidos, que contam com contribuições predominantemente de cientistas do Atlântico Norte, os editores optaram por outro desenho", explica a atual presidente da Ipsa, a brasileira Lourdes Sola [foto ao lado], que retomou o projeto idealizado por seu antecessor, o politólogo alemão Max Kaase.


"Há nos últimos anos uma produção de conhecimento importante fora da Europa e dos Estados Unidos, especialmente na América Latina", acrescenta o cientista político italiano Leonardo Morlino [foto abaixo], que editou a enciclopédia a seis mãos, ao lado do francês Bertrand Badie e do alemão Dirk Berg-Schlosser, todos intelectuais de projeção internacional. "Fizemos uma escolha chave ao conceber a obra: abrir espaço para as diversas tradições da ciência política, do Leste e do Sul, além de Oeste e Norte."


Entre os brasileiros que escreveram verbetes para a enciclopédia, além da própria Lourdes Sola estão José Álvaro Moisés, diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, Jairo Nicolau, professor visitante da UERJ, e Bernardo Sorj, professor titular de Sociologia da UFRJ (este último, nascido no Uruguai, no entanto radicado no Brasil).


Para José Álvaro Moisés, autor de um texto sobre "cultura cívica", a contribuição de acadêmicos da África, América Latina e Oriente Médio garante algumas das entradas mais interessantes da enciclopédia: "Nelas, pode-se conhecer melhor o pensamento político africano, a relação entre bipolaridade e multipolaridade na política internacional hoje, as perspectivas chinesas sobre a democracia, os regimes híbridos ou semiautoritários, a relação entre responsividade (responsiveness) e as diferentes modalidades de responsabilização de autoridades públicas (accountability), por exemplo".


Já na opinião da presidente da Ipsa, autora do verbete sobre o novo papel dos bancos centrais na política, "o mundo mudou muito e uma enciclopédia excelente como a de Bobbio responde a uma problemática na qual a globalização e seus impactos não estavam elaborados conceitualmente".


À exceção do processo político na Espanha pós-franco, os experimentos de democratização eram ainda incipientes no início dos anos 80. Mudanças de regime político na América Latina, na Europa central e do Leste apenas começavam, assim como os estudos em política comparada na área.


"Não apenas pelo número de páginas (o dicionário de Bobbio tinha 1315), a enciclopédia diferencia-se de obras anteriores pelo detalhamento dos conceitos", completa o editor Berg-Schlosser, que comemorava, na última sexta, a menção honrosa recebida pelo trabalho no Dartmouth Medal, um dos prêmios mais importantes do mundo na área de livros de referência.


Já a terminologia decorrente das transformações que vimos no mundo árabe ou nos protestos que ocuparam o berço do capitalismo financeiro em Nova York ainda está por ser escrita - e incluída, quem sabe, em uma versão revista e ampliada da enciclopédia (os verbetes foram concluídos em agosto de 2010). Afinal, o mundo não para e é preciso decifrá-lo constantemente. Ou, como escreveu, já em 1513, Nicolau Maquiavel, pai da ciência política moderna: "Os homens em geral formam suas opiniões guiando-se antes pela vista do que pelo tato, pois todos sabem ver, mas poucos sentir. Cada qual vê o que parecemos ser, poucos sentem o que realmente somos".


BANCOS CENTRAIS, por Lourdes Sola
"Como regra geral, bancos centrais são regulados por um mandato de governo(s) (...) Um levantamento atualizado dos BCs existentes mostra maior variação que a suposta nas teorias de expectativas racionais dominantes que moldam as prescrições universalistas e os modelos de papel recomendados nos últimos 30 anos. A influência é perceptível em duas tendências globais: convergência para o primado da estabilidade de preços e (...) aumento dramático do número de instituições que adquiriram independência estatutária de governos"


CULTURA CÍVICA, José Álvaro Moisés
"A democracia não pode cumprir suas promessas se não houver democratas (...) Como um sistema de e para o povo, mas não diretamente pelo povo, ela requer envolvimento público, participação política e responsabilização vertical, horizontal e social"


DESCENTRALIZAÇÃO, Leonardo Morlino
"Se o governo está mais perto das pessoas, a comunicação entre os cidadãos e seus representantes deve ser mais eficaz e as preferências individuais devem ter mais chances de ser consideradas"


TRADUÇÕES: CELSO PACIORNIK


INTERNATIONAL ENCYCLOPEDIA OF POLITICAL SCIENCE
Editores: Bertrand Badie, Dirk Berg-Schlosser e Leonardo Morlino
Editora: Sage em associação com Ipsa 
(Importado, 4.032 págs, US$ 990 - preço de lançamento da versão impressa) 


Fonte: O Estado de S. Paulo - Sabático - Sábado, 28 de janeiro de 2012 - Pg. S6 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,o-novo-lexico-do-mundo-globalizado,828155,0.htm

Expansão do extremismo preocupa europeus

JAMIL CHADE
CORRESPONDENTE / GENEBRA

Relatório divulgado por departamento da UE diz que continente precisa lidar de forma "urgente" com fenômeno para evitar "risco de desestabilização"

A Europa precisa lidar de forma urgente com a expansão de movimentos extremistas - de todas as tendências - se não quiser ser confrontada com um risco real de violência e desestabilização política nos próximos anos. O alerta foi feito pelo Departamento de Coordenação da Luta Contra a Violência e o Terrorismo da União Europeia (UE).


Em um documento enviado a ministros de Justiça dos 27 países do bloco, a UE confirma que movimentos de extrema esquerda, extrema direita e vinculados ao radicalismo islâmico ganham espaço e precisam ser contidos.


"Estamos numa encruzilhada da história europeia", disse Emine Bozkurt [foto ao lado], chefe da bancada antirracista do Parlamento Europeu. "Em pouco anos vamos descobrir se esse incremento do ódio - seja por ultranacionalistas, islamofóbicos ou antissemitas - levou a uma divisão da sociedade ou se fomos capazes de lutar contra essa tendência alarmante", disse.


Pela conclusão da UE, com base em relatórios de inteligência de vários governos, a crise econômica que assola a região há dois anos, a taxa recorde de desemprego entre jovens, a manipulação política da imigração e mesmo a Primavera Árabe criaram condições para o fortalecimento desses grupos.


Nos últimos meses, a questão envolvendo o fortalecimento do extremismo entrou na agenda política do continente, especialmente depois do massacre promovido pelo norueguês Anders Behring Breivik [foto ao lado]. Mas a constatação dos especialistas é que cada movimento que ganha espaço tem sua própria lógica e precisa ser combatido de uma forma radicalmente diferente. O principal alerta: o assassinato de 77 pessoas na Noruega não foi um fato isolado, nem limitado a uma tendência ideológica. Na Áustria, um recente relatório preparado pelo Ministério da Justiça confirmou um aumento de 31% nos incidentes registrados com grupos de extrema direita. No total, registraram-se 1040 casos em 2011, dos quais um terço foi de "violência física".


Esquerda
Para o chefe do Departamento, Gilles de Kerchove, a violência da extrema esquerda vem sendo alimentada pela proliferação de cortes de gastos sociais. "Precisamos estar conscientes de que as condições econômicas adversas na Europa poderão produzir terreno para a proliferação de ideologias violentas de esquerda e anarquistas", afirmou Kerchove.


O principal alvo desse tipo de violência seria a Grécia, justamente o país mais afetado pela crise, que conta com um dos movimentos de extrema esquerda mais bem organizados da Europa. Na Itália e na Suíça, grupos anarquistas chegaram a enviar cartas-bomba a alvos específicos, criando um temor de que esses movimentos já não estariam apenas teorizando sobre eventuais ataques, mas passando à ação.


Na França, extremismo tira voto da direita

ANDREI NETTO
CORRESPONDENTE / PARIS

Enquanto na Hungria, na Alemanha e na Noruega a extrema direita é cada vez mais associada ao autoritarismo e à violência, na França um fenômeno inverso ocorre: a exatos três meses das eleições presidenciais, o partido de extrema direita Frente Nacional (FN) faz cada vez mais parte do cenário político do país, conquistando a admiração dos franceses.


Quase um terço do eleitorado (31%) se diz de acordo com as ideias do FN, que prega políticas de imigração de caráter xenofóbico e ações econômicas protecionistas, como a saída da França da União Europeia e da zona do euro. O maior poder de sedução é atribuído a Marine Le Pen [foto ao lado], filha e sucessora do ultraconservador e ex-candidato à presidência Jean-Marie Le Pen.
Alçada à presidência do partido, ela se mantém há um ano com cerca de 20% das intenções de voto, ameaçando roubar o posto do atual presidente, Nicolas Sarkozy, no segundo turno da votação.


A três meses das eleições, cientistas políticos e institutos de pesquisa descobriram que Le Pen não apenas tem um eleitorado fiel, mas que suas ideias são cada vez mais populares. De acordo com dados levantados pelo instituto TNS Sofres, no intervalo de um ano, o número de franceses que se considera "alinhado" às ideias da FN cresceu 9%.


Na prática isso significa dizer que mais e mais franceses defendem a imposição de barreiras à imigração, a expulsão de estrangeiros, o fechamento da economia e o retorno ao franco. A adesão é ainda mais elevada entre trabalhadores, tanto urbanos (40%) quanto rurais (41%) - os mais atingidos pela crise da zona do euro, pelo desemprego e pelos programas de austeridade fiscal.


Jean-Yves Camus [foto ao lado], cientista político e especialista em extremismos, acredita que sob o comando de Marine Le Pen a extrema direita francesa está se banalizando, transformando-se pouco a pouco em um partido como qualquer outro.


"Em 2007, Sarkozy emplacou um golpe magistral roubando o eleitorado operário da FN", lembra. "A grande diferença entre 2007 e 2012 é que Sarkozy, agora, é candidato à reeleição. O que ele conseguiu em 2007, pode não conseguir em 2012."


De acordo com analistas políticos, é cada vez mais real o risco de reedição do 22 de abril de 2002, quando o primeiro-ministro, Lionel Jospin, candidato do Partido Socialista (PS) à presidência, perdeu a eleição, cedendo seu lugar no segundo turno a Jean-Marie Le Pen.


O fenômeno, porém, pode ser inverso: em lugar de roubar o lugar da esquerda no segundo turno, Marine pode tirar a vaga da direita. Segundo as últimas pesquisas de opinião, François Hollande, candidato do PS, tem 27% das intenções de voto, à frente de Sarkozy, da União por um Movimento Popular (UMP), com 23%, e de Marine Le Pen, com 21%.


Alemanha tenta coibir terror neonazista

LUIZ RAATZ 

Atividade de grupos violentos preocupa mais do que popularidade de partidos de direita no país

Ao contrário de outros países da Europa Ocidental, onde partidos populistas de direita têm crescido na última década, na Alemanha não há o mesmo apoio a legendas radicais, como na Holanda, França e Áustria. A principal ameaça extremista na maior economia europeia são pequenos grupos neonazistas que executam ações armadas.


Nesta semana, um estudo divulgado por um grupo de analistas independentes nomeado pelo Parlamento alemão revelou que a aceitação do antissemitismo, da extrema direita e da islamofobia cresceu no país nos últimos anos.


No fim de 2011, a polícia alemã desbaratou uma célula terrorista neonazista suspeita de ter matado ao menos dez pessoas, entre 2000 e 2007, a maioria alemães de origem turca. O grupo Subterrâneo Nacional Socialista também é suspeito de 14 roubos a bancos.


Nos últimos dois meses, quatro membros do grupo foram presos. Um deles era ligado ao Partido Nacional Democrático (NPD), o principal partido de extrema direita da Alemanha. "Essas células neonazistas representam um perigo muito maior do que os partidos populistas, que têm mais apoio, mas não são partidários da violência", diz o pesquisador britânico Jamie Bartlett, do Instituto Demos.


Para ele, no entanto, a herança histórica do nazismo coíbe o crescimento desses grupos. "Algumas pessoas têm receio de abraçar a herança histórica que esses grupos têm orgulho de ostentar", afirma.


Para o sociólogo alemão Joerg Forbrig, do instituto German Marshall Fund, esses grupos se aproveitaram do caráter federalista do país para se infiltrarem e cometerem crimes de ódio contra minorias étnicas.


"A principal preocupação na Alemanha hoje é descobrir como esses grupos puderam agir nas sombras por tanto tempo", diz. "Os serviços de inteligência aqui são muito fragmentados e, agora, o governo está tentando melhorar isso."


Ciganos
Outro país europeu onde a extrema direita cresceu é a Hungria. Ali, no entanto, a minoria perseguida não é de muçulmanos ou judeus, mas de ciganos. "A comunidade cigana na Hungria tem sofrido ao longo da história com a estigmatização e o preconceito", afirma Forbrig. "Eles foram escolhidos pela extrema direita como alvo."


Fonte: O Estado de S. Paulo - Internacional - Domingo, 29 de janeiro de 2012 - Pgs. A20 e A21 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,expansao-do-extremismo-preocupa-europeus-,828544,0.htm; http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,na-franca--extremismo-tira-voto-da-direita-,828547,0.htm e http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,alemanha-tenta-coibir-terror-neonazista-,828550,0.htm

domingo, 29 de janeiro de 2012

A migração da violência

MAC MARGOLIS*
Há um novo recordista mundial em violência. Não é Cabul nem a Praça Tahrir. Segundo a ONU, a cidade mais sangrenta da atualidade chama-se San Pedro Sula [foto da catedral - acima], com 800 mil habitantes e localizada ao norte de Honduras. Sua taxa de homicídio: 159 por 100 mil habitantes, pior até que Ciudad Juárez, notória capital da guerra do tráfico mexicano.


Assaltos, sequestros, acertos de contas entre bandidos e assassinatos por encomenda. Hoje, Honduras sofre de tudo um pouco e já ostenta números de países em guerra aberta: 82 homicídios por 100 mil habitantes, outro recorde.


As raízes do surto do crime são complexas. Uma combinação de guerra de gangues, tráfico de drogas, sangrenta rivalidade política e uma crise de desgoverno que deixa as ruas à deriva. Mas não falta quem simplifique o flagelo como sintoma do desmando gringo.


A última a avançar nessa tese foi Dana Frank, professora de história da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, que, em artigo, debitou a explosão de violência na conta do presidente Barack Obama, suposto autor de um "desastre de política externa". Culpou também "grande parte da imprensa dos EUA" por espalhar a versão de que a carnificina hondurenha seria obra exclusiva do tráfico de drogas.


Segundo Dana, a perdição em Honduras tem origem no golpe de Estado contra o presidente Manuel Zelaya [foto ao lado], movimento que os EUA condenaram, mas depois mudaram de ideia, apoiando a eleição "fraudulenta" dos "golpistas".


Ela tem razão em apontar a tortuosa política internacional como uma agravante da situação hondurenha (sem mencionar o papelão do Brasil, cuja embaixada em Tegucigalpa Zelaya converteu em quartel de campanha). Mas ela - como muitos outros - erra ao contar a história pela metade.


Voltemos a 2009. Honduras estava em polvorosa. Zelaya, político conservador que se converteu à bandeira bolivariana de Hugo Chávez, convocou uma consulta pública para tentar a reeleição. Chocou-se com a Carta do país, que não só proíbe a reeleição como desqualifica quem tente se mobilizar para reprisar o mandato. Soa severo, mas em Honduras, onde a política virou jogo dos poderosos, o tabu era uma espécie de fio terra contra tiranos.


O Procurador da República entrou com um processo (de abuso de autoridade e traição à pátria) contra Zelaya e o Congresso e a Suprema Corte o acataram, votando para destituí-lo. Os juristas ainda debatem a manobra - não há impeachment em Honduras, mas a Constituição ampara a destituição do Executivo que abuse da lei. Erraram as Forças Armadas, quando prenderam Zelaya e o mandaram embora do país, ainda de pijama.


Na ausência de Zelaya, houve um mandato-tampão seguido por eleições gerais, em que Porfírio Lobo [foto ao lado], ex-aliado de Zelaya, elegeu-se por ampla maioria. Segundo os zelaystas, foi o início do fim. A quebra da ordem nacional teria sido a senha para revanches políticas, que desaguaram em violência.


Mas isso é a versão folhetim. O crime em Honduras segue um triste roteiro, da América do Sul para a América Central. Enquanto despenca a criminalidade na Colômbia e no Brasil, na América Central ela só aumenta. Cinco países do istmo amargam pioras na última década, com uma média de 43 homicídios a cada 100 mil - o dobro do México. Em Honduras, a violência mais do que dobrou entre 2005 e 2010, em pleno mandato de Zelaya.


Em Honduras, começou com um efeito bumerangue. Imigrantes hondurenhos caíram no crime pesado nas ruas de Los Angeles, foram presos e deportados, levando na bagagem toda a tecnologia das gangues americanas. Depois, veio o "efeito bexiga", quando a guerra do governo do mexicano Felipe Calderón contra o tráfico apertou os bolsões da droga, afugentando os bandidos para o sul.


Por fim, houve anos de disfunção governamental, enquanto zelaystas e porfiristas entraram em choque permanente, sem pacto nem perdão. A soma é um ambiente próspero para caos e crime, uma tragédia centro-americana em que os estrangeiros não passam de figurantes.


* MAC MARGOLIS É CORRESPONDENTE DA REVISTA NEWSWEEK NO BRASIL, COLUNISTA DO ESTADO, EDITA O SITE WWW.BRAZILINFOCUS.COM


Fonte: O Estado de S. Paulo - Internacional - Domingo, 29 de janeiro de 2012 - Pg. A17 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-migracao-da-violencia-,828535,0.htm

''Nos Evangelhos, não se aprende doutrina, mas sim uma forma de estar no mundo''

Entrevista com 
José Antonio Pagola 

Cristina Turrau
Diario Vasco
26.01.2012

"É preciso descobrir o caminho aberto por Jesus e ser seus seguidores" 

A afirmação é de José Antonio Pagola [foto ao lado], teólogo e ex-vigário geral da diocese de San Sebastián, na Espanha, que apresentou nesta quarta-feira, 25 de janeiro, em Donostia, seu livro El camino abierto por Jesús: Marcos (Ed. Desclée de Brouwer). Ele nota isso em sua própria carne e na forma de polêmica. Apesar dos inúmeros obstáculos por parte da hierarquia eclesiástica, sua obra Jesus. Aproximação histórica (Ed. Vozes) tornou-se um best-seller que está sendo publicado nestes dias em croata, francês e russo. "Os números de vendas não me interessam", diz.


A relação do senhor com as livrarias e com os leitores está se tornando uma relação de amor.
José Antonio Pagola: Este livro que se apresenta hoje é a segunda parte de um projeto editorial que tem por título geral O caminho aberto por Jesus e será composto por quatro pequenos volumes. Cada um deles é dedicada a um dos evangelistas. Há um ano, foi publicado o livro de Mateus. Antes do Natal, apareceu o de Marcos [foto abaixo]. Para a Semana Santa, será publicado o de Lucas. E no outono [europeu] sairá o de João, além de um box com os quatro livros.


Seu projeto é ambicioso...
José Antonio Pagola: Estes livros nascem por causa do meu desejo de aproximar os homens e as mulheres de hoje ao caminho aberto por Jesus. E essa ideia do caminho tem muito importância.


A saber...
José Antonio Pagola: Os primeiros seguidores de Jesus não se sentiam membros de uma nova religião. Eles não se sentiam membros de uma instituição, mas sim homens e mulheres que descobriram um novo caminho para viver. Na Carta aos Hebreus, um escrito que circula em torno do ano 60 e que foi recolhido no Novo Testamento, fala-se de um caminho novo e vivo, inaugurado por Jesus, que é preciso percorrer com os olhos fixos nele.


É o que o senhor vem propondo.
José Antonio Pagola: Eu vejo a necessidade de que, na Igreja, se dê uma transformação para os homens e as mulheres de hoje. Não basta se sentir adepto de uma religião chamada de cristã, mas é preciso descobrir o caminho aberto por Jesus e ser seus seguidores. Hoje, muitos de nós vivem dentro da Igreja e se sentem cristãos sem ter tomado a decisão de ser discípulos. Fazemos o percurso sem sermos guiados pelas suas atitudes fundamentais e pelo estilo de vida. Jesus pode ser hoje uma figura humanizadora, que ensina a viver tanto as pessoas que se sentem cristãs como aquelas que não se sentem assim. E isso ocorre em um momento de crise, não só religiosa. Vivemos uma "omnicrise", e parece que não estamos acertando em alguma coisa.


Embora tenha havido problemas, não faltarão editores para os seus livros...
José Antonio Pagola: Este segundo livro foi publicado pela Desclée de Brower devido a alguns problemas, mas a coleção sairá pela PPC. Desde que deixei a responsabilidade como vigário geral da diocese, fiz todo um projeto.


Sim?
José Antonio Pagola: A primeira coisa que fiz foi dedicar oito ou nove anos para pesquisar melhor a figura de Jesus. Na realidade, esse foi o tema de toda a minha vida. Em Jesus. Aproximação histórica [foto ao lado], comuniquei e ofereci o que hoje pode se dizer de maneira razoável e confiável sobre a trajetória humana e histórica de Jesus.


Chegaram mais livros.
José Antonio Pagola: Com o meu segundo projeto, tento apresentar de maneira simples e com uma linguagem acessível e próxima, mas que "toque" as pessoas, o estilo de vida de Jesus. Quando nos aproximamos dos Evangelhos, não aprendemos doutrina; descobrimos uma maneira de habitar o mundo e de interpretar a vida e a história de grande força humanizadora.


A mensagem de Jesus é de plena atualidade, o senhor defende.
José Antonio Pagola: Eu me dou conta de que as pessoas, nesta sociedade que parece superficial, sentem a necessidade de viver de uma maneira diferente, sem saber exatamente como. Buscamos uma vida mais digna, saudável e feliz, algo que não é fácil. E o que eu tento demonstrar é que Jesus oferece um horizonte mais humano e uma esperança. Assim perceberam os primeiros cristãos.


Com seus livros, o senhor busca ser um mediador?
José Antonio Pagola: Trabalho com grupos distintos, falo com as pessoas e observo que não se busca mais técnica, nem mais ciência, nem mais doutrina religiosa. Buscamos algo, mas não sabemos como formular essas questões que levamos dentro.


Quais são as diferenças entre os quatro Evangelhos?
José Antonio Pagola: Os Evangelhos são quatro pequenos escritos. O primeiro é o de Marcos, que aparece em torno do ano 70, provavelmente depois da destruição de Jerusalém. Depois vêm os de Mateus e de Lucas, entre os anos 70 a 90. E, por último, já passado o ano 100, aparece o de João. Mas podemos dizer que os autores não são apóstolos. A elaboração dos textos é muito complexa. Eu analiso a vida de Jesus a partir de quatro relatos que nasceram da sua recordação. E cada um deles tem sua própria maneira de ressaltar, sublinhar e ordenar essas recordações.


Dê-nos uma pincelada de especialista: Marcos.
José Antonio Pagola: É o Evangelho mais breve. Pode ser lido em uma hora. Ocupou um lugar muito discreto ao longo da história. E, no entanto, há um interesse crescente nele, porque nos oferece a figura de Jesus com mais frescor. Ele remonta a tradições antigas, e Mateus e Lucas o utilizaram para os seus evangelhos.


Mateus.
José Antonio Pagola: É o evangelho mais longo e, em boa parte, segue Marcos, mas acima de tudo se caracteriza por seus grandes discursos. É o do Sermão da Montanha, das Bem-aventuranças ou das parábolas de Jesus, inesquecíveis. É o mais rabínico, provavelmente obra de um judeu que se tornou cristão.


Lucas.
José Antonio Pagola: Eu o recomendo para quem queira ler um evangelho inteiro e de uma vez só para ter uma ideia de como Jesus foi lembrado. Tem o evangelho da infância, muito poético. E é onde se destaca a bondade de Deus, sua compaixão e misericórdia, por exemplo, na parábola do filho pródigo.


João.
José Antonio Pagola: É um evangelho mais complexo, com uma cristologia muito elaborada. É mais teológico do que os demais.


Por que o lado humano de Jesus assusta?
José Antonio Pagola: Jesus atrai, mas é perigoso, porque é muito radical. Se você se aprofundar na ideia de que os últimos serão os primeiros, ou que você não pode servir a Deus e ao dinheiro, a vida muda. Jesus é muito sedutor, mas arriscado. Como disse algum agnóstico, é difícil dizer que ele não tem razão.


Como o senhor analisa os vetos à sua obra por parte da hierarquia?
José Antonio Pagola: Vão unidos à mensagem. Isso aconteceu com ele e acontece com os seus seguidores. Não é possível falar de Jesus com certa força e frescor e ficar impune.

Tradução de Moisés Sbardelotto.

sábado, 28 de janeiro de 2012

4º Domingo do Tempo Comum – Ano “B”

Evangelho: Marcos 1,21-28
José Antonio Pagola*


CURADOR


Segundo Marcos, a primeira atuação pública de Jesus foi a cura de um homem possuído por um espírito maligno na sinagoga de Cafarnaum. É uma cena de tirar o fôlego, narrada para que, desde o começo, os leitores descubram a força curadora e libertadora de Jesus.


É sábado e o povo se encontra reunido na sinagoga para escutar o comentário da Lei explicado pelos escribas. Pela primeira vez, Jesus irá proclamar a Boa Notícia de Deus precisamente no lugar onde se ensina oficialmente ao povo as tradições religiosas de Israel.


As pessoas ficam surpresas ao escutá-lo. Têm a impressão de que, até aquele momento, haviam escutado notícias velhas, ditas sem autoridade. Jesus é diferente. Não repete o que ouviu de outros. Fala com autoridade. Anuncia com liberdade e sem medo a um Deus Bom.


De repente, um homem “começa a gritar: Vieste para nos destruir?”. Ao escutar a mensagem de Jesus, se sentiu ameaçado. Seu mundo religioso entra em colapso. É-nos dito que está possuído por um “espírito imundo”, hostil a Deus. Que forças estranhas lhe impedem de continuar a escutar Jesus? Que experiências nocivas e perversas lhe bloqueiam o caminho para o Deus Bom que ele anuncia?


Jesus não se acovarda. Vê o pobre homem oprimido pelo mal e grita: “Cala-te e sai dele!”. Ordena que se calem essas vozes malignas que não o deixam encontrar-se com Deus nem consigo mesmo. Para recuperar o silêncio que cura o mais profundo do ser humano.


O narrador descreve a cura de maneira dramática. Num último esforço para destruí-lo, o espírito “sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu”. Jesus conseguiu libertar o homem de sua violência interior. Colocou fim às trevas e ao medo de Deus. De agora em diante, poderá escutar a Boa Notícia de Jesus.


Não poucas pessoas vivem em seu interior de falsas imagens de Deus que as fazem viver sem dignidade e sem verdade. Elas sentem Deus não como uma presença amistosa que convida a viver de modo criativo, mas como uma sombra ameaçadora que controla sua existência. Jesus sempre começa a curar, libertando de um Deus opressor.


Suas palavras despertam a confiança e fazem desaparecer os medos. Suas parábolas atraem para o amor a Deus, não para a submissão cega à lei. Sua presença faz crescer a liberdade, não as servidões; suscita o amor à vida, não o ressentimento. Jesus cura porque ensina a viver somente da bondade, do perdão e do amor que não exclui ninguém. Cura porque liberta do poder das coisas, do autoengano e da egolatria. 


NECESSITAMOS DE MESTRES DE VIDA


Jesus não foi um profissional especializado em comentar a Bíblia ou interpretar corretamente seu conteúdo. Sua palavra clara, direta, autêntica, tem uma força diferente que o povo sabe captar imediatamente.


Não é um discurso aquilo que sai dos lábios de Jesus. Tampouco, uma instrução. Sua palavra é um chamamento, uma mensagem viva que provoca impacto e abre caminho no mais profundo dos corações.


O povo fica assombrado “porque não ensina como os mestres da lei, mas com autoridade”. Esta autoridade não está ligada a nenhum título ou poder social. Não provém da doutrina que ensina. A força de sua palavra é ele mesmo, sua pessoa, seu espírito, sua liberdade.


Jesus não é “um vendedor de ideologias”, nem um repetidor de lições aprendidas de antemão. É um mestre de vida que coloca o ser humano diante das questões mais decisivas e vitais. Um profeta que ensina a viver.


É duro reconhecer que, com frequência, as novas gerações não encontram “mestres de vida” a quem poder escutar. Que autoridade podem ter as palavras dos dirigentes civis ou religiosos se não estão acompanhadas de um testemunho claro de honestidade e responsabilidade pessoal?


Nossa sociedade necessita de homens e mulheres que ensinem a arte de abrir os olhos, maravilhar-se diante da vida e interrogar-se com simplicidade pelo sentido último da existência. Mestres que, com seu testemunho pessoal, semeiem inquietude, contagiem vida e ajudem a propor, sinceramente, as interrogações mais profundas do ser humano.


Fazem pensar as palavras do escritor anarquista A. Robin, pelo que podem pressagiar para a nossa sociedade:
“Suprimir-se-á a fé em nome da luz; depois se suprimirá a luz.
Suprimir-se-á a alma em nome da razão; depois se suprimirá a razão.
Suprimir-se-á a caridade em nome da justiça; depois se suprimirá a justiça.
Suprimir-se-á o espírito de verdade em nome do espírito crítico; 
depois se suprimirá o espírito crítico”.

O evangelho de Jesus não é algo supérfluo e inútil para uma sociedade que corre o risco de seguir tais caminhos.


Tradução de: Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.


* José Antonio Pagola é sacerdote espanhol. Licenciado (= mestrado) em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma (1962), licenciado em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (1965), Diplomado em Ciências Bíblicas pela École Biblique de Jerusalém (1966). Professor no Seminário de San Sebastián e na Faculdade de Teologia do norte da Espanha (sede de Vitoria). Desempenhou o encargo de reitor do Seminário diocesano de San Sebastián e, sobretudo, o de Vigário Geral da diocese San Sebastián (Espanha). É autor de vários ensaios e artigos, especialmente o famoso livro: Jesus - Aproximação Histórica (publicado no Brasil pela Editora Vozes, 2010).

Fonte: MUSICALITURGICA.COM - Homilías de José A. Pagola - 24/01/2012 - 22h24 - Internet: http://www.musicaliturgica.com/0000009a2106d5d04.php
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Continuando a reflexão...

De anjos e demônios 

Honorio Cadarso
Atrio
25.01.2012

Jornalista espanhol, tendo em vista a leitura do Evangelho que será proclamado no próximo domingo nas igrejas católicas, "pede a todos aqueles que pregarão nas missas de domingo 29, que tentem fugir do disco quebrado de uma leitura e interpretação do Evangelho 'ao pé da letra' ".
No domingo, 29 de janeiro [2012], os pregadores deverão explicar um texto de Marcos (Mc 1, 21-28), que conta como Jesus, na sinagoga de Cafarnaum, expulsou um demônio de um possuído e falou com autoridade.


O Novo Testamento está cheio de páginas de anjos e demônios: Miguel, Gabriel, Rafael, serafins, querubins, arcanjos.  Lúcifer, Satanás, entre outros. O Antigo Testamento começa em Gênesis com a história do demônio que se disfarçou de serpente e enganou Eva.


Se olharmos para outras religiões, quase todas estão cheias de seres intermediários entre os deuses e os humanos e o mundo natural: a cultura greco-romana fala de ninfas, sátiras, semideuses... Das religiões indígenas talvez possa se dizer alguma coisa semelhante; e as das culturas da América; a mitologia basca está cheia de lâmias e "gentis".


A cultura galega e muitas outras povoam o universo de almas penadas. As almas dos nossos falecidos continuam a viver e, falando conosco em sonhos, elas nos abordam nos momentos em que nos sentimos sós...


A cultura moderna distanciou-se dessas imagens sacralizadas e criou seus “anjos” leigos, uns seres poderosos que substituem o “deus ex machina” como Superman, Spiderman, os pitufos ou o Bob Esponja.


Como nos situar diante desses mundos pensados, ou talvez melhor dizer “sonhados“, “fantasiados”?


Vale a pena ler ou, se nós já tivermos lido, reler a história-poema de García Lorca, onde ele conta como a Guarda Civil massacrou os ciganos de Jerez: ali Nossa Senhora leva uma capa de papel de chocolate, São José uma outra de seda, e ambos se dedicam a recolher os ciganos feridos na caverna de Belém e a curá-los com salivinha de estrelas e outras pomadas maravilhosas. E logo poderíamos ler os poemas que García Lorca dedica a São Gabriel, de Granada e a São Miguel, que eu acho que é de Sevilha, e a São Rafael, que creio que é de Córdoba. E, em seguida, deveríamos ler a Ode ao Santíssimo Sacramento. Garcia Lorca aborda o tema da religião num linguajar entre sonhador e contador de histórias, no entanto, mostra um respeito e consideração muito grandes com aqueles que acreditam nisso. Não esqueçamos que, a partir da sua incredulidade e agnosticismo, Federico era um amigo íntimo do fervoroso Manuel de Falla...


Talvez os endemoniados do evangelho fossem simplesmente vítimas de ataques epiléticos... Talvez aquele episódio em que se diz que uma tropa de demônios tomou posse dos corpos de um rebanho de porcos e levaram todos eles para se afogar no mar, careça de historicidade...


A dicotomia entre anjos e demônios parece supor que no mundo governam ou lutam dois princípios opostos, o Bem e o Mal. Em qualquer caso, a superabundância de anjos em todos os cantos da vida e do universo não combina com a autonomia que nós pensamos que Deus deu ao mundo que Ele criou e que ele viu que era bom, que ficou bem feito. A gente pensa que esses seres intermediários não têm significado num mundo assim. Como entender as tentações que teve Jesus, no início da sua vida pública, quando dizemos que o diabo o levou ao pináculo do templo e a um monte muito alto?


A gente pensa que os problemas que enfrentamos neste mundo não podem ser resolvidos pela intervenção de nosso anjo da guarda ou do padroeiro dos viandantes, São Rafael. Para cada mistério e problema é preciso encontrar uma resposta e uma solução científica. A gente pensa que o mal não se cura com exorcismos, mas com tratamentos médicos ou cirúrgicos. Em lugar de pedir ao Todo-Poderoso que mande os demônios longe do Afeganistão ou do Irã ou de Wall Street e do mundo empecatado dos Mercados, do Standard and Poors e de Moodys, o que deveria ser feito é promover reformas econômicas e políticas para acabar com todas essas desordens...


Eu não me preocupei de ler no catecismo moderno o que ele diz sobre anjos e demônios. A intenção aqui também não é de dar respostas definitivas, mas sim levantar questões, hipóteses de trabalho. E pedir a todos aqueles que pregarão nas missas de domingo 29, que tentem fugir do disco quebrado de uma leitura e interpretação do Evangelho "ao pé da letra".


A gente pensa que o famoso princípio do Mal, no qual os maniqueístas parecem acreditar, é um ser fictício, que o ser humano carrega dentro de si o seu próprio demônio que o empurra ao mal, carrega em si mesmo a limitação, a finitude e a doença.


O ser humano se depara, se encontra de cara com o mundo criado e com seus pares e com o outro lado do seu próprio ser, aquele que sustenta e dá o ser à sua própria existência... Esse que alguns chamam de Deus.


Tradução de Susana Rocca.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Sexta-feira, 27 de janeiro de 2012 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/506157-de-anjos-e-demonios